THE INFLUENCE OF MEDIA COVERAGE IN HIGH-PROFILE CRIMINAL CASES: IMPACTS ON PUBLIC OPINION AND THE JUDICIAL PROCESS IN THE FLÁVIA ALVES BEZERRA CASE
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202512161336
Vinícius Soares Biancardi1
Antônio Carlos de Sousa Gomes Júnior2
RESUMO
O presente trabalho analisa a influência das mídias digitais na imparcialidade do Tribunal do Júri, investigando especificamente como a arquitetura da rede social Instagram impacta a formação da convicção dos jurados. O problema de pesquisa questiona se as narrativas visuais e os conteúdos de alto engajamento veiculados nesta plataforma são capazes de sobrepor-se às provas dos autos no Conselho de Sentença. O objetivo geral é identificar se tais publicações influenciam a opinião dos cidadãos convocados para julgar. A metodologia adotada pauta-se no método dedutivo, por meio de pesquisa bibliográfica e documental de abordagem qualiquantitativa. O referencial teórico fundamenta-se na teoria do Lawfare, demonstrando o uso estratégico da comunicação para deslegitimar a defesa. A análise documental utilizou como base empírica as métricas de viralização do caso Flávia Alves Bezerra, ocorrido em Marabá/PA. Os resultados evidenciam que o Instagram opera como um “tribunal algorítmico”, onde vídeos com milhões de visualizações e a atuação direta de familiares da vítima geram um clamor social por vingança, resultando, no caso analisado, na dissolução do Conselho de Sentença e no abandono do plenário pela defesa. Conclui-se que a lógica do algoritmo, ao privilegiar a emoção (arousal) em detrimento da razão jurídica, compromete o devido processo legal e torna ineficazes mecanismos tradicionais de isenção.
Palavras-chave: Tribunal do Júri. Instagram. Lawfare. Influência Midiática. Caso Flávia Alves Bezerra.
ABSTRACT
This paper analyzes the influence of digital media on the impartiality of the Jury Court, specifically investigating how the architecture of the social network Instagram impacts the formation of jurors’ convictions. The research problem questions whether visual narratives and high-engagement content published on this platform are capable of overriding the evidence of the case files within the Sentencing Council. The general objective is to identify whether such publications influence the opinion of citizens summoned to judge. The methodology adopted follows the deductive method, through bibliographic and documentary research with a qualiquantitative approach. The theoretical framework is based on the theory of Lawfare, demonstrating the strategic use of communication to delegitimize the defense. The documentary analysis used as an empirical basis the viralization metrics of the Flávia Alves Bezerra case, which occurred in Marabá/PA. The results evidence that Instagram operates as an “algorithmic court,” where videos with millions of views and the direct action of the victim’s family generate a social outcry for revenge, resulting, in the analyzed case, in the dissolution of the Sentencing Council and the defense abandoning the plenary. It is concluded that the logic of the algorithm, by prioritizing emotion (arousal) over legal reason, compromises the due process of law and renders traditional mechanisms of exemption ineffective.
Keywords: Jury Court. Instagram. Lawfare. Media Influence. Flávia Alves Bezerra Case.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A relação entre a mídia e o sistema de justiça criminal constitui um dos temas mais tensos do Estado Democrático de Direito contemporâneo. Historicamente esse debate centravase no conflito entre a liberdade de imprensa (art. 220 da CF/88) e a presunção de inocência (art. 5º, LVII) (Brasil, 1988). No entanto, a ascensão das redes sociais alterou drasticamente essa dinâmica. Não se trata mais apenas do jornalismo informativo, mas da lógica do engajamento digital onde plataformas como o Instagram atuam como verdadeiros “tribunais algorítmicos”, acelerando o julgamento social muito antes do devido processo legal.
O fenômeno da viralização de crimes em comarcas do interior, exemplificado recentemente por ocorrências no sudeste do Pará, demonstra como a cobertura ultrapassou as barreiras da informação jornalística para adentrar no terreno da mobilização digital. Observa-se na atualidade uma atuação direta de familiares de vítimas nas redes sociais e a propagação de conteúdos que, impulsionados pelo algoritmo, geram milhões de visualizações e comentários clamando por punições severas. Essa pressão externa tem culminado em episódios de instabilidade processual como dissoluções de Conselhos de Sentença e o abandono de plenários por defesas que se sentem cerceadas diante de um ambiente hostil.
A escolha deste tema justifica-se pela necessidade de analisar esse fenômeno sob a ótica do Lawfare. Conforme lecionam Zanin, Martins e Valim (2019), o Lawfare consiste no uso estratégico do Direito e da comunicação para deslegitimar um “inimigo”. No contexto deste estudo, investiga-se como a guerra de informações travada no Instagram serve para demonizar o acusado e pressionar as instituições transformando o processo penal em um instrumento de validação de uma sentença já proferida virtualmente.
Diferente do jornalismo profissional que possui códigos de ética, a “mídia digital” operada no Instagram privilegia a emoção e o choque (arousal). O jurado leigo imerso nessa câmara de eco digital consome narrativas visuais da dor e do ódio coletivo, o que coloca em xeque sua capacidade de isenção.
Diante desse contexto, definiu-se o seguinte problema de pesquisa: As matérias jornalísticas e conteúdos virais veiculados no Instagram são capazes de influenciar a opinião dos cidadãos que farão parte de um Conselho de Sentença?
Como resposta provisória estabelece-se a hipótese de que sim. A mídia digital publicada na rede social Instagram influencia as pessoas que poderão compor o Conselho de Sentença, tanto criando convicções onde não existiam quanto reforçando preconceitos já estabelecidos. O algoritmo da plataforma e a narrativa visual aceleram o julgamento social, sobrepondo-se à técnica jurídica.
O objetivo geral do estudo consiste em identificar se as matérias jornalísticas e as publicações de engajamento veiculadas no Instagram são capazes de influenciar a opinião dos cidadãos que farão parte de um Conselho de Sentença. Para alcançar tal propósito definiram-se os seguintes Objetivos Específicos: a) descrever o funcionamento das mídias digitais, em especial a arquitetura do Instagram, diferenciando o jornalismo informativo do ativismo digital; b) analisar o instituto do Tribunal do Júri e a vulnerabilidade dos jurados leigos frente a influências externas e; c) compreender a influência das redes sociais na opinião pública e a propagação de discursos punitivistas sob a ótica do Lawfare.
A Metodologia adotada pauta-se no método dedutivo partindo das premissas teóricas gerais para a análise de situações particulares. A pesquisa é bibliográfica e documental de abordagem quali-quantitativa.
A presente investigação estrutura-se sob a ótica da abordagem quali-quantitativa. A escolha por este modelo híbrido justifica-se pela natureza do objeto de estudo: de um lado, analisa-se a subjetividade dos comentários e a narrativa de ódio (qualitativo); de outro mensura-se o alcance viral por meio de métricas de visualizações e engajamento (quantitativo). O estudo adota o método de procedimento dedutivo partindo das premissas teóricas gerais, como as garantias constitucionais e a teoria do Lawfare, para analisar as particularidades da pressão midiática ocorrida no sudeste do Pará.
A revisão de literatura fundamenta-se em obras de referência, artigos científicos e legislação. A etapa documental consiste na coleta e análise de dados públicos extraídos da rede social Instagram referentes a casos de repercussão na comarca de Marabá/PA utilizando tais documentos como evidências empíricas para comprovar a hipótese levantada. Este estudo busca contribuir para o debate acadêmico sobre os limites da influência digital no Judiciário alertando para os riscos de que a “justiça dos likes” substitua a justiça dos autos.
