A CONSTITUIÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO CENÁRIO EDUCACIONAL BRASILEIRO: DO BRASIL-COLÔNIA À ATUALIDADE

THE CONSTITUTION OF INDIGENOUS SCHOOL EDUCATION IN THE BRAZILIAN EDUCATIONAL SCENARIO: FROM COLONIAL BRAZIL TO THE PRESENT

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10932423


Dora Lúcia Terras da Silva1
Fábio Coelho Pinto2
Jorge Antonio Lima de Jesus3
Coautor: Prof. Dr. Madison Rocha Ribeiro4


Resumo

Este estudo traz à reflexão como foi conduzido o processo de escolarização indígena no Brasil, desde o período colonial (1530-1822) – quando os indígenas educavam seus filhos de forma voluntária e integral, perpassando pela chegada dos jesuítas em 1.549, dialogando com os diferentes momentos históricos. até os dias atuais. Nesse contexto, o objetivo deste artigo é trazer um retrospecto histórico e político da Educação Escolar Indígena no Brasil, tomando como referência os conceitos de aculturação e doutrinação que caracterizaram o processo educativo daquela época e a legislação vigente, apresentando as consequências que teve até a atualidade. A presente pesquisa é de abordagem qualitativa exploratória por meio de revisão bibliográfica e análise documental conforme os estudos de Minayo (2001) e Lakatos; Marconi (2009), ao se descrever o processo pelo qual a Educação Escolar Indígena passou até chegar ao cenário em que se encontra (Calháu, 2010; Ribeiro, 1992 e Saviani, 2008). Desta forma, os estudos apontam que a educação escolar indígena perpassou por diferentes abordagens, entre elas, a etnocêntrica, bilíngue, eurocêntrica, a partir das concepções do colonizador, norteando a história da educação brasileira; entretanto, a história da educação escolar indígena é uma área que precisa ser explorada e posta em reflexão e diálogo para uma educação de qualidade e equidade no país por meio da interculturalidade.

Palavras-chave: Educação Indígena, História da Educação Escolar Indígena, Interculturalidade. Brasil.

ABSTRACT

This study brings to reflection how the process of indigenous schooling was conducted in Brazil, since the colonial period (1530-1822), since when indigenous people educated their children voluntarily and comprehensively, going through the arrival of the Jesuits in 1549, with the different historical moments. until nowadays. In this context, the objective of this article is to provide a historical and political retrospective of Indigenous School Education in Brazil, taking as a reference the concepts of acculturation and indoctrination that characterized the educational process at that time and the current legislation, presenting the consequences it has had to date. . This research uses an exploratory qualitative approach through bibliographic review and documentary analysis according to the studies by Minayo (2001) and Lakatos; Marconi (2009), when describing the process that Indigenous School Education went through until it reached the scenario in which it finds itself (Calháu, 2010; Ribeiro, 1992 and Saviani, 2008). In this way, studies indicate that indigenous school education encompassed different approaches, including ethnocentric, bilingual, eurocentric, based on the colonizer’s, guiding the history of Brazilian education; however, the history of indigenous school education is an area that needs to be explored and put into reflection and dialogue for quality and equitable education in the country through interculturality.

Keywords: Indigenous Education, History of Indigenous School Education, Knowledge. Brazil.

1   INTRODUÇÃO

O presente artigo surge das inquietações vivenciadas, a partir da experiência enriquecedora como docente em uma comunidade indígena; crescendo a necessidade de pesquisar e ampliar conhecimentos para o aprimoramento e adaptação de metodologias junto à educação intercultural aplicada no processo educacional de indígenas Warao, além de buscar a aprendizagem significativa, com a qual estes sujeitos possam sentir-se representados. Surgindo assim uma investigação, abordando a temática da “Educação Escolar Indígena no Cenário Educacional Brasileiro” desde o momento histórico do Brasil-Colônia aos dias atuais, apresentando as práticas e concepções educacionais voltadas para o atendimento aos indígenas brasileiros neste percurso histórico

Silva e Azevedo (1995) ratifica que durante o período do Brasil-colonial (1500-1822), a educação formal para os indígenas fora baseada a partir do cenário católico vivenciado no início do século XVI, momento em que os jesuítas eram convocados para divulgarem a fé cristã e propagar o catolicismo – fato que vai culminar com a catequização indígena em diversas colônias nas Américas. Já no início do século XIX, observa-se a implementação do “ensino na língua indígena” – como sinônimo para o bilinguismo, onde os indígenas mais influentes e já catequizados, moldados na cultura europeia tornam-se “professores indígenas”. Esses conceitos são amplamente manipulados pelo indigenismo do Brasil monárquico; entretanto, ocorre uma enorme distância da forma como hoje compreende-se a escola indígena, instituição integrada ao projeto de autonomia dos povos indígenas.

 Este estudo vem ao encontro das dificuldades enfrentadas pelas comunidades indígenas, tanto para os educandos como aos seus docentes, no acesso e na realização do letramento. Surgindo reflexões quanto aos métodos usados e seus resultados obtidos na busca por uma aprendizagem efetiva e contextualizada.

 Diante do exposto, o objetivo geral deste artigo é trazer à reflexão um retrospecto histórico, cultural e político da Educação Escolar Indígena no Brasil, desde o momento do Brasil – Colônia aos dias atuais, tomando como referência os conceitos de aculturação e doutrinação que caracterizaram o processo educativo daquela época e a legislação vigente, apresentando as consequências que teve até a atualidade, apresentando as concepções pedagógicas que nortearam a Educação Escolar Indígena no Brasil.

 De acordo com a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (21008) e com o pesquisador Egas (2021), os povos indígenas têm direito, sem qualquer discriminação, à melhora de suas condições econômicas e sociais, especialmente nas áreas da educação, emprego, capacitação e reconversão profissionais, habitação, saneamento, saúde e seguridade social; portanto, os direitos decorrentes da condição indígena estabelecem este respeito e a valorização dos costumes, tradições, formas de organização social e modos de vida diferenciados, garantindo uma educação escolarizada que almeje a autonomia, a emancipação, a autodeterminação; uma educação multilíngue, comunitária e atenção à saúde diferenciada para a diversidade de etnias preservadas no território brasileiro. 

