ESPIRITUALIDADE, RELIGIÃO E SAÚDE, DIÁLOGOS POSSÍVEIS E INTERFACES NECESSÁRIAS. UMA REVISÃO DA LITERATURA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7855584


David Aguiar de Oliveira1
Maria José Gomes de Aguiar2
Glaucya Stela Cândido Tavares3
Rosa Maria Frugoli da Silva4


Resumo

Este artigo tem como Título “espiritualidade, religião e saúde, diálogos possíveis e interfaces necessárias, uma revisão da literatura”. Objetivo compreender as intercambialidades entre os aspectos da espiritualidade e da religião, quando relacionados à saúde. Método: Revisão da literatura com busca nas plataformas Google Acadêmico e Scielo de artigos que trazem o tema da religião dialogando com a saúde. Resultados: Com os descritores ‘religião e saúde’ foram encontrados no Google Acadêmico aproximadamente 4.350 artigos de revisões em língua portuguesa, entre os anos de 2007 e 2022. E na plataforma Scielo foram encontrados 10 artigos de revisão na mesma série de tempo. Conclusão:  A religião surgiu a partir da necessidade de compreender o ‘homo religiosus’ que habita em cada um de nós, permeando nossa psique e seus elementos: o consciente, o inconsciente e suas manifestações. A saúde é afetada no ‘modus vivendi do homo religiosus’. 

Palavras-chave: Espiritualidade. Religião. Saúde. 

Abstract

This article is entitled “Spirituality, religion and health, possible dialogues and necessary interfaces, a literature review”. Objective to understand the interchangeability between aspects of spirituality and religion, when related to health. Method: Literature review with search on Google Scholar and Scielo platforms for articles that bring the theme of religion in dialogue with health. Results: With the descriptors ‘religion and health’, approximately 4,350 review articles in Portuguese were found in Google Scholar, between the years 2007 and 2022. And on the Scielo platform, 10 review articles were found in the same time series. Conclusion: The religion emerged from the need to understand the ‘homo religiosus’ that dwells in each of us, permeating our psyche and its elements: the conscious, the unconscious and its manifestations. Health is affected in the ‘modus vivendi of homo religiosus’.

Keywords: Spirituality, Religion and Health.

INTRODUÇÃO

A conjuntura social, econômica, política e cultural interfere no conceito de saúde. Nesse sentido, a saúde não representa a mesma coisa para todas as pessoas e em todos os lugares, mas dependerá da época, do lugar, da classe social, (ZEITOUN, 2022; SCLIAR, 2007). Os valores individuais, as concepções científicas, religiosas, filosóficas, também influenciarão o conceito de saúde de uma determinada localidade.  Da mesma forma, as doenças, estas também variarão de região para região. Ao longo da história, os conceitos variaram de manifestações exógenas e endógenas, isto é, explicações de fora do indivíduo e explicações de dentro da fisiologia humana, como veremos ne breve percurso histórico abaixo.

Os estudos dos fenômenos religiosos tratados como fenômenos da cultura são estudados pela Psicologia da Religião, de acordo com PEREIRA & MARTINS, 2022, DIAS, 2017. A própria psicologia da religião surgiu a partir da necessidade de compreender o ‘homo religiosus’ que habita em cada um de nós, permeando nossa psique e seus elementos: o consciente, o inconsciente e suas manifestações, conforme PEREIRA & MARTINS, 2022. Paras esses autores, a psicologia da religião estuda também outros temas, as práticas, as crenças e as experiências religiosas, perseguindo o desafio metodológico do conhecimento e traçando formas de trabalhos que respeitem a especificidade do saber psicológico e a singularidade das tradições religiosas, de acordo com PEREIRA & MARTINS, 2022.

A religião é boa, ela faz parte da constituição do humano, chamado de “homo religiosus”, ela ajuda a aliviar o cansaço social, instila esperança para a vida, auxilia nos momentos de adoecimento humano, colabora na aceitação de doenças terminais, e fortalece os vínculos familiares em momentos de luto. Muitos são os ganhos da inserção de uma religião na vida humana. As próprias disciplinas nas grandes áreas da saúde, medicina, enfermagem, psicologia da saúde, nutrição e outras, renderam-se à importância da religião e da espiritualidade como terapias coadjuvantes nos tratamentos de saúde, e acrescentaram em seus compêndios bibliográficos capítulos importantes sobre o valor da religiosidade e da espiritualidade na melhora dos tratamentos de saúde, e no auxílio dos familiares de pacientes à superarem a dor de uma doença terminal ou mesmo do luto, sobretudo em casos repentinos de morte. Essa é uma realidade, contemporaneamente, inquestionável.

