A DIFICULDADE DE DETERMINAR A CAUSA MORTIS NOS CORPOS SUBMERSOS QUE SOFRERAM AÇÃO NECRÓFAGA DOS PEIXES DETRITÍVOROS DA BACIA AMAZÔNICA 

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8331560


Samuel Zeferino Costa1
Manoela Conceição de Melo1
Emily Dalboni R. de Souza Ferreira1
Andressa R Trindade Hitzeschky Reis2
Lucas Levi Gonçalves Sobral3


RESUMO: 

As mortes por submersão tem relevância dentre as mortes por causa externas que ocorrem na bacia Amazônica, estando essa região, segundo o SIM, em 3° lugar no ranking nacional de afogamento e submersão. Dentre esses eventos é imperioso que o perito médico legista consiga determinar com precisão a causa mortis, porém, na região Amazônica essa determinação pode ser dificultada pela ação necrófaga dos peixes detritívoros, os quais podem acelerar o processo de decomposição, e assim anular diversos elementos de convicção valiosos. Sendo assim, este estudo tem como objetivo caracterizar o quanto os artifícios usados na determinação da causa mortis em cadáveres submersos são afetados pela ação da ictiofauna cadavérica presente nos rios da Bacia Amazônica. Para isso, foi utilizada uma revisão bibliográfica sistemática, por meio de ferramentas de busca online de artigos, como, Scientific Eletronic Library Online (Scielo), Google Acadêmico, Medline/Pubmed. Observando-se então, que devido à destruição rápida dos tecidos realizada pelos peixes necrófagos, aliado a falta de recursos técnicos presentes em muitos Institutos Médicos Legais da Bacia Amazônica, a determinação do afogamento como causa mortis, ou o afastamento de causa diversa fica impossibilitada. Sendo assim, é importante que novos trabalhos sejam feitos a fim de que mais métodos determinísticos sejam desenvolvidos, e para entender se esses eventos podem estar sendo usados como artifício por criminosos, para acobertarem causas mortis diversas, como homicídios. 

PALAVRAS CHAVES: Ictiofauna Cadavérica; Causa da Morte; Região Amazônica; afogamento; Médicos Legistas 

ABSTRACT: 

Deaths from submersion are relevant among deaths from external causes that occur in the Amazon Basin, wich, according to SIM, is in 3rd place in the national ranking of drowning and submersion. Among these events, it is imperative that the medical examiner be able to accurately determine the cause of death, however, in the Amazon region this determination can be made difficult by the scavenger action of detritivore fish, which can accelerate the decomposition process, and thus cancel out several elements of valuable conviction. Therefore, this study aims to characterize how much the artifices used in determining the cause of death in submerged corpses are affected by the action of cadaveric ichthyofauna present in the rivers of the Amazon Basin. For this, a systematic literature review was used, using online search tools for articles, such as Scientific Electronic Library Online (Scielo), Google Scholar, Medline/Pubmed. Observing, then, that due to the rapid destruction of tissues carried out by scavenger fish, combined with the lack of technical resources present in many Legal Medical Institutes of the Amazon Basin, the determination of drowning as a cause of death, or the removal of a different cause, is impossible. Hence, it is important that new work be done so that more deterministic methods are developed, and to understand whether these events may be being used as a ruse by criminals, to cover up various causes of death, such as homicides 

KEY WORDS: Cadaveric ichthyofauna; Cause of Death; Amazon region; Drowning; Coroners and Medical Examiners 

INTRODUÇÃO 

Uma das probabilidades da causa mortis dos corpos submersos é a asfixia por afogamento, quando a massa gasosa é, repentinamente, substituída por massa líquida no momento da inspiração e, talvez represente um dos mais difíceis diagnósticos médico-legais, em virtude da falta de achados específicos (Galvão, 2012).

Esta tarefa passa a ser um desafio, ainda mais árduo, quando o corpo é resgatado de mananciais hídricos naturais e encontra-se completamente esqueletizado pela ação dos peixes detritívoros dos rios amazônicos(VALENTE-AGUIAR,2020). Nestas situações, o médico-legista tem que trabalhar de forma multidisciplinar com as Ciências Forenses e Investigação Criminal, pois além de determinar a causa mortis será preciso identificar um corpo, que não tem substrato para embasar métodos clássicos como a identidade visual, a entomologia forense, e a tanatologia forense. (ARCHER,2011) 

A tanatognose dos corpos submersos é a mesma dos corpos inumados ou que permaneceram em céu aberto, tanto nos fenômenos abióticos quanto transformativos. O que diferencia são a evolução e duração de cada fase, para mais precoce ou mais tardia, influenciadas pelas variações ambientais ou quando ocorre a esqueletização por ação da fauna aquática que, de certa forma, elimina algumas dessas fases intermediárias. 

