POR UM URBANISMO PARTICIPATIVO: DEMOCRACIA, GESTÃO PÚBLICA E TERRITÓRIO DO CIDADÃO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7242268


Vinicius Martins Marques Catharina Pinto


RESUMO 

A Constituição brasileira não apenas permite, como, sobretudo, incentiva, a participação plena da população no planejamento do desenvolvimento e da expansão de sua própria cidade. Isso quebra com a ideia de que a democracia brasileira é meramente indireta e representativa. Ou seja, isso entra em conflito com a ideia enraizada em muitas pessoas que a política se resume ao voto a cada quatro ou dois anos. Claro que a função de tais políticos é, exatamente, representar seus cidadãos, atarefados demais para se inteirar nos processos políticos e sociais de seu país, Estado e município. Mas isso não impossibilita inteiramente a atuação de cada indivíduo em tais processos. Entre tantos dilemas, o essencial não é responsabilizar ou culpar um ou outro setor da sociedade, um ou outro representante, mas, sim, identificar e potencializar as formas existentes de exercer a democracia, além de criar novos canais de comunicação entre os cidadãos e à gestão pública. Esse é um longo aprendizado que a história insiste em apontar para cada nova época que parece, paradoxalmente, insistir em desconhecer tais ensinamentos. A proposta desse artigo é, assim, de certo modo, bastante simples: pensar a gestão pública e o urbanismo a partir da legislação brasileira a fim de propor a utilização da tecnologia como um instrumento eficaz para a própria democracia. Para isso, no entanto, é necessário compreender tanto a democracia ao longo da história quanto a democracia nos ambientais atuais da sociedade, além de compreender como a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade permitem que a gestão pública e o urbanismo possam ser formas de participação política dos cidadãos brasileiros. 

PALAVRAS-CHAVE: Urbanismo; Gestão Pública; Participação Política 

ABSTRACT 

The Brazilian Constitution not only allows, but, above all, encourages the full participation of the population in planning the development and expansion of their own city. This breaks with the idea that Brazilian democracy is merely indirect and representative. In other words, this conflicts with the idea rooted in many people that politics comes down to voting every four or two years. Of course, the function of such politicians is precisely to represent their citizens, who are too busy to be aware of the political and social processes of their country, state and municipality. But this does not entirely preclude the performance of each individual in such processes. Among so many dilemmas, the essential thing is not to blame or blame one or another sector of society, one or another representative, but rather to identify and enhance the existing ways of exercising democracy, in addition to creating new channels of communication between citizens and society. public Management. This is a long learning process that history insists on pointing to each new era that seems, paradoxically, to insist on ignoring such teachings. The purpose of this article is, in a way, quite simple: to think about public management and urbanism based on Brazilian legislation in order to propose the use of technology as an effective instrument for democracy itself. For this, however, it is necessary to understand both democracy throughout history and democracy in today’s society’s environment, in addition to understanding how the 1988 Federal Constitution and the City Statute allow public management and urbanism to be ways political participation of Brazilian citizens. 

KEYWORDS: Urbanism; Public Management; Political Participation 

1. INTRODUÇÃO 

 As cidades são um complexo de inúmeros processos e relações humanas. De certo modo, elas são um interessante resumo das necessidades e dos desejos que perpassam os seres humanos e os condensam em um determinado lugar. Essa não é uma constatação atual. Em A república, Platão já desenvolvera um pensamento semelhante e bastante avançado politicamente. De acordo com esse filósofo, “uma cidade nasce, porque cada um de nós não é autossuficiente, mas carente de muitas coisas” (2006, p. 62). Em outras palavras, o crescimento das cidades se torna inevitável. Esse movimento decorre da necessidade constante de matérias-primas e terras para a produção material e para a satisfação biológicas e psicológica de seus cidadãos. 

 Esse processo gera inúmeras crises e consequências, como, por exemplo, as guerras e convulsões político-sociais. Em outras palavras e seguindo essa lógica, “deveremos tomar para nós parte do território dos vizinhos, se quisermos ter terra suficiente para pastagem e lavoura… E eles, por sua vez, também parte da nossa, se também se lançarem numa busca infindável de bens” (PLATÃO, 2006, p. 68-69). O olhar aguçado de Platão percebe a cidade como um processo conflituoso cujos indivíduos estão em atrito constante consigo mesmos e com outras cidades. A partir desse e de outros motivos, o filósofo teoriza soluções para sua cidade ideal, demonstrando formas de engenharia social que canalizam os impulsos e as aptidões humanas a fim de um único objetivo: a confluência entre o desenvolvimento da pólis com o desenvolvimento do espírito humano em relação ao conhecimento e à verdade. 