No entanto, é verdade também, que por se tratar de construção humana, falível e, por vezes, sujeitas às frustrações, a religião pode vir a ser a causa de muitos dissabores e desapontamentos; e, acabando por reforçar as atitudes de aprisionamento, como afirma FOSTER,” nada é mais eficaz em aprisionar uma pessoa que a religião, e nada na religião contribuiu mais para manipular e destruir pessoas que os ensinos equivocados a respeito da submissão” (2020, p. 27).

1. Percurso histórico dos processos saúde-doença.

Ao depararmos com a super modernização dos serviços de saúde do século XXI, nós temos a tendência de achar que sempre foi assim, e causa-nos escândalo pensar que os processos saúde-doença num passado distante da humanidade eram explicados a partir de modelos e causas de fora do ser humano, (ZEITOUN, 2022; de SOUZA SILVA, 2019; STRAUB, 2014; SCLIAR, 2007). 

Para esses autores, as doenças eram vistas como influenciadas e causadas por ‘espíritos malignos’, que acometiam o doente, trazendo-lhe todo tipo de mal-estar; para resolver esse problema, rituais de xamanismos, rezas e pajelança, eram indicados aos doentes, (STRAUB, 2014). Tais espíritos acometiam a cabeça da pessoa, adoecendo-a, e fazia-se necessário “retirar” delas essas manifestações. Ao retirar dela o espírito de doença através do ritual, reintegrava-se o doente a harmonia com universo, do qual ele é parte integrante; esse universo total não é algo inerte: ele “vive” e “fala”; é um macro corpo, do qual o Sol e a Lua são os olhos, os ventos, a respiração, as pedras, os ossos, ‘homologação antropocósmica’. A união do microcosmo que é o corpo com o macrocosmo faz-se por meio do ritual, (ZEITOUN, 2022; STRAUB, 2014; SCLIAR, 2007). 

Os autores acima afirmam que a tarefa do xamã, sacerdote primitivo, seria convocar espíritos capazes de erradicar o mal. Para isso, somente ele, o xamã, passa por um treinamento longo e rigoroso, com prolongada abstinência sexual e alimentar; nesse período aprende as canções xamanísticas e utiliza plantas com substâncias alucinógenas que são chamarizes para os espíritos capazes de combater a doença, (ZEITOUN, 2022; SCLIAR, 2007).

Esses autores acima registram que a medicina grega representa uma importante inflexão na maneira de encarar a doença. Divindades gregas estavam vinculadas à saúde. Os gregos cultuavam, além da divindade da medicina, Asclepius, ou Aesculapius (que é mencionado como figura histórica na Ilíada), duas outras deusas, Higieia, a Saúde, e Panacea, a Cura. Ora, Higieia era uma das manifestações de Athena, a deusa da razão, e o seu culto, como sugere o nome, representa uma valorização das práticas higiênicas; e se Panacea representa a idéia de que tudo pode ser curado – uma crença basicamente mágica ou religiosa -, deve-se notar que a cura, para os gregos, era obtida pelo uso de plantas e de métodos naturais, e não apenas por procedimentos ritualísticos, (ZEITOUN, 2022; STRAUB, 2014). Essas visões antecedem ao aparecimento de Hipócrates, o pai da medicina, como veremos a seguir.

Hipócrates (460-370) a.C, aparece no cenário grego afirmando que a causa do adoecimento humano residia no desiquilíbrio corporal dos fluídos fisiológicos, bile negra, bile amarela, sangue e fleuma, e que, tratar a doença era buscar o equilíbrio desses humores do corpo. Pouco se sabe sobre a vida de Hipócrates, com suspeitas de que ele nunca existiu, sendo apenas uma figura imaginária e lendária, como muitas outras na cultura grega da antiguidade. Contudo, há evidência em Sócrates, Platão e Aristóteles da existência de Hipócrates, (ZEITOUN, 2022). 

