REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202505092038
Alana Arielle Santana Mesquita1; Emilly Reis De Souza2; Yasmim Kiarele Areias Rocha3; Orientador Thiago da Silva e Silva4
RESUMO
Este artigo tem como proposta avaliar a eficácia das audiências de conciliação realizadas nos Juizados Especiais Cíveis (JECs) da Comarca de Manaus, com foco na 11ª Vara, conforme os parâmetros estabelecidos pela Lei nº 9.099/1995. Esses juizados foram instituídos com o intuito de garantir o acesso à justiça de maneira gratuita, rápida e simplificada, especialmente em demandas de menor complexidade. A análise parte da importância da conciliação como mecanismo voltado à promoção da paz social e à diminuição da sobrecarga no Judiciário. O objetivo principal é examinar, de forma crítica, o desempenho do modelo autocompositivo aplicado no âmbito dos JECs. Para alcançar esse propósito, foi empregada uma metodologia de natureza quali-quantitativa, com abordagem descritiva, analítica e fundamentada em revisão bibliográfica. Os dados evidenciam que, embora os Juizados Especiais sejam amplamente utilizados em todo o país, o modelo de conciliação ainda enfrenta limitações que exigem ajustes e aprimoramentos, a fim de assegurar maior celeridade processual, efetividade na resolução de conflitos e ampliação do acesso à justiça. Conclui-se, portanto, que a consolidação das práticas autocompositivas depende diretamente de investimentos contínuos em infraestrutura adequada, capacitação técnica dos profissionais envolvidos e monitoramento sistemático dos resultados obtidos.
Palavras-chave: Juizados Especiais Cíveis. Conciliação. Audiência. Lei de 9.099/95.
ABSTRACT
This article aims to evaluate the effectiveness of conciliation hearings conducted in the Special Civil Courts (SCCs) of the District of Manaus, with a focus on the 11th Court, in accordance with the parameters established by Law No. 9,099/1995. These courts were instituted to ensure access to justice in a free, swift, and simplified manner, particularly for low-complexity claims. The analysis highlights the importance of conciliation as a mechanism for promoting social peace and alleviating the judiciary’s workload. The main objective is to critically examine the performance of the self-compositional model applied within the SCCs. To achieve this, a quali-quantitative methodology was employed, featuring a descriptive and analytical approach grounded in a literature review. The findings reveal that, although the Special Civil Courts are widely used across the country, the conciliation model still faces limitations that demand adjustments and improvements to ensure greater procedural speed, more effective conflict resolution, and broader access to justice. It is therefore concluded that the consolidation of self-compositional practices depends directly on continuous investment in adequate infrastructure, technical training for the professionals involved, and systematic monitoring of the outcomes achieved.
Keyword: Small Claims Court. Conciliation. Hearing. Law 9.099/95.
1 INTRODUÇÃO
Ao longo da história, a autotutela firmou-se como o instrumento preponderante para a resolução de litígios, caracterizando-se pela imposição unilateral da vontade das partes, frequentemente através do uso da força. Tal prática emergiu em razão da inexistência de um aparato estatal devidamente estruturado para exercer a função jurisdicional de modo efetivo.
Nessa perspectiva, Delmanto (2007, p. 884) assevera que, em termos populares, a autotutela consiste na prática em que o ofendido busca realizar justiça com as próprias mãos. Não obstante, a adoção desse mecanismo ensejava um ambiente de acentuada instabilidade social e de insegurança jurídica, circunstâncias que impulsionaram a necessidade de delegação do poder de resolução de controvérsias ao Estado. Nesse contexto, consolidou-se o modelo de heterocomposição, no qual a solução dos conflitos passa a ser conduzida por um terceiro imparcial, legitimamente investido da autoridade necessária para dirimir as controvérsias.
Embora a institucionalização estatal da função jurisdicional tenha representado um avanço no tratamento dos conflitos, tal forma de resolução nem sempre resulta em decisões plenamente satisfatórias para ambas as partes envolvidas, sendo ainda caracterizada pela morosidade processual e pelo excessivo formalismo procedimental.
Nesse cenário, a autocomposição apresenta-se como alternativa eficaz e promissora, por proporcionar a construção consensual da solução do litígio diretamente pelos próprios interessados. Para tanto, é imprescindível que os litigantes — ou ao menos um deles — estejam dispostos a transigir, abdicando, ainda que parcialmente, de seus interesses em disputa (Silva, 2005, p. 4-5).
A autocomposição passou a ocupar posição de destaque no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente a partir da promulgação do Código de Processo Civil de 2015. Esse diploma legal, em seu artigo 3º, determina que o Estado deve promover, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos, incentivando o uso de mecanismos como a conciliação e a mediação, inclusive no curso do processo judicial. Além disso, impõe aos profissionais do direito o dever de fomentar tais práticas no exercício de suas atribuições.
A priorização dos métodos consensuais de resolução de conflitos não apenas fortalece a promoção de soluções pacíficas, mas também constitui medida concreta e eficaz para a mitigação da sobrecarga do Poder Judiciário, diante do expressivo volume de demandas processuais.
Consoante dados extraídos do Relatório Justiça em Números 2024, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a taxa de congestionamento da Justiça Estadual alcançou o expressivo índice de 70,5%, evidenciando que, a cada 100 processos, 70 permanecem pendentes de solução definitiva. Tal panorama de acentuada morosidade reforça a necessidade da adoção de métodos alternativos de resolução de conflitos, a exemplo da conciliação, que se revelam instrumentos céleres, eficazes e menos onerosos, aptos a fomentar a pacificação social de forma mais eficiente.
No âmbito dos Juizados Especiais Cíveis (JECs), instituídos pela Lei nº 9.099/1995, a conciliação ultrapassa a mera fase procedimental, concretizando-se em princípio estruturante de todo o ordenamento. A racionalidade que rege os Juizados pressupõe que as controvérsias de menor complexidade sejam solucionadas de modo célere, prescindindo da longa instrução probatória que caracteriza o rito ordinário da Justiça Comum.
