A REPRESENTAÇÃO DA DECOLONIALIDADE E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA DE TONI MORRISON, NA OBRA O OLHO MAIS AZUL (2019)

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7630103


Renata Lourdes Linhares Severiano1
Sebastião Marques Cardoso2


O presente artigo é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento, sob orientação do professor Sebastião Marques Cardoso  (do Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL/ UERN/ DINTER IF Sertão-PE) objetivando discorrer acerca da temática que envolve as questões de raça e etnia na crítica literária feminista de autoria negra, à luz do romance O Olho Mais Azul (2019), de Toni Morrison. Contudo, é importante salientarmos que a publicação original da obra em língua inglesa se deu em 1970, porém, mencionaremos neste artigo a datada de 2019, ano em que foi traduzida para a língua portuguesa.

Para tanto, buscamos aporte teórico em hooks (2019), Fanon (2008), Bento (2020), Kilomba (2019), Lugones (2020), entre outras e outros, para identificar como se configura a conexão entre a colonialidade do poder e as práticas de opressão, tendo o gênero e a raça como fatores que potencializam a discriminação entre pessoas.  Desse modo, se faz relevante entender como o termo colonialismo se originou a partir de ações de um grupo dominante em uma determinada sociedade, e ainda, como o termo decolonialismo surge para questionar as estruturas e desigualdades entre classes, gênero e raça. Portanto, trazemos o pensamento de Lugones (2020) ao afirmar que:

Colonialidade não se refere apenas à classificação racial. Ela é um fenômeno mais amplo, um dos eixos do sistema de poder e, como tal, atravessa o controle do acesso ao sexo, a autoridade coletiva, o trabalho e a subjetividade/intersubjetividade, e atravessa também a produção de conhecimento a partir do próprio interior dessas reações intersubjetivas (LUGONES, 2020, p. 50).

No entanto, se apropriar do significado da decolonialidade é fundamental para compreender as narrativas do pensamento feminista na crítica literária de autoria negra. Isto porque, uma das marcas fundantes dessa escrita é imprimir uma denúncia social através da literatura, de forma que rompa aquilo que ainda permanece vigente nas sociedades pós-coloniais.

A descolonização continua a ser um ato de confrontação com um sistema de pensamento hegemônico; é, consequentemente, um imenso processo de liberação histórica e cultural. Como tal, a descolonização se torna a contestação de todas as formas e estruturas dominantes, sejam elas linguísticas, discursivas ou ideológicas. Ademais, a descolonização passou a ser entendida como um ato de exorcismo tanto para o colonizado quanto para o colonizador. Para os dois lados, deve ser um processo de libertação: da dependência, no caso do colonizado, e, por parte do colonizador, das percepções, instituições e representações imperialistas e racistas, que, infelizmente, permanecem conosco quando é compreendida como um processo complexo que envolve ambos, o colonizador e o colonizado (MEHRZ, 1991, p. 258). 

Daí a importância do diálogo entre os estudos literários e a crítica literária feminista a partir de uma escrita na perspectiva decolonial, a fim de compreender como a sociedade global se organiza sob um grupo dominante que impõe uma cultural dita como “universal”. Assim, é possível elucidarmos uma análise de como a decolonialidade se entrelaça com o que propõe a literatura de autoria feminina negra, uma vez que este é um campo que possibilidade catarse, levando à uma ação reflexiva que questiona a realidade de forma crítica, afetando a sociedade na construção de conhecimentos sob diversas maneiras.

Desse modo, a decolonialidade pode ser designada como a luta contra a lógica opressora da colonialidade e seus  efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos. Em relação à colonialidade do Poder, “intersecção entre as opressões” (Quijano, 1997), podemos apontar a colonização enquanto produto de um longo processo de colonialidade que continua replicando os modelos de produção capitalista dentro das lógicas econômicas, políticas, sociais, culturais, e de existências, estas, silenciadas pelos colonizadores.

As análises feministas da situação da mulher tendem a focar exclusivamente no gênero, se abstendo de fornecer um alicerce para a edificação de uma teoria feminista. Refletem a tendência dominante nas mentes patriarcais do Ocidente a mistificar a realidade da mulher, na medida em que insistem na tese de que o gênero é o único fator determinante de seu destino (hooks, 2019, p. 45).