A obra hipocrática, denominada “Corpus Hipocraticus”, é composta de trabalhos de várias pessoas, em vários períodos; caracteriza-se pela valorização da observação empírica, como o demonstram os casos clínicos nela registrados, reveladores de uma visão epidemiológica do problema de saúde-enfermidade. Doenças como a apoplexia (hemorragia cerebral), conforme ZEITOUN (2022), DE SOUZA E SILVA (2019), STRAUB (2014) e SCLIAR (2007), é mais comum entre as idades de 40 e 60 anos; a tísica (nome obsoleto dado à tuberculose), ocorre mais frequentemente entre os 18 e os 35 anos. Essas observações não se limitavam ao paciente em si, mas a seu ambiente. O texto conhecido como “Ares, águas, lugares” discute os fatores ambientais ligados à doença, defendendo um conceito ecológico de saúde-enfermidade, (de SOUZA SILVA, 2019; STRAUB, 2014; SCLIAR, 2007). 

Já na era cristã, Claudius Galeno (129-199, d.C.), grego, mas que morou em Roma (STRAUB, 2014), revisitou a teoria hipocrática do adoecimento, e ressaltou a importância dos quatro temperamentos no estado de saúde. Continuava-se vendo a causa da doença como endógena, ou seja, estaria dentro do próprio homem, em sua constituição física ou em hábitos de vida que levassem ao desequilíbrio, (ZEITOUN, 2022; STAUB, 2014). Mas, o tratamento das moléstias tinha o ganho das plantas e ervas, e a farmacologia de Galeno foi utilizada por mais de 1.500 anos, de acordo com STRAUB, 2014. 

SCLIAR (2007) e STRAUB (2014) afirmam que situação análoga ao Ocidente se vivia no Oriente, com algumas diferenças, China e Índia, falavam de forças vitais que existem no corpo, quando funcionam de forma harmoniosa, há saúde; caso contrário, sobrevém a doença. As medidas terapêuticas, acupuntura, ioga têm por objetivo restaurar o normal fluxo de energia, o “chi” (energia vital), na China; ou a “prãna” (sopro de vida, energia vital existente no cosmos, absolvida pelos seres vivos quando respiram o ar), na Índia.

Na Idade Média, com o domínio da Igreja Católica influenciando e determinando a vida em sociedade, dos conceitos de saúde e doença até a escolha das profissões dos indivíduos, tudo passava pelo crivo da Igreja, que apontava como vontade de Deus os acontecimentos na sociedade mundial. A doença era sinal de desobediência ao mandamento divino. A enfermidade proclamava o pecado, quase sempre em forma visível, como no caso da lepra Trata-se de doença contagiosa, que sugere, portanto, contato entre corpos humanos, contato que pode ter evidentes conotações pecaminosas. O livro de Levítico no Antigo Testamento da Bíblia Hebraica5, detém-se longamente na maneira de diagnosticar a lepra; mas não faz uma abordagem similar para o tratamento. Na época da história primitiva do povo hebreu, a lepra era tratada com enclausuramento do paciente (distanciamento social), não havia tratamento para a moléstia, e a cura era manifestação da graça divina, porque a doença era vista como resultado do pecado, devendo a pessoa apresentar-se ao sacerdote religioso, para que este testificasse e ratificasse a cura do doente, (ZEITOUN, 2002; SCLIAR, 2007).

De maneira semelhante, na Idade Média, mantinha-se a concepção da doença como resultado do pecado humana e consequência da ira divina, como nos casos de epidemia que, vez por outra, assolava o mundo, e a cura passava por questões de fé, voltando as explicações do adoecimento causado de fora para dentro do corpo, como há centenas de milhares de anos atrás, como afirmam de SOUZA SILVA, 2019, STRAUB, 2014,e SCLIAR, 2007. A COVID-19, doença respiratória causada por um vírus, e que atacou o mundo a partir de dezembro de 2019, e que causou a morte só no Brasil de mais de setecentas mil pessoas, seria vista como resultado do pecado mundial e/ou da ira divina no período medieval, resultado da ira divina. 

