ARTIFICIAL INTELLIGENCE IN CANDIDATE RECRUITMENT AND SELECTION: THE TECHX CASE
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8134789
Augusto Frederico Caetano Schaffer
Resumo
O presente caso de ensino tem por objetivo discutir a adoção de tecnologias de automação baseadas em inteligência artificial em processos tradicionais da área de Recursos Humanos, cujo uso vem crescendo de forma acelerada no Brasil e no exterior. O caso apresentado tem como cenário uma empresa fictícia de médio porte e a construção do caso é apoiada em situações reais vivenciadas pelo autor. O personagem principal é uma executiva recém-contratada para dinamizar a área de Recursos Humanos da empresa. Com larga vivência no meio empresarial em grandes corporações, possui pouco domínio sobre tecnologia da informação, tendo utilizado métodos tradicionais de recrutamento e seleção ao longo de toda sua carreira. Ao selecionar um novo software de automação de recrutamentos sem validação humana, baseado em inteligência artificial, se depara com processos seletivos preconceituosos contra certos grupos de candidatos, como mulheres e pessoas com mais de 50 anos. O dilema a ser debatido são as soluções para essa situação, frente aos ganhos de produtividade trazidos pelo software. Além do debate sobre o crescente uso de inteligência artificial, a aplicação do caso permite a discussão sobre o papel da tecnologia na modernização nos processos de negócio em diversas áreas de uma organização. Também alerta para a necessidade da adequada gestão de riscos em projetos corporativos e incentiva o debate sobre a importância da diversidade nos processos de gestão de pessoas.
Palavras-chave: Recrutamento; Recursos Humanos; Inteligência Artificial; Tecnologia da Informação.
Abstract
This teaching case aims to discuss the adoption of automation technologies based on artificial intelligence in traditional processes in the Human Resources area, whose use has been growing rapidly in Brazil and abroad. It is set in a fictitious medium-sized company and the construction of the case was supported by real situations witnessed by the author. The main character is a newly hired executive to streamline the company’s Human Resources area. With extensive experience in the business world in large corporations, she has little knowledge of information technology, having used traditional methods of recruitment and selection throughout her career. When selecting new recruitment automation software without human validation, based on artificial intelligence, situation with biased selection processes against certain groups of candidates, such as women and people over 50 years old occurred. The solutions for this situation is the dilemma to debate, in view of the gains in results brought by the software. In addition to the debate on the growing use of artificial intelligence, the application of the case allows for a discussion on the role of technology in modernizing business processes in various areas of an organization. It also alerts to the need for adequate risk management in corporate projects and encourages debate on the importance of diversity in people management processes.
Keywords: Recruitment; Human Resources; Artificial Intelligence; Information Technology.
A reunião inesperada
O relógio da sala marcava quase 16 horas e Ana Lima aguardava ansiosa o início da reunião agendada de última hora pelo presidente da empresa para às 15 horas. Ela sabia que o executivo era muito pontual e que esse grande atraso era o prenúncio de uma reunião conturbada e cheia de questionamentos.
Cerca de 2 horas atrás, João Esteves, o presidente da empresa de tecnologia TechX que havia recém-contratado Ana para o cargo de diretora de Recursos Humanos, ligou para seu telefone celular:
– Ana, você está na empresa? Estou com um problema aqui em relação a um dos novos softwares que estamos utilizando para apoiar a área de RH e preciso da sua ajuda. Podemos fazer uma reunião às 15 horas?
A executiva pediu mais detalhes sobre a pauta do encontro, mas João respondeu apenas que se tratava de um assunto sensível e sigiloso e que preferia apresentá-lo pessoalmente.
Cerca de 6 meses atrás Ana Lima havia sido selecionada para assumir a área de RH da empresa por seu histórico profissional. Com mais de 25 anos de atuação em empresas tradicionais do segmento industrial e de serviços, entre elas duas grandes redes de lojas de varejo, seu perfil chamou a atenção de João, que buscava alguém experiente para modernizar a área de Recursos Humanos da companhia.
