A LEGALIDADE E A ETICIDADE DA PRÁTICA DA DISTANÁSIA

AND LEGALITY AND ETHICS OF THE PRACTICE OF DISTANASIA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202507152309


Roberta Diniz Gervasio


Resumo 

A morte sempre foi vista como algo que provoca nas pessoas inquietações e certos medos, quanto mais em face de um quadro de irreversibilidade. Cada vez mais o progresso tecnocientífico tem facultado pelo prolongamento da vida humana por um prazo cada vez mais elástico, e a família dos pacientes terminais têm optado pela prática da distanásia que, consiste em de tentativas fúteis de prolongamento do processo de morte de pacientes que se encontram em estado terminal, pautada em meios ineficazes. Em observância à legislação pátria pode-se notar que fere também preceitos legais, vez que reconhece que submeter a pessoa sem chances de cura a tratamentos obstinados não lhe traz nenhum benefício. De igual modo, abarca vertentes interpretativas da ética no fim da vida humana, bem como a dignidade de pessoas enfermas. O ponto central da discussão ocorre na eventual legalidade ou eticidade da prática da conduta distanástica, bem como naqueles casos em que o próprio paciente submetido à obstinação terapêutica, em um ato de autonomia de vontade, opta pela conduta distanástica. 

PALAVRAS-CHAVE: dignidade humana; legalidade; eticidade; tratamento fútil. 

1. INTRODUÇÃO 

Desde sempre as questões relacionadas à morte são vistas como um tabu. Destarte, mesmo estando diante de um paciente em estado irreversível, muitas vezes opta-se por uma busca indomável de postergar a hora da morte, utilizando-se de uma obstinação terapêutica – a distanásia.  

Tal tratamento, por ser fútil, causa grandes sofrimentos e angústias para os pacientes, vez que nada mais faz do que prolongar artificialmente a vida, ou seja, postergar de forma dolorosa a morte que é inevitável cientificamente. 

Ao longo de todo o trabalho anseia-se por encontrar elos que venham desmistificar a ideia de legalidade ou eticidade da prática de distanásia no Brasil, envolvendo o contexto da bioética para elucidar tal questionamento, pensando no sofrimento e na dor que essa prática pode causar, bem como na inobservância do princípio da dignidade da pessoa humana.

Esse trabalho tem como escopo apresentar vertentes acerca do que se pode entender por sendo uma morte digna, bem como enfatizar o mal causado pelo prolongamento artificial e fútil em pacientes que se encontrem em estado terminal, e abordar a importância do respeito à decisão autônoma da vontade do paciente. 

Emprega-se metodologia qualitativa, por meio de estudo bibliográfico baseado em doutrinadores, tais como: Léo Pessini (2007), Sertã (2005), dentre outros, bem como as legislações que tratam do tema CRFB/88 e CCB/02.  

Para maior clareza do tema, o trabalho foi dividido em seções. Inicialmente traz-se o aspecto conceitual de distanásia, estabelecendo-se conexões com a legislação pátria brasileira e a questão da ética no fim da vida humana – lesão à dignidade da pessoa enferma. Para posteriormente abordar casos concretos de distanásia, o exercício da medicina diante da mesma e a problemática do paciente que no exercício de sua autonomia opta pela conduta distanástica.  

Diante da importância desta temática para a atual discussão bioética em relação às questões de fim de existência humana, convida-se à reflexão a respeito do direito à dignidade do paciente terminal, por meio da leitura do presente texto. 

2. DISTANÁSIA 

Os avanços tecnológicos verificados nos últimos anos e empregados a serviço da saúde humana tem prolongado a vida por um prazo cada vez maior, trazendo várias consequências para as condutas médicas e práticas hospitalares, sendo uma delas a distanásia. Um dos sérios embates trazidos pelo tema é a questão sobre quem irá decidir sobre o prolongamento ou não da existência humana para além do tempo natural.  

