UM OLHAR DOS DIREITOS HUMANOS NA EC 15/96: UMA ANÁLISE FILOSÓFICA A PARTIR DA TEORIA KELSENIANA 

A LOOK AT HUMAN RIGHTS IN THE EC 15/96: A PHILOSOPHICAL ANALYSIS FROM THE KELSENIAN THEORY

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8213272


Alex Pires Andrade1


RESUMO

O artigo em tela buscou compreender a luz do positivismo Kelseniano a decisão tomada pelo Superior Tribunal Eleitoral ao negar a possibilidade de ocorrência de eleições municipais em Extrema de Rondônia, município criado pela lei 2.264/10, sob a fundamentação de que a realização de eleições afrontaria o texto da emenda constitucional 15/96, que exige Lei Complementar Federal para a criação, fusão, incorporação e desmembramento de municípios. O assunto voltou a ser discutido em 2019, após a PEC 188/2019 na qual se propõe realizar a extinção de municípios. Para tanto, o artigo foi dividido em três partes. Em primeiro momento uma análise a partir da teoria Kelseniana. Em segundo momento caracterizando a criação de municípios após a emenda constitucional 15/96, em especial, da lei 2.264/10 que criou o município de Extrema de Rondônia. Ao final, uma relação entre a teoria Kelseniana e a criação de novos municípios, permitindo concluir que no prisma do positivismo de Kelsen a decisão do Superior Tribunal Eleitoral se mostra acertada, uma vez que a criação de municípios hodiernamente afronta o artigo 18 §4º da Constituição da República Federativa do Brasil alterado pela emenda constitucional 15/96. 

Palavras-chave: Teoria Kelseniana. Supremacia da Constituição. Inconstitucionalidade material. Direitos Humanos.

1. INTRODUÇÃO 

A criação de municípios, atualmente, é assunto que encontra-se em evidência no Direito da terra brasilis, em razão da Proposta de Emenda Constitucional 188/2019 do denominado Plano Mais Brasil lançada no dia 05 de novembro de 2019 pelo atual presidente Jair Bolsonaro e seu Ministro da Economia, Paulo Guedes, na qual prevê extinção de municípios com até 5 mil habitantes e insustentabilidade financeira  Plano Mais Brasil

Isto porque após a edição da emenda constitucional 15/96 a competência para criação, fusão, incorporação e desmembramento de municípios passou a depender de Lei Complementar Federal, ainda não editada. Contudo, muitos municípios foram criados às margens do texto constitucional, sendo preciso inclusive à edição da Emenda Constitucional 57/08 convalidando os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento de municípios ocorridos após a emenda constitucional 15/96 até o dia 31 de dezembro do ano de 2006. 

Hodiernamente, diante da inércia do Congresso Nacional em não elaborar a Lei Complementar Federal, percebe-se que diversos municípios continuam sendo criados às margens do artigo 18 §4º da Constituição da República Federativa do Brasil. Nesse sentido, o artigo em tela tem o escopo de compreender a luz da teoria Kelseniana a criação de municípios após a Emenda Constitucional 57/06, em especial, a decisão tomada pelo Superior Tribunal Eleitoral no Processo Administrativo nº. 14533 que negou a possibilidade de realização de eleições municipais no município de Extrema de Rondônia criado pela lei estadual 2.264/10. 

Por essa razão, o artigo foi estruturado em três partes: primeiro estabelecendo características em torno da teoria Kelseniana permitindo extrair os elementos essenciais aplicados ao in casu. Em um segundo momento, explicitando sobre a criação de municípios dando ênfase na criação do município de Extrema de Rondônia. Ao final, estabelecendo uma relação entre os elementos da teoria positivista de Kelsen com a decisão tomada pelo Superior Tribunal Eleitoral ao negar a possibilidade de eleições municipais, bem como sua relação com os Direitos Humanos.  

2. O positivismo de hans kelsen: suas implicações no estudo da norma 

O positivismo jurídico, desenvolvido pelo jurista austríaco Hans Kelsen, seguramente é a proposta teórica que mais influenciou a composição dos sistemas legais. A sua teoria pura “constitui a mais grandiosa tentativa de fundamentação do Direito enquanto ciência – mantendo-se embora sob o império do conceito positivista desta última e sofrendo das respectivas limitações que o nosso século veio até hoje a conhecer.” (LARENZ, 1989, p. 82). 