A TechX, atuante no desenvolvimento de softwares customizados para corporações de grande porte, passava por um momento de grande expansão em função do ciclo de transformação digital que seus clientes vinham atravessando. Por sua performance acima da média do setor, atraiu o interesse de diversos interessados em investir na companhia. Depois de diversas rodadas de negociação, aceitou a cerca de dois anos um aporte de recursos de um fundo de private equity especializado no setor de tecnologia, que se tornou sócio da empresa e indicou dois membros para integrarem o conselho de administração da companhia.
Com a crescente demanda e escassez de profissionais de tecnologia da informação em nível global a diretoria entendeu que era preciso ganhar velocidade e produtividade em várias funções do setor de RH, sendo a principal delas, a de Recrutamento e Seleção. A decisão natural em uma empresa de tecnologia da informação foi a de buscar apoio em ferramentas e softwares de automação de processos, mas o grande desafio estava em aplicá-los em uma área tão sensível para os resultados da operação. Dada a natureza do negócio, extremamente dependente de profissionais altamente qualificados em diversas linguagens de programação, a área de Recursos Humanos era o principal ativo de geração de valor da companhia.
Tech X: o desafio do crescimento e o “fator RH”
A TechX foi fundada há mais de 20 anos por três profissionais de tecnologia enquanto cursavam Ciência da Computação em uma renomada universidade pública brasileira. O nome da empresa, segundo os fundadores, remetia à “tech extreme” – tecnologia extrema – e representava a busca pela melhor solução tecnológica possível para um problema de computação.
A ideia de criar a empresa surgiu em um hacktaton, espécie de maratona de programação que começou a se popularizar a partir do início dos anos 2000. Os jovens fundadores perceberam que as grandes empresas começavam a realizar esse tipo de evento em busca de soluções para problemas específicos em algumas tecnologias de nicho que suas equipes não conseguiam solucionar. Resolveram, então, se especializar em desenvolver soluções sobre encomenda para esse tipo de demanda. Com o sucesso das primeiras entregas, precisavam contar com cada vez mais programadores especializados, recrutados principalmente entre os colegas de curso e seus amigos.
Por estarem inseridos no ambiente universitário, rapidamente se tornaram especialistas em convidar outros alunos e professores para participar dos projetos, e em mais algum tempo, replicaram as ações de recrutamento em outras universidades de cidades próximas. Essa forma de atuação foi carinhosamente apelidada de “Fator RH”, em referência o fator Rh sanguíneo, pois diziam que “recrutar bem está no sangue da empresa”. A estratégia, de baixo custo e com bons resultados, permitiu o rápido crescimento da Tech X, permitindo que se tornasse uma empresa de médio porte, com cerca de 300 profissionais atuando em dezenas de projetos simultâneos, junto a clientes do Brasil e do exterior.
Após a entrada dos novos investidores, que questionaram sobre a escalabilidade do processo de busca de novos profissionais frente aos novos planos elaborados a partir do aporte de capital, os fundadores entenderam que não era mais possível sustentar o crescimento da empresa sem um profissional altamente qualificado e experiente. Se tornou necessário encontrar alguém que pudesse organizar a área de RH e os processos para sustentar o elevado ritmo de contratações que a empresa vinha demandando. Contrataram um headhunter indicado pelo fundo de investimento, e após uma série de mais de 20 entrevistas, optaram por trazer Ana Lima para integrar a diretoria da empresa.
A executiva chamou a atenção entre os demais candidatos por sua capacidade de implementar e liderar processos de recrutamento em grande escala, tanto para indústrias quanto para lojas de departamentos. Empresas desse segmento costumam ter ciclos de contratações de funcionários temporários em larga escala em um curto período de tempo para atender demandas sazonais, como a temporada de vendas natalinas ou períodos de produção que antecedem a entrega de grandes encomendas.
Uma das indústrias em que Ana atuou era focada na exportação de suco processado de laranja. Sua produção estava condicionada ao ciclo de plantio e colheita nas fazendas da empresa e de fazendeiros associados, de quem adquiriam a produção. Nesse ciclo eram necessárias contratações temporárias para colheita e também para produção e envase do suco processado, que atendia indústrias de alimentos e bebidas em vários países do mundo.