2.1 Conceito 

Distanásia significa a tentativa de prolongar a vida de determinado paciente que se encontre em estado terminal. Ao iniciar o estudo acerca da temática, numa sequência histórica cronológica, encontra-se o seguinte conceito: do grego “diz”, mal, algo mal feito, e “thánatos”, morte. Na visão doutrinária: 

Trata-se do prolongamento exagerado da morte de um paciente terminal ou tratamento inútil. Não visa prolongar a vida, mas sim o processo da morte. Para Jean-Robert Debray, é o comportamento médico que consiste no uso de processos terapêuticos cujo efeito é mais nocivo do que o mal a curar, ou inútil, porque a cura é impossível, e o benefício esperado é menor que os inconvenientes previsíveis. (DINIZ, 2006, p. 399) 

Na perspectiva dessa afirmação, destaca-se como ponto-chave da questão, a forma que se adota para o prolongamento da vida, haja vista que a possibilidade de cura, pelo menos naquele momento e ao olhar humano e limitado, mostra-se impossível. A morte nesses casos é inevitável, e o que a distanásia produz é justamente prolongar o processo de morrer, ou protelar o dia da morte. Essa prática, em se tratando de um paciente em estado terminal, torna qualquer tratamento inútil e desnecessário. 

Outrossim, ainda no tocante à tentativa de conceituação da distanásia, está a noção de tratamento fútil. Que encontra embasamento na atuação da prática médica: muito embora não haja uma definição precisa, existe desde início por diversas áreas específicas da medicina. 

Conforme Leo Pessini (2007), o conceito é utilizado na prática médica pela razão precisa de que é portador de um conceito vital, ou seja, de que alguns tratamentos não atingem os objetivos da medicina e os médicos não são obrigados a prescrevê-los. É o que se entende ainda da análise da expressão tratamento fútil. 

A raiz do termo nos lembra que as palavras têm uma força mítica, bem como um sentido literal. Não é possível que expectativas não-realistas e pedidos irracionais de tratamentos fúteis, como por exemplo, ressuscitação cardiopulmonar num paciente com câncer com apenas algumas horas de sobrevida, possam ser expressão de profundas. (PESSINI, 2007, p. 150) 

ADONI (2003) preceitua que a “distanásia pode ser conceituada como agonia prolongada, o patrocínio de uma morte com sofrimento físico ou psicológico do indivíduo, sem perspectiva de cura”. 

2.2 A Distanásia e a legislação pátria 

A Distanásia pode ser abordada em suas multifaces, vez que não ser tema que se esgote apenas no aspecto médico, elenca preceitos e aspectos culturais, teológicos, que se somam também ao olhar jurídico-médico-social. 

Começando do aspecto legal, extrai-se do constituinte de 1988, no título dos Direitos Fundamentais, art. 5º, III: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (BRASIL. CF, 1988). Na mesma linha, porém com a ressalva para abertura do Direito personalíssimo, o CCB prevê que: “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica” (BRASIL. CCB, 2002). 

Diante da simples leitura destes dois dispositivos legais, pode-se constatar que é direito da personalidade, destarte, cabe a decisão pela própria pessoa, titular da vida, da saúde e do direito em tese, bem como da família, nos casos em que seja necessário o poder decisório. 

E versando sobre a sistemática que envolve a distanásia, entes públicos brasileiros, aborda-se o exemplo do Estado de São Paulo, vez que se manifestou contrário à adoção de tal procedimento, criando regramento movido a enfatizar o não prolongamento fútil. É o caso da Lei 10.241/99, conhecida como Lei Mário Covas, que assegura em seu art. 2º: “são direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo: XXIII recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida” (BRASIL. SÃO PAULO. Lei nº 10.241 de 1999). 

Acerca da abordagem religiosa, tem-se que grande parte dos segmentos não aceitam e corroboram para a prática da distanásia como forma de mitigação da morte. Pelo contrário, prezam pela morte natural, sem que haja meios extraordinários de sofrimento. 