A construção do referencial teórico pautou-se em um rigoroso levantamento bibliográfico realizado em bases de dados acadêmicas e repositórios institucionais. Para a seleção dos materiais foram utilizados como descritores de busca, de forma isolada ou combinada, os termos: “Tribunal do Júri”, “Influência da Mídia”, “Instagram e Algoritmo”, “Lawfare” e “Presunção de Inocência”. Essa estratégia permitiu a identificação de obras doutrinárias essenciais sobre o uso estratégico do direito. A seleção priorizou publicações dos últimos cinco anos, resguardando apenas textos considerados indispensáveis para a compreensão dos fundamentos históricos e conceituais da temática que debatem a “algoritmização” da justiça.
Em um segundo momento, a pesquisa avançou para a etapa documental. Diferente de estudos tradicionais focados apenas em jornais impressos ou portais de notícias o corpus de análise foi expandido para as mídias sociais, especificamente a plataforma Instagram. A coleta de dados concentrou-se no monitoramento de perfis noticiosos locais e perfis pessoais de envolvidos no caso. O recorte temporal compreendeu o intervalo entre abril de 2024 e agosto de 2025, cobrindo desde a descoberta do fato até a dissolução do Conselho de Sentença.
Para o tratamento desses dados aplicou-se a técnica de análise de conteúdo aliada à análise de métricas digitais. O exame do material empírico buscou identificar dois vetores principais: (1) a presença de táticas de Lawfare e (2) a influência da arquitetura do algoritmo. Esses elementos foram confrontados com a teoria levantada utilizando os dados do caso Flávia Alves Bezerra não como um fim em si mesmo, mas como evidência empírica para demonstrar a vulnerabilidade do sistema de justiça frente à viralização digital.
2. A MÍDIA COMO CONSTRUTORA DA REALIDADE PENAL
A compreensão do papel da mídia na sociedade contemporânea exige preliminarmente o reconhecimento de sua função não apenas como veículo de informação, mas como agente construtor da realidade social. Historicamente situada como um “quarto poder”, a imprensa exerce uma influência que transcende a mera narrativa dos fatos, atuando diretamente na formação da opinião pública e consequentemente na pressão sobre as instituições estatais. Liston (2022) recupera a classificação histórica desse poder, lembrando que ele pode atuar como Fourth Estate (um contrapoder fiscalizador do Estado) ou como Fourth Branch (um instrumento auxiliar de governança). No entanto no contexto criminal brasileiro observa-se uma distorção dessa função: a mídia deixa de fiscalizar o poder punitivo para se tornar sua principal impulsionadora.
Segundo Gomes (2021), vivemos em uma era onde a informação é a nova moeda de poder, e o controle sobre o que é divulgado e como é divulgado molda o imaginário coletivo.
A autora destaca que a “indústria cultural” transformou o crime em mercadoria, onde a notícia não serve para esclarecer, mas para entreter e lucrar. Essa mercantilização da informação cria um cenário onde a verdade processual torna-se secundária diante da necessidade de manter a audiência engajada.
Essa capacidade de moldagem é particularmente sensível no âmbito criminal. A sociedade, ávida por respostas rápidas diante da violência, consome o noticiário policial não com o filtro da racionalidade jurídica, mas por intermédio da lente da emoção. Oliveira e Silva (2022) alertam para o fenômeno do “controle social informal” exercido pela mídia. Segundo os autores, esse controle difuso, operado por repórteres e apresentadores, muitas vezes se sobrepõe ao controle formal do Estado (polícia e judiciário). Enquanto o Judiciário opera sob ritos, prazos e garantias constitucionais, a imprensa opera sob a lógica do imediatismo e da audiência. Criase, assim, um descompasso temporal e procedimental: o tempo da mídia é o “agora”, enquanto o tempo do processo é o “devido”.
Nesse contexto, Linhares e Grotti (2021) aprofundam a análise ao criticarem a chamada “Teoria do Espelho” segundo a qual o jornalismo seria apenas um reflexo fiel e passivo da realidade. Os autores demonstram que, na verdade, a notícia é sempre um recorte intencional da realidade. No jornalismo policial, esse recorte tende a privilegiar a versão oficial das polícias e a dor das vítimas, silenciando sistematicamente a defesa técnica ou a presunção de inocência. A câmera não mostra tudo; ela mostra o que o editor decide que deve ser visto. Esse desequilíbrio narrativo é o germe do que se convencionou chamar de “julgamentos midiáticos”, onde a sentença moral é proferida nas manchetes muito antes de o juiz togado ter acesso aos autos.
Contudo, a análise contemporânea exige uma distinção estrutural entre os veículos de massa tradicionais e as plataformas digitais. Enquanto a imprensa clássica opera sob a lógica da transmissão unilateral, as redes sociais, especificamente o Instagram, funcionam baseadas na micro-segmentação de dados e na “Economia da Atenção”. Conforme alerta Pariser (2012), os algoritmos de recomendação criam um “Filtro Bolha” analisando o comportamento do usuário para oferecer apenas informações que corroboram suas crenças, gerando um perigoso viés de confirmação no processo penal.
Além disso, Han (2018) descreve a formação do “Enxame Digital”, onde indivíduos isolados se unem momentaneamente para “tempestades de indignação”, privilegiando o afeto imediato em detrimento do discurso racional. Assim, a validação social via curtidas substitui a validação factual, condicionando o jurado a uma dieta informacional arquitetada para o conflito (Recuero, 2017).
Para além da análise sociológica e jurídica, é fundamental compreender a dinâmica econômica que sustenta a espetacularização do crime. Gomes (2021) realiza uma crítica contundente à estrutura de mercado que transforma o processo penal em uma commodity. A autora explica que, na “sociedade do espetáculo”, a audiência é a moeda mais valiosa. Crimes violentos, especialmente aqueles com requintes de crueldade ou que envolvem jovens mulheres (como o caso Flávia Alves Bezerra), possuem um alto valor de mercado porque ativam gatilhos emocionais primitivos no consumidor da notícia.
Oliveira e Silva (2022) aprofundam essa visão ao descreverem como os portais de notícias e programas policiais operam sob a lógica do clickbait. O título da matéria não tem a função primária de informar, mas de capturar a atenção em meio a um oceano de informações. Quando o Portal Debate Carajás (Portal Debate Carajás, 2024) destaca a “cova rasa” ou a Agência Pará (Menezes, 2024) enfatiza a “solução” imediata, eles estão respondendo a uma demanda de mercado por resolução e choque. A presunção de inocência nesse cálculo econômico é um “custo” indesejável, pois introduz dúvida e complexidade em uma narrativa que precisa ser simples e impactante para vender.
Essa lógica mercantil cria um círculo vicioso: para manter a audiência, a mídia precisa de “novidades” constantes. Como o tempo do processo judicial é lento (prazos, recursos, perícias) a imprensa preenche esse vácuo com especulações, vazamentos não confirmados e a exploração da dor da família. Linhares e Grotti (2021) alertam que esse modelo de negócio é incompatível com a ética do devido processo legal, pois exige que o suspeito seja apresentado como culpado imediatamente para que o “produto” (a notícia do crime) possa ser consumido enquanto ainda é fresco. A absolvição ou a dúvida meses depois não geram o mesmo engajamento e, portanto, não interessam economicamente.
Para compreender a atual permissividade da mídia brasileira na cobertura de crimes, é imprescindível revisitar o histórico de tensão entre Estado e Imprensa, conforme detalhado por Fernandez (2022) e Linhares e Grotti (2021). Segundo os autores o Brasil carrega uma herança colonial de censura, iniciada com a Real Mesa Censória em 1768 e perpetuada até o regime militar de 1964, onde a liberdade de expressão foi severamente cerceada pelo Ato Institucional nº 5. Esse histórico de repressão gerou no período democrático pós-1988 uma aversão quase absoluta a qualquer forma de controle da mídia, confundindo-se frequentemente “regulação” com “censura”.