A nova diretora de Recursos Humanos possuía larga experiência e conhecimentos em recrutamento e seleção de profissionais operacionais de baixa e média qualificação, amplamente disponíveis no mercado. Suas metas sempre foram alcançadas por meio de grandes equipes de técnicos e analistas de recursos humanos, focados nos métodos tradicionais de atuação da área; recebimento de currículos em papel, triagem e entrevistas presenciais. Mesmo sem possuir nenhuma vivência no segmento de Tecnologia da Informação, Ana entendeu que seria um momento oportuno em sua carreira para atuar em uma das áreas que mais se expande na economia e se julgava apta para a nova função.
Seu desafio agora seria bastante diferente: recrutar profissionais altamente qualificados e globalmente escassos no mercado de trabalho. Após sua contratação, um dos desafios colocados pelos fundadores da companhia vinha tirando seu sono: modernizar os processos de RH utilizando ferramentas digitais, buscando o máximo de automação e eficiência em tempo e custo, principalmente na etapa de recrutamento e seleção.
A tecnologia a serviço dos Recursos Humanos…ou não?
Nos últimos anos a área de Recursos Humanos vem atravessando um processo de grande transformação: uso de softwares e de metodologias ágeis de gerenciamento de projetos e o rápido surgimento de startups – conhecidas como “hrtechs”, desenvolvedoras de soluções de software inovadoras em confronto às grandes e tradicionais empresas atuantes nesse segmento, que ainda possuem foco nos processos tradicionais de RH (admissão e folha de pagamentos, obrigações trabalhistas, etc).
Para atender a demanda colocada pelos diretores da empresa, Ana iniciou sua pesquisa tentando entender as inovações tecnológicas em sua área. Após uma longa pesquisa, a equipe de RH da Tech X agrupou as principais soluções de software da seguinte forma, para fins de análise e comparação:
• Saúde Ocupacional, Office Services (Serviços Administrativos) e Bem-Estar
• Onboarding (Admissão), Comunicação Interna e Engajamento de Funcionários
• Treinamento, Desenvolvimento e Gestão do Conhecimento
• Recrutamento e Seleção Automatizada (incluindo Employer Branding ou Gestão da Marca Empregadora)
• Gerenciamento e Automação de Entrevistas (inclusive online)
• Gestão de Desempenho e People Analytics (Análise de Dados de Performance de funcionários)
• Gestão de Processos de RH (incluindo Ponto, Folha, Benefícios e GED)
• Contratação Flexível – Temporários, Outsourcing (Terceirizações) e Freelancers (contratações de curta duração)
• Offboarding (Demissões e Auxílio à Recolocação)
Nessa análise, o time de RH listou alguns benefícios a serem obtidos a partir das melhorias oferecidas pelos softwares em comparação aos processos tradicionais, a partir das descrições dos softwares pelas empresas ofertantes:
Tabela 1 – Benefícios esperados a partir da automação.
Benefício Esperado | Melhoria Introduzida pelo Software |
Melhoria na produtividade | Rápido processamento de informações e compartilhamento de dados |
Maior engajamento e redução na rotatividade de funcionários | Conexão automatizada entre funcionários |
Redução de custos de arquivo e impressão | Redução ou eliminação de processos baseados em documentos físicos |
Redução de riscos de conformidade ou violações de políticas corporativas | Automação e padronização de processos |
Contratação eficiente com custo operacional ideal. Suporte eficiente ao crescimento organizacional | Automação de etapas do recrutamento e seleção automatizada de candidatos |
Tomada de decisões de negócios inteligentes | Relatórios automatizados mais detalhados |
Redução de retrabalho | Eliminação de erros de entrada de dados e documentos perdidos |
Colaboração mais efetiva com outras partes interessadas para contratar, treinar e reter mão de obra qualificada | Digitalização de processos com descentralização de atividades de RH |
Gestão de RH mais eficiente | Maior capacidade de análise de dados de desempenho individual e organizacional |
Após os estudos iniciais, o grupo liderado pela executiva realizou uma análise de ganhos potenciais em função das características da TechX, tendo sido ponderados possíveis impactos, custos preliminares, dificuldade e tempo de implementação. Foi elaborada uma proposta preliminar de implementação com várias alternativas, a qual foi submetida para avaliação do Conselho de Administração, composto pelos diretores fundadores e investidores da empresa. Nessa reunião foi decidido que a modernização da área de RH deveria ser iniciada pelos processos de recrutamento e seleção, principal limitador de crescimento da empresa naquele momento.
