REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11319643
Thiago de Oliveira Demiciano
RESUMO
Com a advento de uma nova vertente de criminalidade, tais como nos delitos de corrupção, terrorismo e organização criminosa, o Estado possui dificuldades para apuração, processamento e condenação dos responsáveis, porque as provas nestes delitos não são materializadas em documentos e/ou simples perícias. Desta forma, tenta-se criar um modelo paralelo de Direito Penal para afastar as dificuldades enfrentadas, mitigando direitos e garantias dos indivíduos. Todavia, em um Estado Democrático de Direito é necessário reforçar e respeitar estas barreiras para se manter alinhado ao sistema Garantista (adotado na Constituição Brasileira).
Palavras chaves: Garantismo, Processo Penal Democrático, Direito Penal do Inimigo
Introdução
Antes de abordar a necessidade de manutenção do garantismo vale a pena tecer breves conceitos de Terrorismo, Corrupção e Crime Organizado, temas que nos dias atuais são os grandes desafios para manutenção da Ordem Pública, já que são situações complexas que requerem do aparato investigatório e acusatório posturas ativas buscando sua prevenção e repressão
Antes de iniciar a análise do tratamento do Terrorismo na Legislação Brasileira é necessário antes conceituar este fenômeno mundial que não possui de forma unânime seu conteúdo.
Não há um conceito unânime de Terrorismo, porque deve se levar em conta o valor histórico, que possui grande força política e também emotiva de uma nação de determinado local determinado, como também o tratamento depende destes fatores mencionados, sendo, inclusive, afirmado pela Professora Carmen Lamarca Perez que o vocábulo terrorismo é uma linguagem comum de fonte mais emotiva que descritiva¹.
Desta feita o vocábulo terrorismo é muito utilizado para desqualificar uma ação violenta de determinado grupo que faz alguma reivindicação, que pode possuir um caráter político, social e/ou econômico, que não encontra simpatia pela maior parte da população, em que se deseja causar instabilidade no seio da comunidade.
Já a corrupção é um problema dentro da administração pública na busca do bem comum. As pessoas que são responsáveis pela administração deixam de agir pensando no bem coletivo, mas trabalham para atender os interesses particulares, se utilizando da máquina pública como instrumento, violando as regras do Estado.
No mais, sempre que há um funcionário público corrupto temos do outro lado da relação um particular que quer conquistar uma facilidade, sem que seja atendido os requisitos estabelecidos pelo Estado Democrático de Direito.
Já o crime organizado é a união de pessoas com a finalidade de praticar crimes, com a intenção de produzir riqueza praticando ilícitos e lucrando como uma empresa do crime
No Brasil, particularmente no Estado de São Paulo, foi instituída um grupo criminoso que controla boa parte do tráfico de drogas e também organiza as práticas delitivas com um plano empresarial. Destaca-se, inclusive, que no momento as investigações encontram indícios que esta organização está se tornando multinacional.
Organização da Sociedade – Estado de Direito
Neste sentido a comunidade local inicialmente se organizou para que fosse possível viver de forma coletiva, dentro de uma previsibilidade e segurança.
O ser humano é por natureza um ser social. Em qualquer período da história em que analisemos, os homens sempre viveram em comunidades, mesmo os mais ancestrais. Para manter uma organização e convivência pacíficas, sempre surgem entre os indivíduos regras, ou seja, direitos e deveres inerentes a todos.
A partir desse agrupamento humano e do surgimento do direito, os homens, em algum momento, estabelecem regras, que acabam criando a organização do Estado.
Nesse sentido:
A Constituição, como vimos antes, dá origem ao Estado e é uma lei proeminente que conforma o Estado, ou seja, dentro do Estado há um limite que é a própria Constituição e, portanto, qualquer ato estatal que ultrapasse os limites constitucionais será inválido. Não há espaço, dentro de um Estado Constitucional Democrático, para atos que importem o arbítrio do administrador. Há que se ter em mente que a partir do momento em que se admite a criação de um Estado por força e manifestação popular, não se pode retroagir. As conquistas e as lutas sociais que geram um poder legítimo, com força constitucional, devem representar o valor supremo de uma nação do qual não se deve abrir mão. (Rangel, Paulo. Investigação Criminal Direta pelo Ministério Público visão crítica. 5ª ed – Rio de janeiro: Editora Atlas, 2016, p. 11).