 É necessário compreender que no Brasil, os indígenas são sujeitos de direito e a reflexão não pode ser apenas sobre as dinâmicas educacionais aplicadas aos indígenas, mas como ocorrem os estudos, ou seja, o sistema de estratégias de ensino e aprendizagem aos indígenas, o descaso estatal e municipal com a execução das políticas públicas educacionais, infraestrutura, transportes, alimentação etc.

Deste modo, consideramos que se faz necessária uma reflexão acerca do processo de escolarização indígena no país, desde a alfabetização, para que tenha sentido e se torne uma aprendizagem significativa, abrangendo o contexto cultural, social e político; e que as histórias e as próprias intervenções destes sujeitos sejam válidas para este currículo na Educação Escolar Indígena no Brasil. Logo, se estabelece o seguinte problema de pesquisa: Qual o percurso para uma aprendizagem significativa com vistas a uma educação de qualidade aos povos indígenas no país?.

Como desdobramento desta problemática, ainda se instiga as seguintes questões: Como se caracterizou a abordagem de escolarização e relevância da Educação indígena implementada pelos jesuítas no Brasil? Como se processou os diversos períodos e práticas de escolarização indígena do Brasil-Colônia à atualidade? Quais as possibilidades de uma educação intercultural e contextualizada no currículo da escola indígena atualmente no país?

De acordo com Peres (1999) a metodologia deve consistir não apenas na apresentação final do produto investigado, mas também e principalmente, o caminho percorrido desde o planejamento dos instrumentos de coleta e análise dos dados. Assim, A metodologia da pesquisa utilizou-se da abordagem qualitativa exploratória, a partir da pesquisa de revisão bibliográfica e documental. A pesquisa bibliográfica, considerada uma fonte de coleta de dados secundária, pode ser definida como: contribuições culturais ou científicas realizadas no passado sobre um determinado assunto, tema ou problema que possa ser estudado; a pesquisa de revisão bibliográfica se vale de materiais já publicados (Minayo, 2001), em diálogo com a pesquisa documental, que é muito semelhante à pesquisa bibliográfica. A diferença essencial entre ambas está na natureza das fontes: enquanto a bibliográfica se utiliza fundamentalmente das contribuições de diversos autores, a documental vale-se de materiais que não receberam, ainda, um tratamento analítico, podendo ser reelaboradas de acordo com os objetos da pesquisa. (Lakatos & Marconi, 2009).

A análise do estudo vem ao encontro da análise textual interpretativa realizada pelo autor que, segundo Minayo (2001) pode mensurar essa leitura crítica acerca dos documentos e do que já foi publicado sobre o processo da educação escolar indígena no Brasil. Assim, apresentamos uma explanação do contexto histórico, político e social, com as suas abordagens metodológicas, objetivos e diretrizes, expondo os marcos legais, descrevendo sobre o processo pelo qual a Educação Escolar Indígena no Brasil, dialogando com autores que já expuseram sobre a temática, como Calháu (2010); Ribeiro (1992) e Saviani (2008), dentre outros.

Neste contexto, a história da educação indígena no Brasil é intrinsecamente ligada aos desdobramentos culturais, sociais e religiosos que marcaram a formação do próprio país. No cerne desse processo, a presença dos jesuítas foi um fator determinante, influenciando significativamente a educação dos povos indígenas. Este capítulo visa explorar os primórdios dessa trajetória, destacando a atuação dos jesuítas, cujo legado se inscreve como parte indelével da história educacional indígena.

Neste caso, deixa-se claro que a historicidade da Educação Escolar Indígena no Brasil, desde os primórdios da colonização, tem um percurso dinâmico e controverso à realidade educacional do país; ainda existem paradigmas, dilemas e desafios para serem dirimidos. Isto porque desde a chegada dos europeus foi desencadeada uma série de transformações, cujas consequências foram extremamente negativas para esses povos, os quais, embora nativos da terra e detentores de significativos conhecimentos e culturas, foram forçados a se adequarem aos costumes dos colonizadores europeus. 

Na atualidade, a educação escolar indígena que durante muito tempo vem lutando por uma educação específica aos seus grupos étnicos, de forma diferenciada e em prol de uma educação de qualidade, a fim de contemplar os aspectos históricos, sociais e culturais de seu povo, ainda tem inúmeros desafios a serem vencidos, pois a educação escolar tradicional do início da colonização do Brasil ainda assombra e vige os espaços escolares em todo o país; entretanto, a educação indígena é marcada pelas lutas e movimentos, que muitas vezes resultaram em vitórias, mas também em perdas que ainda perduram, apresentando lacunas no longo processo de conquistas legais dos direitos sociais dos indígenas no Brasil como a Educação.

2  OS JESUÍTAS NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO INDÍGENA NO BRASIL  

Os povos indígenas entendem por educação algo inclusivo e contínuo, por toda a vida, de uma maneira natural e integra essa educação chegam às suas crianças, sendo assim, os indígenas adultos continuamente seriam educados. Desta forma, como mostra Saviani (2007, p. 38):

Observa-se que os conhecimentos e técnicas sociais eram acessíveis a todos, não se notando qualquer forma de monopólio. A cultura transmitia-se por processos diretos, oralmente, por meio de contatos primários no interior da vida cotidiana. 

Existindo para todos a igualdade de direitos a essa educação. Sem a desagregação dessa educação por classes ou gênero. Os indígenas de maneira natural e não planejada desenvolvem se pelo intuito da tradição, “Nesse sentido, o colonizador apaga um tanto da memória discursiva indígena e institui outra com novas marcas, uma vez que é dinâmica e flexível” (CALHÁU, 2010, p. 33). 

Com o arrimo da coroa Portuguesa e das autoridades locais, os jesuítas desempenham o controle da educação nos dois séculos de colonização e trazem consigo seus ensinamentos e influências, adentrando e desrespeitando os costumes e a cultura indígena.

Percebe-se, por estes poucos fatos, que a organização escolar no Brasil Colônia está como não poderia deixar de ser estreitamente vinculada à política colonizadora dos portugueses. Antes disso, em decorrência do estágio primitivo em que se encontravam as populações indígenas, a educação não chegara a se escolarizar. A participação direta da criança nas diferentes atividades tribais era quase que suficiente para a formação necessária quando atingisse a idade adulta” (RIBEIRO, 1992, p.20).