Fernandez (2022) realiza uma análise minuciosa do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130 pelo Supremo Tribunal Federal, que revogou a Lei de Imprensa de 1967. A autora destaca que embora a decisão tenha sido uma vitória para a democracia ao derrubar entulhos autoritários ela criou um vácuo legislativo perigoso. Ao analisar os votos, Fernandez ressalta a posição do Ministro Carlos Ayres Britto, que defendeu a “plena liberdade de imprensa” como irmã siamesa da democracia e a contrapõe ao voto divergente do Ministro Marco Aurélio, que alertava para a necessidade de manter mecanismos de proteção à honra e à privacidade dos cidadãos.
Na prática forense atual, esse vácuo legislativo analisado por Fernandez (2022) significa que a mídia opera em um terreno de desregulação. Quando um portal de notícias de Marabá publica a foto de um suspeito com a legenda “assassino”, ele o faz amparado na interpretação maximalista da liberdade de imprensa consolidada na ADPF 130. O Judiciário, temeroso de ser acusado de censura, resquício da ditadura apontado por Linhares e Grotti (2021), adota uma postura tímida intervindo apenas a posteriori por meio de indenizações cíveis, quando o dano à imagem do réu e consequentemente à sua presunção de inocência já se consolidou de forma irreversível na mente da comunidade local.
3. O TRIBUNAL DO JÚRI E A ATUAÇÃO DO CONSELHO DE SENTENÇA
O Tribunal do Júri é uma instituição fundamental no sistema jurídico brasileiro, reconhecida como uma cláusula pétrea e uma garantia individual prevista no artigo 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal. Sua competência é restrita e específica, abrangendo exclusivamente o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (homicídio, infanticídio, aborto e participação em suicídio), consumados ou tentados, assegurando a participação direta da sociedade na administração da justiça criminal (Brasil, 1988).
Para compreender como esse tribunal funciona, é necessário entender que o procedimento é escalonado, ou seja, dividido em duas fases distintas. A primeira fase, chamada de judicium accusationis, ocorre perante um juiz togado que analisa se existem indícios suficientes de autoria e prova da materialidade do crime; somente se o juiz se convencer da existência desses elementos é que ele profere a decisão de pronúncia, enviando o réu para ser julgado pelo júri popular (Brasil, 1941).
Na segunda fase, conhecida como judicium causae, ocorre o julgamento em plenário, onde atua o Conselho de Sentença. Esse conselho é formado por sete jurados, sorteados dentre vinte e cinco cidadãos alistados, que representam a sociedade e têm a missão de decidir o mérito da causa, ou seja, se o réu deve ser condenado ou absolvido com base nos fatos apresentados (Almeida, 2022).
A atuação desses jurados difere substancialmente da atuação de um juiz profissional, pois o Conselho de Sentença decide com base na “íntima convicção”, sem a necessidade de fundamentar juridicamente seus votos. A decisão é tomada mediante respostas a quesitos objetivos (perguntas de “sim” ou “não”) sobre a materialidade, autoria e se o acusado deve ser absolvido, garantindo-se o sigilo das votações para preservar a independência dos jurados (Brasil, 1941).
Por fim, a instituição é regida pela soberania dos veredictos, o que significa que a decisão tomada pelos jurados quanto ao mérito da causa não pode ser substituída por uma decisão de juízes técnicos de tribunais superiores, salvo em casos de decisão manifestamente contrária à prova dos autos, quando então se realiza um novo júri. Essa estrutura reflete o respeito à vontade popular e se alinha à proteção dos direitos fundamentais e do devido processo legal (Caporal et al., 2021).
4. A INFLUÊNCIA DAS REDES SOCIAIS NA OPINIÃO PÚBLICA E NO SISTEMA DE JUSTIÇA: A FABRICAÇÃO DA NOTÍCIA E A SIMBIOSE COM A POLÍCIA
Aprofundando a sociologia do jornalismo aplicada ao processo penal, Gomes (2021) introduz a teoria do Newsmaking e do Gatekeeping para explicar como a notícia criminal é fabricada. Ao contrário do senso comum, a notícia não é um fato que “nasce” pronto; ela é selecionada. Gomes explica que os critérios de noticiabilidade (o que vira notícia e o que é ignorado) não seguem a lógica da relevância jurídica, mas sim a lógica do mercado e do entretenimento.
Nesse processo de seleção, a fonte oficial (Polícia e Ministério Público) detém o monopólio da narrativa. Gomes (2021) e Werka e Borges (2021) alertam para a dependência estrutural dos repórteres policiais em relação às fontes oficiais. Para manter o fluxo de informações e “furos”, o jornalista tende a adotar acriticamente a versão do inquérito policial. Cria-se assim uma simbiose perversa: a polícia utiliza a mídia para legitimar suas investigações e projetar eficiência, e a mídia utiliza os vazamentos policiais para gerar audiência.
No caso Flávia Alves Bezerra, essa dinâmica ficou evidente na reportagem da Agência Pará (Menezes, 2024), analisada neste estudo, que declarou o caso “solucionado” com a prisão dos suspeitos. À luz da teoria de Gomes, isso não é apenas uma manchete; é a construção de uma “verdade policial” que se sobrepõe à “verdade judicial”. O público, bombardeado por essa narrativa oficial, passa a ver o processo judicial posterior não como o local de apuração da culpa, mas como um mero trâmite burocrático para confirmar o que a polícia (e a mídia) já estabeleceram como verdade. A defesa, nesse cenário, é vista como um obstáculo à justiça, e não como parte essencial dela.
A análise da influência midiática não estaria completa sem abordar a promiscuidade entre os agentes estatais e a imprensa no que tange ao sigilo das investigações. Fernandez (2022) aponta que no Brasil o sigilo do inquérito policial (art. 20 do CPP) tornou-se letra morta. Delegados, agentes e até membros do Ministério Público vazam informações selecionadas para jornalistas privilegiados, criando um canal direto de contaminação da opinião pública.
Esses vazamentos não são aleatórios; são cirúrgicos. Aragão et al. (2025), ao estudarem o caso Boate Kiss, notaram como partes de depoimentos ou laudos periciais eram “soltados” na imprensa em momentos estratégicos para criar comoção ou pressionar o Judiciário a manter prisões. No caso de Marabá a divulgação de detalhes sobre a localização do corpo e a suposta confissão da esposa do acusado, antes mesmo da formalização da denúncia, sugere uma estratégia deliberada de “condenação prévia”.
O problema jurídico, conforme levanta Alves (2023), é que o vazamento é seletivo. A mídia raramente tem acesso (ou interesse) em vazar as provas que beneficiam a defesa ou as contradições do inquérito. O público recebe portanto uma versão editada do processo, onde apenas as peças acusatórias são visíveis. Quando o jurado chega ao tribunal, ele acredita conhecer “toda a verdade” sem saber que consumiu apenas a metade da história escolhida a dedo pela acusação e amplificada pela imprensa. Essa assimetria de informações quebra a paridade de armas princípio basilar do processo penal, transformando a defesa em uma voz isolada contra um coro de “certezas” fabricadas.
4.1 A espetacularização e a criação do “inimigo”
A transformação do processo penal em entretenimento é um fenômeno que Gomes (2021) classifica como “espetacularização”. O crime com seus detalhes macabros e sofrimento humano é convertido em objeto de consumo. A dor da vítima e a liberdade do réu tornam-se produtos em uma sociedade do espetáculo. Oliveira e Silva (2022) utilizam uma metáfora poderosa para descrever essa realidade: o processo penal torna-se um “reality show da vida real”. O público acompanha o desenrolar das investigações como quem assiste a uma novela ou a um programa de confinamento torcendo por condenações, vibrando com prisões e exigindo punições exemplares, muitas vezes votando (baseado em likes e comentários) em quem deve ser “eliminado” do convívio social.