A Constituição é uma norma fundamental, que organiza o Estado. Ela pode ser democrática ou totalitária, ou seja, pode estabelecer ou não direitos para os cidadãos que integram e formam o Estado.
O Estado surgiu como forma de garantir soberania de um povo em determinado território, todavia, tal modelo não se mostrou adequado quando se observava a perspectiva dos súditos, estes eram obrigados a trabalhar em favor do Poder Soberano irrestrito, já que todas as normas eras emanadas por ele, tornando-o sem balizas legais para o exercício dos seus mandos e desmandos.
Com o advento da Revolução Francesa a situação se inverteu, porque o Estado passou a tutelar o direito individual dos cidadãos, sendo aquele mantido para garantir direitos e não mais privilégios de uma pequena camada do Poder.
O Estado de Direito possui três pressupostos: juridicidade, constitucionalidade e direitos fundamentais
Ao se decidir pela formação de um Estado de Direito é necessário constituir estruturas do poder político e a organização da sociedade segundo a medida do direito, ou seja, um meio de ordenação racional que vincula a organização da sociedade por meio de regras estabelecidas previamente pelo corpo social.
A juridicidade consiste na ordenação de regras globais para convivência coletiva, de forma racional, com a finalidade de efetivar valores políticos, econômicos, sociais e culturais, para realização da justiça.
As normas instituídas devem estabelecer padrões de conduta, para assegurar que a sociedade viva de forma previsível, sob pena de uma sanção por descumprimento das regras criadas, todavia deve se buscar manter o máximo de liberdade para tomada de decisão de forma individual.
O Estado ser constituído por uma estrutura de normas fundamentais que visam instituir uma ordem suprema, de onde serão emanadas as regras basilares do sistema, como organização deste estado, forma de aquisição do Poder e também como devem ser criadas as outras normas
Ademais, nesta norma constitucional deve ser criada a divisão dos poderes, instituindo para cada um suas prerrogativas e atribuições para que sejam exercidas de forma autônoma e independente.
Verifica-se que até o momento a estrutura do Estado de Direito não trás qualquer elemento de participação efetiva da sociedade, podendo tais critérios serem utilizados para criação e manutenção de um Estado Autoritário que não respeita a vontade da maioria, bem como não respeita de forma efetiva os direitos individuais das pessoas que formam seu Povo.
Desta forma o Estado de Direito precisou evoluir para um modelo que além de proteger e dar segurança jurídica, pudesse respeitar a vontade da maioria, bem como trazer apresentar em sua estrutura o respeito pela Democracia.
Democracia não deve ser entendida apenas como vontade da maioria, mas deve ser observada da perspectiva do respeito da maioria pela minoria, para que com o convívio social ela possa se tornar maioria, dentro do diálogo social.
Neste contexto é necessário apresentar alguns princípios básicos para formação de um Estado de Direito que também seja um Estado Democrático, o que a doutrina convencionou chamar de Estado Democrático de Direito.
A atual Constituição, porém, em razão de seu momento histórico de criação (pós período de ditadura, ou seja, de privação de direitos aos cidadãos), tem por característica ser uma constituição democrática. Vivemos, então, pelo menos na teoria, em um Estado Democrático de Direito.
Em um Estado que visa ser democrático, é necessário dar aos seus integrantes, todos os cidadãos, possibilidade de participarem da elaboração das leis e da tomada de decisões do poder público. É preciso que haja uma igualdade de todos perante a lei, a existência de um juiz natural, ou seja, que haja regra pré-estabelecida sobre quem irá julgar conflitos (não se compatibiliza com democracia um tribunal de exceção), respeito as garantias e direitos individuais e de leis elaboradas em respeito aos mandamentos constitucionais. Importante destacar que existem normas internacionais sobre direitos e garantias individuais que também devem ser absolvidos pelo direito interno.
