A APLICAÇÃO DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS NO BRASIL: CASO AIR FRANCE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11479707


Kelly Alexa Gomes1
Acsa Liliane Carvalho Brito2


RESUMO

O estudo analisa o caso Air France como um exemplo concreto da aplicação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no Brasil, evidenciando a crescente relevância desses direitos na preservação da dignidade e liberdades individuais. Ao examinar a decisão do Supremo Tribunal Federal, o artigo investiga suas repercussões, os argumentos das partes envolvidas e os princípios constitucionais subjacentes, destacando a necessidade de promover uma aplicação mais eficaz desses direitos, evitando discriminações baseadas na nacionalidade. A análise utiliza o método de raciocínio hipotético-dedutivo com abordagem qualitativa e análise de conteúdo de materiais jurídicos, buscando contribuir para uma aplicação mais coerente dos direitos fundamentais, em consonância com os princípios de igualdade e dignidade da pessoa humana, evidenciando a importância de uma interpretação que fortaleça a justiça e a equidade nas relações privadas.

Palavras-chave: direitos fundamentais; eficácia horizontal; Supremo Tribunal Federal; Air France.

ABSTRACT

The study analyzes the Air France case as a concrete example of the application of the horizontal effectiveness of fundamental rights in Brazil, highlighting the growing relevance of these rights in the preservation of individual dignity and freedoms. In examining the decision of the Supreme Court, the article investigates its repercussions, the arguments of the parties involved and the underlying constitutional principles, highlighting the need to promote a more effective application of these rights, avoiding discrimination based on nationality. The analysis uses the hypothetical-deductive reasoning method with a qualitative approach and content analysis of legal materials, seeking to contribute to a more consistent application of fundamental rights, principles of equality and dignity of the human person, highlighting the importance of an interpretation that strengthens justice and equity in private relations.

Keywords: fundamental rights; horizontal effectiveness; Supreme Court; Air France.

1. INTRODUÇÃO

O estudo da aplicação da eficácia horizontal entre particulares no Brasil tem suscitado debates no cenário jurídico nacional. Em particular, o emblemático caso Air France, RE 161.243-6 do Distrito Federal, destaca-se por ilustrar as complexidades e desafios na implementação dos direitos fundamentais em disputas entre indivíduos e relações privadas.

Este processo, analisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com o Ministro Carlos Velloso como relator, reconheceu a discriminação por nacionalidade como uma violação dos direitos essenciais do trabalhador brasileiro. Essa decisão trouxe novas perspectivas ao entendimento jurídico nacional sobre a aplicação desses direitos, revelando um conjunto de desafios e incertezas em sua implementação prática.

O presente trabalho abordará a questão dos elementos constitutivos da eficácia horizontal e como a aplicação destes princípios pode influenciar a justiça social e a equidade nas relações privadas. Além disso, a pesquisa buscará compreender como essa decisão impacta a aplicação dos direitos fundamentais nas empresas privadas, identificando os argumentos das partes envolvidas e explorando os princípios constitucionais subjacentes.

Para isso, será adotada uma abordagem qualitativa, realizando uma análise de conteúdo de materiais jurídicos, como documentos legais, decisões judiciais e literatura relevante. Essa metodologia permitirá uma compreensão aprofundada do impacto da decisão do STF e sua aplicação prática nas interações privadas.

Este estudo busca contribuir para uma aplicação mais coerente e eficaz dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, prevenindo a discriminação por nacionalidade. Ao propor recomendações e diretrizes, espera-se influenciar positivamente o debate jurídico e ajudar na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

2. MATERIAL E MÉTODOS

Esta pesquisa visa impulsionar o conhecimento científico no campo jurídico através do método hipotético-dedutivo, com foco na geração de novos conhecimentos sobre a eficácia horizontal no Brasil e as interações privadas. Classifica-se como uma pesquisa básica, cujo objetivo principal explora e compreende a aplicação dos direitos fundamentais entre particulares.

Adota uma abordagem qualitativa, que facilita a interpretação indutiva dos dados coletados e atribui significado aos fenômenos estudados. Coleta os dados por meio de análise documental, examinando jurisprudência, leis, doutrinas e outros materiais pertinentes ao tema. Essa abordagem permite uma investigação detalhada das questões legais e constitucionais envolvidas na aplicação desses direitos.

