O NEGRO NAS PROPAGANDAS DO GOVERNO MUNICIPAL DE SÃO LUÍS:DISCURSO, MEMÓRIA E PRODUÇÃO DE IDENTIDADES

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7539137


Paulo Roberto Mourão do Nascimento
Luanna Raquel Ferreira Costa


RESUMO

Análise do lugar do negro nas propagandas da Prefeitura atual da cidade de São Luís. Apresenta-se uma análise de quatro imagens, configuradas em outdoors espalhados pela capital maranhense, no primeiro semestre de 2013, início da administração do Prefeito Edvaldo Holanda Júnior. A temática emerge da observação de que as identidades, na sociedade contemporânea, são negociadas por uma relação de poderes, que elabora o que pode ser e o que deve ser proposto ao sujeito (FOUCAULT, 1999). Os questionamentos que norteiam a pesquisa são: como o negro é retratado nesses anúncios? Quais discursos estão inscritos nessas imagens? De que modo a identidade negra é agenciada nesse espaço discursivo? A que memória e história o negro é associado? O referencial teórico pauta-se em conceitos como os de discurso, heterogeneidade discursiva, e outros, propostos pela Análise de Discurso francesa, de base foucaultiana e também em princípios da Semiologia Histórica (COURTINE, 2011). O texto organiza-se em três seções: na primeira discutem-se algumas questões em torno do lugar do negro no Brasil. Na segunda, apresentam-se elementos teóricos que subsidiarão a análise, na terceira seção analisam-se o lugar do negro no discurso da Prefeitura de São Luís a partir de quatro outdoors. Os resultados demonstram que o negro é destacado em muitas propagandas da Prefeitura de São Luís por esse órgão trazer em suas bases um discurso que busca construir uma nova memória de sociedade, não apenas para os negros da capital, mas para a própria cidade, promovendo a integração do poder com o discurso da diversidade.  

Palavras-chave: Negro, identidade, discurso, Prefeitura de São Luís.

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa avalia o lugar do negro nas mídias da Prefeitura atual da cidade de São Luís (2013). A temática emerge da observação de que as identidades, na sociedade contemporânea, são negociadas por uma relação de poderes, que elabora o que pode ser e o que deve ser proposto ao sujeito (FOUCAULT, 1995). Nesse processo, observa-se uma rede de sentidos produzidos por movimentos históricos e sociais, sentidos ordenados pela prefeitura atual, a fim de estabelecer significados à cidade de São Luís, ao seu povo, à sua história, mas também a si própria. 

Entre os questionamentos que norteiam a investigação estão: que jogos de poder se inscrevem nas propagandas da prefeitura de São Luís ao colocarem o negro em destaque? Como o negro é retratado nesses anúncios? Quais discursos estão inscritos nessas imagens? De que modo à identidade negra é agenciada nesse espaço discursivo? A que memória e história o negro é associado? 

O referencial teórico pauta-se em conceitos como os de discurso, heterogeneidade discursiva, e outros, propostos pela Análise de Discurso francesa, de base foucaultiana. Também são mobilizados alguns princípios da Semiologia Histórica (COURTINE, 2011), como base teórica para a análise dos textos. 

Metodologicamente avaliamos quatro imagens, configuradas em outdoors espalhados pela capital maranhense, no primeiro semestre de 2013, início da administração do Prefeito Edvaldo Holanda Júnior. A escolha por esses textos justifica-se pelo fato de eles serem objetos de frequente circulação na cidade e terem como protagonistas pessoas negras. 

O texto organiza-se em três seções. Na primeira, discutimos algumas questões em torno do lugar do negro em nossa sociedade. Na segunda, apresentamos alguns princípios básicos do referencial teórico adotado e na quarta seção, operamos algumas análises dos textos selecionados.  

Sabemos, contudo, que esta pesquisa é apenas uma possibilidade de leitura do objeto aqui abordado e, por isso, convidamos nosso leitor a preencher as lacunas expressas neste espaço em que desenvolvemos nossas análises.  

2 AS NARRATIVAS SOBRE O NEGRO NO BRASIL: DISCURSOS E PODERES

Partindo dos escritos de Michel Foucault, Braga (2008) pensa a relação escravista em terras brasileiras, corroborando que para o autor francês, não há relação de poder onde as determinações estão saturadas – a escravidão não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado (trata-se então de uma relação física de coação) – mas apenas quando ele pode se deslocar e, no limite, escapar (FOUCAULT, 1995, p.244). 