Nesse sentido:
Podemos definir o Estado de Direito justo como aquele que respeita, protege e cumpre os direitos da pessoa consagrados não só na Constituição que lhe deu origem, mas também nos pactos, convenções e tratados internacionais, que são verdadeiras fontes de juridicidade do poder estatal, que, em alguns Estados, têm patamar de fonte de Direito superior à própria constituição (v. g., Holanda e Áustria). São eles: Pacto Internacional de Direitos Pessoais, Civis e Políticos (Resolução nº 2.200A da XXI Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, realizada em 16/12/1966); Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica – de 22/11/1969, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 27, de 25/9/1992); Declaração Universal dos Direitos do Homem (aprovada pela Assembleia-Geral da ONU, realizada em Paris, em 10/12/1948). (Rangel, Paulo. Investigação Criminal Direta pelo Ministério Público visão crítica. 5ª ed – Rio de janeiro: Editora Atlas, 2016, p. 12).
A Constituição Federal de 1988 privilegia direitos e garantias fundamentais, bem como recepciona para o direito interno os tratados internacionais (artigo 5ª, §2º, da Constituição Federal). O Poder Público está vinculado à tal ordem jurídica.
Direitos e Garantias de Todas as Pessoas – Garantismo Penal
Os termos direito e garantia se diferenciam. Direito é um conjunto de normas elaboradas pelo Estado com característica de coercibilidade, ou seja, uma vez não cumprido, o seu titular pode exigi-lo. Assim, por exemplo, todo cidadão tem direito a liberdade.
As garantias são os mecanismos criados para a proteção da ordem jurídica, ou seja, para garantir o exercício dos direitos. Nesse passo, há a criação do habeas corpus, portanto, um mecanismo para garantir a liberdade.
Como já dissemos, em razão do momento em que foi elaborada, a atual Constituição Brasileira tem por característica elencar diversas garantias, dentre elas, destacamos o devido processo legal.
Não há como se falar em garantia, sem adentrar na teoria do garantismo penal de Luigi Ferrajoli.
É certo que o direito penal visa garantir a segurança de todos os cidadãos, mas ela não exclui também a proteção do próprio acusado.
Nesse sentido, o garantismo não prega um abolicionismo penal. Pelo contrário. O direito penal é necessário até mesmo para evitar as vinganças privadas.
Destaca-se que na origem das organizações humanas, a vingança era privada, o que trazia um grave problema: um ciclo eterno de vingança e uma falta de proporcionalidade. A evolução das sociedades levou a uma transferência do poder de punir (vingança) do privado para o Estado.
Assim, o direito penal, de certa maneira impede que voltemos para a vingança privada, numa situação em que o mais forte sempre levará vantagem e que gera um ciclo infinito de violência.
Passada essa premissa, podemos dizer que o garantismo legitima a punição, mas exige o cumprimento de condicionantes, ou seja, o poder de punir não é ilimitado, pelo contrário, deve seguir regras claras.
O direito penal e processual penal não é um mal em si. Só é um mal quando não preenche os seus requisitos de aplicação.
Segundo o garantismo, os crimes não são condutas naturalmente más em si, mas sim um resultado da definição cultural (sistema convencionalista). Assim, podemos dizer que para a teoria o homicídio não é uma conduta que por natureza é crime, mas sim resultado de uma definição social. Tanto é assim, que há situações em que se autoriza o homicídio e até mesmo previsão de pena de morte.
Há necessidade de se diferenciar o direito da moral. Para isso, quer-se sistematizar o direito penal e processual penal através do direito, ou seja, é direito tudo o que passa por discussão coletiva no congresso e que, com isso, ganha uma espécie de “selo” democrático. A moral de cada um não é direito. Qualquer questão moral, para um dia virar direito, tem que antes passar por discussão no legislativo.