Este trabalho tem a finalidade, através da análise de artigos on-line, de apresentar as dificuldades encontradas no diagnóstico da causa mortis de corpos esqueletizados pela ação da Ictiofauna cadavérica, na bacia amazônica. 

DISCUSSÃO: 

Após a morte, o corpo humano, mesmo dentro d’água, passa por alguns períodos de decomposição, entre eles: Cromático, enfisematoso, coliquativo e o período esqueletização (JUNIOR, 2019). A passagem e a duração de cada fase pode sofrer grande variação, dependendo do tipo de morte e das condições ambientais em que se encontra o cadáver, dentro desta, estão os animais que podem remover tecidos e órgãos, modificando ou destruindo lesões existentes e causando danos generalizados aos tecidos, isso gera problemas na avaliação post mortem e na identificação de lesões (BYARD, 2002). Nesse contexto, nota-se que os cadáveres encontrados dentro de corpos d’água tendem a ter uma distorção nesses períodos (AMBADE, 2011). 

Dentre os corpos encontrados submersos, na região norte do Brasil, frequentemente, estão aquelas vítimas de afogamento. Essa situação se prova, quando analisamos dados do DATASUS e do Sistema de Informações sobre mortalidade (SIM) que mostram que em 2018, a região Norte assumiu o terceiro lugar no ranking de afogamento e submersão com 715 casos. Dentro destes, Rondônia obteve 9,6% (69) dos casos, dos quais 92,7% eram do sexo masculino.

Estudando melhor o tema, percebe-se que o diagnóstico de afogamento, normalmente, requer fatores como: vítima encontrada dentro ou próxima a água, sem doenças potencialmente letais presentes, a menos que estas tenham desencadeado o episódio de afogamento (BYARD, 2014), mais os sinais presentes em tecidos, fluídos e vias aéreas, que são geralmente encontrados pelo perito nos casos de afogamento. Esses sinais podem ser divididos em externos e internos: 

Sinais externos: Alguns deles são, por exemplo, o cogumelo de espuma, que embora inespecífico e transitório pode ser uma suspeita valiosa, e as lesões post mortem produzidas por animais aquáticos. (PIETTE, 2006); No processo de morte as atividades musculares e as contrações intensificam-se e, podem desencadear uma rigidez cadavérica mais forte e mais precoce quando comparadas às outras causas de morte. (LUNETTA, 2016); Alteração do lugar de iniciação do período cromático, este é comumente iniciado pela mancha verde em fossa ilíaca direita, contudo, nos casos de afogamento esta inicia-se na região do esterno ou na parte inferior do pescoço (FRANÇA, 2017); Presença de maceração nas palmas das mãos e solas dos pés devido ao longo período de imersão (FRANKLIN, 2018); Presença de dentes rosáceos (MENON, 2011). 

Sinais internos: Nos achados internos, pode-se encontrar alterações no aparelho respiratório, como enfisema pulmonar e edema aquoso, além de Manchas de paltauf e derrame pleural (PIETTE, 2006). Há um relato comum que é a presença de alimentos parcialmente digeridos no lúmen dos brônquios, o que corrobora com o fato de que a vítima vomitou durante a fase de luta ou após aspirar o conteúdo, e é indicativo de reação vital (HERCULES, 2011). Em relação ao aparelho digestivo, nos afogados, a presença de grande quantidade de líquidos é um achado constante. (Franklin, 2018), com isso este achado no estômago e alças intestinais iniciais constitui um dado importante para diagnóstico de morte por afogamento. (HERCULES, 2011) 

Assim, nota-se que esses elementos probatórios de convicção são essenciais para que se possa determinar, com precisão, a causa da morte da modalidade asfixia por afogamento, bem como para que se possa negar ou afirmar causa diversa. 