Os jesuítas tinham como dever converter os índios em cristãos, obedientes e tementes a Deus e ao Rei, assim sendo, tornar-se-iam súditos do Rei e não seriam escravizados. A conversão dos índios era o propósito em termos educacionais, através da arte (música, dança, teatro etc.) os jesuítas conseguiam a simpatia e a atenção dos índios. Os padres jesuítas utilizaram a música como um dos primeiros meios para educar os indígenas, conquistando a atenção e a simpatia deles. Eles tocavam instrumentos nativos e compunham canções em língua indígena, abordando temas sobre o Deus Cristão. 

Além disso, o teatro e a dança também foram empregados como recursos para instruir os nativos. Assim como nas músicas que falavam do Deus Cristão, eles encenavam peças em tupi ou em português para falar sobre Ele, os santos e os anjos. Os padres também celebravam datas do calendário cristão, convidando os indígenas para participar dessas comemorações por meio da dança, utilizando essas formas de entretenimento como estratégia para catequizar.

Muitos indígenas nem percebiam, mas gradualmente, por meio da música, do teatro e da dança, os padres introduziam em suas vidas comportamentos e rituais típicos do cristianismo.

No ano de 1752, o Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho, (Primeiro-Ministro de Portugal). Determinou a expulsão dos jesuítas de todas as colônias portuguesas. A educação no Brasil colônia é registrada pela especulação da terra, aculturação, subjugação dos índios à cultura europeia e evangelização dos índios na fé cristã. 

Na visão de Pombal, a abordagem educacional dos jesuítas não se alinhava aos interesses do Estado. Cogitava-se e desejavam as escolas portuguesas com as devidas condições de caminharem junto às transformações que o momento ambicionava, adequadas aos ideais iluministas. Este panorama educacional passou por mais mudanças com a chegada da Família Real ao Brasil no ano de 1808.

O período Joanino iniciado em 1808 chega com uma nova ruptura com o contexto educacional anterior. Na sequência dos fatos, inicia-se o desencadeamento de importantes forças renovadoras na procura de mudanças para a antiga colônia, como relata Ribeiro: 

[…] desencadeiam-se então as forças renovadoras latentes que, daí por diante, afirmar-se-ão cada vez mais no sentido de transformarem a antiga colônia numa comunidade nacional e autônoma. Será um processo demorado em nossos dias que ainda não se completou, evoluindo com intermitências e através de uma sucessão de arrancos bruscos, paradas e mesmo recuos (Prado apud Ribeiro, 1992, p. 39).

Logo, constroi-se então a base da educação imperial estruturada por três níveis:

Primário; Ginásio (ensino secundário); e o Superior. “A ação de D. João, inicialmente determinadas pelas precisões imediatas do que inspirada por qualquer protótipo, lembra sob certos aspectos a obra da Revolução Francesa” (Azevedo apud Ribeiro, 1992, p. 42).

Observa-se que os dois períodos anteriormente relatados (Pombalino e Joanino), favoreceram muito a construção da educação atual, porém, para que isso acontecesse o povo indígena passaram por sofrimentos e grandes perdas. Esses povos tiveram sua cultura subjugada pelos ensinamentos doutrinadores jesuíticos e, com a expulsão deles muitas tribos também foram devastadas e com elas sua história e cultura. A aculturação árdua pela qual passaram os indígenas modificou o percurso natural de aprendizagem nativa que consistia em transmitir ensinamentos adquiridos de um para o outro, dos mais velhos para os mais novos, de geração a geração. Nesse período de 1760 a 1822, a educação não era dirigida aos indígenas, mas direcionada a burguesia da época, aos índios restou apenas a escravidão e, as tribos que resistiam eram destruídas. São poucas as tribos existentes e mesmo nessas se ver com clareza, as marcas deixadas por essa época, principalmente em aspectos educacionais. Os indígenas já não falam apenas o seu idioma de origem, falam também o português (quando não falam apenas o português), usam roupas, tem costumes diferentes, vivem em reservas, ou seja, nem uma terra que seja deles, eles têm direito.

Entre promessas de céu e inferno pregadas pelo catecismo à frente de trabalho e epidemias, a conversão dos índios no século passado moldou situações complexas que guardam considerável distância da experiência colonial e escolar desenvolvida pelos jesuítas.  As instituições de caráter educacional nos aldeamentos católicos se estabeleceram como forma de acesso às conflituosas relações sociais, porém, sendo duvidosa sua aplicabilidade.

 O século XIX testemunhou a convergência de promessas celestiais, pregadas pelo catecismo, e o inferno cotidiano enfrentado pelos indígenas em meio a epidemias e frentes de trabalho. Não se trata, aqui, da mera narrativa da catequese católica no referido século, uma tarefa que demandaria um controle mais meticuloso das fontes históricas desse período. A análise se fundamenta na documentação produzida pela Ordem Menor dos Padres Capuchinhos, visando dois objetivos cruciais: compreender a dinâmica local dos aldeamentos católicos, onde as instituições educacionais se configuravam como portas de entrada para as complexas relações sociais entre diversos agentes sociais; e observar, de modo panorâmico, o perfil da escola para o índio no século passado.

Ali se faz notório, e bem específico a educação formal para os indígenas dentro do cenário católico do século XIX. “ensino na língua indígena” (como sinônimo para o bilinguismo), “professores indígenas” são conceitos amplamente manipulados pelo indigenismo do Brasil monárquico. Guardam, no entanto, uma enorme distância da forma como hoje compreendemos a escola indígena, instituição integrada ao projeto de autonomia dos povos indígenas (Silva; Azevedo, 1995).

 A história da educação indígena no Brasil é intrinsecamente ligada aos desdobramentos culturais, sociais e religiosos que marcaram a formação do país. No cerne desse processo, a presença dos jesuítas foi um fator determinante, influenciando significativamente a educação dos povos indígenas. Este capítulo visa explorar os primórdios dessa trajetória, destacando a atuação dos jesuítas, cujo legado se inscreve como parte indelével da história educacional indígena.

 A chegada dos jesuítas ao Brasil, no século XVI, marcou o início de uma abordagem missionária na educação indígena. Em suas missões, os jesuítas buscavam não apenas catequizar, mas também instruir os indígenas nas artes, ciências e aspectos fundamentais da fé cristã. Segundo Anchieta (1554), “A educação dos nativos deve abranger não apenas a conversão religiosa, mas também a elevação intelectual e moral”.