Não obstante a previsão legal e a sua centralidade teórica, constata-se, na prática, que a audiência de conciliação, concebida para propiciar a solução imediata dos litígios, nem sempre atinge seus objetivos de forma satisfatória. Uma das causas desse insucesso reside na defasagem normativa da Lei nº 9.099/1995, que não incorporou as inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015, o qual avançou na resolução de litígios ao expandir os procedimentos de conciliação. Esse descompasso legislativo compromete a eficácia dos Juizados Especiais, dificultando sua plena adaptação às práticas modernas e mais eficientes preconizadas pelo novo ordenamento processual.
Desse modo, esta pesquisa, ao promover uma reflexão crítica, visa apurar a efetividade dos instrumentos de autocomposição na esfera da Justiça Especial Cível, considerando a atuação da 11ª Vara da Comarca de Manaus como principal objeto de análise. Parte-se da hipótese de que, embora a conciliação represente um avanço normativo significativo em direção à valorização dos métodos consensuais de resolução de conflitos, sua prática enfrenta entraves, dentre os quais destacam-se a sobrecarga estrutural do Poder Judiciário, a carência de conciliadores devidamente qualificados, o desinteresse das partes litigantes em conciliar e a persistência de uma cultura litigiosa estabelecida em parcela da advocacia.
A pesquisa adotou uma abordagem metodológica quali-quantitativa, consubstanciada na realização de revisão bibliográfica e análise documental. Para tanto, foram examinados cem processos, cujas audiências de conciliação foram designadas no primeiro semestre do ano de 2024, extraídos do sistema eletrônico PROJUDI/AM. Os dados analisados contemplaram, entre outros aspectos, as taxas de homologação de acordos, os pedidos de dispensa de audiência, a manifestação de interesse das partes e as principais matérias objeto dos litígios.
A estrutura do artigo compreende três seções. A primeira dedica-se à análise do panorama jurídico da autocomposição, com especial atenção às disposições constantes nos Códigos de Processo Civil e na Lei dos Juizados Especiais. A segunda seção examina os principais obstáculos à efetividade das audiências de conciliação, abordando aspectos estruturais e humanos. Por fim, a terceira seção apresenta os resultados empíricos da pesquisa, propondo reflexões críticas e medidas concretas para o aprimoramento do modelo atual.
2. A CONCILIAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: BASES E EVOLUÇÃO
2.1 A Evolução do Acesso à Justiça: Da Sobrecarga do Judiciário à Teoria das Multiportas.
Desde as primeiras organizações sociais, a resolução de conflitos entre indivíduos exigiu mecanismos adequados e eficazes. No período pré-moderno, predominava a autotutela, um modelo no qual as próprias partes envolvidas eram responsáveis por resolver suas disputas, frequentemente através da força ou de outras formas de retribuição direta. No entanto, esse método apresentava falhas graves, principalmente no que tange à imparcialidade e à segurança jurídica, já que não havia uma autoridade neutra capaz de assegurar decisões justas, o que, por sua vez, prejudicava a ordem social.
A crescente necessidade de evitar arbitrariedades e garantir decisões mais justas levou ao entendimento de que seria imprescindível centralizar a função de resolução de conflitos, atribuindo ao Estado a responsabilidade de dirimir as controvérsias. Nesse cenário, segundo Marinoni (1999), surgiu o conceito de iuris dictio, o poder do Estado de decidir, com base nos elementos concretos do caso, qual das partes detém razão. Essa transição da autotutela para a heterocomposição representou uma tentativa de tornar o sistema mais equilibrado, oferecendo uma instância imparcial para decidir as questões em disputa. Porém, mesmo com a institucionalização da heterocomposição, a sobrecarga do Judiciário tornou-se um problema crescente, à medida que a busca por soluções judiciais aumentava
O Código de Processo Civil de 1973, embora tenha sido um marco importante para a estruturação processual e o avanço no acesso à justiça, não foi capaz de antecipar a magnitude da judicialização e o consequente acúmulo de litígios que se seguiram nas décadas seguintes. Segundo Dinamarco (2002), o modelo processual brasileiro adotado era extremamente rígido, composto por fases fixas e permeado de preclusões, o que dificultava alterações e ajustes ao longo do processo. Essa rigidez contribuiu para a morosidade dos trâmites processuais, tornando o sistema ainda mais complexo e lento.
Atualmente, apesar da promulgação do Novo Código de Processo Civil em 2015, a judicialização segue em crescimento. De acordo com o relatório “Justiça em Números 2024” do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o índice de judicialização no Brasil aumentou em 9,5% em 2023, em comparação com o ano anterior, gerando mais de 35 milhões de novos casos, particularmente no âmbito estadual. Esses números evidenciam o congestionamento contínuo do Judiciário e indicam a necessidade urgente de se buscar formas mais ágeis e eficientes de resolução de conflitos.
Foi diante desse cenário de “hiperjudicialização” que se fortaleceu a proposta do Sistema Multiportas, criada por Frank Sander, professor da Universidade de Harvard, no século XX. A teoria visa oferecer alternativas à tradicional via judicial, como a mediação, conciliação e negociação. Vasconcelos (2017, p. 86) descreve que o objetivo do Sistema Multiportas é justamente ampliar as opções de resolução de conflitos, além do processo judicial, possibilitando soluções mais rápidas e menos onerosas para as partes envolvidas.
Assim, essa teoria é vista como transformadora, pois rompe com a concepção de que o acesso pleno à justiça, garantido pelo artigo 5º, inciso XXXV, da CF/1988, se dá exclusivamente por meio do Judiciário, e introduz a premissa de que existem outros caminhos que permitem a resolução das controvérsias sem a intervenção estatal. Nessa linha, Freitas, Luna e Oliveira (2017) expõem que a aplicação de instrumentos distintos para as diferentes situações observadas no direito brasileiro constitui elemento primordial a esta análise e, além disso, enfatiza a imprescindibilidade de sua aplicação.