Essa lógica do espetáculo é perversa porque desumaniza os envolvidos. No caso Flávia Alves Bezerra, objeto deste estudo, a exploração de detalhes como a “cova rasa” ou a frieza atribuída ao acusado serve para engajar a audiência, mas destrói qualquer possibilidade de análise racional dos fatos. A “mídia marrom” termo recuperado por Silva (2021) para designar o jornalismo sensacionalista que visa lucro acima da ética, atua como um catalisador de vingança. Não se busca justiça no sentido jurídico do termo “o dar a cada um o que é seu conforme a prova” mas sim uma retribuição imediata e violenta.
Werka e Borges (2021) trazem à tona o conceito de “Criminologia Midiática” baseada nos estudos de Zaffaroni. Segundo esta teoria, a mídia cria uma causalidade mágica e simplista: existe o “bem” e existe o “mal” e a solução para a criminalidade é a eliminação do mal. Ao fazer isso fomenta um pânico moral que legitima perante a opinião pública a supressão de direitos fundamentais em nome de uma suposta segurança. O acusado deixa de ser um sujeito de direitos para se tornar um objeto de execração pública, um “monstro” a ser eliminado para a purificação do corpo social. Essa narrativa impede que o público compreenda o crime como um fenômeno complexo e social, reduzindo-o a uma falha de caráter individual que deve ser punida com o máximo rigor.
Segundo Aragão, Lamarck e Madeira (2025), a pressão midiática cria um ambiente onde o Judiciário se sente compelido a agir não conforme a lei, mas conforme o clamor das ruas. A prisão preventiva, que deveria ser a ultima ratio (último recurso) no processo penal, é transformada em uma espécie de cumprimento antecipado de pena para satisfazer a sanha pública. O processo que deveria ser um instrumento de garantia contra o arbítrio passa a ser uma ferramenta de satisfação da opinião pública onde a liberdade do réu é sacrificada no altar da audiência.
Aprofundando a base teórica da Criminologia Midiática é necessário invocar o conceito de “Direito Penal do Inimigo”, teorizado por Günther Jakobs e criticado por Zaffaroni (Werka e Borges, 2021), na mídia essa teoria ganha uma aplicação prática e brutal: o réu de um crime de grande repercussão deixa de ser tratado como um cidadão (que errou, mas mantém direitos) e passa a ser tratado como um “inimigo” (uma não-pessoa, uma ameaça que deve ser neutralizada sem garantias).
Gomes (2021) descreve como a linguagem jornalística opera essa despersonalização. O uso de termos como “monstro”, “frio”, “calculista”, “besta” ou a ênfase em características físicas ou comportamentais negativas servem para retirar a humanidade do sujeito. Uma vez que o réu é desumanizado a sociedade e o jurado sente-se autorizada a ignorar suas garantias constitucionais. Não se aplica presunção de inocência a um “monstro” contra o inimigo, vale tudo.
No caso Flávia Alves Bezerra a narrativa construída em torno da ocultação do cadáver e da suposta frieza do tatuador Willian operou exatamente essa transformação. A mídia local não cobriu o processo contra o cidadão Willian; cobriu a caçada ao “assassino da cova rasa”. Liston (2022) argumenta que quando o Direito Penal do Inimigo é aplicado pela mídia o Tribunal do Júri deixa de ser um espaço de justiça e se torna um ato de guerra, onde a única função do jurado é confirmar a eliminação do inimigo público número um daquela semana.
Essa tática de aniquilação moral encontra respaldo teórico no conceito de Lawfare, abordado por Cristiano Zanin, Martins e Valim (2019). Para os autores o Lawfare é o uso estratégico do Direito e da comunicação para deslegitimar e destruir um ‘inimigo’. No caso em tela observa-se um verdadeiro Lawfare punitivo: o uso de vazamentos seletivos e a mobilização digital não buscam justiça, mas sim criar um ambiente de pressão insuportável sobre a defesa. O réu é transformado em um alvo de guerra, e os advogados de defesa passam a ser atacados pela opinião pública como se fossem cúmplices do crime, desequilibrando totalmente a paridade de armas necessária para um julgamento justo.
Nessa mesma linha de raciocínio, Martins, Martins e Valim (2019) destacam que o Lawfare não opera apenas no campo jurídico, mas depende visceralmente de uma ‘guerra de informações’. Os autores argumentam que a manipulação estratégica da mídia é utilizada para criar uma presunção de culpa insuperável, destruindo a reputação do acusado antes mesmo do julgamento. Ao dominar a narrativa pública os agentes do Lawfare conseguem deslegitimar a defesa técnica e transformar as garantias constitucionais em ‘obstáculos’ à justiça aos olhos da população criando um ambiente de exceção onde o linchamento moral valida a condenação judicial.
Para compreender a gênese da condenação antecipada é necessário recuar uma etapa e analisar a relação simbiótica entre as agências policiais e os veículos de comunicação. Gomes (2021) alerta que na prática jornalística contemporânea, o repórter policial raramente realiza uma investigação independente. Ele se torna muitas vezes um mero porta-voz da autoridade policial. Essa dependência cria uma distorção grave: a versão do inquérito policial que é inquisitorial, unilateral e ainda não passou pelo crivo do contraditório judicial, é apresentada à sociedade como a verdade absoluta dos fatos.
Linhares e Grotti (2021) explicam que a polícia seleciona o que será mostrado, operando como um filtro da realidade. Quando a polícia apresenta o suspeito à imprensa (o chamado perp walk) e a imprensa reproduz essa imagem sem questionamentos, o princípio da presunção de inocência é esvaziado na fonte. O inquérito policial deixa de ser uma peça administrativa informativa para o Ministério Público e torna-se o roteiro do espetáculo midiático. A notícia portanto não nasce neutra; ela nasce carregada da visão acusatória estatal.
Essa dinâmica gera um desequilíbrio processual insuperável. A defesa técnica que só terá oportunidade de atuar plenamente meses ou anos depois, durante a instrução processual, já entra em campo derrotada perante a opinião pública. Fernandez (2022) argumenta com precisão que o “tempo da notícia” não espera o “tempo da defesa”. Quando o advogado finalmente apresenta a versão do réu no Tribunal do Júri, a narrativa policial, validada e repetida exaustivamente pela mídia já se sedimentou na mente dos jurados como a única versão plausível da realidade, transformando a defesa em uma tentativa de “reverter” uma verdade já estabelecida, invertendo o ônus da prova na mente dos julgadores.
4.2 O viés de gênero e a revitimização da mulher
Para contextualizar a cobertura do caso Flávia Alves Bezerra é fundamental recorrer ao resgate histórico feito por Martins (2022). A autora analisa como a mídia brasileira evoluiu (ou involuiu) na cobertura de crimes contra mulheres, desde o célebre caso de Ângela Diniz nos anos 70 até o caso Tatiane Spitzner em 2018. Martins demonstra que a imprensa desempenha um papel dúbio: ora reforça estereótipos machistas (como a tese da “legítima defesa da honra”, derrubada pelo STF na ADPF 779) ora atua como vetor de linchamento do agressor.
Martins (2022) analisa discursos de assassinos famosos em entrevistas televisivas como Doca Street e goleiro Bruno, para mostrar como a mídia cede espaço para a “humanização” do agressor ou no extremo oposto para sua “demonização”. No caso moderno do feminicídio a tendência midiática é a da demonização. Embora isso possa parecer positivo para a luta das mulheres do ponto de vista do processo penal, é desastroso. Ao tratar o réu como uma “bestafera” ou um “monstro” a mídia retira dele a condição de sujeito de direitos.
Essa construção narrativa segundo Martins (2022) simplifica o fenômeno da violência de gênero. O público consome a história do “monstro que matou a bela jovem” como um produto de entretenimento, desvinculando-o das estruturas patriarcais profundas da sociedade. Para o Tribunal do Júri isso significa receber um caso onde os papéis já estão definidos pelo roteiro midiático: à vítima, a santidade absoluta; ao réu, a condenação eterna. Qualquer tentativa da defesa de contextualizar os fatos ou discutir a dinâmica do crime é imediatamente rechaçada pela opinião pública como “revitimização” criando um ambiente hostil ao exercício da plenitude de defesa.