Um grande problema na aplicação da lei surge quando um juiz não quer aplicar a norma, mas sim a sua moral individual. Seguir morais pessoais é um caminho perigoso que pode conduzir a um autoritarismo.
Como veremos, este é um vício cada vez mais comum no poder judiciário brasileiro.
Para Ferrajoli, não basta a mera legalidade, ou seja, a tipificação de uma conduta. É preciso uma estrita legalidade. Destaca o autor:
Enquanto o axioma de mera legalidade se limita a exigir a lei como condição necessária da pena e do delito (nulla poena, nullum crimen sine lege), o princípio da legalidade estrita exige todas as demais garantias como condições necessárias da legalidade penal (mnulla lex poenalis sine necessitate, sine injuria, sine actione, sine culpa, sine judicio, sine accusatione, sine probatione, sine defensione). (…) a simples legalidade da forma e da fonte é condição da vigência ou da existência das normas que prevêem penas e delitos, qualquer que seja seu conteúdo; a legalidade estrita ou taxatividade dos conteúdos, tal como resulta de sua conformidade para as demais garantias, por hipótese de hierarquia constitucional, é, ao revés, uma condição de validade ou de legitimidade das leis vigentes. (Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do pragmatismo penal. 2ª ed. ver. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 93).
Um país atinge a democracia plena quando preenche 10 axiomas.
Nossa Constituição Federal traça o modelo que deve ser atingido em busca da concretização destas garantias (pode-se dizer até que a referida norma fundamental está localizada no mundo do dever ser, eis que prescreve como deve ser o direito e quais as garantias para se efetivar o Estado Democrático de Direito). A grande dificuldade está em conseguir concretizá-la na prática, principalmente quando há um populismo penal contrário ao seu cumprimento.
Os axiomas não servem para descrever o mundo, mas sim para prescrever o que seria o justo.
Para efetivar o garantismo, deve-se cumprir os seguintes axiomas (verdades que não precisam de demonstração, por serem evidentes):
1- Nulla poena sine crimine, portanto, não há pena sem crime. O que é bem óbvio, eis que não faria sentido punir alguém que não tenha praticado nenhuma conduta definida convencionalmente como criminosa. Retribui-se pelo delito praticado.
Tanto é assim, que não punimos pensamentos criminosos, mas apenas a conduta praticada.
2- Nullum crimen sine lege, o que significa que não há crime sem lei. Nada mais é que o princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito.
3- Nulla lex (poenalis) sine necessitate porque não há lei penal sem necessidade. A lei não pode ser arbitrária. Ela deve existir só na medida em que tiver necessidade. Disso resulta uma intervenção penal mínima. Ou seja, só se deve utilizar o direito penal como última alternativa, apenas quando todos os demais ramos do direito não forem suficientes para solucionar a questão. Isso se deve ao fato de ser o direito penal aquele que atinge a liberdade do indivíduo na sua punição.
Podemos concluir que não há pena criminal se não houver necessidade.
4- Nulla necessitas sine injusria, pois não há necessidade sem ofensa a bem jurídico. Nada mais é que o princípio da lesividade ou ofensividade do evento.
5- Nulla injuria sine actione, ou seja, não há ofensa ao bem jurídico sem ação. Não se deve punir a pessoa pelo que ela é, mas apenas pelo que ela fez (princípio da materialidade ou da exterioridade da ação). Portanto, não devo punir um indivíduo por ser pobre ou negro, mas sim por uma eventual conduta criminosa por ele praticada. No mesmo sentido, não puno uma pessoa “antecipadamente” diante da notícia de tendência psicológica de praticar crimes.
6- Nulla actio sine culpa, pois não há ação sem culpa (princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal). Não se pode admitir a responsabilidade penal objetiva, ou seja, desvinculada de um elemento subjetivo (dolo ou culpa).