Em sua obra clássica “Teoria pura do direito”, percebe-se um verdadeiro marco na filosofia da ciência jurídica, uma vez que se torna um fator de separação entre os operadores do direito. Isso se justifica, pois a filosofia jurídica crescida pelo austríaco separou os operadores do direito em dois grupos que se contrapõem: De uma lado os formalistas e de outro os não-formalistas. 

Os formalistas são defensores da aplicação irrestrita do texto legal, desprezando a importância dos elementos não técnicos para o estudo e aplicação do direito, importando-se, contudo, com a segurança jurídica. Nesse caso, o juiz apenas reproduz o que se encontra no texto legal, não se valendo se o resultado é justo ou não reproduz a justiça. Em outras palavras, os formalistas não se importam com a interpretação das normas, mas com a aplicação do texto legal por razões de segurança jurídica. 

Por outro vértice, os não-formalistas sustentam que elementos não técnicos e mais humanos, como o fato social e o valor devem ser priorizados ao se aplicar a lei, valorizando-se assim a justiça concreta, ainda que ocorra certo prejuízo para a segurança jurídica. Em sede de recurso extraordinário, o Supremo Tribunal Federal, hodiernamente, reforça que o excesso de formalismo pode atrapalhar na adequada prestação jurisdicional, senão vejamos: 

Cabe dizer, que a grande busca do pensamento positivista é atribuir “dignidade científica” ao direito, no sentido de alcançar uma ciência jurídica autônoma, dotada de identidade própria. Nessa linha, conforme explicita André Franco Montoro, Kelsen realiza uma depuração do conteúdo da ciência jurídica, eliminando dele todos os elementos já examinados por outras ciências. Para exemplificar, o fato social pertence à sociologia, o valor é analisado pela filosofia, até chegar à constatação de que somente a lei tecnicamente considerada pode ser estudada exclusivamente pelo jurista. 

Dessa maneira, chega-se à conclusão de que a norma posta pelo Estado é um objeto da teoria do direito, qualificada em sua obra enquanto “pura”. Este raciocínio faz com que esta corrente seja denominada de positivismo.  Com efeito, são reconhecidos três atributos fundamentais a norma, a partir da contribuição de Kelsen, no sentido de que a norma é pura, quais sejam: validade, vigência e eficácia, conceituada como “imperatividade autorizante” (TELLES, 1972, p. 151). 

A expressão, “imperativo” nos revela sua inclusão ao grupo das normas éticas, responsáveis pela regulamentação da conduta humana, de modo que prescreve as condutas devidas além de vedar comportamentos proibidos. Por outro lado, é autorizante na medida em que o sujeito lesado pode reivindicar seu status quo antes. Os aspectos essenciais da validade da norma são tomados “como gênero, nele distinguimos, a vigência como validade formal ou técnico-jurídica, a eficácia como validade fática, e o fundamento axiológico como validade ética” (DINIZ, 2008, p.395).

Dessa forma, partindo do grundnorm, teoria desenvolvida por Hans Kelsen, sobre os pressupostos da norma jurídica, toda norma pressupõe que para produção de todos os efeitos esperados devem ter necessariamente: existência, validade, vigência e eficácia. A existência é uma realidade material atingida pela norma. Contudo, para que possa produzir seus efeitos esperados necessita ser válida, ou seja, precisa guardar compatibilidade com as normas do ordenamento jurídico.  

Com efeito, o modelo lógico, desenvolvido no direito positivo, condiciona a estrutura enquanto sistema escalonado, o que justifica o fato de que as normas estatais encontram-se organizadas em camadas normativas que se sobrepõem umas às outras. Nessa estrutura, a camada inferior se apóia na superior e todas elas desembocam na Constituição, fundamento máximo desse sistema.

É válido dizer, por fim, que a contrariedade seja das normas apresentadas pelo poder constituinte reformador, seja inovando no ordenamento jurídico por meio da legislação infraconstitucional acarretará a inconstitucionalidade da norma quando contrária a uma norma superior que retira validade.

Isso se dá, pois nosso ordenamento jurídico adota a aplicação do sistema escalonado desenvolvido por Kelsen. Conclui-se dessa maneira que uma das implicações do modelo positivista em razão do sistema escalonado, seja a proteção do texto constitucional, ou seja, do reconhecimento da supremacia da constituição sobre as demais normas do ordenamento jurídico. 