 Além de seus ideais filosóficos, a política platônica aponta para outra questão social: as cidades devem ser planejadas, independentemente dos valores e dos objetivos que as constituem. Essa premissa não apenas se manteve ao longo dos anos, como se intensificou e se disseminou na consciência dos políticos e gestores públicos. Apesar de o desenvolvimento aparentemente desenfreado e sem planejamento das metrópoles, inúmeras legislações e técnicas são utilizadas para potencializar, evitar e canalizar os processos citadinos e urbanísticos. Desse modo, controlam-se as áreas comerciais, industriais e residenciais; controlam-se os processos materiais, inclusive por meio de estratégias multidisciplinares que envolvem conhecimentos da geografia, da engenharia, das áreas de saúde e, claro, da arquitetura e do urbanismo. 

 Basicamente, essa é a função da gestão ou administração pública. Ela constitui, de certo modo, tanto o poder parcial de controlar os indivíduos quanto o poder parcial de controlar o próprio Estado. Parcial, porque a gestão pública também possui limitações legais e, em nosso sistema político democrático, deve representar os interesses majoritários da população. No entanto, a própria gestão concentra a legislação e a tributação, a fiscalização e a regulamentação, por meio de uma imensa diversidade de instituições e órgãos rigorosamente específicos em suas funções. Todo esse conjunto possui o objetivo principal de tornar os processos públicos realmente efetivos em relação ao bem da cidade. 

 Mas, isso se torna um horizonte definitivamente amplo que precisa de outros guias para que suas estratégias sejam especializadas e se materializem. O urbanismo atua nessa vertente, em comunhão com a gestão pública. Ou melhor, existe uma relação mútua entre ambas as esferas cujos fins devem atender sempre o bem-estar e a segurança dos cidadãos. O urbanismo é uma ciência que se direciona às relações urbanas, estudando-as, regulando-as, planejando-as e indicando os melhores percursos para políticas que tornem a cidade um ambiente de atendimento ao cidadão ao mesmo tempo em que auxilia na conscientização de tais cidadãos em relação à administração de suas próprias cidades. Assim, diversas leis existem para regulamentar as relações humanas e tornar suas sociedades mais harmônicas e agradáveis. 

 Nesse sentido, o direito urbanístico se consolida com uma importância ímpar e imprescindível para os cidadãos. Ele regulamenta e ordena os espaços realmente habitados e potencialmente habitáveis, atribuindo funções sociais às propriedades públicas e privadas. Leis como “Plano Diretor” e “Estatuto da Cidade” são extremamente necessárias para a democracia. O Plano Diretor é, por exemplo, um planejamento multidisciplinar sobre a cidade exatamente para evitar que ela cresça sem planejamento e gere crises políticas. Os arquitetos urbanistas possuem essa função primordial para o desenvolvimento e para a expansão urbanas a partir de estudos intensos e complexos sobre as relações humanas. 

Tais leis garantem, sobretudo, que os políticos eleitos não atuem desmesuradamente e arbitrariamente. Suas ações devem ser condizentes com a legislação e com os interesses da população que o elegeu. Apesar de seus ideais altivos e desejáveis, essa teoria não consegue, no entanto, se consumar plenamente. Com bastante frequência, inúmeros casos de corrupção e má-administração pública são relatados. Políticos e funcionários públicos atritam com esse planejamento muitas vezes, seja propositalmente seja pelo desconhecimento de tais estatutos e legislações. Infelizmente, no aspecto particular, poucos indivíduos conhecem os seus direitos. Os baixos índices de estudos no Brasil em conjunto com sua história tendem a demonstrar que a ignorância política constitui a estrutura social desse país. 

Isso adensa ainda mais o problema em relação à má-administração pública e, por conseguinte, ao urbanismo, pois, sem o conhecimento de seus direitos, como os cidadãos poderiam exigir uma cidade melhor? Sem o conhecimento político sobre o que é uma democracia e sobre os canais que ela possui para garantir o atendimento do eleitor, o regime político passa a ser uma democracia indireta cada vez mais distante do cotidiano e dos problemas sociais. Como será visto, o Estatuto da Cidade afirma, em relação à elaboração e à fiscalização desse plano, que, “os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão: I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade” (BRASIL, 2012, p. 32). 