Houve, sem dúvidas, muitos focos de resistência criados pelos negros durante o período em que o escravismo vigorou no Brasil, apesar de isso não ilustrar as narrativas oficiais do período. Entretanto, o valor de verdade que se propôs em muitas narrativas da história tradicional – aquela que reconhece apenas uma submissão dos negros no interior do sistema escravista – é duvidoso se pensarmos que os textos que nos chegam são selecionados e interpretados anteriormente pelo olhar dos historiadores (GREGOLIN, 2011, p. 23).  

Os sentidos atribuídos aos textos são – e apenas isto – efeitos de discurso. Sob esse ponto de vista, podemos pensar que muitos textos que dizem respeito aos grupos socialmente marginalizados foram silenciados, visto que os relatos mais difundidos têm por base apenas a vida dos grandes reis e a irrupção das grandes guerras.  A autora pontua, então, que micro relações de poder foram travadas no decorrer da história (inclusive no interior do sistema escravista), e, apesar de não estarem figurando por entre as narrativas oficiais, são narrativas locais que reconstroem a memória excluída pelas “verdades” cristalizadas.  

São muitos, então, os momentos em que os negros travaram lutas contra mecanismos de dominação, isso porque a trajetória escrava no Brasil foi carregada de revoltas e insurreições negras. Como exemplo, a autora cita o desenvolvimento do Candomblé em contraposição ao catolicismo. Nesse ponto, o jogo entre poder e resistência é extremamente visível: a partir do momento em que se dá a suposta conversão dos negros ao catolicismo, é permitido a estes a expressão de sua religiosidade, que se deu, à época, baseada numa identificação entre orixás e santos católicos. No entanto, os cultos tribais continuavam bem longe do catolicismo; a identificação era feita por uma questão de resistência à religião branca, isto é, caso não houvesse identificação, a expressão dessa religiosidade seria reprimida sob o conceito de bruxaria. O Candomblé que se desenvolveu no Brasil é fruto dessa resistência. 

Este é, portanto, um modo de enfrentamento que a cultura negra encontrou para resistir às relações de força que impunham identidades e categorizava o grupo negro. A partir desses setores do cotidiano e não a partir de narrativas oficiais que percebemos o jogo travado entre poder e resistência.  Esse jogo, no entanto, não se esgota no interior desse sistema, mas toma novos contornos e atua ainda hoje contra novas formas de dominação e sujeição.  

3 SOBRE LÍNGUA(GEM), DISCURSO E IDENTIDADES 

Segundo Fernandes (2007), discurso, como palavra corrente no cotidiano da língua portuguesa, é constantemente utilizada para efetuar referência a pronunciamentos políticos, a um texto construído a partir de recursos estilísticos mais rebuscados, a um pronunciamento marcado por eloquência, a uma frase proferida de forma primorosa, à retórica e muitas outras situações de uso da língua, em diferentes contextos sociais. Porém, para compreendermos o discurso como objeto do qual se ocupa uma disciplina específica, isto é, como objeto de investigação científica, devemos romper com essas acepções advindas do senso comum, que integram nosso cotidiano, e procurar compreendê-lo respaldados em acepções teóricas relacionadas a métodos de análise. 

O autor explica que o discurso não é a língua(gem) em si, mas precisa dela para ter existência material e/ou real. Trata-se do entrelaçamento entre língua, história e ideologia. O discurso não é a língua, nem a fala, mas como uma exterioridade, implica-as para sua existência material, uma materialidade (verbal e/ou não verbal) cuja possibilidade firma-se em um ou vários sistemas (linguísticos e/ou semióticos) estruturalmente elaborados. Por isso, os discursos se modificam de tempos em tempos; de lugar para lugar; eles não são fixos, estão sempre se movendo e sofrendo transformações; eles acompanham as transformações sociais e políticas de toda natureza. Analisar o discurso implica interpretar sujeitos falando, tendo a produção de sentidos como parte integrante de suas atividades sociais.

Para exemplificar essas considerações, Fernandes (2007) aponta o uso de dois substantivos no contexto histórico-social de luta pela terra: ocupação e invasão. Tais substantivos, segundo ele, são constantemente encontrados em reportagens e ou entrevistas que versam sobre os movimentos dos trabalhadores sem-terra e revelam diferentes sentidos que se contrapõem. Se de um lado a apropriação da terra é um gesto traduzido pela palavra ocupação no meio dos sem-terra, por outro lado, os latifundiários traduziam o mesmo gesto pela palavra invasão. Desse modo, ele explica que as escolhas lexicais e seu uso revelam, portanto, a presença de ideologias que se opõem, revelando igualmente a presença de diferentes discursos que por sua vez expressam a posição de grupos e sujeitos acerca de um mesmo tema.