 A interação entre os jesuítas e as comunidades indígenas não foi isenta de desafios. As diferenças culturais se manifestaram em diversas esferas, desde a língua até os métodos pedagógicos. Contudo, houve uma tentativa de adaptação por parte dos Jesuítas, como apontado por Nóbrega (1549): “É imperativo compreender os costumes locais, incorporando elementos indígenas ao processo educativo para alcançar uma verdadeira simbiose cultural”.

 O declínio das missões jesuíticas, no século XVIII, deixou um vácuo na educação indígena, abrindo espaço para novas dinâmicas e desafios. A ausência dos jesuítas desencadeou transformações na abordagem educacional, levando a diferentes formas de assimilação e resistência por parte dos indígenas.

 Análise da influência da educação jesuítica na história da educação indígena brasileira. As citações e referências textuais destacam a complexidade desse período, evidenciando a interseção entre os valores europeus e as tradições indígenas. Ao compreender esses momentos chave, é possível lançar luz sobre as raízes da educação indígena no Brasil, moldando perspectivas para abordagens contemporâneas mais inclusivas e culturalmente sensíveis.

 Ao lançar luz sobre essa perspectiva, buscamos desvendar as camadas mais profundas das experiências vivenciadas pelos indígenas no contexto educacional do século XIX. A escola emerge como um microcosmo onde as forças do discurso civilizatório confrontam-se com as realidades sociais complexas e multifacetadas dos aldeamentos, oferecendo uma janela única para entender a interseção entre o idealizado e o vivenciado na trajetória histórica da educação indígena.

3   EDUCAÇÃO INDÍGENA NA PERSPECTIVA EUROCÊNTRICA 

 Numa longa tradição histórica, pouco se perguntou sobre os sujeitos da escola, bem como, é recente pensar a escolarização de crianças indígenas, bem como os outros muitos processos educadores existentes, para além da escola. De mais a mais, é possível perceber, no caso da historiografia da educação, a pouca problematização da escrita eurocêntrica, onde a interpretação dos acontecimentos históricos se faz e se fez sobre a lente e perspectiva histórica da experiência europeia, como uma história única, o que trouxe sérias consequências para análise de nossa realidade, especialmente devido a elaboração de um imaginário de tempo repleto de ausências e desfalques.

Desde a chegada dos portugueses nessas terras, o discurso da falta e da ausência tem sido uma retórica reiterada para explicar a sociedade brasileira. Na interpretação dos colonizadores, aqueles povos que aqui habitavam eram, antes de tudo, um “povo sem”, “sem terra, sem lei, sem rei”. Esse foi o bordão presente nos inúmeros relatos de viajantes ou de obras que circularam na Europa e que serviram de pretexto para impor uma dinâmica colonizadora, marcada pelo esvaziamento da história daquelas gentes, milhares de mulheres, homens, jovens e crianças que aqui viviam.

As situações que vivemos na contemporaneidade expressam bem as consequências desse processo. Como estratégia de dominação, os povos originários, foram estigmatizados como povos rudes, selvagens e bárbaros. Entretanto, a resistência histórica desses povos, por outro lado, fez surgir uma outra questão – os problemas relativos às condições de sua educabilidade. Os debates sobre a institucionalização da escola no Brasil têm sido permeados por essa problemática. Essa questão muitas vezes é ocultada pelo eurocentrismo de nossas ideias, nossa pedagogia, nossa historiografia da educação. Por que na historiografia da educação esses povos somente aparecem na história colonial, ainda assim sob o manto da “educação jesuítica”? Depois, é certo, eles foram tema para as comemorações do Dia do índio, nas prescrições da chamada escola nova. O que sabemos de suas educações? Enfim, por que o pouco questionamento quanto às desigualdades na oferta escolar? O que dizer dos modelos pedagógicos disseminados por europeus e, posteriormente também por estadunidenses, para uma população de crianças de cores inferiorizadas, em condições tão adversas de vida e trabalho, de longa tradição de discriminação? De que nos valeram tais teorias pedagógicas?

Evidentemente que não se trata aqui de desfazermos da importância e relevância do conhecimento produzido pelos pedagogos estrangeiros. Mas, antes de tudo, são conhecimentos produzidos na experiência europeia, ainda que as notícias do novo mundo tenham tido ampla circulação na Europa, a chave de leitura se fez em meio a outras vivências e histórias. 

Alguns autores brasileiros denunciaram o eurocentrismo como interpretação da história e da realidade latino-americana, logo no início do século 20. Destaque para Manoel Bomfim, em “A América Latina: males de origem”, publicado em 1903, onde critica radicalmente o determinismo biológico e desconstroi as teses de autores representantes de interpretação de nossa história como atraso, devido a mistura racial, tais como, Comte (1798-1857), Agassiz (1807-1873), Gobineau (1816-1882), Spencer (1820-1903) e Le Bon (1841-1931). Esses autores defenderam a condição de inferioridade das pessoas negras, mestiças e indígenas e depositaram nelas a origem dos “males” dos países da América do Sul, e foram paradigmas de muitos autores brasileiros.

Contudo, apesar desses críticos, o tema do eurocentrismo nas ciências sociais, embora amplamente discutido em outros países latino-americanos, somente recentemente tem tomado a atenção dos historiadores e sociólogos brasileiros, podemos destacar principalmente Ouriques (2015) em “Colapso do figurino francês: críticas a ciências sociais no Brasil”. Esse autor problematiza a produção científica brasileira no campo das ciências humanas, após o regime militar, quando em fins dos anos de 1980 e início de 1990, foi invadida por estrangeirismos.

Nessa época, enquanto predominava no Brasil o estrangeirismo como legitimador de produção científica, inclusive na historiografia da educação, alguns autores latino-americanos se reuniam para denunciar o eurocentrismo nas ciências sociais. No mesmo contexto encontramos Darcy Ribeiro. Por exemplo, ele foi citado por Eduardo Subirats no livro El continente vacio. La conquista del Nuevo Mundo y la consciência Moderna, onde o autor relata sobre o acontecimento do Seminário Internacional Ameríndia Hacia el Tercer Milenio, evento ocorrido em 1991, no México (Chiapas), que teve como proposta discutir sobre a situação de 40 milhões de indígenas habitantes de América Latina, no contexto da chamada “nova ordem mundial”. Na introdução do livro, Subirats faz uma análise crítica ácida da fala de alguns dos convidados, sendo que, o único participante muito elogiado foi Darcy Ribeiro, também o único brasileiro presente no evento. Assim registra: 

O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, apresentou no preciso sentido, um brilhante e crua exposição da colonização americana, como processo de destruição material e de suas civilizações históricas de espólio das forças naturais incluídas a força de trabalho ou de reprodução humana e a colonização da alma, ao longo do processo de cristianização compulsiva do índio que, todavia, não acabou. (Subirats,1994, p. 34).