Em alguns casos de morte por submersão nos rios da Bacia Amazônica, pode-se observar que os cadáveres sofrem a ação de de alguns peixes necrófagos, dentre eles: Cetopsis candiru, Cetopsis coecutiens e Calophysus macropterus (VALENTE-AGUIAR,2020), os quais causaram desintegração incompleta do corpo. O que esses peixes fazem é aumentar a velocidade de decomposição do corpo, na medida em que, eles não permitiram que o mesmo passe pelos períodos cromático, enfisematoso e coliquativo, indo o cadáver direto para a fase de esqueletização. Esse fato, tem implicações diretas no trabalho pericial, pois acaba atrapalhando a determinação da causa mortis. (BYARD, 2002) 

Diante dos casos apresentados, pode-se analisar cada fato, de acordo com procedimentos médico-legais que poderiam ser feitos, porém não são executados ou por conta da ação da ictiofauna cadavérica, ou por conta da falta dos recursos necessários na maioria dos Institutos médicos Legais do Brasil para se realizar o procedimento. Assim, podemos analisar os casos descritos acima da seguinte forma: 

Sinais tanatoscópicos: 

Como já exposto anteriormente, diversos sinais que o perito usa para fazer a constatação de afogamento e demais considerações, como o reconhecimento cadavérico, nascem do estudo dos tecidos e suas alterações ante e post-mortem(CROCE, 2012), nesse contexto, nota-se que a predação animal prejudicou a avaliação de diversos sinais tanatoscópicos, e, por isso, privou o perito de importantes elementos de convicção, como: 

– Os sinais clássicos, como o cogumelo de espuma(PIETTE, 2006), rigidez cadavérica mais forte e mais precoce(LUNETTA, 2016), alteração do local de iniciação do período cromático(FRANÇA, 2017), presença de maceração nas palmas das mãos, e solas dos pés(FRANKLIN, 2018), enfisema pulmonar, edema aquoso, manchas de Paltauf, e derrame pleural(PIETTE, 2006). Não puderam ser analisados nos casos relatados, por conta da consumação feita pela ictiofauna cadavérica 

– Os livores de hipóstase poderiam ser usados para se estimar a posição em que o cadáver morreu, a cronologia forense e até a causa mortis, porém, como a ictiofauna geralmente consegue consumir quase todo o tecido externo, e interno, do cadáver(VALENTE-AGUIAR,2020), esse acaba muitas vezes não podendo ser utilizado (MAIA,2017). 

– Geralmente, o perito usa a abertura abdominal, e a procura pelo útero e pela próstata, dentro da caixa pélvica, para determinar o sexo(MUSSE, 2007). O problema é que peixe Piracatinga (Calophysus macropterus), ao perfurar a pele dos cadáveres, e adentrar em sua cavidade abdominal, consume seus tecidos internos de maneira completa(VALENTE-AGUIAR,2020), o que impede os peritos de determinar o sexo do cadáver através desse método. 

– A remoção da pele acaba impedindo a avaliação de características de identificação potencialmente úteis, como cicatrizes cirúrgicas ou tatuagens (BYARD, 2002), (AMBADE, 2011).

– A consumação dos órgãos internos, impossibilita a determinação de uma doença orgânica subjacente significativa que contribuiu ou não para a morte (BYARD, 2002). 

– Os tecidos moles da face são também particularmente vulneráveis à predação pelos peixes, produzindo profunda desfiguração facial, isso dificulta o reconhecimento cadavérico na maioria das vezes(VALENTE-AGUIAR,2020).. Além disso, os peixes tendem a se concentrar em feridas e áreas onde houve perda da integridade da pele, esse fato impede a análise de feridas ante mortem, que poderiam determinar a confirmação de causa mortis diversa ao afogamento. (STEPHESON, 2019). 