Segundo Vieira (2012), a Igreja Batista defende o direito de o indivíduo tomar suas próprias decisões em relação às medidas ou tratamentos que prolongam a vida, esclarecida a maneira pela qual o paciente quer ser tratado, no fim de sua existência. Já as Testemunhas de Jeová também entendem que, quando a morte se mostra inevitável, não se deve exigir a utilização de meios extraordinários para manter o processo de morrer por mais tempo. As demais religiões, Luteranas, Episcopal e Ortodoxas Orientais, não divergem dessa forma de pensar. Se mostrando contra a distanásia e a favor de uma morte natural que não viole a santidade da vida humana. A maioria das religiões, embora entendam a vida como sagrada e como dom divino, entende a morte como real e natural; sendo assim, não se deve prolongar essa vida artificialmente, quando a morte é inevitável. 

Atualmente, a medicina trabalha com vistas ao futuro, procurando promover uma vida boa, saudável, aumentar o tempo de vida e sua qualidade. A morte é admitida com relutância no âmbito da medicina, como o limite para atingir tais objetivos. É sentida como falha […]. (PESSINI, 1996, p. 31)

O posicionamento da medicina é no sentido de possibilitar o maior quantitativo de vida, admitindo-se a morte com muita resistência à aceitação. Em uma perspectiva legalista, é notável o peso e embasamento que pode ser extraído dos princípios existentes no ordenamento jurídico, bem como a constatação de que este não se concebe sem a lei. 

Os princípios gerais de direito não constituem uma fonte de direito independente da lei ou do costume. É a própria norma costumeira ou legal que o juiz está aplicando depois de submetê-la a um raciocínio indutivo que lhe permitiu distinguir os princípios que nela estavam inclusos. (DANTAS, 1979, p. 85) 

O princípio que, sem sombra de dúvidas, perfaz maior relevância em matéria de Bioética – Distanásia é o da dignidade da pessoa humana.  

2.3 Ética no fim da vida e lesão à dignidade da pessoa enferma 

A raça humana, desde o princípio da civilização, importou-se com cuidados e com aqueles que se encontram em situações merecedoras de atendimentos médicos, evitando que a pessoa venha a falecer. 

Desde o início dos tempos, as sociedades oferecem apoio e conforto aos seus membros doentes e que estão morrendo. Normalmente, uma profunda reverência e mística envolve a pessoa que está nesta fase. O período que segue à morte é normalmente marcado pelo seguimento de rituais religiosos culturais. A necessidade de chorar a perda de um ente querido é reconhecida por muitas sociedades, embora as manifestações pela perda e o período formal de luto variem de uma cultura para a outra. (PESSINI, 2014, p. 360) 

A Declaração de Sidney sobre a Morte, adotada pela 22ª Assembleia Médica Mundial em Sidney, Austrália, em 1968, e emendada pela 35ª Assembleia Médica Mundial em Veneza, Itália, em outubro de 1983, deixa evidente o processo de gradação e avanço sobre o evento ao longo de toda história. (ENGELHARDT JUNIOR, 1996) 

Sem dúvida, os modernos avanços na medicina tornaram necessário um estudo minucioso da questão relativa ao momento da morte capacidade de manter por meios artificiais a circulação e o sangue oxigenado nos tecidos do corpo que podem ter sido danificados irreversivelmente. (PESSINI, 2014, p. 386)

A própria definição de morte deixa sem sombra de dúvidas de considerar esse processo insistente e fútil de prolongamento artificial, vez que não é atitude que elenca critérios condignos com as necessidades e especialidades inerentes a um final de vida com qualidade. Segundo Pessini (2014, p. 386), “uma pessoa está morta quando sofreu uma perda irreversível de toda a capacidade de integrar e de coordenar as funções físicas e mentais do corpo”. 