A priori, podemos dizer que o vocábulo constituição é originário do verbo latino constituere, remetendo, em nossa linguagem contemporânea ao verbo constituir que nada mais representa do que uma estrutura essencial. Assim, a Constituição passou a ser conceituada pela doutrina, apresentando diferentes concepções, entre as quais podemos citar seu sentido sociológico, político, material, formal e o sentido jurídico.

Para este trabalho, nos furtaremos à discussão das outras acepções do vocábulo Constituição, atendo, contudo, a conceituação de Constituição em sua acepção jurídica. Nessa linha, José Afonso da Silva, apresenta o significado para a expressão Constituição em sua acepção jurídica. Neste cenário, a partir da lição apontada e independente do sentido da interpretação dada por José Afonso da Silva, a Constituição torna-se importante, uma vez que surge para estabelecer uma relação jurídica na sociedade. 

Hodiernamente, resta cristalino a supremacia do texto constitucional em nossa carta magna, consoante art. 102, I, “a” ao dispor que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal”. Em razão disso, quando a norma não encontra validade no texto constitucional, esta norma deve ser declarada nula pelo Supremo Tribunal Federal. Cabe ainda explicar, que a constituição é introduzida no ordenamento jurídico por meio do poder Constituinte originário.

Nesse contexto, o poder constituinte se revela sempre como uma questão de poder, de força ou de autoridade política que está em condições de numa determinada situação concreta criar, garantir ou eliminar uma constituição entendida como lei fundamental da comunidade política (CANOTILHO, 2003, p.65).

Por outro lado, o poder constituinte derivado reformador apresenta uma dinâmica diferente se comparado ao poder constituinte originário, isto por que é vinculado às limitações de forma e de fundo imposta pelo constituinte originário. Pode-se dizer dessa maneira, que o poder constituinte derivado reformador, tem capacidade de modificar a competência Federal, por meio de um procedimento específico, estabelecido pelo originário, sem que haja uma verdadeira revolução (LENZA, 2011, p. 177). Contudo, as alterações produzidas pelo poder constituinte reformador, são limitadas, subordinadas e condicionadas ao poder constituinte originário. 

As limitações ocorrem sejam nos aspectos formais, como, por exemplo, a iniciativa para apresentação de projetos de lei, quórum para aprovação de projetos de lei ou ao procedimento propriamente dito, seja ainda em relação aos aspectos materiais, como o objeto (matéria positivada no texto legal) do projeto de lei. 

Da mesma maneira, as normas infraconstitucionais, assim como o poder constituinte reformador ficam subordinadas às limitações impostas pelo poder constituinte originário, razão pela qual as leis federais, estaduais, distritais ou municipais não podem contrariar o texto constitucional. 

A supremacia da constituição e sua força vinculante em relação aos poderes públicos é pressuposto indispensável para a ocorrência do controle de constitucionalidade hodiernamente, uma vez que “a constituição pretende “dar forma, constituir, conforma um dado esquema de organização política (CANOTILHO, 2003, p.87). 

Por outro lado, a indeterminação normativa indica a pluralidade de soluções apresentadas por uma lei, podendo ser proposital ou casual. A indeterminação será proposital quando por vontade expressa do legislador prever uma norma jurídica que se encaixa a situações diferentes, permitindo em razão disso uma liberdade ao trabalho do juiz. 

Ao contrário, ela é casual quando não é pressentida. Nessa situação, diferente da primeira a um equívoco, há uma omissão por parte do legislador de modo que o texto legal acaba sendo insuficiente para aplicação do Direito ao caso concreto. A multiplicidade de soluções possíveis, contudo, esbarra na figura da moldura legal. Trata-se do espaço delimitado das possíveis soluções legais, que apenas serão válidas se respeitarem particularmente dois limites: a hierarquia do sistema legal e a fundamentação técnica da resposta escolhida.  Na maioria das vezes, as hard case que ocorrem no dia-a-dia na terra tupiniquim envolvem uma indeterminação normativa, seja ela casual ou proposital. 

O tema da indeterminação normativa determina a consideração do valor na esfera do processo judicial. No momento em que o juiz precisa escolher uma das soluções possíveis apontadas pela lei, indicando a mais adequada ao caso, ele realiza um juízo de valor. Nesse sentido, a valoração é efetuada ao se qualificar uma resposta como correta e outra como errada. Significa dizer que, além de apreciar o fato em si, o juiz avalia a própria lei e suas soluções. Mais uma vez, fica claro que a preocupação de Kelsen é obter um jurista positivista, não um juiz que tenha uma postura legalista.