Ao transpor essa ótica para a Lei dos Juizados Especiais Cíveis, a sobredita lei visa agilizar o andamento processual e proporcionar soluções ágeis e simplificadas para causas de menor complexidade. No contexto de Manaus, o Sistema Multiportas se mostra relevante ao oferecer alternativas como conciliação e mediação, o que aumenta as possibilidades de resolução eficiente dos conflitos no Judiciário local.
Assim, a implementação do Sistema Multiportas em Manaus configura-se como uma estratégia relevante para o fortalecimento do acesso à justiça, especialmente entre os grupos sociais em situação de vulnerabilidade. Destarte, a implementação da legislação existente em consonância com o aludido sistema tende a promover, de fato, a efetivação dos direitos do cidadão amazonense, culminando no favorecimento de uma justiça mais participativa e democrática.
2.2 A Criação dos Juizados Especiais e as Reformas na Lei 9.099/95
A concepção dos Juizados Especiais no Brasil começou a se delinear na década de 1980, especialmente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual estabeleceu, em seu artigo 98, inciso I, a necessidade de implementação de mecanismos voltados à efetivação de um sistema de justiça mais célere, acessível e eficaz. Em consonância com esse comando constitucional, foram oficialmente instituídos, no ano de 1995, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, por meio da Lei nº 9.099/1995.
A criação desses juizados representou uma resposta concreta à sobrecarga do Poder Judiciário e à demanda por um modelo jurisdicional que atendesse de maneira mais eficiente às necessidades da população, especialmente em causas de menor complexidade. Embora inspirados em experiências internacionais, os Juizados Especiais foram concebidos de forma a respeitar as especificidades do ordenamento jurídico nacional, com o propósito de assegurar ao cidadão o acesso gratuito, simplificado e rápido à justiça.
Para além da mera racionalização procedimental, os Juizados Especiais introduziram uma nova mentalidade jurídica, pautada na efetividade dos direitos e na pacificação social por meio de métodos consensuais. Nesse contexto, visam não apenas solucionar conflitos, mas aproximar a justiça da realidade social, promovendo a concretização dos direitos de forma mais tangível e eficiente.
Segundo doutrina analisada por Cunha, o Juizado Especial Cível “significou uma autêntica revolução no processo civil brasileiro. Inovou e reformulou conceitos até então consagrados no Código de Processo Civil” (apud Chimenti, 2012, p. 15). Tal afirmação evidencia que, diante da morosidade dos trâmites processuais no rito comum, a adoção desse novo modelo rompeu com o excessivo formalismo e passou a privilegiar a efetividade e a simplicidade processual, garantindo maior eficiência na atuação do judiciário.
Nessa perspectiva, a resolução consensual de litígios passou a ocupar papel de destaque do sistema jurídico brasileiro, consolidando-se como uma alternativa eficiente à via judicial tradicional. Nesse cenário, a conciliação ganhou força normativa e institucional, sendo incorporada como etapa essencial no rito dos Juizados Especiais, contribuindo significativamente para a diminuição da sobrecarga do Poder Judiciário, no que tange os conflitos de menor complexidade.
A institucionalização da conciliação viabilizou a autocomposição das controvérsias de forma simplificada, sem os rigores formais do procedimento comum, o que contribuiu de maneira significativa para a redução da sobrecarga estrutural do Poder Judiciário. Os Juizados Especiais Cíveis, nesse sentido, são concebidos com o objetivo de promover a pacificação social, colocando a resolução amigável dos litígios no cerne de sua estrutura processual.
Essa perspectiva se concretiza na adoção da chamada “audiência una”, prevista na Lei nº 9.099/1995, em que, em um único ato processual, realiza-se inicialmente a tentativa de conciliação entre as partes. Não sendo esta exitosa, a audiência prossegue com a instrução e
julgamento, permitindo que a sentença seja proferida de imediato. Esse procedimento confere racionalidade ao trâmite processual e reflete a valorização dos métodos autocompositivos no âmbito jurisdicional.
Diferentemente do sistema Small Claims Courts, adotado nos Estados Unidos, em que a conciliação é recomendada, mas não integra formalmente a estrutura processual, no sistema brasileiro dos Juizados Especiais a audiência de conciliação constitui fase obrigatória. As partes são, portanto, incentivadas a buscar uma solução amigável para seus litígios, o que reforça a função social do processo e contribui para uma justiça desburocratizada.
Com o fortalecimento da justiça acessível e célere no cenário nacional, o modelo dos Juizados Especiais Cíveis foi gradualmente implantado nos diversos estados da federação, consolidando-se como um importante instrumento de democratização do acesso à jurisdição. No Estado do Amazonas, a criação formal desses órgãos ocorreu com a promulgação da Lei Complementar nº 17, de 23 de janeiro de 1997, que dispôs sobre a divisão e a organização judiciária do Estado do Amazonas (Amazonas, 1997):
Art. 127 – Haverá no Estado do Amazonas trinta (30) Juizados Especiais, sendo vinte (20) na Comarca de Manaus, privativo de Juiz de Direito de 2ª Entrância, e dez (10) no interior do Estado, privativos de Juízes de 1ª Entrância, nas Comarcas de Itacoatiara, Parintins, Tefé, Coari, Manacapuru, Maués, Tabatinga, Manicoré, Humaitá e Lábrea, com competência estabelecida na Lei Federal n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995.
Na capital amazonense, os Juizados Especiais Cíveis atuam em múltiplas frentes, abrangendo litígios relacionados a relações de consumo, conflitos de vizinhança, questões contratuais e ações de cobrança. Observa-se especial incidência de demandas envolvendo instituições bancárias, operadoras de telefonia e planos de saúde, evidenciando sua centralidade no cotidiano jurídico da população manauara.
Embora esta pesquisa foque na análise da eficácia presente dos Juizados Especiais Cíveis na Comarca de Manaus, é necessário reconhecer que o modelo apresenta deficiências que exigem reformas estruturais.