Definidas e aprovadas as prioridades, a diretora Ana passou então a avaliar a oferta de soluções para automação de processos de recrutamento e seleção. Nesse segmento, as opções estavam concentradas em plataformas e sistemas voltados para a gestão do fluxo de recrutamento e seleção, com o objetivo de agilizar os processos de identificação, pré-avaliação, atração, automação de processos seletivos e triagem (“screening”) de profissionais, até a etapa imediatamente anterior às entrevistas com os candidatos selecionados. A etapa de entrevistas também poderia ser apoiada por softwares de automação, que tem por objetivo interpretar os sinais faciais, reações e conteúdo das informações fornecidas pelos candidatos, mas a empresa optou por se concentrar na etapa anterior, no primeiro momento.
Dadas as necessidades da empresa, foi avaliado que a solução mais efetiva para as demandas de curto prazo seria um software do tipo applicant tracking system (também conhecido pela sigla ATS), tipo de sistema de rastreamento de candidatos que permite o acompanhamento do fluxo atração, seleção e contratação de candidatos de forma padronizada e automatizada. Esse tipo de sistema possui semelhanças com sistemas de gerenciamento de relacionamento com o cliente (customer relationship management – CRM), porém com o foco no candidato durante o processo seletivo. Os sistemas mais avançados filtram potenciais candidatos automaticamente com base em critérios pré-estabelecidos, tais como palavras-chave, habilidades, empregadores anteriores, anos de experiência na função, cursos realizados e instituições de ensino frequentadas, entre muitos outros. Vários dos softwares ofertados no mercado se utilizavam de mecanismos baseados em inteligência artificial e aprendizagem de máquina (um dos diversos mecanismos de automação desse tipo de software). Nesse caso, muitas vezes o próprio software pode tomar decisões e ajustar de forma autônoma, sem supervisão humana, os critérios processos seletivos anteriores ou outras informações obtidas durante o ciclo de recrutamento, sem que haja necessariamente um registro dessas informações.
Após diversos contatos com potenciais fornecedores e consultas às áreas envolvidas, Ana selecionou um fornecedor que julgava ser o mais adequado para as demandas da TechX. Ele oferecia uma solução completa do tipo end-to-end ou ponta-a-ponta, integrada à várias plataformas de vagas e redes sociais e que também fazia a seleção de candidatos por meio de um algoritmo baseado em inteligência artificial. Era a solução mais moderna e avançada disponível no mercado naquele momento.
Com a colaboração da área de tecnologia da companhia foi feita a implementação da solução e, em poucas semanas, o software passou a controlar todo o fluxo de recrutamento e seleção da empresa, se tornando a única forma de contratação de novos profissionais operando na companhia. Como planejado, houve um grande ganho de produtividade e o tempo médio de recrutamento da empresa caiu de 45 para 6 dias. Todos estavam satisfeitos como o novo processo: mais ágil, moderno, digital, além de libera diversos funcionários anteriormente focados nas etapas de atração de candidatos e seleção de currículos para outras atividades de maior complexidade.
Não existem soluções simples para problemas complexos
“Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.”
A citação acima, atribuída ao jornalista e crítico social norte-americano Henry Louis Mencken, adaptada a partir um trecho de sua obra “Prejudices: Second Series”, parecia ser o resumo dos momentos que se seguiriam. Tudo ia bem até o dia da reunião para qual Ana foi chamada às pressas. João entrou na sala com o semblante fechado, acompanhado de um grupo de executivos e alguns investidores da empresa. Todos se sentaram à mesa rapidamente e João foi direto ao assunto:
– Boa tarde, Ana. Estamos com um grande problema aqui em relação a esse novo software de recrutamento e seleção. Não queremos ser conhecidos como a nova Amazon nesse assunto!
Ana recebeu aquela informação com surpresa, pois não entendia como uma empresa de tecnologia poderia não querer ser comparada a uma grande empresa de tecnologia global, referência em vários segmentos de atuação.
– João, você sabe que eu sou nova nesse setor. Poderia me ajudar a entender melhor o que está acontecendo? Não entendi muito bem essa questão da comparação com a Amazon. Achei que ser comparado a uma empresa como ela seria um grande elogio para a TechX !