Os opositores ao pensamento de Kelsen identificam, portanto, enquanto principal problema de sua filosofia a busca pela “dignidade científica” do direito. Nessa linha, os críticos apontam que ao tentar enriquecer a ciência jurídica tornando-a autônoma a partir de um objeto exclusivo de estudo, Kelsen acabou por empobrecê-la, uma vez que estabelecendo a lei formal enquanto única preocupação do jurista, o positivismo limita o seu trabalho a um único componente de um fenômeno extremamente rico e complexo, merecedor de uma análise muito mais profunda. A teoria Kelseniana apresenta-se de relevância ímpar para a compreensão do estudo de caso posto, isto é, em torno da negativa do Superior Tribunal Eleitoral em permitir a realização de eleições municipais no município de Extrema de Rondônia.  

3. O surgimento de novos municípios

No texto elaborado pelo Poder Constituinte originário, referente à Constituição da República de 1988, dispunha em seu artigo 18 § 4º que a “criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios preservaram a continuidade e a unidade histórico-cultural do ambiente urbano, far-se-ão por lei estadual, obedecidos os requisitos previstos em Lei Complementar estadual (…)”. 

Contudo, percebeu o legislador que estando à competência reservada aos Estados, havia um significativo crescimento de municípios, onde muitos, não possuíam as mínimas condições de estrutura e de viabilidade, uma vez que dependiam, exclusivamente, das receitas recebidas da União e dos Estados. Para exemplificar a questão, com base nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), houve um crescimento de 22.62% no número de municípios criados entre 1990 e 1997. O Brasil tinha 4.491 municípios em 1990, contra 5.507 em 1997.  

Diante deste cenário, o Poder Constituinte Reformador propôs a Emenda Constitucional 15/96, alterando a redação do artigo 18 §4º da Constituição da República. A nova redação dispôs que a “criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito (…)”. 

Em outras palavras é necessário para criação, fusão, incorporação e desdobramento de novos municípios: a observância do que é regulamentado pela Lei Complementar Federal; divulgação de estudos de viabilidade municipal e consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos municípios envolvidos. 

Por essa razão, de nada adianta observar os demais requisitos exigidos pela Constituição, sem que matéria não tenha sido regulamentada por Lei Complementar Federal, posto que os requisitos dispostos no artigo 18 § 4º da CRFB/88 são cumulativos. Porém, de nada valeu a reforma no texto constitucional, uma vez que vários municípios foram criados às margens do texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

De destacar que boa parte destes municípios foram convalidados pela Emenda Constitucional 57/2008 que veio a ser publicada em 18 de dezembro de 2008. Assim, acresceu o artigo 96 ao Ato das disposições Constitucionais Transitórias, passando a dispor que “ficam convalidados os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento de Municípios, cuja lei tenha sido publicada até 31 de dezembro de 2006, atendidos os requisitos estabelecidos na legislação do respectivo Estado à época de sua criação”.

A referida emenda constitucional foi introduzida em nosso ordenamento jurídico, após a decisão do Supremo Tribunal Federal em sede da ADI 2240 conceder procedência em parte, ao pedido de declaração de inconstitucionalidade de municípios criados após a emenda constitucional 15/96, contudo, ao mesmo tempo, considerando a situação excepcional e o princípio da continuidade do Estado, deu uma sobrevida de 24 (vinte e quatro) meses ao município, de modo que o Congresso Nacional editasse a Lei Complementar Federal exigida pelo artigo 18 §4º da Constituição da República, para que assim, o Estado da Bahia pudesse elaborar uma nova lei de criação do município.

Não obstante o problema que já evidenciava, hodiernamente, percebe-se que diversas leis estaduais já foram produzidas após a Emenda Constitucional 57/08, no sentido de criar novos municípios. Diante deste cenário, torna-se de fundamental importância analisar a decisão tomada pelo Superior Tribunal Eleitoral, sob o prisma da teoria positivista de Hans Kelsen. Como verificado anteriormente, a criação de municípios de modo geral, implica numa série de requisitos e relações jurídicas que devem ser feitas para que haja a criação efetiva do município. Com efeito, uma dessas implicações ocorre com a realização de eleições municipais para a escolha do representante do Poder Executivo local, assim como dos representantes do Poder Legislativo. 