Subirats (1994, p. 36) ressalta que, apesar de Darcy Ribeiro falar um portunhol muito difícil de entender, era perfeitamente possível compreendê-lo pela vida que ele dava as suas palavras, expostas em uma conferência intelectualmente consistente, poética, de muita ternura em meio a crueldade histórica. O autor comenta ainda que, se fosse necessário dar um título à conferência de Darcy, ele a intitularia como “A Conquista interminável da América”, que era o sentido profundo do seu discurso. Num outro ponto, Subirats comenta que Darcy Ribeiro denunciou as teses eugênicas e a mentira da mestiçagem, traduzida na ideia de democracia racial, ressaltando que a cor da pele e a língua sempre foram os principais motivos da vassalagem e da destruição.

Nos comentários feitos por Subirats, a respeito da conferencia de Darcy Ribeiro, identificamos duas questões fundamentais para problematizarmos as políticas públicas em educação nesses últimos séculos, quais sejam, a “conquista da alma” e a discriminação racial, ambas profundamente interligadas. Destaco que, no século XIX, durante o processo de organização e institucionalização da instrução elementar no Brasil império, a questão da educabilidade da população pobre, preta e mestiça, continuou sendo um tema recorrente.

Sabemos que, nesse contexto, a implementação da escola de instrução elementar no Brasil foi marcada por precariedade de toda ordem: professores despreparados; atraso de pagamentos e baixos salários; falta de escolas e de materiais adequados, dificuldades de acesso, estradas precárias, mas, antes de tudo: a pobreza das famílias e o trabalho infantil. É aí que encontramos o mais grave problema: o direito à escola proclamada na Constituição de 1824 se fez num contexto de escravização de crianças. Portanto, desde sua origem, “a proclamação do direito à escola, esteve fundada na invisibilização das crianças escravizadas; acresce-se ainda que, se não houve o impedimento de frequência escolar das crianças pretas e mestiças livres, elas tiveram seu acesso muito dificultado pelo trabalho e pela pobreza” (Veiga, 200, p.42).

Em que medida o eurocentrismo tão presente nas ideias pedagógicas e nas políticas públicas invisibilizou as reais condições para o estabelecimento dos vínculos entre educação, desenvolvimento e progresso nas ex-colônias? Pergunto: *seriam os fatores e circunstâncias para o desenvolvimento e progresso idênticos para todas as nações? * Em que medida a posição tradicional de uma antiga colônia portuguesa, tanto na política quanto na economia global, influenciou efetivamente a concretização dessas relações? Desenvolvimento e progresso para quem?

 Essa foi exatamente a condição em que a República foi estabelecida. Nesse período, além da falta de escolas, predominou o progresso desigual, além do que a escola republicana implementou a ideia da ignorância como problema. Primeiro inventaram a ignorância, em seguida a ideia da ignorância como problema, e optou-se por resolver esse problema pela oferta escolar desigual, de acordo com a origem socio racial das crianças, prática inclusive naturalizada por amplos setores da sociedade, ainda hoje.

O Brasil, como se sabe, é um país pródigo em práticas excludentes e discriminatórias, realidade confirmada pelas próprias estatísticas, que nos apresentam um quadro alarmante de diferenças em todos os âmbitos da sociedade. Essa realidade se reproduz, evidentemente, em diferentes ambientes e espaços, sejam eles institucionais ou não, como é o caso da escola, onde a discriminação racial é um fato há muito constatado (SILVA JÚNIOR, 2002, p.38). 

 A questão da discriminação racial nas escolas, além disso, tem-se revelado demasiadamente complexa, já que se encontra disseminada nos três âmbitos fundamentais que compõem a estrutura escolar, tornando a própria discriminação –cuja gênese encontra-se, é verdade, em determinadas conjunturas históricas num problema estrutural: no âmbito da gestão administrativa, pedagógico e político-social, tornando-se, por sua vez, mais um universo fértil de atitudes discriminatórias. 

 A trajetória da educação indígena no Brasil está intrinsecamente vinculada às mudanças sociais e culturais que marcaram os séculos passados. Desde a chegada dos jesuítas na era colonial, o ensino destinado aos povos nativos foi permeado por influências eurocêntricas e tentativas de assimilação cultural. A criação de escolas pelos jesuítas, apesar de sua intenção, muitas vezes resultava na imposição de perspectivas culturais e religiosas europeias, desvinculando o processo educacional das tradições locais.

É neste olhar que se percebe ainda que a educação, independente, da educação indígena, mas em outras modalidades e instâncias, ofertada no Brasil na atualidade ainda traz a perspectiva, majoritariamente, eurocêntrica do conhecimento, advinda desde o processo de colonização no final do século XV.  A influência dessa abordagem é percebida em todos os segmentos da sociedade, sobretudo nas instituições escolares e na implementação de políticas públicas, consolidando o modelo imposto pelo colonizador europeu (Porto-Gonçalves, 2005).

Em   decorrência   da   superposição   do   eurocentrismo   na   educação, os conhecimentos tradicionais e a cultura dos povos originários foram, por muito tempo, subjugados e apagados quando   comparados àqueles   impostos   pelos colonizadores.   Frente   a essa visão, Maia e Farias (2020, p. 578) discorrem que “o conhecimento advindo da Europa sempre foi considerado correto, científico, racional e superior, enquanto toda a produção advinda de outra origem geográfica foi configurada como inferior e não racional.”