Um aspecto fundamental para a análise do caso em tela é o viés de gênero na cobertura midiática. Martins (2022) realiza um estudo aprofundado sobre como a mídia cobre crimes de feminicídio no Brasil. A autora identifica que historicamente a imprensa oscilou entre dois extremos nocivos: a culpabilização da vítima (buscando justificativas no comportamento da mulher) e a demonização do agressor (tratando-o como um “monstro” ou louco, e não como fruto de uma cultura patriarcal).
No contexto atual embora a Lei do Feminicídio tenha trazido visibilidade ao tema, Martins (2022) alerta que a cobertura ainda é sensacionalista. Ao rotular o criminoso como um “monstro” ou “animal” a mídia retira a responsabilidade social do crime e o transforma em um ato isolado de barbárie. Isso gera engajamento e revolta, mas pouco contribui para o entendimento das raízes da violência. Além disso essa narrativa cria uma pressão imensa sobre o Judiciário.
A autora destaca que em casos de feminicídio a comoção social é amplificada. Quando o Judiciário utiliza datas simbólicas, como o aniversário da Lei Maria da Penha (o “Agosto Lilás”), para pautar julgamentos corre-se o risco de transformar o réu em um símbolo. Liston (2022) complementa essa visão mediante o conceito de “Direito Penal Simbólico”: a condenação severa passa a ser necessária não apenas pela reprovabilidade da conduta individual, mas para reafirmar a vigência da norma e dar uma resposta política à sociedade. O jurado inserido nesse contexto sente que absolver o réu seria um ato de machismo ou de desrespeito à causa das mulheres, o que compromete sua liberdade de decidir com base apenas na prova dos autos.
Outro aspecto que merece destaque e que muitas vezes é negligenciado na análise puramente processual é a exploração da própria vítima pela mídia. Martins (2022), ao analisar a cobertura de feminicídios, identifica um fenômeno de “revitimização” ou vitimização secundária. A mídia não apenas devassa a vida do acusado, mas também transforma a vida privada da vítima e de seus familiares em domínio público. No caso de Marabá, a exposição da dor da família, os detalhes sobre a vida da tatuadora e a repetição exaustiva das circunstâncias de sua morte servem para alimentar a narrativa mas cobram um preço alto em dignidade.
Essa exposição tem um efeito colateral direto no Tribunal do Júri. Werka e Borges (2021) explicam que a constante exibição do sofrimento familiar cria nos jurados um sentimento de dívida moral. O julgamento deixa de ser sobre a responsabilidade penal do réu (se ele cometeu ou não o ato) e passa a ser uma forma de “compensar” a família pela perda. A mídia ao explorar a dor dos sobreviventes transforma o Conselho de Sentença em um instrumento de terapia social, onde a condenação é vista como o único remédio possível para o luto, independentemente da robustez das provas.
Além disso Martins (2022) alerta para a construção da “vítima ideal”. Para que a narrativa do “monstro” funcione, a vítima precisa ser imaculada e qualquer traço de comportamento da vítima que fuja ao padrão moral conservador é frequentemente omitido ou em casos opostos, utilizado para justificar a violência como ocorria antigamente com a tese da legítima defesa da honra. No caso Flávia, a construção da sua imagem como jovem trabalhadora e querida pela comunidade foi essencial para maximizar a repulsa contra o réu Willian. Embora essa imagem seja verdadeira sua utilização estratégica pela mídia visa acima de tudo anular qualquer possibilidade de defesa ou contextualização por parte do acusado, selando seu destino antes do contraditório.
4.3 A contaminação do Judiciário: Do Juiz Togado ao STF
Embora o foco deste estudo seja o jurado leigo, é imperativo reconhecer que a pressão midiática também contamina a magistratura togada. Aragão, Lamarck e Madeira (2025) ao analisarem a atuação judicial no caso da Boate Kiss, demonstram como juízes e até ministros de cortes superiores podem ceder à tentação do “heroísmo judicial” pressionados pela mídia a darem uma resposta rápida à sociedade, magistrados muitas vezes utilizam a prisão preventiva não como instrumento cautelar para proteger o processo mas como antecipação de pena, para satisfazer o clamor público.
Werka e Borges (2021) explicam que o juiz embora técnico, é um ser humano inserido no corpo social e teme o ostracismo ou a crítica pública. Em casos de grande repercussão, decisões garantistas como conceder liberdade provisória a um réu execrado pela mídia, são retratadas pela imprensa sensacionalista como “conivência com a impunidade” ou “brechas da lei”. Para evitar esse desgaste o Judiciário tende a adotar posturas mais punitivistas, validando atos policiais questionáveis e acelerando ritos.
Conforme destacado por Aragão, Lamarck e Madeira (2025), essa postura do Judiciário valida a narrativa da mídia. Quando um juiz mantém uma prisão ilegal citando “o clamor público” ou “a gravidade em abstrato do delito” argumentos frequentemente derrubados pelos tribunais superiores, mas aplaudidos pelos jornais, ele envia uma mensagem poderosa à sociedade e aos futuros jurados: a de que o réu é de fato um perigo que deve ser neutralizado a qualquer custo. O Estado-Juiz que deveria ser o garantidor das regras do jogo (o due process of law), torna-se um ator coadjuvante no espetáculo punitivo, enfraquecendo as barreiras de contenção do poder punitivo.
O estudo recente de Aragão, Lamarck e Madeira (2025) é importante pois o caso serve como o paradigma máximo da “Espetacularização Punitiva” no Brasil recente e oferece paralelos diretos com a situação em Marabá. Os autores demonstram como a pressão midiática levou a nulidades processuais grotescas, como a realização de múltiplos sorteios de jurados e a revogação de habeas corpus pelo STF com base na “repercussão social” e não na técnica jurídica.
Aragão Lamarck e Madeira (2025) argumentam que no caso Kiss o clamor público gerado pela mídia foi tão ensurdecedor que contaminou as instâncias superiores. Se ministros do Supremo Tribunal Federal, que estão distantes dos fatos e possuem as mais altas garantias da magistratura, cederam à pressão da opinião pública para manter prisões (posteriormente anuladas) o que se pode esperar de um jurado leigo em uma comarca do interior do Pará?
4.4 O colapso do Júri: Psicologia das massas e dissonância cognitiva
O ponto nevrálgico da influência midiática no sistema de justiça encontra-se no Tribunal do Júri. A Constituição Federal, ao instituir o Júri buscou democratizar a justiça, permitindo que o réu fosse julgado pelos seus pares. No entanto diferentemente do juiz togado que possui preparo técnico, estabilidade funcional e o dever constitucional de fundamentar suas decisões (art. 93, IX, CF), o jurado é um juiz leigo (Liston (2022). Silva (2021) destaca que ele decide por “íntima convicção” sem necessidade de explicar os motivos de seu veredito. Essa característica, se por um lado garante a soberania por outro torna o Conselho de Sentença extremamente permeável à opinião pública.
O jurado não vive em uma bolha de isolamento; ele é um consumidor das notícias, um usuário das redes sociais, um membro da comunidade impactada pelo crime. Liston (2022) argumenta que a falta de filtros técnicos faz com que o jurado julgue muitas vezes com base na emoção plantada pela mídia e não na razão jurídica das provas. Quando um caso de grande repercussão chega ao plenário o jurado já traz consigo uma bagagem de informações muitas vezes distorcidas ou falsas consumidas ao longo de meses ou anos. A imagem do réu como culpado, construída pela imprensa desde a fase do inquérito, já está consolidada no imaginário do julgador leigo antes mesmo de a defesa proferir sua primeira palavra.
