COMO A GAMEFICAÇÃO PODE AUXILIAR NA REABILITAÇÃO COGNITIVA DE PACIENTES PÓS COVID? 

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7582014


Vinicius Louzada de Souza1


Mesmo que ainda seja desafiador detalhar a associação entre a COVID-19 e o sistema nervoso central, diversos estudos apontam que a COVID possui sequelas não apenas respiratórias, mas também cognitivas, tais como: falta de memória e dificuldade de concentração e aprendizado, estresse, ansiedade, confusão mental, dentre outras, mesmo após recuperação. 

Nos últimos anos, o setor de saúde tem sido impulsionado pelo surgimento, cada vez mais veloz, de novas tecnologias, que estão revolucionando o cenário da medicina. Destaca-se, neste cenário, o uso cada vez mais frequente de computadores em diversas áreas, desde testes de diagnósticos e procedimentos cirúrgicos até tratamentos de reabilitação cognitiva e neuropsicológica. 

Especificamente para tratamentos de reabilitação cognitiva e /ou neuropsicológica, verifica-se a existência de uma variada gama de softwares, que vão desde simples programas, que atuam no tratamento de uma única função, até propostas mais sofisticadas, que se apoiam em tecnologias promissoras, como as realidades virtual e aumentada. 

Embora a tecnologia computacional seja um instrumento adequado para auxiliar no tratamentos de reabilitação cognitiva, uma vez que possui ferramentas que representam situações cotidianas, não acessíveis no formato impresso, e facilita exercícios interativos, o uso dessa tecnologia sofre de problemas recorrentes como, por exemplo, a falta de motivação e engajamento do paciente em relação ao tratamento e a dificuldade de incorporar os exercícios de treinamento a sua rotina diária, o que acaba gerando uma inconstância na sua execução e dificultando ainda mais o processo de reabilitação. 

Desta forma, é necessário melhorar e aprimorar os métodos de tratamento, a fim de criar uma experiência capaz de satisfazer o paciente e de mantê-lo motivado e engajado durante todo o tratamento, visando maximizar os resultados.

Covid-19 e sequelas cognitivas 

Após mais de dois anos desde o início da pandemia, estudos mostram que a doença não se encerra ao fim da fase aguda da infecção pelo coronavírus. A OMS (Organização Mundial da Saúde) estima que de 10% a 20% dos pacientes considerados curados da COVID-19, podem apresentar alterações no organismo que os levam a desenvolver a chamada Covid longa ou Long Covid, com sintomas que permanecem ou aparecem pela primeira vez 3 meses depois da infecção, afetando sua qualidade de vida (OMS, 2022; DAVIS et al, 2020). 

Entre os sintomas mais conhecidos e relatados pelos pacientes estão: fadiga, cansaço, falta de ar e disfunções cognitivas e psiquiátricas. 

O comprometimento cognitivo está entre os sintomas mais comuns e debilitantes da síndrome após 12 semanas da infecção pelo COVID-19. Os mais relatados prejuízos cognitivos provocados pela Covid Longa são: problemas de memória, dificuldade de concentração e atenção, derrubar objetos (percepção espacial), resolução de problemas, estresse, confusão mental, entre outros.(BECKER et al, 2021). 

É importante a identificação desses sintomas para que seja possível o tratamento, e assim proporcionar uma melhora na funcionalidade e na capacidade cognitiva das pessoas afetadas.

Processos cognitivos 

Processos cognitivos podem ser entendidos como os procedimentos que são utilizados para adquirir novos conhecimentos, para posteriormente tomar decisões baseadas nesses conhecimentos. 

Como dito por Gazzaniga e Heatherton (2005), existe uma complexa coleção de funções mentais que desempenham um importante papel nesses processos. Dentro desta coleção, podemos destacar as seguintes funções, dadas como as funções cognitivas básicas: 

• Percepção: A percepção cognitiva é a função que nos permite organizar e entender o mundo através de diferentes estímulos que recebemos dos nossos sentidos, como visão, audição, paladar, tato e etc. Enquanto a grande maioria das pessoas possui conhecimento sobre os sentidos mais básicos, existem muitos outros, menos conhecidos, como a propriocepção (sentido responsável por perceber inconscientemente nossa posição no espaço e determinar nossa orientação espacial) e a intercepção (a percepção dos órgãos no corpo). 

• Atenção: A atenção é o processo cognitivo responsável por permitir que nos concentremos em um determinado estímulo ou acontecimento, para poder processá-lo com mais cuidado e mais profundamente em outro momento. A atenção é uma das funções cognitivas mais fundamentais para o desenvolvimento de situações cotidianas do dia-a-dia. 

• Memória: A memória é a função cognitiva que nos torna aptos a codificar, armazenar e recuperar informações do passado, através de mecanismos de busca e reativação. É um processo básico e necessário para a aprendizagem, visto que nos permite criar um sentido de identidade. Hoje temos o conhecimento sobre diversos tipos de memória, tais como a de curto prazo, longo prazo, auditiva, reconhecimento, entre outras. 