No contexto prático do processo judicial, percebe-se que a audiência de conciliação, em geral, é agendada apenas após a apresentação da defesa, momento em que a controvérsia já se encontra plenamente formalizada, o que pode reduzir as chances de um acordo consensual. Esse momento processual, marcado por posturas mais combativas entre as partes, compromete significativamente as chances de obtenção de um consenso.
Tal condução processual revela-se contraditória em relação aos princípios do Código de Processo Civil de 2015, o qual preconiza uma lógica procedimental voltada à solução consensual dos conflitos, priorizando a instituição da audiência de conciliação como etapa preliminar do rito processual. A postura inerte do Judiciário diante dessa dinâmica reforça um modelo adversarial que se distancia dos objetivos conciliatórios originalmente propostos.
Como bem afirma Neto e Knoer (2023, p. 15), a audiência de conciliação nos juizados deveria constituir-se em um ponto de inflexão no curso do processo, justamente por proporcionar um ambiente mais propício à construção de soluções pactuadas entre as partes, o que contribui para a celeridade e desjudicialização dos conflitos. Entretanto, o que se observa é um cenário em que a audiência, mesmo concebida como espaço privilegiado para o acordo, frequentemente se mostra ineficaz diante da baixa adesão à autocomposição.
Essa realidade aponta para uma dissonância entre os objetivos normativos e a prática forense, sobretudo nos órgãos voltados ao tratamento de litígios de menor complexidade. Em consequência, a audiência de conciliação — idealizada como mecanismo central na resolução de conflitos — revela-se, em muitos casos, um rito protocolar esvaziado de efetividade.
2.3 A reforma do CPC de 2015 e o fortalecimento das audiências de conciliação.
A Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) representou um marco inicial na institucionalização da conciliação como prioridade no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. Estabeleceu a criação dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs), regulamentou a atuação de conciliadores e mediadores e definiu diretrizes para sua formação e capacitação. Contudo, foi com a promulgação do Código de
Processo Civil de 2015 que se consolidou uma ruptura significativa com o modelo excessivamente litigioso vigente até então, inaugurando uma nova etapa orientada à valorização dos meios consensuais de resolução de conflitos.
De acordo com o artigo 3º, § 3º, do CPC/2015, “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”. Esse dispositivo consagra a corresponsabilidade dos operadores do Direito na promoção da cultura da paz, atribuindo às partes protagonismo na construção de soluções alternativas ao litígio tradicional.
Compreende-se a conciliação em um conceito muito mais amplo do que o “acordo” formalizado. A conciliação significa entendimento, recomposição das relações desarmônicas, empoderamento, capacitação, desarme de espírito, ajustamento de interesses. (Sena, 2011, p. 122)
O artigo 334 do CPC/2015 reforça esse direcionamento ao priorizar a solução consensual antes mesmo da instauração plena do contraditório. Isso porque após o recebimento da petição inicial e antes mesmo da apresentação da contestação pela parte demandada, o juiz deverá designar audiência de conciliação ou de mediação. O objetivo dessa previsão é oportunizar, de forma antecipada, um espaço para a construção de uma solução consensual entre as partes, priorizando a autocomposição e evitando, sempre que possível, o prosseguimento do litígio pela via contenciosa.
“Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.
§ 4o A audiência não será realizada:
I – Se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual;
II – Quando não se admitir a autocomposição” (BRASIL, 2015).
Nesse mesmo sentido, no parágrafo 4º do artigo em questão impõe que as audiências somente poderão ser dispensadas mediante manifestação expressa e bilateral das partes, a ausência injustificada de qualquer dessas à audiência é considerada ato atentatório à dignidade da justiça, passível de multa. Ocorre que, na ausência de tal manifestação, presume-se o interesse na autocomposição, sendo obrigatória a participação das partes no ato. Tais medidas demonstram que o legislador não somente estimulou a autocomposição, mas também tratou com rigor e seriedade, trazendo a conciliação como parte obrigatória do processo.
Outra evidência do fortalecimento das audiências a partir da instauração do código foi a atuação dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs), conforme o artigo 165 do CPC, os quais passaram a ser responsáveis pela realização das audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas voltados à cultura do diálogo. Nesse sentido, os dados do relatório da Justiça em Números de 2024 do Conselho Nacional de Justiça expõe que, de 2014 a 2023, os Cejuscs quase quintuplicaram, foram de 362 a 1.724 unidades em 9 anos.
Simultaneamente, o volume de processos no Judiciário brasileiro também apresentou crescimento significativo. Em 2014, foram registrados 20,1 milhões de novos casos, conforme dados do Relatório Justiça em Números 2015. Já em 2023, o número de processos novos ingressados foi de 35 milhões, representando um aumento de 9,4% em relação ao ano anterior.
Assim, é indiscutível que o CPC de 2015 instaurou uma nova ordenação normativa e cultural no tratamento da autocomposição. Conforme observa Didier Jr. (2015), o novo CPC promove uma verdadeira “virada cultural” ao consagrar o diálogo e a cooperação como pilares do processo civil democrático. Nesse contexto, o incentivo à conciliação e à mediação não deve ser compreendido como mera formalidade processual, mas como expressão de um novo paradigma de justiça, que se estrutura como uma política pública voltada à solução consensual de conflitos, mais participativa, eficiente e orientada à efetiva pacificação social.
3. A SOBRECARGA DO JUDICIÁRIO E O FATOR HUMANO COMO OBSTÁCULO À EFETIVIDADE DA CONCILIAÇÃO
O sistema judiciário brasileiro, especialmente os Juizados Especiais Cíveis (JECs) da comarca de Manaus, no estado do Amazonas, enfrenta uma crescente sobrecarga de processos. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), referentes ao ano de 2023, foram registrados aproximadamente 25 milhões de novos casos na Justiça estadual, o que representa um aumento de 6,7% em comparação ao ano anterior.