 Assim, esta visão eurocêntrica da educação tem suas raízes em valores, práticas e perspectivas da tradição europeia, dos países desenvolvidos. Essa abordagem educacional, ao longo da história, exerceu influência e ainda persiste na configuração dos sistemas de ensino em diversas partes do mundo, impondo uma visão cultural específica que, por vezes, marginaliza ou menospreza outras formas de conhecimento. Essa abordagem eurocêntrica se manifesta nas estruturas curriculares, nos materiais didáticos e nas metodologias pedagógicas.  Frequentemente, essa perspectiva destaca as conquistas e contribuições europeias, negligenciando a riqueza e diversidade de saberes de outras culturas. No contexto colonial, a imposição da visão eurocêntrica na educação indígena, por exemplo, contribuiu para a descaracterização das tradições locais e a supressão de línguas nativas. Essa hierarquização na visão educacional pode perpetuar desigualdades e marginalização cultural.

 Ao se engajar teoricamente na discussão sobre a perspectiva eurocêntrica da educação, é essencial questionar seu impacto na formulação de políticas educacionais, no desenvolvimento de currículos e nas práticas pedagógicas. A análise crítica desse paradigma é fundamental para compreender como ele influencia a percepção de conhecimento, o sucesso acadêmico e, por conseguinte, a construção da identidade dos estudantes sob essa perspectiva.

 Na pesquisa e análise de dados, é crucial considerar como a visão eurocêntrica pode moldar as experiências educacionais, identificando possíveis vieses e desigualdades. Compreender como essa abordagem se reflete nas estruturas institucionais, nos materiais didáticos e nas práticas pedagógicas é crucial para desenvolver estratégias que promovam uma educação mais inclusiva e culturalmente sensível.

 Portanto, ao iniciar um debate teórico sobre a perspectiva eurocêntrica da educação, é possível explorar as complexidades envolvidas, incentivando uma reflexão crítica sobre as implicações dessa abordagem. Essa análise aprofundada é essencial para enriquecer o processo de pesquisa, fornecendo insights valiosos sobre como a perspectiva eurocêntrica pode moldar as experiências educacionais e contribuir para os desafios contemporâneos nos sistemas educacionais diversificados.

4  A PERSPECTIVA INTERCULTURAL NA EDUCAÇÃO INDÍGENA.

 A discussão sobre a educação intercultural é uma necessidade para a sociedade que, cada vez mais, traz à tona seu caráter multicultural e onde “diferentes grupos socioculturais conquistam maior presença nos cenários públicos” (CANDAU, 2011, p. 241), incluindo aí a escola. Hoje nas escolas se faz presente debates sobre questões étnicas, raciais, de gênero etc., porém, ainda, de forma incipiente e não suficiente para evitar tensões e conflitos. Trata-se de questão complexa que afeta o cotidiano das escolas e o trabalho dos professores. 

A educação intercultural é um conceito baseado em valores como a liberdade, a igualdade e a dignidade de todas as pessoas, que visa à coexistência pacífica entre os membros da sala de aula e da escola. Na perspectiva intercultural pretende-se construir uma educação capaz de compreender a complexidade das interações humanas, superar preconceitos e exclusão sociocultural e criar condições para que haja crescimento de todos os indivíduos e seus respectivos grupos, promovendo mudanças profundas na educação: currículo, metodologias, técnicas, instrumentos pedagógicos, formação de professores/as e quadros administrativos. Conforme Fleuri (2002, p. 11) considera que,

[…] a perspectiva intercultural implica uma compreensão complexa de educação, que busca – para além das estratégias pedagógicas e mesmo das relações interpessoais imediatas – entender e promover lenta e prolongadamente a formação de contextos relacionais e coletivos de elaboração de significados que orientam a vida das pessoas.

 Portanto, é fundamental que, no contexto escolar, além de discutir práticas pedagógicas interculturais, sejam criados espaços para debater temas que abordam preocupações, tensões, conflitos, tentativas de diálogo e negociações relacionadas às diferenças culturais de forma abrangente. Essa abordagem visa promover uma maior representatividade dos diversos grupos socioculturais em vários cenários públicos. Segundo Silva e Almeida (2012) nos alertam para os cuidados que se deve ter frente ao tratamento e discussão dessas questões no âmbito escolar, pois:

A forma como a desigualdade deve ser tratada na educação, tende a dissociá-la da desigualdade social e econômica, supondo que há diferentes desigualdades, de tal modo que se deveria cuidar para que o esforço de combater o mau tratamento da diferença na educação não acentue a disparidade da combinação de desigualdade de classe com formas de discriminação baseada na negação do direito à diversidade. (SILVA; ALMEIDA, 2012, p. 35).

Segundo Candau (2008) o autor ressalta que “A escola contemporânea carrega esse histórico dos séculos anteriores, de tratar todos de forma homogênea”. E, nesse contexto, a partir das ideias de Lerner, destaca-se a importância de proporcionar à escola ferramentas didáticas que viabilizem. seu trabalho com a diversidade e, além disso, aponta que se torna imprescindível que a escola possua ao menos materiais didático/pedagógicos que viabilizem trabalhar com a diversidade, transformando a diversidade reconhecida e estabelecida em prol do benefício pedagógico, isso se apresenta como o principal desafio a ser enfrentado no futuro.  Para Candau (2011) essa é a orientação a ser adotada para a realização de uma escola democrática e equitativa, visando promover a igualdade sem ignorar as diferenças, pois os desafios da educação intercultural é de grande complexidade e muitos impasses são colocados a escola de hoje, como exposto acima e, como consequência ao docente restam batalhas diárias no cotidiano escolar.

O trabalho docente, segundo Tardiff e Lessard (2011, p.34), “é um conceito que envolve a execução de tarefas pré-estabelecidas, além de outras que ocorrem no cotidiano escolar sem que estivessem previstas, por meio de relações interpessoais entre professores, alunos e outros atores da escola”.  Portanto, é necessário esta dialogicidade, respeito aos conhecimentos prévios dos educandos e de sua cultura.

Nesta concepção, os autores classificam o trabalho docente como um trabalho interativo, na medida em que só é possível de ser realizado a partir da comunicação entre professor e aluno e, como ocorre em todo processo de comunicação, as diferenças individuais (socioculturais, crenças, valores, interesses etc.) estão presentes e determinam a maneira como esse processo se concretiza.

Conforme afirmam Sá e Cortez (2012, p. 21), 

O entendimento e discussão de saberes multi e interculturais no cotidiano educativo faz-se indispensável e coloca-se como um dos desafios contemporâneos ao trabalho docente” Às transformações sociais, tanto quanto as questões relacionais e de estrutura organizacional, podem gerar grandes conflitos e desafios para o professor. E, quando esses desafios são por demais complexos e estão além da capacidade de enfrentamento dos professores, pode ocorrer o adoecimento e/ou o mal-estar docente e o fracasso do processo de ensino e aprendizagem.