Ora, legalmente, a Constituição brasileira não apenas permite, como, sobretudo, exige, em muitos casos, a participação plena da população no planejamento do desenvolvimento e da expansão de sua própria cidade. Isso quebra com a ideia de que a democracia brasileira é meramente indireta e representativa. Ou seja, isso entra em conflito com a ideia enraizada em muitas pessoas que a política se resume ao voto a cada quatro ou dois anos. E mais, quebra também com a terceirização da responsabilidade política, que seria transmitida do eleitor para o político eleito. Claro que a função de tais políticos é, exatamente, representar seus cidadãos, atarefados demais para se inteirar nos processos políticos e sociais de seu país, Estado e município. Mas isso não impossibilita inteiramente a atuação de cada indivíduo em tais processos. 

Entre tantos dilemas, o essencial não é responsabilizar ou culpar um ou outro setor da sociedade, um ou outro representante, mas, sim, identificar e potencializar as formas existentes de exercer a democracia, além de criar novos canais de comunicação entre os cidadãos e à gestão pública. Esse é um longo aprendizado que a história insiste em apontar para cada nova época que parece, paradoxalmente, insistir em desconhecer tais ensinamentos. A proposta desse artigo é, assim, de certo modo, bastante simples: pensar a gestão pública e o urbanismo a partir da legislação brasileira a fim de propor a utilização da tecnologia como um instrumento eficaz para a própria democracia. Para isso, no entanto, é necessário compreender tanto a democracia ao longo da história quanto a democracia nos ambientais atuais da sociedade. 

2. DEMOCRACIA E A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NA TEORIA POLÍTICA 

 A participação política é um assunto que refletimos, primeiramente, em ambientes escolares por meio do ensino sobre a democracia. Nessa aprendizagem, com bastante frequência, está a ideia histórica sobre esse tipo de governo relacionada com o seu “nascimento”. Os gregos antigos teriam sido os primeiros povos a instaurar a democracia como seu regime político em oposição às aristocracias que impunham seu poder. Na verdade, essa história é um pouco mal contada e refletida. A Grécia antiga era um amontoado de pólis, muitas vezes, bastante diferentes entre si. Nesse sentido, tem-se o primeiro erro: a democracia não nasce entre os gregos, mas, sim, entre os atenienses. Essa ressalva é importante porque os espartanos, por exemplo, que faziam parte do povo grego não compartilhavam essa forma política. 

 A segunda ressalva que deve ser feita é: a democracia ateniense não era plenamente democrática. Esse paradoxo advém do fato de que, apesar de essa palavra significar “poder do povo”, nem todas pessoas eram consideradas parte do “povo”; ou melhor, para participar de uma assembleia, era necessário ser “cidadão”. No entanto, somente um grupo pequeno era classificado desse modo: homens, maiores do que determinada idade, nascidos em Atenas, etc. Ou seja, essas exigências excluíam parte considerável dos habitantes atenienses e tornava o conceito de “democracia” algo contraditório. A idealização da democracia grega esvazia historicamente esse conceito e não contribui para a compreensão das sociedades democráticas atuais. 

 Mesmo entre os cidadãos, não era tão simples exercer seus direitos políticos. De acordo com Starr em O nascimento da democracia ateniense, “a palavra grega aqui traduzida por ‘liberdade’ é na verdade isegoría, o direito igual da palavra, que aparece como um pré-requisito para a participação na assembleia […] que esse privilégio só foi obtido em meados do século V” (2005, p. 29). O direito de demonstrar a palavra nas assembleias significa o direito de expressar o pensamento para a condução e para o desenvolvimento de Atenas. No entanto, falar era algo perigoso não apenas porque isso podia expor ao ridículo, como, também, porque qualquer fala poderia servir como pretexto para acusações. Segundo Nietzsche, “os advogados em nosso sentido estavam proibidos; qualquer um podia acusar, e todo mundo tinha que se defender, permitindo-se só assessores jurídicos, ao que não lhes estava consentido receber honorários” (NIETZSCHE, 2000, p. 259). 