Esse cenário compromete diretamente a qualidade e a efetividade das soluções conciliatórias oferecidas pelo sistema. Os Juizados Especiais Cíveis, concebidos com o propósito de fornecer respostas céleres e acessíveis a litígios de menor complexidade, têm na audiência de conciliação um dos seus principais instrumentos de resolução de conflitos.
Contudo, como destaca Mendes e Branco (2022), o elevado volume de demandas impõe uma carga de trabalho que excede a capacidade institucional de resposta eficiente. Essa sobrecarga afeta negativamente a agilidade e a efetividade do processo conciliatório, resultando, por vezes, em longos períodos de espera e em soluções que não refletem, de maneira adequada, os princípios da autocomposição e da justiça consensual.
O crescimento no número de processos, sem a correspondente redução por meio de sentenças ou acordos, provoca um acúmulo significativo no Judiciário, impactando diretamente a dinâmica das audiências de conciliação. Entre as principais consequências desse cenário, destaca-se a limitação de tempo e de recursos humanos disponíveis para a condução adequada dessas sessões, que acabam sendo realizadas de forma apressada e, muitas vezes, ineficaz, comprometendo a qualidade das soluções propostas e a própria finalidade conciliatória do procedimento.
Esse cenário de sobrecarga no sistema judiciário é evidenciado pelo relatório Justiça em Números 2024, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que registrou o julgamento de 33,2 milhões de processos em 2023 — o maior volume já registrado na série histórica. Além disso, houve a reativação de 1,7 milhão de casos, fenômeno motivado, em grande parte, por sentenças anuladas em instâncias superiores ou por questões relacionadas à competência jurisdicional. Tal aumento no volume de processos resulta em uma sobrecarga ainda maior do sistema judiciário, comprometendo sua capacidade de resposta e impactando diretamente a efetividade das audiências de conciliação.
Diante da crescente demanda, muitos magistrados acabam adotando decisões mais rápidas, em detrimento de análises mais aprofundadas. Como resultado, a busca por soluções consensuais, como a conciliação, é prejudicada. Muitas audiências de conciliação são dispensadas em nome da celeridade processual, o que compromete tanto a efetividade do processo quanto a qualidade da prestação jurisdicional.
Ademais, a lentidão nos processos judiciais, decorrente da sobrecarga de trabalho dos servidores, pode desmotivar as partes a buscarem uma solução conciliatória. O prolongado tempo de espera e a tendência de as soluções processuais se afastarem das expectativas das partes envolvidas aumentam a frustração e a resistência ao processo de conciliação. Como bem aponta Rocha:
[…] a demora processual, além de não produzir uma decisão mais justa, ainda coloca em risco o próprio bem jurídico deduzido em juízo. Além disso, a lentidão processual gera descrédito para o Poder Judiciário e aumenta o número de processos em tramitação (Rocha, 2022, p. 32).
Nessa perspectiva, Zamora y Castillo (1991) já advertia que o processo judicial frequentemente produz resultados aquém do esperado, em razão dos chamados “defeitos procedimentais” — falhas estruturais que o tornam moroso, oneroso e, por vezes, ineficaz. Segundo o autor, essas deficiências acabam por desestimular as partes, que, diante da frustração com a lentidão e os custos envolvidos, tendem a abandonar o processo antes de sua conclusão. Embora formulada há mais de três décadas, tal crítica permanece atual, especialmente diante da sobrecarga crônica enfrentada pelos Juizados Especiais Cíveis na atualidade.
Além disso, o fator humano exerce um papel decisivo na efetividade das audiências de conciliação nos Juizados Especiais. O engajamento de juízes, conciliadores e das partes envolvidas é fundamental para o sucesso do procedimento. Contudo, a sobrecarga de trabalho mencionada, compromete diretamente a capacitação e a preparação adequada dos profissionais do Judiciário, que, muitas vezes, não dispõem de tempo hábil para se aprofundar nas particularidades de cada caso.
Segundo o relatório Justiça em Números 2024, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2023 havia aproximadamente 84 milhões de processos em tramitação nos 91 tribunais do país, contando com cerca de 18 mil magistrados e 275 mil servidores. Esse descompasso entre o volume de demandas e a capacidade institucional de resposta compromete diretamente a qualidade das audiências, que demandam atendimento individualizado e preparo técnico adequado para alcançar resultados efetivos.
Diante desse cenário, torna-se imprescindível que o Judiciário invista na ampliação do quadro de profissionais e na implementação de programas contínuos de capacitação. Tais medidas são essenciais não apenas para mitigar a sobrecarga existente, mas também para aprimorar a qualidade das audiências de conciliação, promovendo soluções mais eficazes, céleres e alinhadas às reais necessidades das partes envolvidas.
4. A FALTA DE ESPECIALIZAÇÃO DOS CONCILIADORES: IMPACTO NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS
4.1. Formação e Capacitação dos Conciliadores: lacunas e avanços.
A qualidade da conciliação nos Juizados Especiais Cíveis da comarca de Manaus/Amazonas (JECs) está diretamente relacionada à formação dos profissionais que conduzem esse processo. Embora o papel dos conciliadores seja fundamental para o êxito das audiências, observa-se que ainda há desafios quanto à capacitação técnica e prática desses agentes, especialmente no que diz respeito ao domínio das técnicas de mediação e negociação.
Reconhecendo essa necessidade, o Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) tem promovido iniciativas voltadas à qualificação dos envolvidos nas práticas conciliatórias. Em 2024, o Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec/TJAM) concluiu a etapa teórica do 1.º Curso de Formação de Mediadores e Conciliadores, com carga horária total de 100 horas — 40 horas de conteúdo teórico e 60 horas de prática supervisionada. A formação seguiu as diretrizes pedagógicas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o objetivo de preparar servidores e estagiários para uma atuação mais eficaz na resolução consensual de conflitos (TJAM, 2024).