 A escola representa um cenário de confrontos não explícitos, onde as disparidades são manifestadas por características visíveis como deficiência física, vestuário (sinalizando a filiação a uma classe social), práticas religiosas, gênero e cor da pele. Tanto alunos quanto professores experimentam esses conflitos e buscam soluções, muitas vezes sem procurar uma compreensão mais abrangente. Fleuri (2003) propõe a perspectiva da educação intercultural como estratégia para potencializar a própria ação desencadeada pelo conflito, mediante o diálogo e o encontro, de modo que estabeleça ambientes alternativos que gerem diferentes formas de identidade, caracterizadas pela flexibilidade, interação e aceitação da diversidade do homem pelo próprio homem e pela sociedade. 

Conforme Constituição Federal do Brasil de 1988, em seu Art. 210, é direito assegurado aos povos indígenas, à educação intercultural e bi\multilíngue, têm seus direitos garantidos com essa educação diferenciada. Adicionalmente, as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena, estabelecidas no Parecer nº 14 e na Resolução CNE/CEB nº 03/1999, determinam ouso das línguas maternas na educação indígena e de seus processos próprios de aprendizagem. 

As diferenças culturais devem estar “dentro da escola” como parte integrante das relações interpessoais e das práticas pedagógicas no âmbito do ambiente escolar e é nesse caminho que se deve pensar as ações educativas. Ações essas que permitam o aprendizado dos diferentes sujeitos, grupos, sociedades e que respeitem e valorizem as diversidades culturais. Isso orientará a construção de uma sociedade democrática, plural, humana, que articule políticas de igualdade com políticas de identidade”. (CANDAU, 2009, p.11).

A discussão referente à construção das identidades de sujeitos invisibilizados, ou não valorizados, na sociedade atual é necessária no sentido de melhor compreender e possibilitar a promoção da igualdade e de possibilidades e a inserção dos diversos indivíduos socioculturais na sociedade em que vivemos. Porém, não obstante seja possível perceber um desenvolvimento na escola de hoje, no que faz reverência às normas escolares e às distinções culturais, além do mais se faz urgente e pertinente proporcionar o incentivo para geração de mais funções que discutam questões compatíveis às normas escolares e ao trabalho dos professores em um panorama que distinga a diversidade cultural.

Pesquisadores discutem que, para que a educação intercultural aconteça, é necessário que o professor reflita e vivencie, ativamente, a diversidade dos grupos sociais, étnicos, religiosos, culturais etc. (Candau, 2009, p. 170).

Grandes partes dos indígenas não são letrados e poucos entendem português. A fala promove a abertura de canais, onde esse locutor se apresenta; se expressa, expondo suas indagações, seus anseios, colocando a mostra suas vivências e emoções. Por conseguinte, apropriar-se da língua portuguesa leva esse sujeito a um patamar de grandes possibilidades para os intercâmbios culturais, proporcionando maiores progressos das relações e, consequentemente, uma próspera e efetiva atuação dos indígenas na formulação de projetos de integração para o seu povo. No contexto educacional, sobressaem-se determinadas ações educacionais diversificadas, interculturais e multilíngues. 

Existe a necessidade de um projeto sério que objetive a alfabetização e letramento desses jovens, adultos e idosos indígenas, utilizando metodologias transdisciplinares. Iniciativas como as mencionadas buscam integrá-los no processo educacional, respeitando o direito à preservação da língua, dos estilos de vida e da estrutura social indígena.

 O método de Paulo Freire não se limita ao ensino repetitivo de palavras nem se restringe ao desenvolvimento da habilidade de pensá-las conforme as demandas lógicas do discurso abstrato. “Ele coloca o aprendiz em condições de reinterpretar criticamente as palavras do seu entorno, para que, no momento apropriado, possa compreender e expressar sua própria narrativa de forma consciente.” (Freire,1964, p.21).

 A visão intercultural da educação reflete uma abordagem profundamente inclusiva e atenta à diversidade cultural. Dentro desse modelo, o processo educacional é concebido como um espaço de diálogo e interação entre diferentes culturas, reconhecendo e valorizando os saberes tradicionais de grupos étnicos diversos. A interculturalidade na educação visa fomentar a compreensão mútua, respeito e a troca de conhecimentos, rompendo com perspectivas unilaterais e eurocêntricas.

 Essa abordagem procura superar desigualdades históricas e impulsionar uma educação mais justa, levando em conta as particularidades culturais dos estudantes. No contexto intercultural, as estruturas curriculares, os materiais didáticos e as práticas pedagógicas são ajustadas para incorporar e respeitar as diversas perspectivas culturais presentes na sala de aula. Valorizar a diversidade linguística, incorporar tradições locais e promover uma educação inclusiva são elementos centrais desse modelo.

 Ao discutir teoricamente a perspectiva intercultural da educação, é crucial destacar como essa abordagem transcende as fronteiras culturais, criando um ambiente educacional mais enriquecedor e igualitário. O diálogo entre culturas não apenas fortalece a identidade cultural dos estudantes, mas também amplia suas perspectivas, fomentando uma visão mais abrangente e interconectada do mundo.

 Na pesquisa e análise de dados, é essencial examinar como a perspectiva intercultural se reflete nas práticas educacionais, identificando suas contribuições para a construção de uma sociedade mais inclusiva e justa. Compreender como essa abordagem é implementada nas políticas educacionais, nos métodos de ensino e nas interações diárias é fundamental para avaliar sua eficácia e potencial transformador.

 Ao longo do tempo, diferentes políticas educacionais foram implementadas, refletindo abordagens variadas em relação aos povos indígenas. No século XX, observaram-se esforços para respeitar e preservar a diversidade cultural, culminando no reconhecimento da educação intercultural como uma abordagem mais apropriada. 

A Constituição de 1988 fortaleceu esse compromisso ao garantir o direito a uma educação específica e diferenciada para os povos indígenas.

[…] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades. (Santos, 2003, p. 56).