Existe um determinado momento na evolução de uma doença que, mesmo que se disponha de todos os recursos, o paciente não é mais salvável, ou seja, está em processo de morte inevitável. Este conceito não abrange apenas a potencialidade de cura ou reversibilidade de uma função orgânica atingida, mesmo tratando-se de órgão nobre. Refere-se àquele momento em que as medidas terapêuticas não aumentam a sobrevida, mas apenas prolongam o processo lento de morrer. A terapêutica, neste caso, torna-se fútil ou pressupõe sofrimento. Neste momento, a morte não mais é vista como um inimigo a ser temido e combatido, muito pelo contrário, deve ser bem-vinda e recebida como um amigo que trará alívio aos sofrimentos. (PIVA; CARVALHO, 1993) 

Para ilustrar esta situação, tome-se o caso de uma criança de oito meses admitida em uma UTI com diagnóstico de meningococcemia, apresentando choque séptico, e que logo a seguir desenvolve parada cardiorrespiratória que reverte após cinco minutos de reanimação. Imediatamente são adotados esforços e medidas no sentido de reverter as disfunções orgânicas, por tratar-se de um paciente gravemente doente, porém, salvável. Após quatro dias de tratamento intensivo, esta criança persiste com evolução desfavorável, necessitando de desopressores em doses elevadas, anúria, sinais de sobrecarga hídrica e hiperazotemia, grave comprometimento do sistema nervoso central (sem sinais de morte), totalmente dependente de ventilação mecânica e com sinais de sofrimento de alças intestinais em decorrência da hipóxia. Já nesta etapa, esta criança encontra-se, muito provavelmente, no período de morte inevitável. Dessa forma, o arsenal terapêutico em uso (vasopressores, antibióticos, etc.) e as medidas a serem indicadas (cirurgia abdominal, diálise, etc) teriam como principal efeito o retardamento do óbito, mas sem evitá-lo, e à custa de muito sofrimento. (PIVA; CARVALHO, 1993) 

É preciso sopesar e analisar os aspectos do “bem morrer” e admitir que, diante de determinada enfermidade incurável, é inviável e insatisfatório qualquer meio que aguce a tentativa de reversão. Destarte, considerar a morte como o meio/aliado que trará o paciente ao sossego e dissipação do sofrimento ao qual tem passado é o que deve ser feito.

A conscientização de seus direitos acarreta no paciente e em seus familiares uma nova postura, com matizes beligerantes, em decorrência do exercício regular da cidadania. O que antes era aceito placidamente, passa a ser contestado, com certa tendência para o exagero na forma de reclamar. Vários membros da equipe de saúde já foram agredidos, até com registros fatais, por indignados familiares do doente. Os direitos do paciente não atingem apenas o atuar do médico, mas de toda a equipe, inclusive dos leigos em atividade de apoio. (SÁ, 2004, p. 52-53) 

De igual modo, os limites da atuação médica pautada na ética e nos preceitos legais dos cuidados paliativos, devem ser observados, a fim de que não ocorra qualquer prática truculenta por parte de qualquer um que compõe a equipe médica.  

“Desde o revogado Código de Ética Médica, consubstanciado na Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.246/88, estabelece-se uma série de normas de conduta profissional, proibitivas ou imperativas”. (SERTÃ, 2005, p. 78) 

A temática de ética no fim da vida necessita de que se preconize o direito à informação, não apenas ao paciente em estado terminal, bem como aos seus familiares. Atualmente, mesmo em face de tantos avanços, há na sociedade uma errônea inquietação acerca das incertezas da morte, tornando tudo que diz respeito ao fato da distanásia mais complexo. De fato é uma problemática geradora de angústia, envolvendo problemas que vão além da medicina – outros campos da Bioética. 