Além disso há o fator da pressão social local. Em cidades de médio porte como Marabá, onde a comunidade é mais integrada e as notícias circulam com velocidade e intensidade, o jurado sente o peso da responsabilidade perante seus vizinhos e familiares. Absolver um réu que a mídia já condenou pode significar tornar-se ele próprio um alvo de críticas. Werka e Borges (2021) apontam que em muitos casos o jurado vota pela condenação não porque está convencido da autoria ou materialidade, mas por medo da repercussão de uma absolvição. O julgamento portanto deixa de ser livre para ser condicionado.
Os mecanismos tradicionais de proteção da imparcialidade, previstos no Código de Processo Penal, mostram-se insuficientes na era digital. O desaforamento (transferência do julgamento para outra comarca) por exemplo perdeu grande parte de sua eficácia. Como bem observa Silva (2021), a internet globalizou a comoção. Uma campanha por justiça iniciada em Marabá reverbera instantaneamente em Belém ou Santarém. As redes sociais garantem que a narrativa acusatória chegue a qualquer potencial jurado do estado, tornando a contaminação do Conselho de Sentença praticamente inevitável independentemente da geografia.
Aprofundando a questão da vulnerabilidade do Tribunal do Júri, Liston (2022) e Silva (2021) trazem contribuições essenciais da psicologia jurídica. O jurado não é uma tábula rasa. Ele é o “homem médio” inserido em um contexto cultural e social específico. Liston (2022) argumenta que o jurado carrega consigo preconceitos, medos e valores morais que são ativados pela cobertura midiática sensacionalista.
Silva (2021) destaca que a decisão por “íntima convicção” (art. 472 do CPP) permite que esses elementos subjetivos dominem o julgamento. Sem a obrigação de fundamentar o voto, o jurado pode condenar baseado exclusivamente na repulsa que sente pela imagem do réu construída na TV ignorando a falta de provas nos autos. A autora utiliza o termo “mídia marrom” para descrever veículos que exploram essa fragilidade cognitiva, utilizando trilhas sonoras, adjetivações e repetições exaustivas para induzir um estado emocional de vingança.
Além disso, Alves (2023) introduz a dimensão da pressão comunitária. Em crimes de grande repercussão forma-se um consenso social sobre a culpa. O jurado que após o julgamento retornará ao convívio de seus vizinhos e familiares, teme o julgamento social. Absolver alguém que a mídia rotulou como “monstro” exige uma coragem cívica que nem todo cidadão possui. O medo de ser visto como conivente com o crime opera como um mecanismo de coerção silenciosa dentro da sala secreta. No contexto do “Agosto Lilás” em Marabá essa pressão é institucionalizada: condenar torna-se um ato de adesão à campanha contra a violência doméstica, independentemente da prova dos autos.
Ademais, é impossível ignorar o impacto das redes sociais e da psicologia das massas na formação da culpa. Silva (2021) toca no ponto da irracionalidade coletiva. As redes sociais permitiram o retorno de uma prática medieval: o suplício público. Se antes o corpo do condenado era exposto em praça pública, hoje sua imagem e reputação são estraçalhadas na praça digital. Comentários em portais de notícias pedindo “pena de morte”, “tortura” ou “justiça com as próprias mãos” evidenciam que a mídia não apenas informa, mas canaliza pulsões primitivas de vingança.
Alves (2023) reforça que esse ambiente de histeria coletiva afeta a cognição dos jurados mediante o chamado “efeito manada”. Estudos de psicologia demonstram que seres humanos tendem a conformar suas opiniões ao consenso percebido da maioria. Quando um jurado abre seu celular e vê milhares de comentários condenando o réu, seu cérebro, inconscientemente busca alinhar-se a essa maioria para evitar a dissonância cognitiva. Na era da “pós-verdade” onde a crença pessoal e a emoção valem mais que fatos objetivos (Fernandez, 2022), a verdade processual construída no contraditório tem pouca chance de sobreviver contra a “verdade viral” construída nas redes.
Um último ponto de análise psicológica, trazido implicitamente por Liston (2022) e aprofundado pela psicologia judiciária é a teoria da dissonância cognitiva aplicada aos jurados. Quando a mídia bombardeia a sociedade com uma única versão dos fatos por um longo período, as pessoas formam uma crença sólida sobre o evento. O cérebro humano tem uma tendência natural a rejeitar informações que contradigam crenças já estabelecidas.
Portanto, quando o advogado de defesa se levanta no plenário para apresentar uma tese alternativa ele não enfrenta apenas as provas dos autos; ele enfrenta a resistência cognitiva do jurado. O jurado inconscientemente tende a filtrar e descartar os argumentos da defesa porque aceitá-los exigiria admitir que ele, e toda a sociedade, estava errado durante meses. Werka e Borges (2021) sugerem que a cobertura midiática massiva cria um “viés de confirmação”: o jurado presta atenção apenas no que o Promotor diz (pois confirma o que ele viu na TV) e ignora o que a Defesa diz (pois causa desconforto cognitivo).
4.5 A Insuficiência da Resposta Jurídica
A discussão sobre a influência da mídia desemboca inevitavelmente no conflito entre normas constitucionais de mesma hierarquia. De um lado o artigo 220 da Constituição Federal, que veda a censura e garante a livre informação; de outro o artigo 5º incisos X (inviolabilidade da imagem) e LVII (presunção de inocência). Fernandez (2022) lembra que esse cenário é agravado pelo vácuo regulatório deixado após a revogação da Lei de Imprensa pela ADPF 130. Embora a decisão do Supremo Tribunal Federal tenha sido uma vitória para a liberdade de expressão, ela deixou em aberto a questão da responsabilidade imediata sobre os danos à imagem, criando uma zona cinzenta onde abusos são cometidos sob o manto da liberdade jornalística.
Alves (2023) realiza uma análise profunda dessa colisão destacando que nenhum direito fundamental é absoluto. A liberdade de imprensa encontra seu limite na dignidade da pessoa humana. No entanto a prática judiciária brasileira tem demonstrado uma dificuldade imensa em realizar essa ponderação em tempo real. A intervenção judicial geralmente ocorre a posteriori, por intermédio de indenizações por danos morais que embora financeiramente reparatórias, são inócuas para restaurar a reputação destruída. A “pena midiática” é de execução imediata e definitiva: uma vez que um portal divulga a foto de um suspeito com a manchete “Assassino preso” a presunção de inocência é aniquilada no plano social.
Recentemente o Supremo Tribunal Federal fixou a Tese 995 de Repercussão Geral, analisada por Alves (2023), que estabelece critérios mais rígidos para a responsabilização civil de empresas jornalísticas que divulgam acusações falsas sem o devido cuidado na verificação. Essa jurisprudência sinaliza uma mudança de ventos indicando que o Supremo começa a reconhecer o poder destrutivo da imprensa irresponsável. Contudo a aplicação dessa tese no cotidiano das delegacias e redações ainda é incipiente. O jornalismo declaratório aquele que se limita a reproduzir a fala do delegado sem checagem ou contraponto continua sendo a regra na cobertura policial.
Werka e Borges (2021) defendem a aplicação rigorosa do princípio da proporcionalidade como única saída viável. Não se trata de censurar a imprensa ou impedir a divulgação de crimes, o que seria um retrocesso democrático. Trata-se de exigir que a cobertura respeite parâmetros éticos mínimos: a não exposição vexatória do preso (em respeito à Súmula Vinculante 11), a distinção clara entre suspeito e culpado e o espaço para o contraditório. Quando a mídia ultrapassa esses limites ela deixa de exercer um direito e passa a praticar um abuso de direito.