Parâmetros microscópicos: 

Em casos de muita desintegração de tecidos, o perito, em busca da causa mortis, acaba sendo obrigado a lançar mão de uma investigação microscópica, como, por exemplo, o teste das diatomáceas, que consiste na busca destas em vias aéreas baixas, bem como em fluidos dos rins, fígado, e outros órgãos (XU, 2011), além do sangue. (PORTO, 2019). Porém, em cadáveres achados nos Rios da Bacia Amazônica, muitos agravantes se interpõe no trabalho pericial, quanto ao uso desse elemento de convicção para tentar definir a causa mortis: Por conta da ação da ictiofauna cadavérica, os tecidos pulmonares e de outros órgãos, bem como os fluidos corporais são perdidos em grande quantidade, essa situação, muitas vezes, impede a coleta de uma quantidade de material significativa que seria necessário para fazer a busca pelas diatomáceas,e mesmo que se conseguisse coletar uma boa quantidade de material para análise, a determinação da causa mortis por esse parâmetro não seria possível, pois, a maioria dos Institutos Médicos Legais, não conta com os recursos necessários para fazer esse tipo de exame(VALENTE-AGUIAR,2020). 

Análises Laboratoriais: 

Neste tópico encontra-se um dos melhores artifícios que as ciências forenses tem para determinar a causa mortis e o intervalo post mortem (definido pelo teor de potássio): O humor vítreo. Esse tem uma composição química que inclui sódio, potássio, cálcio, magnésio, cloro, lactato, glicose e colágeno. A variação na composição química do humor vítreo pode ser usado como elemento de convicção para determinar a causas mortis como a afogamento (SZPILMAN, 2000), diabetes, desidratação, desnutrição, insuficiência renal, e encefalopatias. Diante disso, constata-se que apesar do humor vítreo ficar preservado em alguns corpos que sofreram ação detritívora da ictiofauna, o perito muitas vezes, acaba enfrentando algumas dificuldades que o impedem de usar esse artifício como embasamento para determinação da causa mortis, como a falta de laboratórios que façam a análise desses parâmetros químicos e a pequena quantidade de material que pode ser coletada, fato esse que atrapalha a eficiência da análise. Além disso, alguns estudos mais recentes vêm contestando o nível de confiança desse subsídio, e afirmando a grande dificuldade que se enfrenta para se retirar corretamente o conteúdo do humor vítreo. (MONTEFUSCO-PEREIRA, 2016). 

Além do humor vítreo, outro fator que poderia ser usado para se chegar mais próximo da determinação da causa mortis, seria através do uso de DNA, esse poderia ser coletado a partir de ossos, e dentes(As estruturas dentárias são essenciais, pois a cavidade pulpar, arcabouço formado pelas paredes de esmalte, dentina e cemento propicia um meio estável para o DNA)(MUSSE, 2007), sendo essencial para a identificação do cadáver, o que já ajudaria o perito e a justiça a se aproximar de certas hipóteses, e afastar outras. Além disso, o DNA pode ser usado para se procurar a cromatina sexual, ou corpúsculo de Bar, o qual é encontrado no sexo feminino, e assim, pode-se determinar o sexo do cadáver(MUSSE, 2007).Porém, novamente esbarra-se na falta de recursos que permitam fazer essas análises laboratoriais, por isso, elas não foram feitas nos casos supracitados(VALENTE-AGUIAR,2020).. 

CONCLUSÃO 

Partindo da premissa que o cadáver encontrado na água na maioria das vezes foi vítima de afogamento, se faz relevante a comprovação médico legal da causa mortis. A confirmação, assim como a exclusão, são posicionamentos de grande valia no auxílio da persecução penal, pois criminosos podem se usar de artifícios biológicos para disfarçar lesões e agressões que resultaram em homicídio (BYARD, 2011). 

Fato é que diante de cadáver esqueletizado não há método, com eficácia e praticidade, que permita afirmar, ou afastar hipótese, de morte por afogamento. Além disso, muitas vezes, o perito é impedido de tirar maiores conclusões devido a falta de recursos técnicos da maioria dos Institutos Médicos Legais da bacia Amazônica (VALENTE-AGUIAR,2020). 

Portanto, na maioria das vezes a certeza que temos é a da dúvida, dada a falta de elementos para afirmar ou negar a causa da morte nos cadáveres já em fase de esqueletização, exacerbada pela ação da dos peixes carnívoros dos rios Amazônicos. 

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1Estudante de Medicina, Centro Universitário Aparício Carvalho, Porto Velho-RO, Brasil 

2Médica, Residente de Clínica médica, Hospital Beneficência Portuguesa- AM

3Docente do Centro Universitário Aparício Carvalho, Porto Velho-Ro, Brasil. 
Perito Oficial médico legista, Instituto Médico legal Dr José Adelino da Silva, Porto Velho-RO, Brasil