 A educação intercultural emerge como peça-chave nesse contexto, reconhecendo a importância de incorporar saberes tradicionais indígenas ao currículo educacional. Essa abordagem vai além da coexistência de culturas, buscando ativamente promover o diálogo entre diferentes formas de conhecimento. No caso dos Warao, essa perspectiva é especialmente relevante, considerando a interseção entre sua rica herança cultural e o sistema educacional formal como crucial para o êxito do processo de aprendizado.

 Ao debater teoricamente o conceito de educação intercultural, torna-se claro que essa abordagem não apenas respeita a diversidade cultural, mas também reconhece a contribuição singular dos conhecimentos indígenas na construção do saber. Nesse contexto, a análise de dados sobre o processo educacional deve contemplar como a educação intercultural é implementada, a eficácia dessa integração e seu impacto na preservação da identidade cultural desses indígenas. 

5  CONCLUSÃO

Desde os tempos coloniais, a questão da educação escolar indígena tem sido amplamente debatida, tanto pelas comunidades indígenas quanto pela sociedade em geral. Ao longo do estudo, percebe-se que o tema vai além do campo educacional, influenciando áreas como a política e a vida social. Apesar das transformações ao longo do tempo, ainda persistem diversas incertezas em relação a esse assunto.

A educação indígena foi estabelecida com o intuito de civilizar os povos nativos do Brasil, sendo uma ferramenta utilizada pelo governo português para o “treinamento cultural”. Mesmo com as mudanças ocorridas, é possível identificar resquícios desse período colonial, pois  a educação indígena foi estabelecida com o intuito de civilizar os nativos do país, sendo uma ferramenta utilizada pelo colonizador português para o “treinamento cultural”. Mesmo com as mudanças ocorridas, é possível identificar resquícios desse período colonial ainda atualmente. 

A história da educação escolar indígena nos remete a uma história de vivências e aprendizados quando voltamos a este período inicial da escolarização no Brasil – Colônia, quando os índios eram sujeitados ao processo de catequização apenas. Com isso, percebe-se que a educação até os dias atuais vive de lutas, perdas, conquistas, regressos e vitórias, já que grandes foram as lutas por políticas públicas que possam atender às demandas e as expectativas dos povos indígenas, por uma educação específica, diferenciada e de qualidade.

A promulgação da Constituição de 1988 representou um marco de extrema importância para os povos indígenas e sua educação escolar. A partir dessa nova legislação, as comunidades começaram a se desvencilhar do sistema tutelar, o que possibilitou o surgimento de leis específicas para os indígenas e a garantia de uma educação escolar diferenciada. Vale ressaltar que muitas das conquistas alcançadas foram frutos da mobilização dos movimentos indígenas, sociais e organizações não governamentais, que passaram a enxergar na educação diferenciada uma ferramenta política na defesa dos direitos de seus povos.

Atualmente, a maior parte das pesquisas em educação indígena tem sido realizadas no âmbito dos programas de pós-graduação em Educação; entretanto, a educação escolar indígena ainda é um tema esquecido entre os professores da Educação Básica e dos próprios professores pesquisadores; além de que ainda existem lacunas que comprometem esta educação intercultural na escola indígena, seja por meio do processo de criação de políticas públicas educacionais voltadas a esta parcela da população brasileira, seja também pela falta de investimentos para a produção dos materiais próprios e a escassez de professores indígenas, o que gera um desconhecimento das práticas didáticos, dos conteúdos curriculares e do que é considerado relevante para os sujeitos indígenas neste processo de escolarização

O que acontece ainda hoje na maioria das escolas existentes em áreas indígenas é o reflexo de uma situação sociopolítica mais abrangente, que marca as relações entre os povos indígenas e nossa sociedade. O currículo, assim, se traduz numa imposição cultural. Por outro lado, a visão etnocentrista escamoteia a enorme apropriação de bens e conhecimentos dos povos ameríndios desde que os primeiros europeus aqui aportaram: minérios, alimentos e a invasão de suas terras.

Assim, a perspectiva teórica da interculturalidade fornece uma base sólida para compreender a dinâmica complexa entre a educação formal e os valores culturais indígenas, promovendo uma educação significativa e de qualidade; porém, há ainda um caminho muito longo a seguir, sendo necessário ultrapassar determinações metodológicas cristalizadas e compreender, de fato, que a escola indígena produz um conhecimento sobre si e sobre o mundo, almejando atualmente por uma abordagem mais holística e respeitosa na formação de educadores indígenas no Brasil.

Portanto, a perspectiva intercultural da educação não apenas reconhece, mas celebra a diversidade cultural, promovendo um ambiente educacional mais enriquecedor e equitativo. Essa abordagem representa um compromisso vital com a construção de sociedades mais inclusivas e respeitosas com as diversas manifestações culturais que enriquecem a educação escolar indígena no país.

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1Graduada em pedagogia; Letras Português/Inglês – Pós-graduação Educação Especial e Inclusiva; Gestão Escolar; Mestranda em Ciência da Educação pela FICS. E-mail: dora_terras@hotmail.com
2Professor Mestre em Educação (Facultad de Ciências Sociais – FICS); Prof. Mestre em Educação e Cultura pela UFPA – Cametá – Licenciado em Letras Inglês e Pedagogo Licenciado (UFPA); Licenciado em Sociologia (UNIASSELVI); Especialista em Gestão e Planejamento da Educação (UFPA); Prof. de Sociologia (SEDUC-PA) e Professor/Tutor Pedagogia UNAMA Cametá – PA.
3Professor Mestre em Gestão e Currículo da Educação Básica (PPGCEB/UFPA, 2022), Pedagogo Licenciado e Professor de Letras Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará (2013 – 2022). Atualmente é Professor do Ensino Superior na UFPA – Campus Universitário de Castanhal – PA. Pesquisador associado ao Grupo de Estudos e Pesquisa de Políticas Públicas Educacionais e Gestão Escolar – GEPPEGE e Membro da Associação Brasileira de Alfabetização – ABAlf. E-mail: pedagogojorgelima@gmail.com
4Doutor em Educação pelo Instituto de Ciências da Educação (ICED) da Universidade Federal do Pará. Professor Adjunto II da Universidade Federal do Pará, lotado na Faculdade de Pedagogia do Campus Universitário de Castanhal/PA. Pedagogo, habilitado em supervisão educacional pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), onde estudou a temática formação continuada de professores da educação básica.