O estudo possui caráter exploratório e descritivo, mapeando e descrevendo os principais precedentes jurídicos sobre a eficácia horizontal no Brasil. Utiliza dois procedimentos técnicos principais: a pesquisa bibliográfica, que revisa fontes acadêmicas, jurisprudências, leis e documentos legais, enquanto o estudo ex post facto analisa casos concretos relevantes, como o caso Air France, para entender as implicações práticas das decisões judiciais sobre a eficácia horizontal. Palavras-chave como direitos fundamentais, eficácia horizontal, Supremo Tribunal Federal e Air France guiam o estudo, direcionando a coleta e a análise dos dados.

Para a análise dos dados, utiliza-se a análise de conteúdo, que possibilita uma compreensão aprofundada das implicações legais e constitucionais do cumprimento dos direitos fundamentais em relações privadas. Examina discursos jurídicos, interpretações legais e opiniões de especialistas para capturar as nuances do tema. Essa metodologia proporciona uma análise crítica e detalhada dos resultados, permitindo a avaliação das hipóteses levantadas na pesquisa.

Espera-se que esta pesquisa contribua significativamente para o debate jurídico sobre a efetividade dos direitos, promovendo uma aplicação mais consistente e eficaz desses direitos nas relações privadas e prevenindo a discriminação por nacionalidade.

3. RESULTADOS

A pesquisa sobre a aplicação dos direitos fundamentais entre particulares no Brasil revelou informações valiosas. Primeiramente, constatou-se que a decisão do STF teve um impacto significativo na interpretação e aplicação desses direitos. O reconhecimento da discriminação por nacionalidade como uma violação dos direitos fundamentais do trabalhador brasileiro estabeleceu um precedente crucial para a proteção dos direitos individuais em relações privadas, particularmente no contexto de empresas multinacionais atuando no país.

A análise detalhada da decisão permitiu identificar os argumentos das partes envolvidas e os princípios constitucionais subjacentes que sustentaram a decisão. Os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade emergiram como fundamentos essenciais para o veredito do STF, oferecendo uma compreensão aprofundada dos fundamentos jurídicos que regem a aplicabilidade dos direitos nestes ambientes.

Além disso, a pesquisa destaca progressos significativos na promoção da igualdade de tratamento entre brasileiros e estrangeiros em contextos privados. Embora a decisão do STF represente um avanço importante, a pesquisa também revelou desafios persistentes que precisam ser abordados.

Por fim, a pesquisa apresentou recomendações para melhorar a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas. Essas orientações incluem propostas para novas legislações que reforcem a aplicabilidade dos direitos constitucionais, desenvolvimento de políticas públicas que promovam a igualdade e a dignidade no ambiente de trabalho, e incentivo a ações judiciais que visem fortalecer a proteção dos direitos individuais e coletivos.

4. DISCUSSÃO

Ao utilizar o caso Air France como um exemplo concreto, é possível realizar uma análise detalhada da aplicação da eficácia horizontal no Brasil. Este caso ilustra a complexidade e os desafios encontrados na proteção dos direitos individuais em ambientes privados.

A análise minuciosa do caso revela os princípios constitucionais aplicados pelo STF e como esses princípios foram utilizados para assegurar a proteção dos direitos fundamentais. A decisão não apenas reconheceu a violação desses direitos, mas também estabeleceu diretrizes claras para futuras situações semelhantes, promovendo um entendimento mais robusto e aplicável dos direitos constitucionais em relações privadas.

Destaca-se ainda a necessidade de um ambiente jurídico que efetivamente proteja os direitos dos indivíduos contra discriminações e outras violações nessas relações. Isso inclui políticas públicas eficazes, práticas empresariais responsáveis e um sistema jurídico que promova confiança. A pesquisa sugere que um quadro legislativo bem delineado é essencial para a aplicação eficaz dos direitos fundamentais, prevenindo abusos e garantindo justiça. 

Em conclusão, a pesquisa não apenas analisa o impacto imediato da decisão do STF, mas também sugere caminhos para fortalecer a proteção dos direitos fundamentais, destacando a importância de uma abordagem contínua e integrada para garantir a aplicação consistente desses direitos. A promoção de uma cultura de respeito e igualdade em ambientes privados é vital para a evolução do cenário jurídico e social no Brasil.