Os axiomas não se voltam apenas ao âmbito material de crime, mas também atingem o aspecto processual, que tanto nos interesse neste estudo.
Prosseguem os axiomas:
7– Nulla culpa sine judicio, eis que não há culpa sem processo (princípio da jurisdicionalidade no sentido lato ou estrito). Ora, só existe culpa se houver um julgamento. Portanto, é preciso demonstrar que houve a prática da conduta, que ela é contrária ao direito, que o indivíduo agiu movido por um elemento subjetivo (dolo ou culpa), enfim, todos os elementos do crime.
8- É comum o apelo popular de imediata punição, principalmente quando se tem na televisão imagens, por exemplo, de alguém recebendo uma mala de dinheiro.
9- Ainda em situações tais, a existência de processo judicial é essencial, eis que a imagem representa apenas uma fração da realidade, sendo possível apresentar elementos que demonstrem que houve erro de interpretação. Por exemplo, o dinheiro poderia ser o pagamento de uma prestação de serviços lícita, ou mesmo um empréstimo.
10- Nulla judicium sine accustone, afinal, não há processo sem acusação (princípio acusatório ou da separação entre o juiz e a acusação). Para um sistema democrático é necessária a adoção de um sistema acusatório, com a distinção entre a pessoa que acusa e a pessoa que defende. Isso porque em um sistema acusatório, onde o julgador é também o acusador, há uma tendência natural do ser humano de confirmar suas hipóteses iniciais, portanto, aquele que formou sua convicção para acusar, logicamente vai buscar elementos para confirmar a sua opinião.
11- Nulla accusatio sine probatione, uma vez que não há acusação sem prova (princípio do ônus da prova).
12- Tal axioma tem sido constantemente violado, principalmente em razão das mídias sociais. É muito comum a publicação de acusações sem provas em notícias que se espalham rapidamente.
13- Isso, evidentemente, viola um estado democrático de direito. Imagem que foi prejudicada não será restaurada integralmente, mesmo com uma absolvição posterior no processo.
14- Nulla probatio sine defensione, afinal, a prova só existe quando produzida em um diálogo entre acusação e defesa. O contraditório à acusação é necessário para a busca da verdade. Tanto é assim, que no processo penal ninguém pode ser processado sem ser acompanhado de uma defesa técnica. A Constituição Federal de 1988 criou um órgão específico para a defesa daquelas que não possuem capacidade financeira para contratar um patrono particular: a Defensoria Pública.
Ferrajoli resume os axiomas em 10 princípios que, segundo ele, definem o modelo garantista:
Denomino estes princípio, ademais das garantias penais e processuais por eles expressas, respectivamente: 1 princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; 2 princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3 princípio da necessidade ou da economia do direito penal; 4 princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; 5 princípio da materialidade pessoal; 6 princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoas; 7 princípio da jurisdicionalidade, também no sentido lato ou no sentido estrito; 8 princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9 princípio do ônus da prova ou verificação; 10 princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade. Estes dez princípios, ordenados e aqui conectados sistematicamente, definem – com certa força de expressão linguística – o modelo garantista de direito ou de responsabilidade penal, isto é, as regras do jogo fundamental do direito penal. (Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do pragmatismo penal. 2ª ed. ver. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 91).
A nossa Constituição Federal atende aos dez axiomas, eis que prevê a todos eles.
A democracia é o resultado, porém, do cumprimento de tais premissas. E, neste ponto, é necessário levantar um questionamento: estamos realmente atendendo aos anseios da Constituição? Conseguimos efetivar o garantismo e nos ternarmos, de fato, um Estado Democrático de direito?
Não se trata de uma questão de fácil resposta. Pelo contrário. Talvez nem haja uma resposta certa neste momento.
É certo que vivemos em um momento de instabilidade política, econômica e social, que tem cada vez mais refletido na análise de questões criminais.
O garantismo, em vez de ser cumprido, tem sido visto por muitos até mesmo como um obstáculo a ser superado para se efetivar a justiça.