Na Idade Média, portanto, o cuidado de doentes estava, em boa parte, entregue a ordens religiosas, que administravam inclusive o hospital, instituição que o cristianismo desenvolveu muito, não como um lugar de cura, mas de abrigo e de conforto para os doentes. Todavia, as ideias hipocráticas ainda se mantinham de pé, através da temperança no comer e no beber, na contenção sexual e no controle das paixões. Procurava-se evitar o “contra naturam vivere”, isto é, “viver contra a natureza”. O advento da modernidade mudará essa concepção religiosa, SCLIAR, 2007. 

Ainda na Idade Média, não há como deixar de mencionar o trabalho do suíço Paracelsus (1493-1541), que afirmava que as doenças eram provocadas por agentes externos ao organismo. Naquela época, e acompanhando a alquimia, a química como ciência começava a se desenvolver e influenciava a medicina. Paracelsus afirmava que, se os processos que ocorrem no corpo humano são químicos, os melhores remédios para expulsar a doença seriam também químicos, e passou então a administrar aos doentes pequenas doses de minerais e metais, notadamente o mercúrio, empregado no tratamento da sífilis, doença que, em função da liberalização sexual, se tinha tornado epidêmica na Europa, conforme SCLIAR, 2007.

Com o advento do microscópio e com ele as descobertas da patogenia através de Louis Pasteur, o percurso saúde-doença transforma-se. BRASIL, et. al., 2020, e BRASIL 2009, afirmam que Louis Pasteur, que nasceu no início do século XIX, um período bastante fértil para as Ciências, principalmente as Biológicas. Esses autores comentam ainda que foi nesse período em que se iniciou a construção da chamada Ciência Moderna remonta ao século XV, à Renascença e o surgimento de novas ideias se contrapondo ao Período Medieval. Historiadores como John D. Bernal dividem aquele período inicial em três fases: a primeira vai de 1440 a 1540, a segunda de 1540 a 1650 e a terceira de 1650 a 1690. Depois, inicia-se o período dos séculos XVIII e XIX, que Bernal considera de florescimento industrial e de grandes conquistas tecnológicas e científicas que deram formato ao mundo moderno atual, assim afirmam BRASIL, et. al., 2020, e BRASIL, 2009.

Esses autores comentam que a caracterização desses períodos citados por Bernal define o longo processo que vai da transição da Era Medieval ao Período Moderno. Marcam essa transição, econômica e socialmente, o início das grandes navegações, a ascensão das cidades, intenso câmbio comercial, o florescimento e fortalecimento da classe burguesa e do capitalismo, e grandes modificações na produção manufatureira, a utilização do carvão vegetal para a produção de aço em larga escala. Historiadores como Brasil, FABERGE & IBAÑEZ, 2020, afirmam que “a procura por uma alternativa energética levou o carvão mineral e a antiga atividade carvoeira familiar e restrita à substituição por grandes empreendimentos mineradores”. Com o passar do tempo, houve a introdução da máquina à vapor, um dos fatores importantes para a Revolução Industrial que alteraria e aprofundaria as mudanças econômicas e sociais dos séculos XIX e XX. Nesses tempos, o modelo biomédico se estabelece, a visão da doença é radicalmente pensada a partir de elementos como anatomia e bacteriologia.   

2. A espiritualidade, a religião e a saúde no pós-guerra.

O século XX foi marcado por dois grandes conflitos mundiais, nos quais centenas de milhares de vidas foram dizimadas, de maneira bárbara e atroz, a primeira e a segunda guerra mundial. Após esses conflitos a saúde, como também a economia e a política, passou a ser vista a partir de uma internacionalização. O que atinge uma nação, passa a atingir a todas, e os blocos econômicos e de saúde passaram a ser organizados, com vistas ao enfrentamento das crises internacionais. 

A palavra de ordem nesse período é multilateralismo. O conceito mais simples de multilateralismo é aquele que aponta para união entre várias nações cooperando, através de ações conjuntas, com políticas que beneficiam o bloco, contando ou não com a participação da iniciativa privada. No unilateralismo apenas um país busca o seu interesse internacional. No bilateralismo, dois países estão envolvidos na busca de seus interesses. No multilateralismo, vários países se unem em prol de interesses comuns, e a promoção da saúde, por exemplo, é um desses objetivos. 