Os demais participantes da reunião se entreolharam, deixando claro que já haviam discutido o assunto previamente e que conheciam a experiência malsucedida da Amazon ao desenvolver um software próprio de automação de seleção de candidatos. Ana começou a se preocupar com o rumo da reunião, entendendo que algo muito importante tinha acontecido, mas que ela não tinha a menor ideia do que se tratava. João então prosseguiu:
– Nosso software está selecionando de forma preconceituosa! A filha de um dos nossos investidores acabou de se formar em uma dar melhores faculdades de tecnologia do mundo. Tem experiência internacional e estagiou em duas excepcionais empresas americanas: uma gigante de tecnologia e uma startup em franco processo de expansão global. Um currículo impecável que seria desejado por qualquer empresa de tecnologia do mundo. Nosso investidor, ao invés de nos encaminhar diretamente o currículo da filha para participar da seleção em uma de nossas vagas em aberto, pediu que ela seguisse o processo normal de candidatura por meio da nova plataforma. Para nossa surpresa ela foi sumariamente eliminada do processo seletivo pelo software, sem que ninguém tivesse participado da decisão. Provavelmente por ser mulher, da mesma forma que acontecia com a inteligência artificial desenvolvida pela Amazon!
Ana mal podia acreditar no que estava ouvindo. Logo ela, uma executiva experiente que sempre conduziu sua atuação com enfoque nos aspectos de humanização do processo seletivo, buscando garantir equidade e diversidade nas empresas onde atuou, agora se via diante de uma situação totalmente imprevista.
João se referia ao caso da Amazon que ganhou repercussão internacional em 2015, depois da divulgação de uma reportagem pela agência de notícias Reuters, quando a empresa admitiu que a solução de automação de recrutamento baseada em inteligência artificial desenvolvida por uma de suas equipes internas promovia discriminação de gênero contra mulheres candidatas a vagas técnicas e de desenvolvimento de software na empresa. A inteligência artificial foi treinada com base nos perfis de candidatos a emprego aprovados nos dez anos anteriores. Porém deixou de considerar que o segmento de Tecnologia da Informação foi majoritariamente dominado pelo gênero masculino por décadas. Dessa forma, o algoritmo passou a entender que candidatos do gênero masculino teriam preferência em detrimento de candidatos declaradamente femininos ou que usassem termos femininos na descrição de suas qualificações ou experiências. Após algumas tentativas de solucionar o problema, a Amazon abandonou o projeto definitivamente em 2018.
Outro executivo presente à reunião pediu a palavra e apresentou mais uma questão:
– Ana, após sabermos do problema, conduzimos um teste por conta própria e parece que estamos com problemas também em relação à idade dos candidatos. O sistema está cortando, já na etapa inicial, todo mundo que tem mais de 45 anos. Isso pode afetar o recrutamento para nossas vagas mais sêniores ou para cargos de chefia e gerência.
A essa altura a executiva já não conseguia esconder seu desconforto com a situação. A causa principal do problema parecia ser seu total desconhecimento dos aspectos tecnológicos relacionados a um software com esse grau de complexidade, e principalmente, assistidos por inteligência artificial. João então perguntou?
– Você discutiu com a empresa os critérios de triagem embarcados no algoritmo ou ele é uma “caixa-preta” que simplesmente nos apresenta resultados? Apesar de ter recebido apoio da área de tecnologia da empresa para implementação do software, eles não entendem muito sobre RH e recrutamento e seleção. Temos um grande problema nas mãos agora. Direcionamos todos os esforços para essa alternativa, desmontamos nossos processos tradicionais e agora corremos o risco de parar a empresa. Qual sua sugestão para resolvermos essa questão?
Ana olhou novamente o relógio. Não haviam se passado nem vinte minutos desde o início da reunião e a situação mais complexa de toda sua vida profissional pedia um posicionamento firme e direto. Lembrou de seu primeiro estágio, quando entrou em uma empresa pela primeira vez e se encantou com o universo corporativo e, particularmente, com a área de Recursos Humanos. Na empresa, ela poderia ajudar as pessoas com tudo que vinha aprendendo no curso de Psicologia, que sonhava em cursar desde muito jovem.