À primeira vista, poderíamos ingenuamente pensar que a morte nas mãos da moderna tecnologia médica seria um evento menos sofrido, mais benigno, enfim mais digno do que o foi na antiguidade. […] este conhecimento não tornou a morte um evento digno. O conhecimento biológico e as destrezas tecnológicas serviram para tornar nosso morrer mais problemático; difícil de prever, mais difícil ainda de lidar, fonte de complicados dilemas éticos e escolhas dificílimas, geradoras de angústia, ambivalência e incertezas. (PESSINI, 2009, p. 2) 

Tem efetiva relevância a atuação dos profissionais da saúde, os quais concorrem com todo o dilema que envolve a problemática da distanásia. Portanto devem ser comprometidos e engajados na incorporação dos pacientes quanto ao fato que lhe é percebido, bem como a participação nas tomadas de decisões, a fim de que haja um conhecimento e adequação, desmistificando o senso comum e evitando angústia e sofrimentos inúteis.

E seu dever respeitar e reconhecer o direito do cliente decidir sobre sua pessoa, seu tratamento e seu bem-estar e respeitar o ser humano na situação de morte e pós-morte. O enfermeiro precisa, então, garantir informações em sua veracidade aos familiares e pacientes, para que possam tomar as decisões cabíveis, livres e conscientemente. (BIONDOI; SILVAII; DAL SECCO, 2009. p.7) 

A terapêutica inútil tem sido implementada diuturnamente nos hospitais brasileiros e o simples fato de pensar de modo acrítico propicia ao profissional da saúde querer contribuir “a qualquer custo” para a manutenção da vida, sem maiores reflexões, incidindo na prática da distanásia. Então, torna-se cada vez mais comum a busca exacerbada pela manutenção da vida, independentemente de se analisar o fato da vida com dignidade, haja vista que os tratamentos de prolongamento artificial, na maioria, são aplicação terapêutica fútil. Por conseguinte, frisa-se a falta de entendimento e aceitação dos familiares daqueles que se encontram em prática terapêutica de prolongamento de vida, e isto, só torna ainda mais dificultoso a resolução desse embate.  

Uma pesquisa realizada com enfermeiros de unidades de terapia intensiva constatou que: 

A maioria, 88,89% enfermeiros, referiu acreditar que o enfermeiro, a família e o próprio paciente deveriam participar dos processos de tomada de decisão. Todas as falas se voltaram à adequada comunicação, especialmente de modo a informar o paciente e família sobre a autonomia. (BIONDOI; SILVA; DAL SECCO, 2009, p. 7) 

Por derradeiro, Leo Pessini (2007) abordou aspectos suscitados acerca da pragmática de lesões e possíveis situações que a tentativa de postergação da vida humana pode causar à pessoa, e os desafios éticos que podem ser encontrados no conceito de qualidade de vida (não existe vida “sem valor”), a utilização de recursos econômicos (camadas vulneráveis da sociedade que podem ser discriminadas), respeito pela autonomia da pessoa (que não justifique o abandono no individualismo), a ressuscitação cardiorrespiratória e morte cerebral (precisam de diagnósticos e prognósticos).

3. ETICIDADE DA CONDUTA DISTANÁSICA 

Quando a análise concreta de determinada questão é trazida à baila, acontece o que se pode chamar de interpretação prática e realista do que o assunto abordado preconiza, permitindo ao sujeito que a interpreta, clareza da realidade dos fatos. É importante lembrar o que as próprias normativas do CFM recomendam a respeito da distanásia. 

3.1 Alguns Casos Concretos 

A princípio, buscando elencar comprovadamente a prática da Distanásia e a sua grande utilização em todo o cenário médico mundial, faz-se necessário a demonstração dos casos práticos, bem como dos embates que envolvem o tema. 

A obstinação terapêutica é um problema atual na saúde brasileira. Existem muitos conflitos resultantes de interpretações errôneas sobre a situação real do paciente, havendo pouca atenção aos problemas físicos e emocionais dele e de seus familiares. Há um processo inadequado de comunicação e relacionamento insatisfatório entre as partes envolvidas. Existe uma formação médica que contribui para este problema, visto que é direcionada mais para salvar ou prolongar a vida do que para melhorar a sua qualidade. (SOARES, 2010) 

Pessini assevera que diversos foram os casos de pacientes famosos que tiveram a vida prolongada artificialmente e de forma fútil, movimentando assim a opinião pública mundial, vez que foram mantidos “vivos” além dos limites naturais, a exemplo de Truman, Franco, Tito, Hirohito e, no Brasil, Tancredo Neves. 