4.1 Eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas

Os direitos fundamentais podem ser compreendidos como um conjunto de princípios concretos que orientam a atuação dos poderes públicos para alcançar seus objetivos, não se restringindo apenas a garantir demandas individuais (VASCONCELLOS, 2012). Eles representam os principais direitos assegurados aos cidadãos de uma sociedade, protegidos pela constituição, e estabelecem diretrizes que permitem o desenvolvimento e a vivência digna das pessoas na comunidade em que vivem.

Wilson Steinmetz (2004, p. 176) observa que, ao não proibir uma violação de direito fundamental entre particulares, o Estado implicitamente permite essa violação e, assim, torna-se responsável pela lesão. Entre as críticas que ele faz à teoria da imputação, destaca o problema de transferir a responsabilidade dos particulares para o Estado, o que pode incentivar a violação de direitos nas relações privadas.

Esse reconhecimento inaugura uma nova perspectiva na comunidade jurídica sobre a aplicação dos direitos fundamentais nas relações interpessoais. A teoria da eficácia horizontal, surgida na Alemanha no século XX, defendeu a inclusão desses direitos nas relações privadas, reconhecida como efeito externo ou contra terceiros. Eles não se limitam apenas às relações entre o Estado e os cidadãos, a chamada eficácia vertical, mas também às interações entre indivíduos, denominada eficácia horizontal.

Daniel Sarmento, em sua monografia sobre o tema, destaca:

[…] a extensão dos direitos fundamentais às relações privadas é indispensável no contexto de uma sociedade desigual, na qual a opressão pode provir não apenas do Estado, mas de uma multiplicidade de atores privados, presentes em esferas como o mercado, a família, a sociedade civil e a empresa3.

No contexto da relação de trabalho, destaca-se a importância da investigação sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Isso ganha destaque devido ao considerável poder conferido ao empregador, conforme estabelecido no artigo 2º da CLT, o qual, diante dessa dinâmica desigual, assume obrigações cruciais para com seus colaboradores. A Constituição Federal, em seu Título II, Capítulo I, não apenas lista os “Direitos”, mas também os “Deveres” Individuais e Coletivos, os quais se estendem não apenas ao Estado, mas também à sociedade e aos indivíduos, incluindo pessoas físicas ou jurídicas, especialmente quando estas ocupam posições de destaque em termos econômicos, políticos e sociais em relação a outros membros da comunidade.

André Rufino do Vale destaca que:

[…] as normas que consagram direitos fundamentais, não são apenas constitutivas de direitos subjetivos (em sentido amplo), mas operam também como valores objetivos do sistema jurídico. Isso leva a crer que os direitos fundamentais não podem ser entendidos apenas do ponto de vista de certas concepções individualistas, pelo que acabariam sendo resumidos a um emaranhado de posições jurídico-subjetivas em face do Estado. Os direitos fundamentais são a expressão normativa do conjunto de valores básicos de uma sociedade4.

A discussão abrange o equilíbrio entre os direitos fundamentais e a autonomia do direito privado. Essa questão se torna especialmente relevante no direito privado, onde os interesses individuais se confrontam. Embora em outros países o direito do trabalho também passe por avaliações, no Brasil, as relações trabalhistas são rigidamente regulamentadas pelo legislador e pela Constituição, limitando os conflitos que possam gerar dúvidas sobre a aplicação desses direitos constitucionais.

Os direitos fundamentais, em suas vertentes subjetiva e objetiva, formam a base de todo o ordenamento jurídico e são aplicáveis de maneira imediata em todas as áreas da atividade humana. As normas de direitos fundamentais na Constituição geram direitos subjetivos que podem ser exigidos tanto dos poderes públicos quanto dos particulares (STEINMETZ, 2004, p.167).

Nesse novo contexto constitucional, surge a questão da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. O desenvolvimento da sociedade contemporânea, impulsionado pelos princípios do neoliberalismo, transformou as dinâmicas de poder, descentralizando-o do Estado e transferindo-o para indivíduos e grupos privados, que agora possuem a capacidade de restringir a liberdade individual (STEINMETZ, 2004, p. 85).