Não obstante, ALMEIDA & PIRES CAMPOS, 2023,  pensam que, conquanto a tendência de multilateralismo haja entre as nações, ainda persiste a tendência na direção de constituir um império ou Estado universal, que, geralmente, que não tem interesse colaborativo e que se impõe aos demais Estados nacionais; há uma resistência, ou recusa dos demais Estados, em aceitar imposições que ameacem sua soberania. Sendo assim, esse longo processo histórico, marcado por guerras, mudanças na condução hegemônica mundial, revoluções e movimentos antissistêmicos, crescentemente transnacionais, a partir dos estudos de ALMEIDA & PIRES CAMPOS, (2023, p. 15). 

Logo após as tragédias das guerras, fundamentalmente após a segunda guerra, e nesse contexto mundial, a Organização Mundial de Saúde (WHO), ligada a Organização das Nações Unidas (1946), sugerem o conceito de saúde ampliado, com a visão voltada ao não comprometimento da doença no organismo pela inexistência de sintomas fisiológicos, mas, entendendo saúde como um completo bem-estar físico, psicológico e social, surgindo assim o conceito biopsicossocial dos processos de saúde e doença, conforme o autor STRAUB, 2014. Correlatamente, a espiritualidade e a religião são processos inerentes ao psiquismo que repercute no social, trazendo condições desse bem-estar se tornar desencadeador de processos de saúde.

Dessa forma, nos estudos científicos que consideram a saúde do ser humano, as dimensões da espiritualidade e da religião estão presentes, e possui ampla conexão, sendo consideradas já há algum tempo, e sendo cada dia mais frequente na literatura acadêmica, segundo CUNHA & SCORSOLINI-COMIN, 2019, apesar das especificidades de cada uma das noções – religiosidade e espiritualidade –, e das tensões epistemológicas muitas vezes presentes entre a Psicologia da Espiritualidade e a Psicologia da Religião, conforme FREITAS, 2022; DALGALARRONDO, 2019.

Ciências, como a psicologia, possui o desafio de relacionar os conceitos de espiritualidade e religião, dialogando com os processos de saúde, mormente, a saúde mental. Essa rede conceitual, embora conectados entre si, mas, possuindo muitos conceitos distintos, ainda necessitam de um consenso no campo nas interdisciplinaridades. Será que consenso virá um dia, haja visto a complexidade do ser humano?  Contudo, esforços têm sido feitos para que esses estudos se relacionem cada vez mais, autores como FORTI, et. al,, 2020; INOUE & VECINA, 2017 e  BORGES, et. al., 2013, comentam que por vezes, alguns estudiosos utilizam os termos espiritualidade e religiosidade combinadamente, assumindo a complexidade dessas noções e das variadas definições disponíveis na literatura, de acordo com CUNHA & SCORSOLINI-COMIN, 2019.

3. Espiritualidade, religião e saúde, diálogos possíveis e interfaces necessárias.

Estudos diversos e multifacetados vêm evidenciando a importância da espiritualidade e/ou religiosidade na vida dos pacientes, conforme visto em INOUE & VECINA, 2017. A qualidade de vida, o tempo de sobrevida e o tempo de internação, evidenciam que um maior envolvimento religioso e espiritual do sujeito se relaciona positivamente com o bem-estar psicológico, alegria, satisfação com a vida, maior expectativa de vida, melhor saúde e menor ansiedade e depressão, segundo FERREIRA, et., al., 2018,  INOUE & VECINA, 2017,  e BORGES, et.al., 2013. 

O conceito de espiritualidade possui pelo menos dois pontos de vistas FORTI, et. al., 2020; PEÇANHA & ANDRADE, 2009,. No primeiro deles, afirmam esses autores, a espiritualidade é entendida como uma busca pelo significado da vida e o relacionamento com o sagrado/transcendente. Já no segundo olhar, a espiritualidade se refere a manifestações humanas que buscam a superação de si, ou de obstáculos, no qual não há necessariamente uma ligação com o sagrado. 