No entanto, a presença de mecanismos autocompositivos, como a conciliação, não garante, por si só, a efetividade na resolução dos conflitos. Para que as audiências cumpram sua função de forma significativa, é fundamental que os conciliadores estejam adequadamente preparados — não apenas do ponto de vista técnico, mas também com competências interpessoais que favoreçam o diálogo empático e a escuta qualificada. A ausência desse preparo pode transformar a conciliação em uma simples troca de propostas, sem mediação real dos conflitos ou criação de um ambiente propício à cooperação.
Técnicas como escuta ativa, identificação de interesses, Rapport e Comunicação Não Violenta (CNV) são ferramentas essenciais para a condução eficaz das sessões. O Rapport, por exemplo, consiste no estabelecimento de uma conexão empática e de confiança entre conciliador e partes, criando um clima de abertura e receptividade. Já a Comunicação Não Violenta busca reformular a comunicação em termos de sentimentos e necessidades, evitando julgamentos e favorecendo o entendimento mútuo. Apesar da importância dessas práticas, elas ainda são pouco exploradas na atuação cotidiana dos conciliadores.
Esse cenário evidencia a necessidade de um investimento sistemático no desenvolvimento de habilidades socioemocionais desses profissionais. Sensibilidade, preparo emocional, escuta ativa, comunicação eficaz e postura imparcial devem ser não apenas incentivadas, mas incorporadas desde o início da formação dos conciliadores, a fim de garantir que a audiência de conciliação seja, de fato, um espaço viável para a construção de soluções consensuais
Apesar de existirem algumas iniciativas voltadas à capacitação, como os cursos oferecidos pelo Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), essas ainda são pontuais e, muitas vezes, insuficientes para suprir a demanda. O TJAM, por meio do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec), oferece capacitação em mediação e conciliação, como o Curso de Formação de Mediadores e Conciliadores e outras formações focadas em áreas específicas como mediação de família e justiça restaurativa.
Ocorre que, essas iniciativas, embora valiosas, ainda atendem a um número limitado de profissionais, o que não é suficiente para suprir as necessidades dos Juizados Especiais Cíveis (JECs). Portanto, é necessário investir em uma formação mais estruturada e obrigatória, capaz de preparar efetivamente os conciliadores para sua função. Só assim será possível fortalecer os JECs como espaços verdadeiramente eficazes na resolução de conflitos e na promoção de uma cultura de pacificação social, e não apenas de trâmite processual acelerado.
4.2 O Papel dos Advogados, Magistrados e Partes na Dinâmica
A efetividade da conciliação nos Juizados Especiais Cíveis está intrinsecamente ligada à atuação coordenada de três agentes fundamentais: advogados, magistrados e partes. Cada um desempenha um papel essencial na construção da cultura de autocomposição, sendo crucial que todos atuem de forma cooperativa, técnica e ética, em conformidade com os princípios que norteiam os JECs, como oralidade, informalidade, simplicidade, economia processual e celeridade.
O advogado exerce papel indispensável à administração da justiça, conforme estabelece o artigo 133 da Constituição Federal, e sua atuação vai além da defesa técnica de interesses. Ainda que o artigo 9º da Lei nº 9.099/1995 dispense sua presença nas causas de menor valor (até vinte salários mínimos), sua participação nas audiências de conciliação é recomendável e, muitas vezes, decisiva. O profissional do direito oferece o suporte necessário à parte para que esta compreenda a viabilidade jurídica de suas pretensões, avalie as propostas de acordo com segurança e se posicione de maneira mais consciente diante da possibilidade de composição.
O artigo 2º, inciso VI, da Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia) reforça essa função ao impor ao advogado o dever de estimular soluções conciliatórias e prevenir litígios desnecessários. Essa conduta ativa e responsável é essencial no ambiente dos JECs, onde se busca a pacificação célere de conflitos cotidianos e de menor complexidade, mas que impactam diretamente a vida dos jurisdicionados.
Como destaca Azevedo e Silva (2006), o advogado moderno deve adotar postura propositiva e colaborativa, valendo-se de sua formação técnica e experiência para construir soluções juridicamente seguras e socialmente adequadas.
Outrossim, a reforma do Código de Processo Civil de 2015 introduziu uma nova lógica no tratamento dos meios consensuais, reforçando a importância da cooperação processual e da solução dialogada dos conflitos. Ainda que o CPC não se aplique de forma integral aos Juizados Especiais, seus princípios irradiam influência e reafirmam a necessidade de adaptação por parte dos operadores do direito.
No contexto dos JECs, o magistrado atua de forma mais direta apenas na ausência de acordo, ao conduzir a fase instrutória e julgar o mérito. No entanto, mesmo em sua atuação posterior, o juiz pode fomentar a cultura do diálogo ao adotar postura acessível e receptiva à composição, incentivando as partes a considerarem soluções consensuais em todas as etapas do processo.
Por fim, destaca-se que as partes são o centro da autocomposição e, portanto, sua colaboração consciente e responsável é indispensável. O êxito da conciliação depende diretamente de sua disposição para o diálogo, da confiança no processo e da compreensão de que, muitas vezes, a solução consensual proporciona benefícios mais duradouros e eficazes do que a decisão imposta judicialmente.
Portanto, a implementação bem-sucedida da conciliação nos Juizados Especiais Cíveis exige mais do que adequação às normas legais; ela exige uma verdadeira transformação cultural dentro do sistema judiciário. Advogados, magistrados e partes devem não apenas entender seus papéis, mas estar dispostos a adotar práticas que priorizem o entendimento mútuo e o compromisso com soluções consensuais.
Sob esse viés, a mudança do paradigma adversarial para o consensual, demanda esforços contínuos para consolidar a ideia de que a resolução pacífica de conflitos, além de ser mais eficiente, contribui para uma justiça mais humana, acessível e restauradora das relações sociais. Esse é o caminho para fortalecer os JECs como espaços verdadeiramente eficazes na promoção da pacificação social.
5. METODOLOGIA
Este estudo tem natureza quantitativa, exploratória e descritiva, com o objetivo de analisar a eficácia das audiências de conciliação realizadas na 11ª Vara do Juizado Especial Cível da Comarca de Manaus/AM, no período correspondente ao primeiro semestre de 2024.