4.2 O impacto da decisão do Supremo Tribunal Federal no caso Air France

A decisão do STF no caso Air France – RE 161.243-6/DF teve um impacto profundo na interpretação e aplicação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas no Brasil. André Rufino do Vale (2009, p. 167) destaca que esses direitos atuam não apenas como direitos subjetivos, mas também como valores objetivos do sistema jurídico. Essa visão foi central na decisão do STF, que reconheceu a discriminação baseada na nacionalidade como uma violação dos direitos do trabalhador brasileiro.

No Recurso Extraordinário nº 161243/DF, Joseph Halfin contestou a decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que permitiu à Air France não aplicar o Estatuto Pessoal da empresa ao seu contrato de trabalho devido à sua nacionalidade brasileira. O TST havia afirmado que a revisão da decisão do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), que afastava a aplicabilidade do estatuto pessoal, exigiria reexame de provas, uma medida não admissível naquela instância (BRASIL, 2002, p. 3-6).

Ao avaliar o caso, o Ministro Carlos Velloso destacou que a questão era de natureza jurídica e não dependia de reexame de fatos, pois envolvia a análise da aplicabilidade do estatuto pessoal da empresa ao empregado brasileiro, diretamente relacionada ao princípio da igualdade, conforme o artigo 5º, inciso I, da Constituição (BRASIL, 2002, p. 3-6).

Inicialmente, o Ministro Velloso sugeriu que o recurso extraordinário fosse aceito e remetido ao TST. Contudo, os Ministros Maurício Corrêa e Néri da Silveira optaram pelo julgamento imediato da questão constitucional, devido ao prévio questionamento da matéria (BRASIL, 2002, p. 8-14).

Em seu voto, o Ministro Velloso observou que a empresa discriminava o recorrente com base na nacionalidade. Embora os empregados franceses trabalhando no Brasil desempenham as mesmas funções que os brasileiros, recebiam maiores benefícios devido à aplicação do Estatuto Pessoal da Empresa (BRASIL, 2002, p. 17).

Para o Ministro Velloso, a diferenciação aplicada pela empresa era ilógica e irracional. Ele afirmou que tal discriminação não era permitida pelo ordenamento jurídico brasileiro, pois a discriminação baseada na nacionalidade, uma característica intrínseca do empregado, era ilegítima à luz do princípio da igualdade (BRASIL, 2002, p. 17-18).

Consequentemente, o Ministro Velloso concluiu que os empregados brasileiros e franceses no Brasil, desempenhando as mesmas funções, eram tratados de forma desigual. Ele deu provimento ao recurso, determinando a aplicação do estatuto pessoal da empresa ao recorrente (BRASIL, 2002, p. 18).

O Ministro Maurício Corrêa também ressaltou que a diferenciação feita pela Air France estava em desacordo com a Constituição brasileira, que prioriza a igualdade de tratamento (BRASIL, 2002, p. 19).

O Ministro Néri da Silveira acrescentou que o artigo 7º, inciso XXX, da Constituição, proíbe qualquer forma de discriminação por motivos de sexo, idade, cor ou estado civil. Ele argumentou que esse dispositivo deve ser interpretado de forma a prevenir também discriminações baseadas na nacionalidade (BRASIL, 2002, p. 20-22).

Além disso, Néri da Silveira enfatizou que a Constituição estabelece claramente as diferenciações permitidas entre brasileiros natos, naturalizados e estrangeiros. Portanto, ele defendeu que os particulares não podem ampliar o sentido da norma para discriminar um empregado brasileiro unicamente com base em sua nacionalidade (BRASIL, 2002, p. 20-22).

A decisão do STF reforçou a integração entre o Direito Privado e o Direito Público, conceito descrito por Pedro Lenza como “direito civil-constitucional”. Esse enfoque busca garantir a proteção dos direitos humanos no âmbito privado, estabelecendo um sistema legal coeso onde a Constituição desempenha um papel interpretativo fundamental.

Jorge Miranda (1988, p. 43) ressalta que renunciar aos direitos humanos equivale a abandonar o alicerce ético que fundamenta a aceitação desses direitos e sua capacidade de transformar a realidade. O consenso em torno desses princípios é o pilar de legitimidade de qualquer Constituição ou regime.