4 O NEGRO NAS PROPAGANDAS DA PREFEITURA DE SÃO LUÍS: ALGUNS APONTAMENTOS 

Neste espaço, nosso intuito é analisar o lugar do negro nas mídias da prefeitura atual da cidade de SÃO LUÍS (2013). A temática emerge da observação de que as identidades, na sociedade contemporânea, são negociadas por uma relação de poderes, que elabora o que pode ser e o que deve ser proposto ao sujeito (FOUCAULT, 1995). A escolha das peças deve-se ao fato de elas trazerem com frequência, imagens de pessoas negras protagonizando cenas do cotidiano da população, em diversos espaços da cidade de São Luís. Entre os questionamentos que norteiam a investigação estão: que jogos de poder se inscrevem nas propagandas da prefeitura de São Luís ao colocarem o negro em destaque? Como o negro é retratado nesses anúncios? Quais discursos estão inscritos nessas imagens? De que modo à identidade negra é agenciada nesse espaço discursivo? A que memória e história o negro é associado? Essas mídias nos interessam também porque sabemos que a esfera midiática tem poder de construir, sustentar ou modificar os discursos e, neste caso, cabe-nos avaliar como o discurso de ações afirmativas funciona nesse lugar de produção de sentidos, que é a prefeitura. 

4.1 Apontamentos sobre as propagandas da Prefeitura de Edvaldo Holanda Júnior

No ano de 2013, o prefeito Edvaldo Holanda Jr. assumiu a prefeitura de São Luís. A sua candidatura a Prefeitura de São Luís aconteceu em 2012 com a Coligação “Muda São Luís”, formada pelo PCdoB, PSB, PDT e PTC, obtendo êxito. Edivaldo foi eleito com um total de 280.809 votos no segundo turno. Vale ressaltar que Edivaldo Holanda é prefeito mais jovem da história de São Luís. No primeiro outdoor, retirado do site oficial da Prefeitura de São Luís, temos uma imagem que dialoga com a proposta das ações afirmativas, de oferecer oportunidades a populações até então marginalizadas pela sociedade, colocando em destaque a imagem de uma menina negra. Nesse caso, a imagem produz sentido se pensada com o próprio slogan da Prefeitura: “Prefeitura e você, construindo um novo caminho”. Esse slogan traz à tona várias memórias dos lugares que o negro ocupou, ou ainda ocupa, em nossa sociedade.

Figura 1 : Ilustração sem título

A imagem da menina negra representa a vontade de verdade da proposta da Prefeitura de oferecer oportunidades a essa parcela da população que tanto sofreu pela falta de assistência ao longo da história do Brasil. O fato de ser uma criança colocada no outdoor também produz sentidos, uma vez que o texto sugere que a prefeitura busca escrever um caminho mais justo para novas gerações. Como exposto anteriormente, o prefeito de São Luís, Edivaldo

Holanda Junior, é o mais jovem a entrar na prefeitura de São Luís. Com isso, o dirigente dá ênfase nesse outdoor a uma criança negra, estabelecendo vários sentidos, entre aos quais a ligação com a idade e a etnia como forma de valorizar esse grupo. O segundo texto, também extraído do site da Prefeitura de São Luís, também dialoga com o discurso das ações afirmativas, com o discurso das identidades locais, que busca valorizar o negro, a mestiçagem brasileira.

Figura 2 : Ilustração sem título

Aqui, um rapaz mulato, de sorriso aberto, sugere ao leitor que há espaço para a juventude nessa esfera pública. O cabelo, em estilo black, é uma semiologia que marca o lugar da cultura africana em nossa sociedade.  