No caso do município de Extrema de Rondônia, embora o Superior Tribunal Eleitoral tenha permitido a consulta plebiscitária para verificar a viabilidade da criação do município, por outro lado indeferiu o pedido para ocorrência de eleições para a escolha do prefeito e dos vereadores. Nesse sentido, pode ser extraída a ementa da decisão do Superior Tribunal Eleitoral que negou a possibilidade de eleições: 

PROCESSO ADMINISTRATIVO. MUNICÍPIO EM PROCESSO DE CRIAÇÃO. REALIZAÇÃO DE ELEIÇÕES EM 2012 PARA OS CARGOS DE PREFEITO E VICE-PREFEITO E DE VEREADOR. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE EDIÇÃO DA LEI COMPLEMENTAR FEDERAL A QUE SE REFERE O ART. 18, § 4º, DA CF/88.  1. Os requisitos para a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de municípios previstos no art. 18, § 4º, da CF/88 (com redação dada pela EC 15/96) e nos arts. 5º e 10 da Lei 9.709/98 devem ser preenchidos concomitantemente.  2. Na espécie, a criação do Município de Extrema de Rondônia/RO encontra óbice na inexistência de lei complementar federal (art. 18, § 4º, da CF/88) delimitadora do período no qual poderão ocorrer os procedimentos de criação, incorporação, desmembramento e fusão de municípios, cujo projeto de lei tramita no Congresso Nacional há dez anos.  (Processo Administrativo nº 14533, Acórdão de 10/04/2012, Relator(a) Min. FÁTIMA NANCY ANDRIGHI, Publicação: DJE – Diário de justiça eletrônico, Tomo 086, Data 09/05/2012, Página 356 ). (O original não ostenta os grifos). 

Neste cenário, verifica-se que a lei 2.264/10 cujo intento era a criação de um novo ente federativo foi frustrada em razão da impossibilidade da ocorrência de eleições. Sabe-se que as normas jurídicas elaboradas possuem presunção relativa de Constitucionalidade. Porém, no in casu houve um controle de constitucionalidade preliminar, pelo qual o Superior Tribunal entendeu que a criação do município de Extrema de Rondônia não apresentava o requisito exigido pelo artigo 18, § 4º da Constituição da República Federativa do Brasil, qual seja: a existência de Lei Complementar Federal regulamentando a criação, fusão, incorporação e desdobramento de municípios. A decisão tomada pelo Superior Tribunal Eleitoral se mostra adequada, se analisada sob o vértice da teoria Kelseniana. 

Ora, o nosso ordenamento jurídico foi edificado a partir do reconhecimento do sistema positivado. Nessa linha, os direitos e deveres (relação jurídica) dos indivíduos foram estabelecidos em normas constitucionais e infraconstitucionais, pelas quais as normas hierarquicamente inferiores tiram validade nas normas hierarquicamente superiores.

Com efeito, a teoria desenvolvida pelo jurista Hans Kelsen implica inicialmente no reconhecimento da supremacia da Constituição, em que por meio do sistema escalonado as normas infraconstitucionais devem tirar validade das normas constitucionais. O sistema escalonado é simbolicamente traduzido em uma pirâmide ou triângulo, indicando que a sobreposição das normas pode levar à expansão ou ao afunilamento da estrutura normativa. 

Kelsen apresenta a seguinte dinâmica de estruturação do sistema: quanto mais ele é percorrido em direção ao topo, mas as normas se tornam abstratas e menos numerosas; quando o percurso se dirige a bases menos abstratas vão se revelando as normas, porém mais numerosas. Levando em conta a referência do sistema escalonado, o positivismo valoriza de modo particular a interpretação sistemática, que considera a harmonia existente entre as leis.

Destarte, ao proferir a decisão o Superior Tribunal Eleitoral entendeu que a lei 2.264/10, norma infraconstitucional não tirou validade do texto constitucional, pois criou o município de Extrema de Rondônia sem Lei Complementar Federal regulamentando a criação de novos municípios, nos termos do artigo 18, § 4º da Constituição da República Federativa do Brasil. 

A decisão ainda se mostra acertada, pois embora a lei tenha a existência ao ser publicada no Diário Oficial da Unidade Federativa que pertence, não possui por outro lado validade e eficácia, implicações da norma desenvolvida pelo modelo positivista, que impede a ocorrência da “imperatividade autorizante”. 