No entanto, a escrita feminista decolonial se alicerça na contramão do que está posto pelo cânone tradicional e pelas epistemologias europeias, a fim de quebrar tais paradigmas, tendo em vista que denuncia as desigualdades sociais e a colonialidade do poder enquanto partes integrantes do racismo estrutural. 

Esse entendimento se dá sob a ótica de a colonialidade acarretar um problema que é política, cujo se manifesta através da superioridade na teoria do conhecimento (epistemologia). Seguindo essa ótica, o pensamento decolonial se mostra no campo literário ao reivindicar espaço em um mecanismo de desconstruir as perpectivas hegemônicas e estereotipadas acerca dos povos afrodescentes, sobretudo, na quebra da ideia de subalternidade imposta à mulher negra, sejam elas as personagens ou a sujeita enunciativa. 

Por esta razão, a crítica feminista literária, sobretudo escrita por mulheres negras, enfatiza em suas análises a movimentação nas posições dos saberes, pois as populações negras, até então apagadas intelectualmente, agora se deslocam do objeto de estudo para sujeito que produz o conhecimento, não sendo mais escrita por terceiros, prática esta que reforça e evidencia a dominação dos sistema político econômico histórico e cultural nas sociedades.

Neste viés, trazemos o pensamento de Kilomba (2019) quando afirma o racismo enquanto uma “realidade violenta, que silenciou durante muitos anos as vozes que tentam contestá-lo”, fazendo compreender a necessidade de de dar voz a essas e esses sujeitos vítimas dessa opressão que viola dos direitos, os corpos e as subjetividades das pessoas negras.

Contudo, ressaltamos que o cânone “universal” (de caráter elitista, branco e heteromativo) não se encontra no apagamento, porém, essa ruptura pela crítica literária decolonial sugere releituras que possibilitem novas interpretações e possibilite interpretações sob várias nuances, de forma que venha a contribuir para um modelo de literatura mundial. 

Além disso, é possível entendermos a concepção que o feminismo universal eurocentrado é visto como uma opressão que converge com as práticas patriarcalistas branca, as quais se pautam na autoridade e na colonialidade de poderes e saberes. Por isso a necessidade de repensar a crítica feminista no campo da produção e do conhecimento pelo viés da interseccionalidade, para um entendimento acerca das questões consolidadas por uma determinada categoria de mulheres na comunidade acadêmica feminista. Assim, Lugones (2020) relata que:

O sistema de gênero moderno afeta as interpretações, teorizações, investigações, metodologias e muitas das práticas políticas do feminismo, reproduzindo assim, o racismo e a colonização bem como suas formas de opressão (LUGONES, 2020, p. 62). 

Partindo desse entendimento, é perceptível que o pensamento feminista na autoria negra contesta a colonialidade na escrita literária, sugerindo a existência de outras verdades que estão alinhadas com a realidade das  mulheres negras, apontando subjetividades que pertecem somente a este grupo de mulheres, nunca tentativa de trazê-las da margem para o centro das análises.  

Abordo o pensamento feminista negro como parte de um contexto de dominação, não como um sistema de ideias desligado da realidade político-econômica. Ademais, apresento o pensamento feminista negro como um conhecimento subjugado por meio do qual as afroamericanas há muito tempo buscam encontrar espaços e epistemologias alternativas para validar nossas autodefinições (COLLINS, 2019, p. 429).  

Ademais, as reivindicações postas através da crítica literária decolonial se faz pela necessidade de romper com os silêncios e de recuperar vozes que foram  secularmente apagadas. Com isso, apontamos a autora afro-estadunidense Toni Morrison (1931-2019), uma professora; editora; e escritora, e também primeira mulher negra a ganhar a honraria do Prêmio Nobel de  Literatura em 1993. 

As obras de Morrison denunciam de forma peculiar a segregação racial e as desigualdades sociais existentes nos Estados Unidos, de forma a trazer à baila a discussão  sobre os ínumeros e variados traumas que o processo de escravizar seres humanos que deixou para as populações negras. Contudo, a autora também é insubmissão nas suas escritas ao revelar como se manifestam as formas de resistência dessa cultural colonial. 