Segundo Gomes (2006), nas civilizações africanas ocidentais, cabelo era sinônimo de linguagem. Tudo poderia ser visível a partir do estilo de penteado adotado: o estado civil, a religião, a posição social, a identidade étnica, até um sinal de luto. Os negros escravizados eram levados, obrigatoriamente, a raspar a cabeça, em uma atitude ou sinal de violência e uma tentativa de apagar todo e qualquer símbolo indenitário que os remetessem à cultura africana. Além disso, no interior do sistema escravista, o tipo de cabelo e o tom de pele serviam de critérios para estabelecer a classificação do escravo no interior do sistema, estabelecendo atribuições e atividades mais adequadas. Essa classificação desenvolvia a preferência por um tipo de cabelo que já não era crespo, mas cacheado, herança da miscigenação racial (GOMES, 2006). 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre os questionamentos que nortearam a investigação buscamos responder a que jogos de poder se inscrevem nas propagandas da prefeitura de São Luís ao colocarem os negros como protagonistas. 

Vimos, nesta breve análise dos outdoors que circularam no primeiro semestre em São Luís, que a Prefeitura de São Luís se inscreve em uma rede discursiva que emerge com a noção de identidade presente na contemporaneidade. Essa rede de sentidos prescreve entre outras questões que as identidades são móveis, fluidas e que não há uma identidade melhor que outras. Nesse processo, emergiu uma nova visão de história, de cultura e, sobretudo, de identidade. Daí que identidades tidas como marginais, sem importância, passaram a ter importância, ainda mais em um momento em que a globalização dita que não podemos excluir ninguém. 

Como o negro é retratado nesses anúncios? Nesses anúncios, o negro é colocado com suas diferenças étnico-culturais, e o enunciador destaca essas diferenças, por exemplo, ao realçar o crespo dos cabelos dos modelos que figuram nas peças publicitárias, articulando-se ao discurso da diversidade. Por esse movimento discursivo em que explora elementos semiológicos, a Prefeitura constrói uma identidade para sua administração de poder que respeita as diferenças e que comunga com as leis. Nesse compasso, a Prefeitura também se articula ao que ordenam as ações afirmativas, ao proporem que as culturas, até então marginalizadas, precisam ter um espaço de oportunidades iguais as demais culturas, em nossa sociedade. 

Entrecruzando língua e história, os textos analisados retomam algumas memórias, mas efetuam deslocamentos nesse movimento mnemônico ao resignificar ideias que por muito tempo predominaram no Brasil como a de que o negro sempre ocupou a periferia das capitais, ou a de que ele não poderia chegar a profissões de grande prestígio, como a medicina, porque sempre teve baixo nível de escolaridade ou mesmo esteve sempre em camadas sociais sem prestígio. 

Observados, desse modo, uma rede de sentidos produzidos por movimentos históricos e sociais, sentidos ordenados pela Prefeitura atual, a fim de estabelecer significados e produzir identidade não apenas à cidade de São Luís, ao seu povo, à sua história, mas também a si própria. 

REFERÊNCIAS

COURTINE, Jean-Jacques. Discurso e imagens: para uma arqueologia do imaginário. In: PIOVEZANI, C; CURCINO, L; SARGENTINI, V. (Org.). Discurso, Semiologia e História. São Carlos: Claraluz, 2011.  

CURCINO, Luzmara. Os sentidos do olhar: o leitor e a escrita da mídia nas sociedades democráticas. In: PIOVEZANI, C; CURCINO, L; SARGENTINI, V. (Org.). Discurso, Semiologia e História. São Carlos: Claraluz, 2011.  

FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. 2ed. São Carlos: Claraluz, 2007.

FOUCAULT, M. Dois ensaios sobre o sujeito e o poder. In: Rabinow Paul; Dreyfus, Hilbert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

GOMES, Nilma Lino. Sem Perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte. Autêntica, 2006.

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Acesso de negros às universidades públicas. Cadernos de pesquisa da Fundação Carlos Chagas. São Paulo, n 118, p. 247 – 268, (2003).

GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise. Análise do Discurso e Semiologia: enfrentando discursividade contemporâneas. In: PIOVEZANI, C; CURCINO, L;  HALL, STUART. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2006.

JACKS, Nilda. Cultura regional como mediação simbólica. Um estudo de recepção. Editora da Universidade Federal do Rio Grande do sul, UFRGS, 1999. GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2006.

PIOVEZANI, C; SARGENTINI, V. Apresentação do livro Discurso, Semiologia e História. In: PIOVEZANI, C; CURCINO, L; SARGENTINI, V. (Org.). Discurso, Semiologia e História. São Carlos: Claraluz, 2011.  

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido de Brasil. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SARGENTINI, V. (Org.). Discurso, Semiologia e História. São Carlos: Claraluz, 2011.  

THOMPSON, Jonh B. A mídia e a modernidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.