• Pensamento: O pensamento é peça fundamental para todos os outros processos cognitivos. É através dele que somos capazes de integrar todas as informações recebidas e estabelecer relações entre acontecimentos e nosso conhecimento. Para isso, é utilizado de algumas funções executivas, como o raciocínio, a síntese e a resolução de problemas.

• Linguagem: A linguagem é a função responsável por nos permitir expressar e transmitir os nossos pensamentos e sentimentos, através da associação de palavras a significados e conceitos específicos, de forma organizada e combinada. 

• Aprendizagem: A aprendizagem é a função cognitiva que utilizamos para incorporar novos conhecimentos e informações ao nosso conhecimento já adquirido. 

Figura 1: Conexões e dependências entre funções cognitivas (Costa, 1999) 

Após a infecção por COVID-19, um indivíduo pode se tornar deficiente de uma ou algumas destas funções, o que acaba comprometendo o processo cognitivo como um todo. 

Neste contexto, a reabilitação cognitiva é definida por um processo terapêutico que tem como objetivo a recuperação ou estímulo das habilidades funcionais e cognitivas do paciente, ou seja, a reconstrução de seus instrumentos cognitivos, através da “aplicação de procedimentos e utilização de técnicas de apoio para que a pessoa possa retornar de maneira segura, produtiva e independente a suas atividades cotidianas” (Matter, 2003). 

Os processos cognitivos ocorrem constantemente sem que a gente consiga perceber. Por exemplo, ao atravessar a rua, em poucos segundos iniciamos e finalizamos um processo cognitivo, que nos indica que decisão iremos tomar (atravessar ou não). Primeiramente, prestamos atenção ao semáforo, e através da vista determinamos sua cor. Em seguida, através da memória, determinamos se podemos atravessar, de acordo com o significado da respectiva cor. E então, dependendo da cor, tomamos nossa decisão de atravessar ou esperar o semáforo mudar de cor.

Processo de reabilitação cognitiva e recursos informatizados 

Os processos de reabilitação cognitiva devem ser direcionados às mudanças que melhorem as funções mais importantes e críticas para que o indivíduo mantenha sua rotina diária, melhorando assim a sua qualidade de vida. 

Alguns elementos são importantes durante o planejamento, desenvolvimento e avaliação de um programa de reabilitação cognitiva, que vise extrair ao máximo o potencial de um paciente, tais quais: compreender todos os processos que envolvem o dano cerebral e sua evolução, identificar o estilo de vida anterior e realizar uma avaliação completa das capacidades cognitivas preservadas e alteradas, bem como dos recursos humanos, materiais, ambientais e tecnológicos disponíveis para uma estratégia terapêutica (Matter, 2003). 

Para tal, são elaborados exercícios de reabilitação geralmente apoiados por formulários impressos, vídeos, CDs de áudio ou qualquer outro meio capaz de representar situações do cotidiano, nas quais o paciente é incentivado a se concentrar, interagir, raciocinar, tomar decisões, entender o discurso corrente e expressar sentimentos e pensamentos (Andrade, Wazlawick & Mariani, 1999). 

Nesse cenário, desde o final do século XX, os recursos informatizados para a prática de reabilitação vêm ganhando cada vez mais força, apresentando excelentes resultados. A interseção das ciências da computação e informação às ciências sociais e comportamentais busca envolver todos os aspectos relacionados com a interação entre usuários e sistemas, no intuito de fornecer explicações e previsões para fenômenos de interação usuário-sistema e resultados práticos para o projeto da interação (Bertoti & Omar, 2002).

Tecnologias computacionais como parte do processos de reabilitação 

A grande vantagem da utilização de computadores em processos de reabilitação se dá, principalmente, pela capacidade que o computador apresenta de construir e apresentar itens que não são acessíveis no formato impresso, permitindo assim, a estruturação de situações que se assemelham à situações cotidianas da rotina do paciente. 

Algumas outras vantagens são: 

– facilidade na construção de instruções de grande qualidade, visando o aumento da compreensão das tarefas e motivação do paciente; 

– capacidade adaptativa dos sistemas computacionais, permitindo a aplicação de tarefas com níveis de dificuldades correspondentes ao nível de aptidão do paciente; 

– permite uma coleta precisa de variados dados sobre o desempenho do paciente como, por exemplo, o registro do tempo médio de reação, medida fundamental para avaliação de atenção; 

– capacidade de armazenar e processar os dados, com a possibilidade subsequente de uma rápida avaliação e interpretação; 

– permite um feedback objetivo após a conclusão de cada tarefa, além de um feedback global, que permite que o paciente se auto-regule e aumente o nível de investimento referente à sua performance. 

A utilização de sistemas informatizados em processos de reabilitação abre as portas da interação humano-computador e situa, portanto, o computador não como um simples intermediário, mas como um instrumento conceitual novo para formação e aplicação de técnicas de reabilitação (Silva, 2014).

Gameficação 

Considerando que o jogo é uma atividade inerente ao homem e precedente à cultura, entendendo que os seus mecanismos estão presentes na forma de viver e de se relacionar desde o início da civilização, pode-se considerar o próprio ato de viver um jogo, onde cada indivíduo atua no papel de “jogador” da sua respectiva vida. 