Em sua obra O Olho Mais Azul (2019), a autora narra a dolorosa e surpreendente história de Pecola Breedlove, uma criança de 10 anos de idade, preta retinta e pobre, que é renegada em todas as suas relações, em todos as esferas da vida, sobretudo pelo conceito de beleza eurocêntrico normativo, e por isso ela sonha em possuir os traços fenotípicos da população branca e ter olhos azuis, razão pela qual culmina em uma loucura psicossocial, ao buscar se encaixar nos padrões de beleza ditados pela cultura colonizadora.  

Toda noite, sem falta, ela rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente. Embora um tanto desanimada, não tinha perdido a esperança. Levaria muito, muito tempo para que uma coisa maravilhosa como aquela acontecesse. Lançada dessa maneira na convicção de que só um milagre poderia socorrê-la, ela jamais conheceria a própria beleza. Veria apenas o que havia para ver: os olhos das outras pessoas. (MORRISON, 2019, p. 50).

Seguindo essa linha de pensamento, a narrativa de Toni Morrison configura-se, pois, num panorama de leitura crítica acerca dos modelos estabelecidos pelo colonialismo, e busca promover reais mudanças nas relações política-social-econômica e cultural. 

Entretanto, na concepção de Fanon (2008), o comportamento dessa busca incessante de Pecola por se distanciar da sua identidade ancestral desde os traços fenotípicos, é:  

A consciência moral supõe uma espécie de cisão, uma ruptura da consciência, com uma parte clara que se opõe a uma parte sombria. Para que haja moral é preciso que desapareça da consciência o negro, o obscuro, o preto. Então o preto, em todos os momentos, combate a própria imagem. (FANON, 2008, p. 163).

É neste viés que a autora constrói a obsessão de Pecola em possuir olhos azuis iguais aos das meninas brancas e loiras, adoradas e padronizadas pelos canais midiáticos nos Estados Unidos no início do século XX, visto que a sua condição de preta retinta sempre esteja associada àquilo que não é bom, bonito e aceito. 

Portanto, Pecola é relembrada o tempo todo em sua trajetória de vida, em todos os espaços que Pecola circula, e por  todas as pessoas que estão no seu entorno, incluindo sua mãe, a Sra. Pauline Breedlove – cuja imprime demonstrações de afeto para a garotinha branca filha dos seus padrões, enquanto renega tal sentimento à própria filha preta retinta. 

Na bancada perto do fogão, numa fôrma prateada, havia uma torta de mirtilos, o sumo violeta saindo aqui e ali através da crosta. Chegamos mais perto. “Ainda está quente”, disse Frieda. Pecola esticou a mão para tocar a fôrma, de leve, para ver se estava quente. “Polly, vem cá”, chamou a garotinha. Pode ter sido nervosismo ou falta de jeito, mas a fôrma virou sob os dedos de Pecola e caiu no chão, espalhando mirtilos por todo lado. A maior parte do sumo espirrou nas pernas de Pecola, e a queimadura deve ter doído, pois ela gritou e começou a dar pulos, bem na hora em que a Sra. Breedlove entrou com uma sacola lotada de roupa lavada. Avançou a galope para cima de Pecola e, com as costas da mão, derrubou-a no chão. Pecola escorregou no sumo da torta, uma perna dobrando-se sob seu corpo. A Sra. Breedlove puxou-a por um braço, ergueu-a do chão, tornou a esbofeteá-la, e, numa voz aguda de raiva, passou uma descompostura em Pecola e, indiretamente, em Frieda e em mim. “Sua louca… o meu chão, sujeira… olhe o que você…trabalho… saia daqui agora isso… maluca… o meu chão, o meu chão… o meu chão.” As palavras eram mais quentes e escuras do que os mirtilos fumegantes, e recuamos, apavoradas. A garotinha de rosa começou a chorar. A Sra. Breedlove virou-se para ela. “Não, meu bem, não. Vem cá. Ah, meu Deus, olhe o seu vestido. Pare de chorar. A Polly vai trocar o seu vestido.” Foi até a pia, abriu a torneira e molhou uma toalha limpa. Por cima do ombro, cuspiu palavras na nossa direção como se fossem pedaços de maçã podre. “Pegue essa roupa e suma daqui para eu poder limpar essa sujeira.” Pecola pegou a sacola de lavanderia, pesada com a roupa úmida, e saímos às pressas. Enquanto Pecola punha a sacola no carrinho, ouvíamos a Sra. Breedlove acalmando a garotinha loira de rosa e fazendo-a parar de chorar. “Quem eram elas, Polly?” “Não se preocupe. Ninguém, meu bem.” “Você vai fazer outra torta?” “Claro que vou.” “Quem eram elas, Polly?” “Quietinha. Não se preocupe. Não eram ninguém”, sussurrou, e o mel de suas palavras complementou o pôr do sol que se derramava sobre o lago. (MORRISON, 2019, p. 109-111).