Nesse cenário, o exemplo de Sócrates diz muito. O filósofo foi obrigado a se defender da acusação de Meleto de “pesquisar indiscretamente o que há sob a terra e nos céus, de fazer que prevaleça a razão mais fraca e de ensinar aos outros o mesmo comportamento” (PLATÃO, 1972, p. 11-12). Sócrates ficou famoso na história devido ao alto teor de persuasão contido em seus argumentos. Ainda assim, em plena democracia grega, ele foi condenado à morte, sem conseguir convencer o júri de sua inocência. A questão óbvia é: se um dos maiores filósofos do mundo não conseguiu provar a sua inocência diante de uma acusação falsa, então um cidadão comum conseguiria? De acordo com Wolff, “não acreditemos todavia que o ato de acusação é feito sob medida para Sócrates: o texto é quase a chave-mestra que servia para se livrarem dos intelectuais incômodos, aquela que já fora usada contra Anaxágoras ou alguns Sofistas” (WOLFF, 1982, p. 83). 

Todo esse cenário demonstra como a participação política era complicada na Grécia antiga. Poucos indivíduos estavam aptos a participar das assembleias, inclusive porque a grande maioria deles não tinha recursos econômicos nem para pagar os professores de retórica nem para deixar seus trabalhos para participar das assembleias e decisões políticas de Atenas. Isso vai de encontro a outra ideia bastante conhecida na teoria política. Segundo Aristóteles, os homens são naturalmente seres políticos. Em Ética a Nicômaco, Aristóteles afirma que “as ações belas e justas, que a ciência política investiga, admitem grande variedade e flutuações de opinião, de forma que se pode considerá-las como existindo por convenção apenas, e não por natureza” (ARISTÓTELES, 1973, p. 249). 

O estagirita admite que as opiniões e atitudes políticas não são biologicamente determinadas e unânimes; isto é, que elas não existem por natureza. Isso não significa, no entanto, que, por meio da convenção, os seres humanos possam fugir do que são naturalmente. Para o filósofo, a política é uma condição inerente a nós, apesar de nossos argumentos divergirem. “Estas considerações deixam claro que a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal político” (ARISTÓTELES, 1997, p. 15). As opiniões e os tipos de relação humana são convencionais, mas o fato de opinar e se relacionar não. Desse modo, a política é vista por Aristóteles como uma arte mestra que se utiliza de outras ciências ao mesmo tempo em que legisla sobre nossas formas de conduta a fim de atingir “o bem humano” (ARISTÓTELES, 1973, p. 249). 

Milênios depois, a pensadora contemporânea Hannah Arendt definiu a política como um estar entre os seres humanos (1993, p. 11). Para além de Aristóteles, a perspectiva arendtiana compreende a fonte da política não por meio da natureza humana, mas, sim, por meio de suas relações. Essa concepção não se contrapõe ao filósofo antigo; no entanto, abarca uma condição que o estagirita não admitia. “Seja no conceito de zoon politikon, seja no de bíos politikos, Aristóteles jamais concebeu a possibilidade de nos convertermos em meros animais vivos, incapazes de uma existência política que seja mais que a gestão do contentamento animal” (CORREIA, 2019, p. XLVI). 

Para Aristóteles, estar entre a sociedade pressupunha lógica e necessariamente também um agir político; ou melhor, pressupunha o reconhecimento de uma característica comum a todos os seres humanos: a política – que, por sua vez, exigia uma forma de consciência que permitia e consumava as relações humanas. Arendt percebe que, da modernidade, não se deriva apenas a alienação concebida por Marx3; mas, sobretudo, um sujeito alienado que, de certo modo, toma consciência de sua alienação e, em vez de combatê-la, a justifica e a protege4

O último estágio da sociedade de trabalhadores, o qual é a sociedade de empregados, requer de seus membros um funcionamento puramente automático, como se a vida individual realmente houvesse sido submersa no processo vital global da espécie e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse deixar-se levar, por assim dizer, abandonar a sua individualidade, as dores e as penas de viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer a um tipo funcional, entorpecido e “tranquilizado” de comportamento. (ARENDT, 2019, p. 400) 

Poder-se-ia estender esse capítulo vastamente, devido ao grande debate político existente em relação à democracia e à participação política e em relação às grandes contribuições de inúmeros pensadores na teoria política. No entanto, a finalidade desse capítulo possui dois objetivos: 1º demonstrar que a participação política no cenário democrático grego não foi tão simples e 2º demonstrar que, talvez, os indivíduos não almejam ou não possam almejar a participação política. A partir disso, o cenário atual do Brasil se torna muito mais complexo. A constituição brasileira possui uma ligação direta com os ideais democráticos iluministas e tenta, diante de seu passado ditatorial de repressão e censura política, possibilitar espaços para que a participação dos cidadãos seja real e efetiva. No entanto, esses canais não são suficientes para que haja, de fato, essa participação ao mesmo tempo que são poucos os indivíduos que desejam essa responsabilidade. 