A fundamentação da decisão do STF combinou a interpretação dos princípios constitucionais com a legislação nacional e os tratados internacionais de direitos humanos. Concluiu-se que a prática discriminatória da Air France era inconstitucional, obrigando a empresa a ajustar suas políticas para garantir tratamento igualitário a todos os empregados, independentemente da nacionalidade.

A decisão sublinhou a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, reafirmando que esses direitos não se limitam às interações entre o Estado e o indivíduo, mas também se estendem às relações privadas, como as de trabalho.

4.3 Desafios na aplicação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais

Embora a aplicação da eficácia horizontal nas relações privadas conte com vários precedentes de decisões do STF, como o caso Air France, ela ainda enfrenta inúmeros desafios.

A conciliação entre os direitos individuais e a autonomia privada representa um grande desafio. A autonomia privada permite que pessoas e entidades estabeleçam livremente seus contratos e relações, mas essa liberdade frequentemente conflita com a necessidade de proteger os direitos essenciais dos indivíduos. Daniel Sarmento (2004, p. 189) destaca esse problema, afirmando que conciliar a liberdade contratual com os direitos fundamentais é essencial para manter uma sociedade justa.

A interpretação judicial desses direitos constitui um desafio importante. Os juízes precisam equilibrar cuidadosamente os direitos decorrentes da autonomia privada, o que pode resultar em decisões inconsistentes e imprevisíveis. A subjetividade envolvida na interpretação desses direitos pode levar a variações significativas de caso para caso, tornando a aplicação desses princípios uma tarefa complexa e delicada.

Além disso, a ausência de legislação específica que oriente a aplicação da eficácia horizontal dos direitos contribui para a insegurança jurídica. Sem diretrizes claras, as decisões judiciais frequentemente se baseiam em precedentes, o que pode gerar incertezas e variações nas interpretações legais. Essa falta de legislação específica dificulta a implementação consistente e uniforme desses princípios nas relações privadas.

A resistência cultural e empresarial também é um obstáculo significativo. Muitas empresas e outros atores privados consideram a aplicação dos direitos fundamentais nas relações particulares como uma intromissão indevida do Estado nas liberdades econômicas e empresariais. Essa resistência pode dificultar a aceitação e a implementação dessas normas, mesmo quando são legalmente exigidas.

Segundo Daniel Sarmento:

[…] autonomia privada não é absoluta, pois tem de ser conciliada, em primeiro lugar, com o direito de outras pessoas a uma idêntica quota de liberdade, e, além disso, com outros valores igualmente caros ao Estado Democrático de Direito, como a autonomia pública (democracia), a igualdade, a solidariedade e a segurança. Se a autonomia privada fosse absoluta, toda lei que determinasse ou proibisse qualquer ação humana seria inconstitucional5.

Na prática, implementar os direitos fundamentais nas relações privadas é uma tarefa complexa. Garantir que empresas e indivíduos cumpram essas normas requerem mecanismos de fiscalização eficientes e recursos que muitas vezes estão além das capacidades dos órgãos responsáveis. Sem uma fiscalização adequada, a proteção dos direitos fundamentais pode ser comprometida.

Conciliar a autonomia privada com a proteção dos direitos individuais é essencial para promover uma sociedade mais justa e igualitária. Embora a eficácia horizontal ofereça um caminho para equilibrar esses interesses, enfrenta desafios significativos. Superar esses desafios exige uma abordagem judicial cuidadosa, uma legislação mais clara e específica, além de um esforço contínuo para sensibilizar e engajar todos os atores envolvidos na importância desses princípios.  

José Carlos Vieira de Andrade (2009, p. 21) destaca que os direitos fundamentais possuem três características distintas em sua forma mais básica e intrínseca. Primeiramente, são absolutos, o que significa que não admitem exceções ou restrições sob nenhuma circunstância. Em segundo lugar, são imutáveis, ou seja, não devem ser alterados ou modificados arbitrariamente ao longo do tempo. Por fim, são intemporais, permanecendo relevantes e aplicáveis independentemente das mudanças temporais ou evoluções legais. Esses princípios estão profundamente enraizados na qualidade de ser humano de seus detentores e formam um conjunto essencial de valores que devem ser respeitados e aplicados em qualquer sistema jurídico, sem exceções.