Na compreensão de LUCCHETTI, et., al., 2011, a espiritualidade é uma busca pessoal de compreensão das questões existenciais humanas, como o sentido da vida, e da morte, bem como de suas relações com o sagrado/transcendente, sendo que esse processo não está necessariamente relacionado com práticas religiosas. Esses autores afirmam que a espiritualidade pode ser compreendida como o “coração e alma” da religião, podendo ser expressa fora, por exemplo, na fé pessoal e por aqueles que não são formalmente religiosos. Religiosidade é entendida como extensão na qual um indivíduo acredita, seguindo e praticando uma religião, essa religiosidade pode ser organizacional, participação no templo religioso, ou não organizacional, ligado a uma prática, como rezar, ler livros, assistir programas religiosos de televisão, por exemplos nos autores FORTI, et. al., 2020; LUCCHETTI, et. al., 2011; PEÇANHA & ANDRADE, 2009).

Em 2016, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP, visando a ampliar o debate entre espiritualidade e religião, e divulgar pesquisas conduzidas nessa interface, divulgou a coleção “Psicologia, laicidade e as relações com a religião e a espiritualidade”. Essa publicação, fruto de diversos debates organizados e fomentados pelo CRP-SP, apresenta a necessidade de promover uma formação e discussão mais adequadas dos profissionais de psicologia quanto ao tema, porque se entendeu na época que os profissionais da psicologia possuíam uma formação não abrangente no que tange a essa temática, a partir de CUNHA & SCORSOLINI-COMIN, 2019. 

Esses autores, corroborados pelos estudos de FREITAS (2022), afirmam que psicólogos recém-formados reconhecem a presença de questões religiosas e espirituais no discurso e na experiência de seus pacientes/clientes, mas se sentem despreparados para lidar com tal realidade, demonstrando receios de virem a incorrer em problemas de cunho ético, denunciando uma lacuna em seus aprendizados.  O Sistema de Conselhos de Psicologia reconhece a importância dessa dimensão na constituição de subjetividades, em que se faz fundamental o estabelecimento de um diálogo entre os conhecimentos acumulados pela religiosidade e espiritualidade e pela psicologia, possibilitando maior conhecimento das interfaces estabelecidas entre elas, (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013).

O CFP confirma a laicidade do estado democrático de direito, confirmando a necessidade de mantê-lo dessa forma, para que seja assegurado a todos e a todas o direito de exercer a sua religião e a sua liberdade plenamente. Todavia, afirma o CRP (2013), pautar-se na obrigatória laicidade não implica negar uma interface que pode ser estabelecida pela psicologia e a religião, e pela psicologia e a espiritualidade.

A laicidade do Estado deve ser entendida como princípio pétreo, jamais pode ser colocada em questão, pois é sob essa base, segura e inquestionável, que se assenta a igualdade de direitos aos diversos segmentos da população brasileira, cuja extraordinária diversidade cultural e religiosa, uma das maiores do planeta, constitui um formidável potencial para resolução de inúmeros problemas da sociedade contemporânea … afirmar que o Estado é laico não implica alegar que o povo deva ser desprovido de espiritualidade e da prática religiosa. No Brasil, como se sabe, o povo experimenta forte sentimento de religiosidade, expresso por meio de múltiplas formas de adesão religiosa, dadas as suas raízes indígenas, europeias e africanas, a cujas determinações culturais e religiosas se associaram outras, advindas do continente asiático. São exatamente os princípios constitucionalmente assegurados que permitiram a ampliação das denominações religiosas, hoje presentes na cultura nacional, e concederam aos cidadãos brasileiros o direito de declararem-se não adeptos de qualquer religião. Afirma-se, portanto, e, antes de tudo, o “direito à liberdade de consciência e de crença”, (CRP, 2013). 

Ao fazer as afirmações citadas, o CFP reconhece a importância da religião, da religiosidade e da espiritualidade na constituição de subjetividades, particularmente num país com as especificidades do Brasil. O Sistema Conselhos compreende que tanto a religião quanto a psicologia transitam num campo comum, qual seja, o da produção de subjetividades, entendendo ser fundamental o estabelecimento de um diálogo entre esses conhecimentos. Este fator requer da Psicologia toda cautela para que seus conhecimentos, fundamentados na laicidade da ciência, não se confundam com os conhecimentos dogmáticos da religião. Reconhece ainda que toda religião tem uma dimensão psicológica e que, apesar da psicologia poder ter uma dimensão espiritual, ela não tem uma dimensão religiosa, o que remete à necessidade de aprofundar-se o debate da interface da psicologia com a espiritualidade e os saberes tradicionais e populares, além de buscar compreender como a religião se utiliza da psicologia.