Diante do cenário de contaminação da imparcialidade dos jurados o Código de Processo Penal brasileiro prevê em seu artigo 427, o instituto do desaforamento. Esta medida excepcional permite o deslocamento do julgamento para outra comarca da mesma região, onde não subsistam os motivos que geraram a dúvida sobre a isenção do Conselho de Sentença ou o risco à segurança do acusado. Historicamente essa ferramenta foi desenhada sob uma lógica geográfica: acreditava-se que a distância física do local do crime garantiria o distanciamento emocional necessário para um veredito justo (Lima, 2020).
No entanto, Silva (2021) desenvolve uma crítica contundente sobre a obsolescência desse mecanismo na sociedade da informação. A autora argumenta que a lógica do desaforamento foi concebida em um tempo de comunicação analógica, onde a comoção social se restringia aos limites do município onde o fato ocorreu. Na era digital as fronteiras geográficas foram dissolvidas pela conectividade. A “praça pública” onde ocorre o linchamento moral não é mais a praça da cidade de Marabá, mas a timeline das redes sociais que é onipresente.
Ao aplicar essa teoria ao caso Flávia Alves Bezerra, percebe-se a ineficácia prática da medida. Ainda que a defesa de Willian Araújo Sousa conseguisse provar a contaminação dos jurados em Marabá e obtivesse o desaforamento para uma comarca vizinha, como Parauapebas, ou até para a capital, Belém, o resultado seria inócuo. As reportagens do G1 Pará (2024) e da Agência Pará (Menezes, 2024), bem como as publicações institucionais do TJPA (Ribeiro, 2025) sobre o “Agosto Lilás” foram veiculadas em plataformas digitais de alcance estadual e nacional. Um jurado em Belém tem acesso ao mesmo conteúdo sensacionalista e aos mesmos vídeos virais que um jurado em Marabá.
Aragão, Lamarck e Madeira (2025) reforçam esse entendimento ao analisarem o caso da Boate Kiss. Mesmo com a mudança de foro ou a seleção rigorosa a pressão midiática em casos de grande repercussão cria uma “atmosfera de condenação” que permeia todo o estado, senão o país. A mídia cria uma comunidade de indignação que independe do código postal. Portanto transferir o julgamento torna-se apenas um deslocamento físico do réu, sem o condão de deslocá-lo do foco da execração pública.
Além disso, Liston (2022) aponta que a própria internet permite que grupos de pressão como familiares da vítima e ativistas digitais organizem manifestações virtuais direcionadas à comarca para onde o júri for transferido. A “turba” viaja junto com o processo, agora em formato de hashtags e comentários em tempo real nas transmissões ao vivo. Isso coloca em xeque a própria viabilidade do Tribunal do Júri para julgar casos de alta visibilidade midiática, uma vez que a premissa básica da instituição o julgamento por pares isentos torna-se uma ficção inalcançável quando a sociedade inteira já foi doutrinada pela narrativa da culpa.
Nesse sentido, a manutenção do instituto do desaforamento nos moldes atuais sem considerar o alcance do algoritmo das redes sociais, serve apenas como um paliativo processual. O Judiciário cumpre a formalidade de mudar o local, mas entrega o réu a um novo corpo de jurados que embora fisicamente distantes do crime, estão digitalmente imersos na mesma narrativa de ódio construída pela “Criminologia Midiática” descrita por Zaffaroni (apud Werka & Borges, 2021). Resta evidente portanto que a garantia da imparcialidade exige mecanismos mais robustos do que a simples geografia, demandando um controle rigoroso sobre a própria publicidade opressiva que antecedede o plenário.
Por fim, é crucial discutir a insuficiência dos remédios jurídicos tradicionais frente à velocidade da internet. Alves (2023) dedica parte de seu estudo ao “Direito de Resposta” (Lei 13.188/2015), demonstrando sua quase total ineficácia em casos de linchamento virtual. A lógica da notícia digital é a da viralização instantânea. Uma acusação falsa ou exagerada viaja o mundo em minutos; a retificação ou o direito de resposta obtidos judicialmente meses depois, alcançam uma fração ínfima do público original.
Silva (2021) observa que o algoritmo das redes sociais privilegia o conteúdo que gera indignação, não o que gera esclarecimento. Uma manchete sensacionalista acusando o réu terá milhares de compartilhamentos; uma nota de esclarecimento da defesa ou uma decisão judicial de absolvição terá alcance mínimo. Cria-se assim uma “verdade digital” que é imune à verdade processual.
Para o acusado no Tribunal do Júri isso significa que a mancha em sua reputação é indelével. Mesmo que a defesa consiga provar tecnicamente a inocência ou a menor participação no crime, a “verdade” estabelecida pelo algoritmo, aquela que o jurado viu nas redes sociais antes de entrar no fórum é a que prevalece. Fernandez (2022) conclui que, sem mecanismos de controle mais ágeis e sem uma responsabilização severa das plataformas e veículos, o processo penal continuará perdendo a corrida para a desinformação e a liberdade do cidadão continuará refém dos cliques.
5. IMPACTOS NA OPINIÃO PÚBLICA E NO PROCESSO JUDICIAL DO CASO FLÁVIA ALVES BEZERRA
A análise quali-quantitativa dos dados coletados na rede social Instagram, confrontada com o referencial teórico criminológico e constitucional revela que o caso Flávia Alves Bezerra constitui um paradigma da falência dos mecanismos tradicionais de contenção da influência midiática.
Nesse ponto é crucial estabelecer uma distinção técnica entre o jornalismo profissional e a dinâmica das redes sociais, especificamente o Instagram. Enquanto o jornalismo ainda que sensacionalista opera sob certos códigos de ética, as plataformas digitais funcionam sob a lógica da ‘Economia da Atenção’. O algoritmo do Instagram não privilegia a verdade factual, mas sim o engajamento emocional (arousal). Diferente da notícia impressa o conteúdo visual comunicase diretamente com o sistema límbico do usuário sem passar pelo filtro racional.
A Criminologia Midiática, conforme leciona Eugenio Raúl Zaffaroni, historicamente criava uma realidade paralela por meio da televisão. Contudo, os dados desta pesquisa indicam uma evolução para o que se pode chamar de “ditadura do algoritmo”.
O monitoramento do perfil @carajas.noticias identificou que um único vídeo (Reels) sobre o caso alcançou a marca de 3.064.726 visualizações, número que, conforme atualização recente dos insights da plataforma apresentada na vídeo 1, saltou para 3.779.056 visualizações, alcançando 2.886.914 contas únicas.
Ao cruzar esse dado com a demografia local constata-se que o alcance da publicação supera em mais de dez vezes a população total de Marabá que é estimada em cerca de 270 mil habitantes.
Esse dado estatístico refuta na prática a eficácia do instituto do desaforamento, previsto no artigo 427 do CPP.
Para dar consistência científica à análise do algoritmo, foram extraídos dados de outras quatro publicações que comprovam o padrão de engajamento punitivo e emocional:
- Vídeo 2 (Buscas na mata): O conteúdo investigativo obteve 318.118 visualizações e atingiu 122.348 contas, demonstrando a capilaridade regional do caso.
- Vídeo 3 (Velório/Protesto): O registro do luto obteve 244.347 visualizações, com uma taxa de curtidas de 8.900 interações, reforçando a comoção social.
- Vídeo 4 (Defesa deixando o plenário): O vídeo do conflito institucional alcançou 213.927 visualizações e 115.889 contas, evidenciando o interesse do público na derrocada da defesa técnica.
- Vídeo 5 (Mãe pede pena de morte): A publicação obteve 138.179 visualizações, mas destacou-se pela taxa de curtidas de 4,53% (acima da média da página), comprovando a adesão do público ao discurso punitivista.
A teoria processual clássica (Lima, 2020) pressupõe que deslocar o julgamento para uma comarca vizinha garantiria a isenção dos jurados, no entanto a viralização digital observada rompe a lógica da territorialidade.