3. O DIREITO URBANÍSTO E A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA 

 A história do Brasil é composta por conflitos violentos e dúbia participação política por parte de sua população. Embora ainda persistam discursos de que o povo brasileiro é pacífico, inúmeras repressões, rebeliões e lutas constituem seu passado. Golpes e interrupções de governos foram mais comuns do que os presidentes que conseguiram terminar seu mandato. Diante desse cenário, a democracia e a constituição de 1988 são bastante jovens e, por mais que se esforcem em garantir e incentivar a participação política, pode-se notar certa defasagem nesse processo. 

 No entanto, elas se constituem como caminhos possíveis e esperançosos para que a gestão e o poder públicos efetivem os ideários de uma sociedade baseada na justiça, equidade e bem-estar. Por isso, é importante conhecer os meios legais do direito existentes na legislação brasileira que garantem a participação da população nas decisões relacionadas ao urbanismo de seu município. De certo modo, isso desfaz um pouco a noção de que o cidadão não possui responsabilidade em relação à administração de sua cidade e que apenas os políticos são responsáveis pela má-gestão da sociedade brasileira. 

3.1. A Ditatura Militar 

A ditadura militar iniciou-se em 1964 e terminou definitivamente após o governo de transição do presidente José Sarney em 1988. Esse presidente foi eleito indiretamente, frustrando o ímpeto democrático crescente no país e culminando no movimento de “Diretas Já”. Durante o período ditatorial, a participação política não foi apenas desestimulada; foi também foi censurada e perseguida. Ao mesmo tempo, diversos ideários foram forjados para criar atmosferas que “justificassem” a existência de um governo nada representativo. A ideia de “ameaça” e “inimigo interno” era comum entre os ditadores. Crentes que o Brasil poderia sofrer uma “revolução comuno-sindicalista” como expressou o general Castelo Branco na Circular de 20 de março de 1964, os militares teriam sido “obrigados” a tomar o poder. 

Essa concepção não condizia com a realidade social brasileira; mas fomentou a “necessidade” do golpe militar dentro do imaginário político das classes dominantes enquanto possibilidade de enfrentamento a tais “ameaças”. Anos depois, esse mesmo argumento obteve outra função. Se em um primeiro momento, serviu como pretexto para a tomada ilegítima de poder; posteriormente, serviu como desculpa para justificar os atos e os agentes cruéis da ditadura. Em 1989, os ministros do governo Sarney emitiram uma nota oficial celebrando o “Movimento Revolucionário de 1964”: 

Vivíamos momentos de intranquilidade, desmoronavam as instituições mais caras e, com elas, a paz social e o desenvolvimento do país. Mobilizavam-se aparatos de propaganda buscando a agitação: o grevismo alastrava-se trazendo implacáveis prejuízos ao crescimento econômico e ao bem-estar da população; era atingida a base institucional das Forças Armadas: a hierarquia e a disciplina5

O som de tais pensamentos reverbera ainda hoje em setores conservadores. De qualquer modo, o que chama a atenção na nota acima é a força ideológica dos militares existente nos governos de transição e democráticos após 1985. Grande parte dos ministros de Sarney estava ligada direta ou indiretamente ao poder militar. Entre eles, muitos foram políticos da Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Como o livro O que resta da ditadura? organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle (2010) demonstra, parte considerável das raízes democráticas se fixa, portanto, no terreno histórico e ideológico da ditadura militar. Leis e privilégios concedidos aos e pelos militares se mantiveram; a anistia brasileira perdoou torturadores; destoou das políticas democráticas de países como a Argentina e o Uruguai. 