Uma outra interface possível e necessária é perceber como a espiritualidade e a religião, quando bem relacionadas e conectadas com a saúde humana, podem promover boa qualidade de vida.  Nesse sentido, vale lembrar o Relatório ou Informe Lalonde, em 1974, no Canadá, como afirmam CASTRO & PENIDO, 2019. Pela primeira vez é utilizado o termo “promoção da saúde”, a partir dos constructos de TEO, & MATTIA, 2021.

O informe Lalonde de saúde foi originado a partir da visão do ministro da saúde do Canadá na época, Marc Lalonde, ele propôs uma nova perspectiva de saúde para o povo canadense.  Tal informe é considerado o primeiro relatório governamental moderno no mundo ocidental a reconhecer que a ênfase em assistência médica centrado no ponto de vista biomédico é errado, e que se faz  necessário transpor o olhar para além do sistema tradicional de saúde, se o objetivo é melhorar a saúde do público, pois o sistema tradicional de saúde enfatiza apenas o tratamento dos doentes,  seguindo as construções de CASTRO & PENIDO, 2019; SILVA, et. al., 2014. 

Esses autores afirmam que naquela reunião no Canadá foram propostos quatro determinantes envolvidos nos processos saúde-doença dos indivíduos: ambiente, estilo de vida, genética e serviços de saúde. Lalonde enfocou que cada indivíduo deveria mudar seu comportamento e estilo de vida para melhorar a sua saúde. O informe Lalonde corroborou com o conceito de saúde que a Organização Mundial de Saúde já havia concebido desde a década de 1946, quando afirmou que “saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de uma doença ou enfermidade”, (WHO).

Considerações finais

A saúde é afetada pelas convicções religiosas e de espiritualidade dos indivíduos, MONTEIRO, et., al., 2020, porque o que constitui o humano é um todo indivisível e sem compartimentalizações, como defende a abordagem gestáltica (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1969, como citado em CARDOSO & PEREIRA & SALLES, 2022). Para esses autores, o organismo ou ambiente humano naturalmente não é apenas físico, mas social.  Sendo assim, em qualquer estudo de ciências do homem, tais como fisiologia humana, psicologia ou psicoterapia, temos de falar de um campo no qual interagem pelo menos fatores socioculturais, e a espiritualidade e religiosidade está inserida, assim como animais e físicos.

A revisão bibliográfica baseada nos autores citados aqui demonstrou que, através da elaboração do conceito e do entendimento da saúde como biopsicossocial, completo bem-estar físico, psíquico e social, e nesse social acrescenta-se o espiritual e o religioso, entendido os dois conceitos como diferentes, mas interligados, amplia-se, consideravelmente os conceitos de saúde-doença. Promoção da saúde, prevenção e tratamento de doenças e, sobretudo, esforços da parte de autoridades governamentais se faz necessário para que, de maneira profunda e participativa, os seres humanos no planeta possua uma qualidade de vida cada vez maior. Esforços multilaterais e verdadeiros precisam ser buscados.

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5Os cinco primeiros livros da Bíblia hebraica são denominados Pentateucos – significa cinco livros da Lei. Eles se referem aos rituais e cerimônias religiosas do povo judeu nos primórdios de sua civilização. Nesse período, religião e sociedade estavam ligados indissociavelmente, e as doenças, como a sua cura, estavam conectadas à processos religiosos e rituais sacerdotais.


1Teólogo e Psicólogo. Mestre em Saúde Coletiva. Aluno de Doutorado do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Saúde na Universidade Metodista de São Paulo. Bolsista CAPES/PROSUP

2Enfermeira. Especialista em Saúde Pública. Mestre em Saúde Coletiva. Docente na Faculdade Anhanguera de Sumaré

3Comunicóloga. Mestre em Comunicação. Aluna de Doutorado no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Saúde na Universidade Metodista de São Paulo. Bolsista CAPES/PROSUP

4Psicóloga. Doutora em Ciência da Saúde. Docente no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Saúde na Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo, SP. Docente da Universidade de Taubaté, UNITAU, Taubaté, SP