Em âmbito mundial, a temática ganhou grande repercussão em 2017 com o caso da criança britânica Charlie Gard, vez que segundo orientações médicas de ausência de recursos hábil a mantê-lo vivo, optou-se pelo desligamento dos aparelhos, o que veio a se confirmar por autorização judicial britânica. 

3.2 Distanásia e o exercício da Medicina 

O Código que regula o exercício da prática de Medicina no Brasil – Código de Ética Médica, no Capítulo V, versando sobre a Relação com Pacientes e Familiares, dispõe que é defeso ao médico, no artigo 41: “Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal”. Salienta-se como Princípios Fundamentais norteadores do Código em questão, o inciso VI:  

O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade. (BRASIL. CFM. Resolução n. 1931/2009)  

Conduto, embora seja vedado ao médico prática que extermine o ser humano, o mesmo deve ser aceitável a uma ponderação de valores, quando diante de um caso concreto, seja a tentativa de uma postergação artificial a causa de lesão aos princípios supracitados. 

A Resolução 1.805/2006, que a princípio foi suspensa em virtude de Ação Civil Pública proposta pelo MPF, vez que o mesmo alegou que somente lei poderia tratar deste assunto. Não obstante, em 2010 deu novo parecer afirmando que a Ortotanásia não ofende o ordenamento jurídico.  

Ar.1º: É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.  
§1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação. 
§2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário. 
§3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica. 
Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar (BRASIL. CFM. Resolução n. 1.805/06). 

Marreiro (2013) acrescenta que “o médico que desconsidera a autonomia do paciente terminal, que o submete à prática de uma terapêutica fútil, incorre no dever de reparar os danos provenientes dessa obstinação, que cerceia o direito do doente de escolher uma morte digna e humana para si. Dessa forma, neste primeiro momento, fica evidente a responsabilidade civil médica diante da prática da Distanásia”. 

3.3 E se a pessoa no exercício de sua autonomia escolher a conduta distanásica? 

Desde o nascimento, o ser humano é convidado a clamar pela vida, por continuar o ciclo, sem muito se pensar acerca do “bem-viver” ou “bem-morrer”. Destarte, não raro encontra-se o prolongamento artificial da vida humana sendo realizado nos hospitais, principalmente os de referência. Tal prática implica efetivação da distanásia, também conhecida como obstinação terapêutica. 

[…] a distanásia (obstinação terapêutica), tornou-se problema ético de primeira grandeza na medida em que o progresso técnico-científico passou a interferir de forma decisiva nas fases finais da vida humana. O que ontem era atribuído aos processos aleatórios da natureza ou a “Deus”, hoje o ser humano assume essa responsabilidade e inicia o chamado “oitavo dia da criação”. A presença da ciência e tecnologia começa a intervir decisivamente na vida humana, e essa novidade exige reflexão ética. (PESSINI, 2009, p. 2) 

Ao longo do trabalho, buscou-se mostrar o quanto se faz necessário o respeito à autonomia de cada pessoa. De igual modo, o quão relevante é a ponderação que deve ser feita nessa busca implacável por viver. 

A medicina e a sociedade brasileira têm hoje diante de si um desafio ético, ao qual é mister responder com urgência – o de humanizar a vida no seu ocaso, devolvendo-lhe a dignidade perdida. Centenas ou talvez milhares de doentes estão hoje jogados a um sofrimento sem perspectivas em hospitais, sobretudo nas suas UTIs e emergências. Não raramente, acham-se submetidos a uma parafernália tecnológica, que não só não consegue minorar-lhes a dor e o sofrer, como ainda os prolonga e os acrescenta inútilmente. Quando a vida física é considerada o bem supremo e absoluto, acima da liberdade e da dignidade, o amor natural pela vida se transforma em idolatria. A medicina promove implicitamente esse culto idólatra da vida, organizando a fase terminal como uma luta a todo custo contra a morte. (HORTA, 1992, p. 219)

Não se pode chamar de humana a conduta praticada pela medicina, sociedade, família e pacientes consistente no prolongamento artificial da vida – o que muito se assemelha a uma questão de idolatria.  