Tais situações são absurdas para quaisquer concepções democráticas, mas, são também desdobramentos lógicos da história do último país no mundo a abolir a escravidão e com maior concentração de terras ainda hoje do mundo6. Ou seja, a história brasileira demonstra um país com amplo e profundo desconhecimento histórico e político e intensamente inerte em suas responsabilidades políticas. Isso causa um problema complexo: os indivíduos brasileiros querem de fato participar e compartilhar a política e seus encargos ou preferem apenas votar periodicamente a fim de relegar a outrem seus direitos? Independentemente da resposta, é importante notar que existem caminhos interessantes dentro da legislação brasileira para incentivar a participação política da sociedade. 

3.2. A redemocratização e a Constituição de 1988 

A Constituição brasileira de 1988 ficou conhecida como “Constituição Cidadã”. De certo modo, ela foi uma espécie de esperança que abria um novo capítulo na história brasileira. Depois de um longo período de proibição política e abusos contra os direitos políticos de cada indivíduo, a década de 90 abriu-se para um período de democracia cujos cidadãos poderiam, de fato, eleger seus representantes e participar ativamente do cenário político sem serem perseguidos, presos, torturados e mortos. Para que isso pudesse ocorrer, inúmeros instrumentos foram garantidos na Constituição de 88. 

Entre eles, está, por exemplo, a estabilidade do funcionário público. Apesar de mácondutas que possam existir, a estabilidade do servidor público é uma importante aliada da democracia. Antes de 1988, todo funcionário público que não se submetesse às ordens – muitas vezes, ilegais e autoritárias – de seus superiores eram demitidos ou realocados; isso acontecia também por simples discordâncias políticas ou mudança de políticos, evidenciando a falta de liberdade política dos cidadãos brasileiros e prolongando uma antiga história de nepotismo e troca de favores. Em alguns casos, um professor deveria, por exemplo, omitir determinados temas que suscitassem a criticidade e autonomia de seus alunos; em outro, trocava-se um funcionário tecnicamente habilitado para pôr um parente ou familiar em tal cargo. 

Nesse sentido, a Constituição de 1988 permitiu que os cidadãos elegessem diretamente seus representantes ou que eles fossem contratados a partir de processos e comprovação de conhecimento e de títulos (concursos públicos). Antes disso, no entanto, os direitos políticos foram sendo diminuídos constantemente ao longo dos anos da ditatura militar. Os Atos Institucionais (AIs) retiraram o direito a votar em todas as esferas políticas. Com a redemocratização do país, a eleição direta foi novamente instaurada. Os cidadãos passaram a eleger políticos para os cargos de presidente, governador, prefeito, deputado (federal, estatual e distrital), senador e vereador. Além disso, a nova Constituição estabeleceu uma maior responsabilidade fiscal e ambiental. 

Entre essas conquistas, está também a definição da função social da propriedade pública e privada. Isso significa que a Constituição de 1988 assume um olhar para a sociedade como um todo, cujas partes refletem uma organicidade plena. Desse modo, toda propriedade precisa possuir uma função para a sua comunidade a fim de garantir e intensificar a bem público e a vida em sociedade. Nessa perspectiva, está o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor. Esses dispositivos legais atuam em uma dupla perspectiva: por um lado, exercem um planejamento fundamental dos movimentos urbanísticos; por outro lado, permitem e incentivam, ao menos em teoria, o envolvimento dos cidadãos nesse planejamento a fim de diversificar os olhares sobre o desenvolvimento e sobre a expansão de suas cidades. 

3.3. Estatuto da Cidade 

O Estatuto da Cidade é uma lei de 2001 que visa regulamentar a Política Urbana da Constituição Federal de 1988. Sob o número 10.257, essa lei atua definindo o Plano Diretor Municipal por meio de princípios como a participação política no planejamento urbano e a função social da propriedade. De acordo com Carvalho, o Estatuto “regulamentou os principais institutos jurídicos e políticos de intervenção urbana” (2001, p. 131). Além disso, ele criou e regulamentou o “Conselho da Cidade”; isto é, um órgão de natureza deliberativa e consultiva com diversas funções políticas e sociais. 

Segundo o Estatuto, ao Conselho da Cidade, compete: “X – estimular a ampliação e o aperfeiçoamento dos mecanismos de participação e controle social, por intermédio de rede nacional de órgãos colegiados estaduais, regionais e municipais, visando fortalecer o desenvolvimento urbano sustentável” (BRASIL, 2008, p. 88). Essa característica participativa na política de desenvolvimento e expansão urbana é frequente nessa lei. 