O que vemos com grande frequência é a utilização do processo penal com vistas a atingir uma “utilidade” ao invés de buscar a garantia de direitos fundamentais.
Deseja-se punir com rapidez, o que acaba por resultar no desrespeito das garantias estabelecidas na própria Constituição Federal.
Direito Penal do Inimigo e sua Constitucionalidade
A questão que se põe então é: estamos nos dirigindo a um direito penal do inimigo em nosso sistema sob a ideia de buscar um resultado útil? Será que vale tudo para punir os supostos criminosos eleitos como inimigos?
Importante neste ponto rememorar a questionável teoria do direito penal do inimigo.
Trata-se de teoria desenvolvida pelo alemão Günther Jakobs na década de 1980.
Para entender a teoria é importante rememorar o contexto histórico em que ela surgiu. Tratava-se de período relativo à queda do Muro de Berlim, portanto da unificação de duas Alemanhas, oriental e ocidental, que haviam permanecido separadas por longo período, no qual acabaram por tomar rumos de desenvolvimento diferente.
Tal teoria, incialmente não ganhou adeptos. Isso porque o mundo caminhava no sentido da democratização e não no autoritarismo que Jakob pregava.
Um evento de grande escala no mundo, porém, fez tal teoria ganhar maior importância e, com isso, relevo no cenário mundial.
Trata-se do ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas do World Trade Center.
Tal evento chamou a atenção do mundo e, principalmente dos norte americanos, para o temor acirrado ao terrorismo.
Nesse ponto, a teoria do direito penal do inimigo atendida aos anseios da população americana contra os seus “inimigos”.
Aí a teoria ganhou destaque exatamente por defender a criação de dois direitos concomitantes: direito penal do cidadão e direito penal do inimigo.
As bases filosóficas para tal distinção foram tiradas de Rousseau, Kant, Hobbes e Fichte. Em Rousseau na medida em que ele defende que o indivíduo abre mão de parte de sua liberdade para o bem coletivo – pactos social, sendo certo que o inimigo fica excluído deste pacto. De Kant, que escreveu a metafísica dos costumes, vem a ideia de que o que quer destruir o Estado deve ser eliminado. De Hobbes, que escreveu Leviatã, vem a certeza de que por mais que o inimigo queira atingir o Estado, este sempre irá vencer. Por fim, de Fichte, que escreveu sobre o contrato cidadão, vem a ideia de que os cidadãos tem obrigações na sociedade.
O direito penal do cidadão nada mais é que o direito garantista que já analisamos. Trata-se de um ramo do direito penal em que a maioria das pessoas devem estar inseridas (considera-se que a maioria serão cidadão e só uma minoria será inimigo). Reconhece-se o respeito e as garantias fundamentais da pessoa humana reconhecidas numa Constituição. Não significa que não haverá punição, mas sim que para punir procedimentos deverão ser rigidamente seguidos e direitos deverão ser assegurados. Aí engloba o direito a um devido processo legal, com contraditório e ampla defesa. Direito de ter advogado, de não ficar incomunicável, dentre outros.
Trata-se também de um direito penal retrospectivo, o que significa que a punição vai se dar de acordo com o ato que a pessoa praticou. Não se pune o indivíduo pelo que ele é, mas sim pelo que ele fez (direito penal do fato).
A punição se baseia, portanto, na culpabilidade.
O outro ramo do direito, este sim diferente, é o que se direciona ao inimigo. Nele devem se inserir uma parcela restrita de pessoas, apenas os inimigos.
Trata-se de um direito penal autoritário, eis que se retiram do acusado direitos previstos na Constituição (que para ele simplesmente não se aplica). São, portanto, suprimidos direitos e garantias fundamentais. Por exemplo, ao inimigo não se garante contraditório e ampla defesa, duplo grau de jurisdição, permite-se a incomunicabilidade do indivíduo, dentro outros.