Agora um software poderia determinar seu futuro profissional. Ela sabia que, dependendo de sua resposta, poderia ganhar mais espaço na empresa e construir mais uma etapa vitoriosa na sua carreira ou simplesmente ser desligada, por não estar preparada para a atuar em um segmento tão envolvido com novas tecnologias.
Internamente ela se questionou se estaria preparada para um desafio como esse ou se realmente não estaria apta para lidar com tanto protagonismo dos softwares e algoritmos na área de Recursos Humanos. Seria ela a pessoa certa para essa função? Apesar de entender as necessidades da empresa e a missão que lhe foi confiada, por suas crenças sobre a necessidade de humanização nos processos seletivos e da relevância da diversidade nas organizações, estava diante de um claro dilema. Era chegada a hora de dar a sua resposta.
Notas de Ensino
Objetivos Educacionais
O objetivo central do caso de ensino é debater a automação de processos tradicionais da área de Recursos Humanos (RH) por meio da utilização de softwares baseados em inteligência artificial. Discute as eventuais consequências para a organização, sendo possível, a partir deste contexto, também a extrapolação para outros processos críticos no âmbito da organização.
Como objetivos adicionais ou secundários, podemos citar:
– Ressaltar a importância dos processos de recrutamento e seleção para empresas em fase de crescimento acelerado, notadamente em mercados com oferta escassa de mão-de-obra qualificada.
– Promover discussões sobre o papel da tecnologia e da inovação na modernização e automação nos processos de negócio.
– Alertar para a necessidade da adequada gestão de riscos em projetos corporativos.
– Incentivar o debate sobre a questão da diversidade nos processos de gestão de pessoas.
Sinopse do Caso e Roteiro para Debate
O caso analisa o emprego de inteligência artificial na automação de processos de recursos humanos (RH) e os riscos associados à utilização dessas tecnologias em processos como a contratação de pessoal, sem uma adequada ponderação das implicações. Apresenta a empresa fictícia TechX, que se decidiu pela utilização de softwares desenvolvidos por startups de Tecnologia da Informação para modernizar seus processos de RH. Por ser uma empresa do segmento de desenvolvimento de soluções de software por encomenda para grandes empresas, apresenta demanda constante de contratação de novos profissionais para atender novos projetos de seus clientes e, por esse motivo, elencou a rotina de recrutamento e seleção para iniciar seu processo de modernização.
Para liderar essa iniciativa foi recrutada uma executiva experiente no setor de RH com passagens por vários setores de prestação de serviços e indústria, além de vivência em processos de recrutamento de profissionais em larga escala, porém por métodos tradicionais. Sem histórico ou conhecimentos técnicos no setor de tecnologia, acabou designada para modernizar os processos subordinados à sua diretoria, utilizando preferencialmente softwares desenvolvidos por startups nacionais atuantes nesse segmento, conhecidas como “hrtechs”. Entre os benefícios esperados estavam a redução do tempo de recrutamento e do custo total das operações.
Após análise das alternativas de mercado, e com apoio da área de tecnologia da TechX, o software foi implementado e os resultados iniciais foram atingidos, com redução no tempo de contratação e de custos. Porém, a candidatura da filha de um dos investidores da empresa chamou atenção sobre um aspecto que não havia sido considerado na análise: os critérios de seleção e eventuais vieses introduzidos pelo uso de inteligência artificial, que se utiliza de algoritmos e extração continuada de informações de bases de dados, entre outras estratégias computacionais, para alcançar resultados.
O leitor poderá se colocar em diversos papéis na análise do caso: a) a profissional questionada sobre o processo de escolha e implementação de software; b) os executivos e investidores da empresa; e c) a profissional eliminada pelo software, apesar da plena capacitação para atuar na vaga a que concorria.
Fonte de Dados
A construção do caso foi feita com base nas vivências profissionais do autor em empresas diversas, sendo todo o contexto ficcional. A situação, conforme relatada, jamais existiu. Foi introduzido um evento real (algoritmo de recrutamento da Amazon) para aumentar a atratividade sobre o tema e permitir ao leitor aferir o grau de relevância do assunto, tendo sido citada a fonte original que deu origem à repercussão do fato.