A avaliação do impacto dessa decisão na garantia de tratamento igualitário entre brasileiros e estrangeiros em ambientes privados é crucial. A discriminação por nacionalidade surge como uma questão importante, especialmente em um país com uma economia globalizada e a presença de empresas multinacionais. Ao reconhecer a discriminação por nacionalidade como uma violação dos direitos fundamentais, a decisão do STF marca um avanço significativo para promover maior igualdade e justiça nas relações privadas. Contudo, considera-se essencial que essa decisão seja acompanhada de ações concretas para assegurar sua implementação efetiva e cumprimento, garantindo que todas as pessoas, independentemente de sua nacionalidade, sejam tratadas de maneira justa e igualitária em todos os contextos.

4.4 Reflexões sobre a jurisprudência estabelecida

A jurisprudência estabelecida no caso Air France representa um marco significativo na aplicação da eficácia horizontal nas relações privadas no Brasil. Essa decisão do STF não apenas reafirma o compromisso do país com a proteção dos direitos humanos, mas também serve como um alerta para as empresas sobre a importância de garantir um ambiente de trabalho livre de discriminação.

Neste sentido sustenta NERY (2012):

[…] Nessa perspectiva, a jurisprudência no Brasil tem se orientado no sentido de admitir a eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, independentemente da atuação do legislador ordinário ou do recurso à interpretação das cláusulas gerais do direito privado. “Esta, para nós, não é só uma questão de direito, mas também de ética e justiça6.”

A decisão destaca a relevância de tratar todos os empregados de maneira justa e igualitária, independentemente de sua nacionalidade, reforçando o princípio da dignidade da pessoa humana. A partir desse caso, observa-se uma tendência crescente na jurisprudência brasileira de reconhecer a necessidade de aplicar os direitos fundamentais nas relações privadas, influenciando diretamente as práticas corporativas.

Além disso, a jurisprudência deste caso pode ter promovido uma maior conscientização entre os empregadores sobre as implicações legais e sociais da discriminação no ambiente de trabalho. As empresas, especialmente as multinacionais que operam em território brasileiro, são instadas a revisar e adaptar suas políticas internas para assegurar o cumprimento das normas de igualdade e não discriminação.

A longo prazo, espera-se que essa decisão contribua para a criação de uma cultura empresarial mais inclusiva e respeitosa. A redução das discriminações baseadas na nacionalidade no ambiente de trabalho não apenas melhora as condições para os empregados estrangeiros, mas também fortalece a imagem das empresas como entidades socialmente responsáveis e comprometidas com a justiça.

Essa jurisprudência, portanto, não deve ser vista isoladamente, mas como parte de um movimento mais amplo em direção à garantia de direitos fundamentais em todas as esferas da sociedade. A implementação efetiva dessas normas requer a colaboração entre o judiciário, as empresas e a sociedade civil, garantindo que os princípios de igualdade e justiça permeiam todas as relações privadas.

Em suma, o caso Air France não apenas estabelece um precedente importante na jurisprudência brasileira, mas também impulsiona uma reflexão mais profunda sobre a necessidade de práticas empresariais éticas e justas. As empresas são chamadas a reconhecer e a abraçar a diversidade, promovendo um ambiente de trabalho onde todos os indivíduos possam exercer seus direitos fundamentais plenamente, sem medo de discriminação ou injustiça.

4.5 Desdobramentos futuros e recomendações

A presente pesquisa representou um esforço significativo para elucidar os desafios enfrentados na busca pela efetividade dos direitos fundamentais nas relações privadas, com base na análise do caso Air France e suas implicações. Identificaram-se diversas áreas onde melhorias podem ser feitas para assegurar a aplicação consistente e eficaz desses direitos.

Foi demonstrada a necessidade de uma avaliação contínua e sistemática do impacto da decisão do STF neste caso. Essa avaliação deve envolver não apenas o monitoramento de mudanças nas práticas empresariais, mas também a análise de novos casos que possam surgir, fornecendo uma base empírica sólida para futuras deliberações jurídicas.