Para melhor compreensão acerca desta situação, Elias Farah cita Ives Gandra da Silva Martins, para explicar a situação: 

Quando a pessoa não tem condições de viver pelos meios naturais, quando seus órgãos não conseguem funcionar sem a ajuda de aparelhos, desligar esses aparelhos não é eutanásia, pois está-se mantendo a vida artificialmente. O médico desligar os aparelhos de uma pessoa que é completamente dependente deles para sobreviver, que está em coma profundo, por exemplo, ou seus órgãos não funcionam mais sozinhos, não está praticando eutanásia, já que a pessoa não tem condições de autossobrevivência. (MARTINS, 1992, p. 219-28) 

Uma coisa é o cerceamento inesperado e a todo custo da vida humana (eutanásia), outra bem diferente é quando o quadro fático do paciente se torna irreversível e sem aparelhamento seria humanamente impossível a sobrevivência por si próprio – porque é o momento da morte natural. De outro modo, seria se optarem pelo prolongamento exacerbado da vida humana, o que torna o caso uma questão ética. 

Não somos nem vítimas, nem doentes de morte. É saudável sermos peregrinos. Podemos ser, sim, curados de uma doença classificada como sendo mortal, mas não de nossa mortalidade. Quando esquecemos isso, acabamos caindo na tecnolatria e na absolutização da vida biológica pura e simplesmente. É a obstinação terapêutica adiando o inevitável, que acrescenta somente sofrimento e vida quantitativa, sacrificando a dignidade. (PESSINI, 1996, p. 9) 

Diante de um quadro grave de doença, bem provável se faz a possibilidade de um tratamento inútil, retardando, assim, a sua morte. Contudo os médicos deverão mostrar-se irreversíveis em evitar erros em falhas da medicina, desde logo prontos a evitar um tratamento fútil.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Após buscar a compreensão da temática sobre a legalidade e eticidade da prática da distanásia, entendeu-se que são fúteis as tentativas de se evitar a morte, vez que nos casos de terminalidade de vida, é inevitável, e o que a distanásia produz é justamente prolongar o processo de morrer, ou protelar o dia da morte. 

Ademais, em linha de encontro com a legislação vigente no Brasil, observou-se que os tratamentos de pacientes que se encontram em estado terminal e irreversível podem assemelhar-se ao tratamento desumano, bem como a algum tipo de tortura – condutas vedadas pela vigente Constituição Federal. 

Contudo, observou-se que a prática de tratamento inútil aos pacientes com enfermidades graves não é uma atitude que reúne cuidados devidos e condignos com as necessidades e especialidades inerentes a um final de vida com qualidade, com respeitos à ética. 

Por conseguinte, ao se ter um olhar técnico de todo o dano que a prática de distanásia – obstinação terapêutica – pode causar, é louvável que se faça uma ponderação de valores segundo a qual sejam sopesadas de um lado as agruras pelas quais o paciente passa ao ser submetido ao excesso terapêutico e de outro, os nulos benefícios que ele usufrui para se concluir pela absoluta desnecessidade ou mesmo futilidade daquela intervenção. 

Então, fica muito claro que a melhor decisão em favor da dignidade do paciente é permitir que ele morra em paz e sem nenhum excesso terapêutico capaz de colocar em risco sua dignidade. Conclui-se o presente trabalho monográfico na certeza de que a conduta que melhor resguarda a dignidade da pessoa enferma é proporcionar-lhe os cuidados paliativos quando ela se encontrar em fase terminal de doença irreversível. 

5. REFERÊNCIAS 

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