Sendo assim, o conceito de Gamificação não pode ser considerado algo novo na sociedade, porém, a criação do termo em si só ocorreu em 2002, pelo consultor britânico Nick Pelling. Segundo Pelling, o termo foi criado com a intenção de ser “deliberadamente feio” e para descrever “a aplicação de interfaces cuja aparência era similar a jogos para tornar transações eletrônicas mais rápidas e confortáveis para o cliente” (Burke, 2015). 

Neste sentido, mesmo o termo “Gameficação” não tendo uma única definição amplamente aceita, é possível caracterizá-lo como o uso de design de experiências digitais e mecânicas de jogos para motivar e engajar as pessoas para que elas atinjam seus objetivos. (Burke, 2015). 

A Gamificação não implica na criação de um jogo para abordar um determinado problema no mundo real, recriando uma situação dentro de um mundo virtual, mas sim em usar as mesmas estratégias, métodos e pensamentos utilizados para resolver problemas semelhantes nos mundos virtuais, em situações do mundo real. 

Como elementos de jogos, é possível citar: o lançamento de desafios, cumprimento de regras, metas claras e bem definidas, efeito surpresa, linearidade dos acontecimentos, sistema de conquistas, estatísticas e gráficos como Feedback, superação de níveis, criação de avatares virtuais, dentre tantos outros, mas a Gamificação não deve ser resumida a aplicação de apenas um ou outro dos elementos supracitados, e sim ser caracterizada a partir da junção desses fatores, a fim de criar algo envolvente que estimule o engajamento dos envolvidos, que façam com que os usuários queiram investir tempo e energia para alcançar metas, progredir, obter recompensas, sentir a emoção de completar um objetivo e obter um feedback, relacionar-se com colegas de time e oponentes a fim de criar um ambiente mais dinâmico no jogo, tudo isso através de uma narrativa coerente de um sistema “gamificado”.

Deste modo, podemos enxergar o conceito de Gamificação como um fenômeno emergente com diversas potencialidades de aplicação, em diversos campos da atividade humana. 

Atualmente, a Gamificação encontra na área da saúde uma área bastante fértil para a sua aplicação, uma vez que pode trazer maior eficiência, facilidade e prazer para os tratamentos.

Referências: 

ALVES, Flora. Gamification: Como criar experiências de aprendizagem engajadoras : um guia completo do conceito à prática. 1.ed. São Paulo: DVS Editora, 2014 

ANDRADE, A.; WAZLAWICK, R.; MARIANI, A. Metodologia para criação de roteiros educativos em realidade virtual. Revista Brasileira de Informática na Educação, v. 1(5), 69-76, 1999 

BECKER, J. H. et al. Assessment of Cognitive Function in Patients After COVID-19Infection. JAMA Netw Open. v. 4, n. 10, pag. E 2130645, 2021. 

BERTOTI, G. A.;OMAR, N. Informática na educação especial: tecnologias, sistemas computacionais e experiências realizadas na reabilitação cognitiva. Anais do XIII Simpósio Brasileiro de Informática na Educação – SBIE – UNISINOS, 2002. 

BURKE, Brian. Gamificar: Como a gamificação motiva as pessoas a fazerem coisas extraordinárias. 1ed, São Paulo, DVS Editora, 2015. 

COSTA, Rosa Maria E.M..; CARVALHO, Luís Alfredo; ARAGON, Doris; 1999, “Ambientes Virtuais na Reabilitação Cognitiva”, II Workshop Brasileiro de Realidade Virtual, Marília, SP, pp. 1 15-126, novembro. 

DAVIS, et al. Characterizing Long COVID in an international cohort: 7 months of symptoms and their impact. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1101/2020.12.24.20248802>. 

Gazzaniga, M.S. & Heatherton,T. F.(2005). Ciência Psicológica: Mente, cérebro e comportamento. Porto Alegre: Artmed. 

MASTROCOLA, Vicente. Ludificador: Um guia de referências para o game designer brasileiro.São Paulo: edição do autor, 2012. 

Matter, C. A. (2003). Introducción a la Rehabilitación cognitive. Avances em Psicologia Clínica Latinoamericana, 21, 11-20. 

MCGONIGAL, J. Realidade em jogo: por que os games nos tornam melhores e como eles podem mudar o mundo. Rio de Janeiro: Best Seller, 2012. 

KAPP, K. M. The gamification of learning and instruction: game-based methods and strategies for training and education. São Francisco: Pfeifer/ASTD, 2012. 

KOSTER, Raph. Theory of Fun for game design. Paraglyph Press: Scottsdale, Arizona, 2012

Silva, Gérson & Silva Santos Neto, Gerson & Jesus, Mariângela & Gaino, Silvana. (2014). Trinta anos de reabilitação cognitiva com o apoio do computador: o que a neuropsicologia tem a dizer?. Revista Brasileira de Computação Aplicada. 6. 2176-6649. 10.5335/ rbca.2014.3259. 

VIANNA, Y et. al. Gamification, Inc. Como reinventar empresas a partir de jogos. 1. ed. Rio de Janeiro: MJV Press, 2013. 


1Formado em Ciência da Computação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)