Tipo de Pesquisa
A pesquisa é classificada como exploratória, pois busca compreender aspectos ainda pouco investigados no contexto específico analisado, e descritiva, por apresentar, com base em dados empíricos, a realidade das práticas conciliatórias. A abordagem adotada foi quali-quantitativa, por meio da análise de dados extraídos de processos judiciais.
População e Amostra
A população da pesquisa compreendeu os 447 processos judiciais com audiências de conciliação pautadas entre janeiro e junho de 2024, registrados no sistema PROJUDI/AM. A amostra foi composta por 100 processos selecionados aleatoriamente, a fim de garantir a representatividade estatística e evitar vieses de seleção. O critério de amostragem foi aleatório simples, utilizando um gerador automático de números para a escolha dos processos dentro do universo delimitado.
Coleta de Dados
A coleta de dados documentais foi realizada por meio do sistema eletrônico PROJUDI/AM. Foram extraídas informações referentes a:
(i) existência ou não de acordo na audiência de conciliação;
(ii) manifestação prévia das partes sobre interesse em participar da audiência;
(iii) principais temas das demandas analisadas;
Tratamento e Análise dos Dados
Os dados foram organizados em planilhas eletrônicas e submetidos a tratamento estatístico descritivo, com uso de frequências, percentuais e médias. A apresentação dos resultados foi feita por meio de gráficos e tabelas, facilitando a visualização dos padrões identificados. Os achados foram interpretados à luz da literatura científica sobre autocomposição, conciliação judicial e eficácia dos Juizados Especiais Cíveis, com especial atenção ao contexto regional da cidade de Manaus.
6. RESULTADOS E DISCUSSÕES
Na presente pesquisa, foi identificado um total de 447 audiências pautadas, das quais 100 processos foram selecionados aleatoriamente para uma análise mais aprofundada. O objetivo foi, de maneira exploratória, identificar padrões nas audiências realizadas, coletar dados relevantes e comparar os resultados obtidos com as tendências já discutidas na literatura existente
Gráfico 1: Audiências com acordo x sem acordo

Como evidenciado no Gráfico 1, apenas 11% das audiências resultaram em acordo, enquanto 89% terminaram sem qualquer composição entre as partes. Esse dado destaca a baixa efetividade da conciliação, o que contraria o objetivo dos Juizados Especiais Cíveis de promover soluções consensuais.
Durante a análise, foi observada uma prática recorrente: a expectativa de que apenas o requerido apresente uma proposta de solução. No entanto, a parte autora, por ser diretamente interessada, também deveria contribuir com alternativas viáveis. A ausência de propostas concretas de ambas as partes contribui para a continuidade do processo sem tentativas reais de conciliação.
Essa baixa taxa de acordos reflete um problema sistêmico. O Poder Judiciário deveria priorizar a audiência de conciliação logo após o juízo de admissibilidade, assim como ocorre na Justiça Comum. Os conciliadores, por sua vez, devem estar adequadamente capacitados para aplicar as técnicas conciliatórias de forma eficaz e adaptada ao contexto de cada caso. Além disso, as partes devem ser mais conscientes de seu papel e se engajar ativamente, comprometendo-se com o diálogo.
Portanto, melhorar os índices de acordo nos Juizados Especiais Cíveis requer o comprometimento de todos os envolvidos: Judiciário, conciliadores e litigantes. Apenas por meio dessa mudança conjunta será possível promover uma conciliação mais efetiva, alinhada aos princípios de celeridade, informalidade e acesso à justiça que caracterizam esses juizados.
6.2 Interesse das Partes na Audiência de Conciliação.
No que se refere ao interesse das partes na audiência de conciliação, identificou-se um cenário que merece análise mais aprofundada. A partir de uma amostra aleatória de 100 processos da 11ª Vara do Juizado Especial Cível da Comarca de Manaus, estado do Amazonas, verificou-se que, em 54% dos casos, os patronos das partes autoras optaram por dispensar, já na petição inicial, a realização da audiência de conciliação. O Gráfico 2, a seguir, ilustra os resultados obtidos:
Gráfico 2: Manifestação das partes quanto à audiência de conciliação

A dispensa da audiência de conciliação em mais da metade dos processos analisados revela a influência de múltiplos fatores. Embora seja compreensível que, diante da experiência acumulada, operadores do Direito identifiquem baixa probabilidade de acordo em determinadas demandas — especialmente com base em estratégias processuais recorrentes utilizadas em casos semelhantes — essa prática, quando adotada de forma generalizada, acaba por restringir o acesso das partes a uma via consensual de resolução de conflitos. Assim, priva-se o jurisdicionado da possibilidade de dialogar e construir soluções pactuadas, esvaziando o caráter autocompositivo que deveria caracterizar os Juizados Especiais Cíveis.
Outrossim, a elevada taxa de dispensa da audiência de conciliação pode indicar uma possível falta de confiança na efetividade das práticas conciliatórias adotadas pela 11ª Vara do Juizado Especial Cível de Manaus. Tal percepção parece ser reforçada pelo histórico de audiências infrutíferas anteriormente mencionado, bem como pela consolidação de uma prática reiterada entre os patronos de requerer, já na petição inicial, a dispensa da fase conciliatória. Esse comportamento sugere uma descrença quanto ao real potencial da conciliação como mecanismo eficaz de resolução de conflitos no âmbito daquela unidade jurisdicional.
Consequentemente, esse dado alarmante revela implicações significativas no funcionamento e na eficácia das audiências de conciliação nos Juizados Especiais da comarca de Manaus. Considerando a relevância dessa etapa inicial para a condução adequada do processo, infere-se que sua ausência compromete não apenas o diálogo entre as partes, mas também reduz substancialmente a possibilidade de se alcançar uma solução consensual eficiente, célere e mutuamente benéfica. A dispensa sistemática dessa fase tende a enfraquecer os fundamentos que justificam a existência dos Juizados Especiais: simplicidade, informalidade e efetividade na resolução de litígios de menor complexidade.