Público-Alvo Sugerido
O caso apresentado tem como público principal alunos de cursos de nível superior (graduação ou graduação tecnológica) ou especialização nas áreas de Administração, Gestão Empresarial, Gestão de Recursos Humanos, Sistemas de Informação, entre outros que possuam disciplinas com enfoque em gestão de pessoas, gestão empresarial, inovação tecnológica e cursos introdutórios na área de desenvolvimento de sistemas de informação.
Entre algumas das disciplinas comumente ofertadas nesses cursos, com as quais o caso possui conteúdo aderente, podemos citar: Administração de Recursos Humanos, Gestão de Pessoas, Recrutamento e Seleção, Estratégia Empresarial, Gestão Empresarial, Gestão de Projetos, Gestão da Inovação, entre outras.
Guia Teórico para Utilização do Caso
Segundo Fournier (2018) o recrutamento abrange o conjunto de práticas e processos empregados para atrair candidatos para as vagas disponíveis ou a serem abertas, enquanto a seleção se refere às técnicas e procedimentos empregados para definir, dentre os candidatos recrutados, aquele que, segundo os critérios estabelecidos pelo recrutador, é o mais indicado para preencher a vaga em questão.
As teorias de Gestão de Recursos Humanos que abordam as técnicas de recrutamento e seleção destacam os benefícios das entrevistas, avaliações e exames psicométricos como processo de seleção de funcionários. Afirmam ainda que o processo de recrutamento pode ser interno ou externo ou também pode ser realizado online. Normalmente, esse processo é baseado em políticas de recrutamento, que detalham os processos de publicidade, candidatura, entrevista, avaliação, tomada de decisão, seleção formal e admissão (CHIAVENATO, 2012).
Ainda segundo Fournier (2018) as abordagens de gestão de recursos humanos em qualquer organização empresarial são desenvolvidas para atender aos objetivos corporativos, materializados por planos estratégicos e visam apoiar sustentar o desempenho organizacional, incluindo resultados financeiros. A natureza do recrutamento e seleção para uma empresa é influenciada pelas condições do mercado de trabalho e seu posicionamento como empregador, no que vem sendo denominado como marca empregadora ou “employer branding” (EDWARDS, 2010).
Segundo Kaelbling, Littman e Moore (1996) a inteligência artificial é um campo da ciência, que visa estudar, desenvolver e empregar máquinas para realizarem atividades de maneira autônoma. Em termos tecnológicos, pode ser definida como um agrupamento de várias tecnologias, como redes neurais artificiais, algoritmos, sistemas de aprendizado autônomo de máquina, entre outros que conseguem simular capacidades humanas ligadas à inteligência.
Os primeiros estudos nesse campo se iniciaram na década de 50, a partir das chamadas redes neurais, sendo o termo inteligência artificial utilizado pela primeira vez em 1956. Desde então, o interesse pelo tema vem ganhando relevância a cada dia, com aplicações cada vez mais abrangentes em empresas e até mesmo em equipamentos pessoais e domésticos, como smartphones e televisores inteligentes.
Entre as tecnologias associadas à inteligência artificial, podemos citar, entre outras, a robótica, reconhecimento de voz e visão, redes neurais (sistemas de computação agrupados em redes que utilizam algoritmos para reconhecer padrões escondidos e correlações em dados brutos, agrupá-los e classificá-los, em ciclo contínuo (RUSSEL e NORVIG, 2022).
Lee e Shin (2020) destacam que além dessas, três vem ganhando notável relevância no mundo corporativo: o aprendizado de máquina (machine learning), a aprendizagem profunda (deep learning) e processamento de linguagem natural, também conhecida como PNL. Um resumo dessas tecnologias é apresentado a seguir:
– Aprendizado de Máquina: método de avaliação de dados que automatiza o desenvolvimento de padrões analíticos. Conseguem, com pouca interferência humana, descobrir padrões, tomar decisões e se aperfeiçoar, podendo melhorar a realização de uma atividade ao longo do tempo.
– Aprendizagem Profunda: tipo especial de aprendizado de máquina, com diversas camadas de processamento, permitindo que máquinas treinem outras máquinas ou retroalimentem outras camadas de software para executarem atividades como se fossem humanos. Pode ser utilizada em aplicações como identificação de imagens, reconhecimento de fala e processamento de grandes bases de dados.