Além do mais, conceder uma decisão em outro sentido, isto é, permitindo a realização de eleições poderia impulsionar o surgimento de novos municípios às margens do texto constitucional. Diante da ADI 2240, o senhor Ministro Marco Aurélio entendeu que, do mesmo modo, o Supremo Tribunal Federal deveria declarar a inconstitucionalidade da lei baiana com pronúncia de nulidade, pois “solicitada a criação desse município ao arrepio do que contém na Constituição Federal, a porta ficará aberta para endossarmos, em conflito evidente com a Carta da República.” (ADI 2240, fls. 337-338).

Por fim, a decisão repercute a ‘’dignidade científica’’ tão almejada na teoria Kelseniana, isso porque, o caso concreto em análise foi observado, exclusivamente sob uma análise jurídica. Em mesmo sentido, e com base na melhor literatura filosófica a PEC 188/2019 apresentada pelo presidente da República irá ferir o direito de identidade cultural de todos os indivíduos ao minimizar a história de cada indivíduo, de cada município, uma vez que a importância da interculturalidade e de compreendermos a terra como espaço e bem comum é também um Direito Universal Humano. Entender de modo diverso, seria ferir os Direitos Humanos dos cidadãos, esculpido na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Nesse sentido, Hunt irá colaborar com a compreensão de que “embora a Declaração dos Direitos Humanos frise que a igualdade é uma condição natural ao ser humano, essa discussão é redimensionada no campo dos debates políticos porque o conceito de igualdade é submetido a interesses de grupos sociais diversos, como o direito à cultura. ”(HUNT, 2009, p. 17).

Como apregoa Bobbio, direitos do homem, paz e democracia são três “momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos” (BOBBIO, 2004, p. 21).  

Esses aspectos são relevantes para o alcance da cidadania, pois “a cidadania pode ser compreendida em direitos civis, políticos e sociais. O cidadão pleno seria aquele que fosse titular dos três direitos” (BOBBIO, 2004, p. 21). Por essas razões, resta cristalino que a decisão encontra-se em acordo ao nosso sistema jurídico predominantemente civil Law arquitetado sob a égide do sistema positivista e que nova propositura para extinção de municípios embora sob a literatura filosófica de Kelsen contraria o Direito à Cultura de todo cidadão, presente hodiernamente na Declaração Universal dos Direitos Humanos. 

CONCLUSÃO

Conforme foi possível verificar no artigo em tela, a questão dos municípios criados sem a observância do artigo 18 § 4º da Constituição da República permanece hodiernamente incerta. Contudo, percebe-se coerência por parte dos Tribunais Superiores quanto ao tratamento dado no caso da criação de novos municípios.

 Isso porque, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a criação de municípios após a edição de emenda constitucional 15/96 é inconstitucional, pois a Constituição da República passou a fazer a exigência de Lei Complementar Federal para criação, fusão, incorporação e desmembramento de municípios. 

No mesmo sentido, o Superior Tribunal Eleitoral decidiu que a lei 2.264/10 que criou o município de Extrema de Rondônia não poderia realizar eleições municipais, uma vez que a lei não retira validade do texto constitucional. Do ponto de vista da teoria Kelseniana, a decisão tomada pelo Superior Tribunal Eleitoral, se mostra adequada.  Primeiro, pois reconheceu a supremacia da Constituição sobre as demais normas do ordenamento jurídico, impedindo a proliferação de normas às margens do texto constitucional. 

Segundo, pois concebeu que lei 2.264/10 não apresenta “imperatividade autorizante”, uma vez que não possui validade e eficácia em razão da observância ao sistema escalonado, pelo qual as normas hierarquicamente inferiores devem tirar validade da norma hierarquicamente superior. 

Terceiro, pois os Ministros do Superior Tribunal eleitoral deram “dignidade científica” à ciência jurídica ao analisarem o caso concreto, de modo que a decisão tomada foi pautada exclusivamente no direito positivado com correlato à situação tratada. No tocante, a nova proposta de Emenda à Constituição apresentada pelo atual Presidente da República esta se mostra em acordo com a teoria Kelseniana, ao menos, sobre a ótica formal, uma vez que esteja sendo conduzida de acordo com a legislação constitucional. Contudo, do ponto de vista material e da prejudicialidade de direitos, como o Direito à cultura e a história, reconhecidos como Direito Humano, se apresenta contrária a Declaração Universal dos Direitos Humanos. 

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1Graduado em Direito pela UNISEB e Doutorando em Direito pelo CEUB. alxpires@hotmail.com