6.3 Temas Abordados nos Processos Analisados.
A análise dos processos da 11ª Vara do Juizado Especial Cível de Manaus revelou um perfil de demandas fortemente concentrado em conflitos de consumo. Conforme ilustra o Gráfico 3, as matérias mais recorrentes são:
Gráfico 3: Matérias Recorrentes

A maior parte das ações (29%) está relacionada à negativação indevida e demandas originadas de plataformas de acordo, o que sugere uma busca crescente por responsabilização de empresas por registros de inadimplência supostamente indevidos. Em segundo lugar, aparecem as ações contra instituições bancárias, que representam 27% dos processos, as lides mais recorrentes contra bancos referem-se a tarifas debitadas sem autorização, seguros embutidos, bem como empréstimos não reconhecidos. Após os bancos, seguem as demandas contra companhias aéreas (11%) e operadoras de telefonia (10%).
Esses dados demonstram uma recorrência das grandes empresas como rés nos Juizados Especiais Cíveis, o que confirma a tendência de judicialização em massa de conflitos de consumo. Todavia, foi possível ponderar que a atuação dessas instituições nas audiências de conciliação é, na prática, bastante limitada quanto à efetividade.
Entre os 11 processos que resultaram em acordo, apenas 2 envolveram bancos e 1 envolveu companhias aéreas. Os demais acordos ocorreram em processos classificados como “Outros”, englobando causas de menor complexidade e caráter mais pessoal, como conflitos de vizinhança, pequenos danos materiais e acidentes de trânsito.
Tal contraste indica uma relação inversamente proporcional entre o grau de institucionalização da parte ré, como bancos e companhias aéreas, e sua disposição para uma conciliação efetiva. Com frequência, seus prepostos comparecem sem a autonomia necessária para negociar de maneira eficaz. Em situações nas quais há uma proposta inicial e a outra parte apresenta uma contraproposta, é comum que o preposto responda que aquela oferta já corresponde ao limite autorizado, sem possibilidade de ajustes ou flexibilização, o que inviabiliza a construção de um acordo por meio do diálogo.
Em contraste, demandas envolvendo pessoas físicas apresentam maior abertura ao diálogo e melhores resultados conciliatórios, indicando que a conciliação se mostra mais eficaz quando há flexibilidade e envolvimento genuíno das partes.
Essas observações indicam a necessidade de repensar estratégias de conciliação voltadas para grandes litigantes, como bancos e companhias aéreas, empresas telefônicas. Embora iniciativas como os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) e os Núcleos de Monitoramento de Grandes Litigantes (NMGL) busquem engajar essas instituições em práticas mais colaborativas, ainda é essencial promover a adoção de medidas que incentivem uma postura mais colaborativa por parte dessas instituições, inclusive com a designação de representantes com maior autonomia decisória, a fim de tornar a conciliação uma etapa verdadeiramente eficaz e não apenas protocolar no trâmite processual.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS.
A conciliação, prevista pela Lei nº 9.099/1995 nasceu como uma promessa de justiça mais próxima, célere e acessível. Pensada para ser um instrumento de pacificação social, ela representava uma alternativa ao modelo judicial tradicional, muitas vezes moroso e excessivamente formal. No entanto, ao confrontar essa idealização com a realidade observada nos Juizados Especiais Cíveis, especialmente na 11ª Vara da Comarca de Manaus, percebe-se um descompasso entre o que a lei propõe e o que efetivamente se concretiza.
Ao longo desta investigação, constatou-se que, apesar dos avanços institucionais e normativos, a conciliação enfrenta inúmeros desafios práticos. As estatísticas revelam uma taxa modesta de acordos, o que, por si só, já sinaliza a imperiosa necessidade de reconsiderar sua aplicação. Além disso, não se trata apenas de números, verificam-se também situações que retardam a eficácia da conciliação como audiências apressadas, conciliadores sobrecarregados, estruturas precárias e partes que frequentemente, comparecem desmotivadas. Tais situações comprometem a essência do que deveria ser um momento de escuta, diálogo e construção conjunta de soluções.
É importante reconhecer que o problema não reside na conciliação em si, mas na forma como ela tem sido conduzida, na insuficiência de investimentos, de capacitação contínua, tempo adequado para as sessões e, principalmente, a necessidade de uma mudança de cultura dentro e fora do Judiciário. Muitos operadores do direito ainda enxergam a conciliação como uma etapa burocrática a ser superada e não como uma oportunidade real de transformação do conflito.
Embora seja essencial para o acesso à justiça de milhares de cidadãos, a estrutura atual dos Juizados mostra-se insuficiente diante do volume das demandas e da complexidade nas relações sociais contemporâneas. Nesse contexto, o fator humano, que a priori deveria constituir um elemento potencializador da conciliação, acaba sendo negligenciado.
Dessa forma, não se pretende dizer que a conciliação fracassou, mas sim que ela precisa ser repensada. É necessário ir além do procedimento formal e criar, de fato, um espaço em que as partes se sintam ouvidas, respeitadas e encorajadas a participar da solução de seus próprios conflitos. Portanto, conforme evidenciado ao longo do estudo, o fortalecimento da conciliação demonstra-se, portanto, imprescindível, desde que compreendida como um mecanismo sensível às transformações sociais, capaz de adaptar-se às demandas contemporâneas e intrinsecamente comprometido com a efetiva pacificação social.
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1Graduanda em direito; Centro Universitário do Norte – UNINORTE; e-mail:alanaarieelemesquita@gmail.com
2Graduanda em direito; Centro Universitário do Norte – UNINORTE; e-mail: reisemilly072@gmail.com
3Graduanda em direito; Centro Universitário do Norte – UNINORTE; e-mail: yasmimkiarele@hotmail.com
4Docente, Advogado, Especialista em Direito Processual Civil – IBMEC – Damásio