O direto penal do inimigo é prospectivo, portanto, ele não se interesse pelos atos que já foram praticados. Ele se baseia em uma periculosidade. Há um “olhar para o futuro”, na medida em que se analisa o risco de tal pessoa vir a praticados atos considerados perigosos.
Não deixa de ser um caso de direito penal do autor, eis que se pune a pessoa pelo simples fato de ser ela o inimigo.
Em suma, o direito penal do inimigo se fundamenta em alguns pilares:
– antecipação da punição: posso punir o agente antes que ele pratique qualquer conduta. Ademais, se para o cidadão a punição depende do início, ao menos, de atos de execução, para o inimigo a prática de qualquer ato preparatório já é mais que suficiente para penalizar. Surge o que podemos chamar de direito penal preventivo;
– desproporcionalidade das penas: o inimigo será punido com mais rigor. Por exemplo, será ele punido por mero ato preparatório com a mesma pena do crime consumado para os cidadãos;
– criação de eis especificas e mais severas (é um ramo de direito penal que coexiste com o direito penal do cidadão, eles simplesmente não se derrogam);
– flexibilização de garantias processuais: como o inimigo está fora do Estado (e é contra ele), não merece a mesma proteção conferida ao cidadão. Assim, não há necessidade de ser seguido rigidamente um processo, de ser garantida uma defesa, etc;
– ampliação dos poderes da polícia: ao invés de ser necessário fiscalização prévia dos atos pelo judiciário, para o inimigo ela se dá a posteriori. Portanto, pode a polícia primeiro fazer uma interceptação telefônica ou uma busca e apreensão e só depois submeter ao crivo do judiciário.
– possibilidade de crimes com descrição vaga no preceito primário e no preceito secundário.
– adoção da confissão como principal meio de prova: enquanto no sistema garantista do cidadão as provas tem valor equivalente, para o inimigo a confissão é suficiente, sendo possível a utilização de tortura para obtê-la. Fundamenta-se tal possibilidade na proporcionalidade, uma vez que “melhor sacrificar” a integridade física do inimigo que a de milhares de pessoas inocentes que podem vir a ser atingidas por sua conduta.
Segundo Jakobs:
(…) o direito penal do inimigo se caracteriza por três elementos: em ´primeiro lugar, constata-se um amplo adiantamento da punibilidade, isto é, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), no lugar de – como é habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionalmente altas, especialmente, a antecipação da barreira de punição não é considerada para reduzir, correspondentemente, a pena cominada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são relativizadas ou inclusive suprimidas. (Jakobs, Günther e Meliá, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas org e trad. André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli. 6ª ed. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 90)
Uma grande questão que se coloca para tal teoria é: mas quem é o inimigo?
Para Jakobs o inimigo é a antítese do cidadão. Não é, porém, qualquer criminoso que vai ser considerado inimigo, até porque ele mesmo reserva um direito penal para cidadão.
A pessoa que pratica um único crime grave, aquele que reitera em tal conduta e até mesmo o criminoso habitual (aquele que passa a fazer do crime seu meio de vida) permanecem cidadãos.
A eles se aplica o direto penal do cidadão, com todas as garantias e direitos previstos na legislação.
Inimigo, portanto, é só quem vai além disso: é aquele que passa a integrar uma organização criminosa, ou seja, uma estrutura ilícita de poder que tem suas próprias regras e quer se sobrepor ao Estado, e o terrorista. Aliás, o terrorista é o inimigo por excelência.
Nesse sentido:
(…) o direito penal conhece dois polos ou tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade. Um exemplo d primeiro tipo pode constituir o tratamento dado a uma homicida, que, se é processado por autoria individual só começa a ser punível quando se dispõe imediatamente a realizar o tipo (p. 22, 21 StGB), um exemplo do segundo tipo pode ser o tratamento dado ao cabeça (chefe) ou a quem está por trás (independentemente de quem quer que seja) de uma associação terrorista, ao que alcança uma pena só levemente mais reduzida do que a corresponde ao autor de uma tentativa de homicídio, já quando funda a associação ou leva a cabo atividades dentro desta (p 129 a StGB), isto é, eventualmente anos antes de um fato previsto com maior ou menor imprecisão. Materialmente, é possível pensar que se trata de uma custódia de segurança antecipada que se denomina pena. (Jakobs, Günther e Meliá, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas org e trad. André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli. 6ª ed. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 36).