– Processamento de Linguagem Natural (PLN) – aplica algoritmos e outras soluções para reconhecer e processar a linguagem da forma empregada pelos humanos. Por meio do PLN, as máquinas podem compreender melhor os textos, abrangendo reconhecimento de contexto, extração de informações, elaboração de resumos e até mesmo compor textos partindo de dados obtidos por computadores.
Questões para Discussão
– Quais os principais benefícios e riscos na adoção de novas tecnologias em processos de negócios?
– Além da área de recursos humanos, em que áreas de negócio é possível identificar o crescimento do emprego da automação e softwares autônomos?
– Qual poderia ser a destinação dos funcionários que atuavam em processos automatizados ou extintos pelo emprego da tecnologia?
– É possível reconhecer vieses nos processos seletivos por processos tradicionais de recrutamento e seleção ou eles ocorrem somente pela adoção de novas tecnologias? Você conhece algum caso?
– Como as empresas deveriam tratar a diversidade nos processos seletivos? Quais os principais aspectos estratégicos e dificuldades de implementação a serem considerados? A questão se aplica da mesma forma para grandes e pequenas empresas?
– Qual a relevância da gestão de riscos em planejamento de projetos?
No caso apresentado, apesar dos ganhos de produtividade com a eliminação de processos repetitivos e manuais, verifica-se que a utilização de algumas dessas tecnologias aplicadas aos processos seletivos pode levar a repetição de padrões de contratações passados, tornando o software restritivo a certos tipos de candidatos, seja por questões de gênero ou outros aspectos, como idade.
Sugestão de Plano de Ensino
O caso pode ser aplicado, como sugestão, em duas aulas de 50 minutos. Como sugestão de sequência para aplicação, sugere-se:
1) Introdução do caso pelo docente, com destaque para os principais conceitos acerca do tema, os desafios associados aos processos de recrutamento e seleção em empresas de diferentes segmentos e portes (10 minutos)
2) Leitura individual do caso (10 minutos)
3) Discussão em grupos de 3 a 4 alunos (20 minutos)
4) Debate com todo o grupo sobre o dilema e as principais informações sobre o caso (30 minutos)
5) Sistematização das conclusões pelo docente, interligando a outros conteúdos e disciplinas do curso (20 minutos)
6) Fechamento e recomendação de pesquisas de aprofundamento para eventuais interessados (10 minutos)
Referências
DASTIN, Jeffrey. Amazon scraps secret AI recruiting tool that showed bias against women. Reuters, 10 out. 2018. Disponível em:<https://www.reuters.com/article/us-amazon-com-jobs-automation-insight-idUSKCN1MK08G>. Acesso em: 20 de jun. de 2023.
FOURNIER, Camile. A Arte da Gestão: Um Guia Prático Para Integrar Liderança e Recursos Humanos no Setor de Tecnologia. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018
CHIAVENATO, Idalberto. Gerenciando com as pessoas: transformando o executivo em um excelente gestor de pessoas. Rio de Janeiro: 5 ed. Ed. Manole, 2014.
JOHNSON, Richard D.; STONE, Dianna L.; LUKASZEWSKI, Kimberly M. The benefits of eHRM and AI for talent acquisition. Journal of Tourism Futures, v. 7, n. 1, p. 40-52, 2020..
KAELBLING, Leslie Pack; LITTMAN, Michael L.; MOORE, Andrew W. Reinforcement learning: A survey. Journal of artificial intelligence research, v. 4, p. 237-285, 1996.
KHILLARE, Prakash Yadao; SHIRSALE, Smita Kashinath. A Study of Conceptual Framework of E-Recruitment in Current Business Scenario. International Journal of Research in Management Economics, v. 7, n. 1, p. 35-39, 2017.
LEE, In; SHIN, Yong Jae. Machine learning for enterprises: Applications, algorithm selection, and challenges. Business Horizons, v. 63, n. 2, p. 157-170, 2020.
RUSSELL, Stuart J.; NORVIG, Peter. Inteligência Artificial – Uma Abordagem Moderna. 22 ed. Rio de Janeiro: GEN LTC, 2022