Além disso, propõe-se a implementação de programas de conscientização e treinamento para empresas, especialmente aquelas com operações multinacionais, enfatizando a importância de respeitar os direitos essenciais de todos os empregados, independentemente de sua nacionalidade, e fornecendo orientações práticas sobre como evitar a discriminação no ambiente de trabalho. A criação de mecanismos internos de denúncia e a garantia de proteção contra retaliações para aqueles que denunciam discriminação são passos essenciais nessa direção.

Outra recomendação é a necessidade de fortalecer a cooperação entre o judiciário, as agências de fiscalização do trabalho e as organizações da sociedade civil, facilitando a troca de informações e melhores práticas, bem como a implementação de políticas mais eficazes para proteger os direitos individuais em contextos privados. A criação de fóruns de diálogo e comissões de acompanhamento pode ser uma maneira eficaz de promover essa cooperação.

Também se sugere a revisão periódica das políticas públicas relacionadas à igualdade no trabalho, garantindo que estejam alinhadas com os princípios estabelecidos pela jurisprudência recente, fornecendo um quadro regulatório mais claro e coeso que incentive as empresas a adotarem práticas promotoras de igualdade e justiça.

Essas recomendações visam enfrentar os desafios identificados na pesquisa, contribuindo para a construção de uma sociedade onde a proteção efetiva dos direitos fundamentais nas relações privadas é garantida através do compromisso contínuo com a avaliação, a educação, a cooperação e a inovação.

Segundo Versiani (2015, p. 144-165) a complexa dinâmica da eficácia horizontal dos direitos, ressalta a transição do Estado como mero sujeito passivo para um mediador ativo nas relações privadas. Conforme Versiani enfatiza em seu artigo, essa evolução normativa revela uma sutileza significativa na efetivação desses direitos, uma vez que cada indivíduo pode encontrar-se tanto na posição de titular quanto de violador de garantias essenciais em diferentes circunstâncias. Essa reflexão ressalta a importância de uma abordagem cuidadosa e equilibrada na proteção e mediação dessas relações, a fim de garantir o respeito aos princípios fundamentais da dignidade humana e da igualdade perante a lei.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo analisou o impacto da decisão do STF no caso Air France na aplicação da eficácia horizontal em relações particulares no Brasil. Através da análise dos dados e das fontes consultadas, foi possível chegar a algumas conclusões relevantes.

Inicialmente, os objetivos propostos foram alcançados por meio da análise detalhada da decisão do STF no referido caso, da avaliação do seu impacto na garantia da igualdade de tratamento entre brasileiros e estrangeiros em contextos privados, e da proposição de recomendações para promover uma aplicação mais consistente e eficaz desses direitos nas relações privadas, visando prevenir a discriminação baseada na nacionalidade.

Com base nas hipóteses formuladas, pode-se afirmar que a decisão do STF no caso Air France teve de fato um impacto positivo na aplicação da eficácia horizontal, fortalecendo a proteção dos direitos individuais em contextos privados, especialmente em empresas multinacionais. Além disso, a jurisprudência estabelecida nesse caso contribuiu para sensibilizar as empresas sobre a importância de respeitar os direitos de seus empregados, independentemente de sua nacionalidade, o que pode resultar em uma redução das discriminações no ambiente de trabalho.

Por fim, este estudo representa apenas um ponto de partida para futuras pesquisas e debates sobre o tema, destacando a importância de continuar investigando e discutindo a eficácia dos direitos nas relações particulares no contexto brasileiro. Espera-se que as conclusões e recomendações apresentadas possam contribuir para esse processo, promovendo uma maior conscientização e engajamento na defesa dos direitos humanos em todas as esferas da sociedade.


3SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 185.
4VALE, André Rufino do. Estrutura das normas de Direitos Fundamentais. Repensando a distinção entre regras, princípios e valores. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 167
5SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 189
6NERY, Liliana Lopes. A eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídica privada. 2012. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais. Minas Gerais. Acesso em 25 de maio de 2024.

REFERÊNCIAS

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1Acadêmico de Direito. E-mail: kellyalexa026@gmail.com. Artigo apresentado a Unisapiens, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito, Porto Velho/RO, 2024.
2Professor Orientador. Professor do curso de Direito. E-mail: acsa@tjro.jus.br