Assim, a crítica decolonial nesta obra se encontra na possibilidade de uma análise acerca de como estão representadas as práticas de afetividade e preferenciamento a partir dos estereótipos, visto que todos os sujeitos que compõem o grupo étnico branco são aqueles reforçados de forma positiva através de experiências dignas de serem amadas, enquanto o mesmo não acontece com os sujeitos que compõem o grupo étnico negro, pois, historicamente foi determinado pela cultura dominante branca que as pessoas pretas não carregam tais atributos.

Tinha ocorrido a Pecola, havia algum tempo, que, se os seus olhos, aqueles olhos que retinham as imagens e conheciam as cenas, fossem diferentes, ou seja, bonitos, ela seria diferente. Tinha bons dentes, e o nariz, pelo menos, não era grande e chato como o de algumas garotas que eram consideradas tão bonitinhas. Se tivesse outra aparência, se fosse bonita, talvez Cholly fosse diferente, e a sra. Breedlove também. Talvez eles dissessem: “Ora, vejam que olhos bonitos os da Pecola. Não devemos fazer coisas ruins na frente desses olhos bonitos” (MORRISON, 2019, p. 49).

Daí a importância de um texto literário não ser lido de forma isolada, ou dentro de uma concepção homogênea, pois este se relaciona com diversos elementos que envolve a cultura, o sistema político, os modelos econômicos, entre outros,  do contexto o qual foi escrito. 

Dessa maneira, no campo dos Estudos Literários, sobretudo a partir do século XX, com o advento dos estudos acerca das questões relativas à crítica ao poder colonial, foi lançada uma vertente ampla no tocante ao entendimento embrionário de como ocorreram as discriminações, e da necessidade deste campo de atuação na literatura. Com isso, consideramos não ser possível se pensar o texto literário como uma leitura , pois se correlaciona com inúmeros aspectos e elementos do contexto a qual foi escrita.

Ainda, é possível  a observância que a escrita de Morrison, com frequência, estabelece  a decolonialidade na literatura quando reforça que a supremacia branca nega às mulheres negras um espaço político de reivindicações sociais, por representar o poder que é impresso nas sociedades.  Nesse sentido, a autora  discorre dentro dos estudos literários possibilitando as/os leitoras/es uma interpretação que difere do discurso oferecido pelo cânone tradicional, principlamente, sobre o lugar agora ocupado por intelectuais negras, que por sua vez, constroem as subjetividades das personagens negras a partir dos seus lugares de fala.

Diante do exposto, a crítica literária de Toni Morrison na obra O Olho mais Azul  (2019) é considerada como uma manifestação social e política, pois se difere por não narrar as mulheres negras apenas como objetos representativos, subservientes e subjugados, mas por escrever mulheres negras a partir das vivências e experiências  que são subjetivas somente à essas mulheres. 

Referências bibliográficas:

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Trad. Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.

hooks, bell. Teoria feminista: da margem ao centro. Tradução Rainer Patriota. São       Paulo: Perspectiva, 2019.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Fator, 2008.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

LUGONES, María. Colonialidade e gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar: 2020. p. 53-54).

MEHREZ, Samia. The Subversive Poetics of Radical Bilingualism: Postcolonial Francophone North African Literature. In D. LaCapra (Org.), The Bounds of Race: Perspectives on Hegemony and Resistance (pp. 255–277). Cornell University Press, 1991. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/10.7591/j.ctv3s8q2p.13>. Acesso em: 31 de janeiro de 2023. 

MORRISON, Toni. O olho mais azul. Trad. Manoel Paulo Ferreira. 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en América Latina. Anuario Mariateguiano, Vol. IX, Nº 9, 1997.


1Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte – UERN- Campus Paus dos Ferros.

2Pós-doutor em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo – USP