Um grande ponto de críticas a teoria do direito penal do inimigo é justamente a definição deste “inimigo”.
Não há uma divisão clara entre o conceito de cidadão e inimigo, o que dificulta a aplicação da teoria.
A definição de quem é ou não cidadão se poderia dar após a prática do fato.
Uma definição incerta permite que quem governa encaixe no conceito de inimigo todos aqueles que são contra seu pensamento.
A assunção do direto penal do autor também gera críticas. A partir do momento em que se foca em identificar um grupo inimigo para dominar ao invés de em um fato criminoso, se abre margem a situações arbitrárias.
Há um evidente perigo na aplicação de tal teoria, eis que facilmente conduz a situações como a ocorrida na Alemanha Nazista, que elegeu inimigos (judeus e ciganos, por exemplo) e deles retirou todas as espécies de direitos e garantias.
Critica-se ainda a teoria porque ele não poderia se compatibilizar com um Estado Democrático de Direito que presa pela isonomia dos indivíduos. Para fazer qualquer diferenciação é necessário que haja uma proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). O Direito penal do Inimigo não se adequa a isso.
Ainda que ele seja adequado para alcançar a eliminação de um perigo, é certo que ele não é necessário, eis que existem meios menos lesivos e mais adequados para alcançar o mesmo fim.
A Constituição Federal Brasileira, como já dissemos, é eminentemente garantista. Quer ela a criação de um Estado Democrático de Direito com respeito às garantias e direitos fundamentais. Assim, formalmente, ele não autoriza a aplicação do direito penal do inimigo.
Destaca-se que a norma fundamental estabelece em seu artigo 5º, “caput”, o princípio da isonomia: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
É assegurado a todos, inclusive, o devido processo legal e o contraditório e ampla defesa, bem como é garantida a integridade física de qualquer acusado (veda tortura).
Não há margem na Constituição, portanto, para um direito penal do inimigo.
Muitas leis infraconstitucionais, porém, têm sido apontadas como influenciadas pelo direito penal do inimigo.
Cita-se como exemplos: a Lei n.º 10.792 que alterou a Lei de Execuções Penais para criar o regime disciplinar diferenciado, a Lei n.º 9.614/98 que trata do abate de aeronaves suspeitas de serem hostis e a Lei n.º 8.072/90 que estabelece maior rigor para os crimes considerados hediondos.
Diante de tudo o que já foi explanado, é possível concluir que o garantismo traçado na Constituição Federal vem sofrendo constantes ataques, quer seja sob uma visão utilitarista quer seja sobre uma visão de direito penal do inimigo.
Conclusão
Como visto, o Estado de diversas formas tenta ao máximo se aproximar do modelo de persecução denominado Direito Penal do Inimigo nos crimes mais complexos, como os elencados no trabalho, qual sejam, Terrorismo, Corrupção e Crime Organizado.
Todavia, o modelo escolhido pelo Constituinte foi o Democrático e se instituiu como premissa a necessidade de observância de um Devido Processo Legal, o qual deve ser respeitado o Princípio da Presunção de Inocência, Ampla Defesa e Contraditório.
Qualquer modelo que segregue quaisquer destas garantias está agindo em desconformidade com a Constituição Federal e não pode ser tolerado.
Por outro lado o Estado precisa aprimorar suas instituições para investigar, processar e punir estes crimes, sempre levando em conta o Sistema Garantista, sem suprimir qualquer proteção dos indivíduos.
¹Lamarca Pérez, Carmen: Sobre o Conceito de Terrorismo.
Referências
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