O jurado de uma cidade vizinha ou até da capital, consome o mesmo conteúdo viral que o jurado de Marabá. Portanto a “contaminação” cognitiva não é mais geográfica, ela é digital e onipresente confirmando a tese de Silva (2021) sobre a impossibilidade de isolamento do Conselho de Sentença na era da hiperconexão.
A atuação digital dos familiares da vítima, especificamente por meio do perfi @paulaacarneiroo, fornece substrato empírico para a confirmação da teoria do Lawfare Penal. Segundo Zanin, Martins e Valim (2019), o Lawfare caracteriza-se pelo uso das leis e dos procedimentos jurídicos como arma de guerra para aniquilar a imagem do inimigo perante a opinião pública.
Enquanto a defesa técnica estava restrita aos autos e aos prazos processuais, a acusação via assistência e mobilização social, operava no Instagram sem limitações éticas ou temporais, gerando conteúdos de alto apelo emocional como vídeos de luto e reações a falas da defesa. Isso gerou uma ruptura frontal no princípio da Paridade de Armas.
A narrativa visual da mãe chorando possui um poder de convencimento (arousal) infinitamente superior a qualquer tese jurídica defensiva. O corpo de jurados exposto a essa assimetria comunicacional por meses chega ao plenário não para julgar fatos, mas para validar a narrativa emocional vencedora nas redes confirmando o alerta de Gomes (2021) sobre a substituição da prova técnica pela “prova sentimental”.
A análise qualitativa dos comentários nas publicações de maior engajamento revela a manifestação prática do Direito Penal do Inimigo teorizado por Günther Jakobs (Werka e Borges, 2021). Nos autos digitais o réu não foi tratado como cidadão sujeito a direitos, mas como uma “não-pessoa”. Frases coletadas como “no Brasil não tem lei” e clamores por “pena de morte” evidenciam o fenômeno do Populismo Penal.
O público inflamado pelo algoritmo que privilegia a indignação, exige punições que excedem o ordenamento jurídico. Esse comportamento de manada cria uma pressão psicológica sobre o jurado: absolver ou condenar moderadamente passa a ser visto como um ato de traição à sociedade. Essa pressão externa valida a hipótese de Werka e Borges (2021) de que o jurado temendo o linchamento virtual que atingiu o réu, tende a proferir um veredito condenatório como mecanismo de autodefesa e conformidade social (Social Proof).
O ápice da influência midiática ocorreu na sessão do Júri de 07 de agosto de 2025. O agendamento do julgamento para uma data simbólica (aniversário da Lei Maria da Penha) alinha-se ao conceito de Direito Penal Simbólico (Liston, 2022), onde o processo é usado pelo Estado para dar uma resposta política sacrificando a técnica em nome do espetáculo.
Nesse contexto, a pressão atingiu níveis críticos devido à atuação direta da família da vítima nas redes sociais. O perfil da mãe, Paula Carneiro, tornou-se um vetor de mobilização onde o luto legítimo foi mesclado a uma campanha por condenação, gerando um ambiente hostil dentro do fórum. O clímax dessa tensão resultou no abandono do plenário pela defesa e na consequente dissolução do Conselho de Sentença.
O episódio envolveu embates acalorados com a Juíza Presidente, Alessandra Rocha da Silva Souza, e a Promotora de Justiça, Cristine Magella Corrêa Lima, evidenciando que o “tribunal das ruas” (ou do Instagram) invadiu o tribunal togado. O fato posterior de a advogada de defesa precisar “pedir perdão” à mãe da vítima por estar exercendo seu trabalho é a prova documental mais contundente deste estudo. Conforme o Vídeo 1, a “retratação pública” da defesa documentada em imagem jornalística foi o conteúdo de maior alcance de toda a cobertura (3,7 milhões), simbolizando a derrota da técnica jurídica perante o clamor popular.
Esse pedido de desculpas simboliza a total inversão da hierarquia processual e o colapso da racionalidade jurídica diante do apelo emocional da imagem. Demonstra-se, assim, que no caso Flávia Alves Bezerra, o Tribunal do Júri deixou de ser um espaço de dialética processual para se tornar um palco de ratificação do ódio virtual, onde exercer o direito de defesa tornouse aos olhos da sociedade algoritmizada, uma nova agressão à vítima.
A prova final da incapacidade do Estado em garantir um julgamento justo sob a pressão dos algoritmos materializou-se no desfecho processual: o segundo julgamento precisou ser realizado a “portas fechadas”. A restrição total da publicidade e da presença do público foi a única medida encontrada pelo Judiciário para tentar blindar o Conselho de Sentença da contaminação digital diagnosticada nesta pesquisa. Essa medida excepcional funciona como uma admissão tácita de que o modelo tradicional de Júri público colapsou diante da viralização digital evidenciada nos dados coletados.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso investigativo trilhado neste artigo permitiu constatar que a dinâmica entre a publicidade e o sistema penal sofreu uma mutação drástica: migrou-se da “espetacularização televisiva” para a “algoritmização da justiça”. A análise empreendida demonstrou que o Instagram ao priorizar conteúdos de alta carga emocional (arousal) e polarização, atua como um acelerador de vereditos sociais, comprometendo a imparcialidade do Conselho de Sentença de forma mais agressiva e capilar do que a mídia tradicional.
Quanto aos objetivos propostos considera-se que foram plenamente atingidos. A pesquisa bibliográfica e documental validou a hipótese inicial de que as narrativas visuais do Instagram influenciam decisivamente a convicção dos jurados. Ficou evidente que o fenômeno ultrapassa a liberdade de imprensa para configurar uma prática de Lawfare. O uso estratégico da comunicação digital não buscou apenas informar, mas deslegitimar a defesa técnica e transformar o acusado em um “inimigo” público contra o qual a sociedade clamou por vingança e não por justiça.
A análise documental dos eventos ocorridos na comarca de Marabá, especificamente no caso Flávia Alves Bezerra, serviu como prova empírica contundente dessa distorção. A viralização de vídeos com mais de 3 milhões de visualizações, quantitativo que supera em mais de dez vezes a população total da comarca, e a atuação direta de familiares da vítima como influenciadores digitais criaram uma “verdade algorítmica” insuperável. A dissolução do Conselho de Sentença e o abandono do plenário pela defesa não foram meras manobras, mas sintomas de um colapso institucional provocado pela pressão externa onde a advogada se viu coagida a pedir perdão público por exercer seu múnus constitucional. A prova final dessa falência institucional materializou-se na necessidade de realizar o segundo julgamento a portas fechadas, uma admissão tácita de que o rito público tradicional não resiste à pressão das redes.
Conclui-se ainda que os mecanismos tradicionais de proteção da imparcialidade, como o desaforamento, tornaram-se obsoletos. Na era digital a comoção não respeita fronteiras geográficas; a “turba” digital viaja junto com o processo por intermédio das redes sociais. Além disso, a postura do Judiciário ao vincular julgamentos a campanhas institucionais acabou por validar ainda que involuntariamente o clamor punitivista, enfraquecendo a presunção de inocência.
Como sugestão para o enfrentamento desse cenário propõe-se que o Judiciário adote uma postura mais rigorosa no controle da publicidade opressiva, aplicando a responsabilização civil sobre plataformas e perfis que incitem o linchamento virtual. É imperativo também investir na educação midiática dos jurados, alertando-os sobre os vieses cognitivos explorados pelos algoritmos.
Para estudos futuros, recomenda-se a investigação do impacto específico dos “comentários” de redes sociais na psicologia do julgador leigo e a eficácia de novas ferramentas processuais para blindar o Conselho de Sentença da toxicidade digital. A justiça para ser justa precisa ser cega, mas o Instagram luta diariamente para abrir seus olhos à força.
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1Graduando do Curso de Direito da Faculdade dos Carajás. e-mail:
2Orientador, Me., Professor do Curso de Direito da vinicius.biancardi@carajasedu.com.br Faculdade dos Carajás. e-mail: antonio.gomes@carajasedu.com.br