No Capítulo II – Dos Instrumentos da Política Urbana, o §3 do Artigo 4º (Seção I) afirma que “os instrumentos previstos neste artigo que demandam dispêndio de recursos por parte do Poder Público municipal devem ser objeto de controle social, garantida a participação de comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil” (BRASIL, 2008, p. 18). Ou seja, a participação política do indivíduo possui, ao menos legalmente, um vasto alcance, atingido, inclusive, questões sociais, ambientais e financeiras em relação ao urbanismo. 

O ideário participativo presente no Estatuto da Cidade possui um claro viés democrático, incidindo diretamente na gestão pública. Por meio desse cenário, a população e as associações representativas possuem a condição de acompanhar e se inserir na elaboração e na execução dos planos, programas e projetos de desenvolvimento e expansão urbanas de sua cidade. No entanto, esses fatores democráticos e legais não garantem na prática a participação real e efetiva dos cidadãos na elaboração do Plano Diretor Municipal. Isso porque grande parte da população pouco ou nada conhece sobre a existência de tais caminhos para a construção de sua sociedade e para a consumação dos ideais de bem-estar e habitação da Constituição brasileira de 1988. 

Em O impasse da aplicação do Estatuto da Cidade, Dânia Brajato e Rosana Denaldi demonstram a complexidade de exercer os direitos urbanos em relação ao estudo de caso da cidade de Maringá, no Parará. De acordo com essas autoras, essas dificuldades vão muito além da transformação da teoria em prática. “Esse impasse relaciona-se também com a efetividade dos instrumentos, quando aplicados, de alcançarem as finalidades para as quais foram concebidos” (BRAJATO; DENALDI, 2019, p. 49). Em boa parte, isso acontece devido ao esvaziamento do significado de “função social da propriedade”. Essa concepção objetiva democratizar o acesso à moradia e à terra perante a inatividade e o abandono de certas propriedades. Ainda de acordo com as autoras, “não basta regulamentar e aplicar os instrumentos, é importante observar a atuação do Estado” (BRAJATO; DENALDI, 2019, p. 50). Esse e outros casos levam a uma situação bastante recorrente: o abandono do poder público em relação ao cumprimento de suas próprias leis em todas esferas políticas (municipal, estadual e federal). O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstra em seu Censo demográfico, por exemplo, que, em 20107, São Paulo foi o município com maior número de domicílios ociosos (vagos e fechados). Esse exemplo demonstra que, apesar da lei, a gestão pública não efetiva os ideais existentes na legislação. Por isso, a participação política é tão importante e deve ser acentuada de inúmeras maneiras.

3.3 O Plano Diretor e a Participação Política 

Apesar de o Plano Diretor ter sido delineado pelo Estatuto da Cidade, ele já era vislumbrado pelo direito urbanístico contido na Constituição brasileira que visa o planejamento de diversos aspectos de desenvolvimento e expansão municipal. Embora seja estabelecido pelo Poder Executivo Municipal, o Plano Diretor fica sob responsabilidade de um arquiteto urbanista. A elaboração desse documento envolve diversos profissionais e conhecimentos interdisciplinares, além da participação dos cidadãos. Após sua constituição, ele passa por uma análise e aprovação da Câmara Municipal que indicará os agentes públicos e privados que atuarão na real consumação do Plano Diretor sobre o espaço urbano. 

De acordo com a Constituição brasileira de 1988, a política urbana possui o objetivo de “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (BRASIL, 2019, p. 153). Nesse Capítulo, o primeiro parágrafo afirma que “o plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”. Segundo Machado, o Plano Diretor é um 

conjunto de normas obrigatórias, elaborado por lei municipal específica, integrando o processo de planejamento municipal, que regula as atividades e empreendimentos do próprio Poder Público Municipal e das pessoas físicas ou jurídicas, de direito privado ou público, a serem levadas a efeito no território municipal. (2012, p. 380) 

 Desse modo, o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor são os principais atores em relação à expansão e ao desenvolvimento urbanísticos. No entanto, é importante ressaltar que esse planejamento é realizado por meio de diversas etapas. Ou melhor, ele atua conjuntamente com outros projetos e outras leis, diversificando suas estratégias em planos de mobilidades, de saneamentos, de habitações, entre outros. A regularização de edificações, obras públicas, novos loteamentos e outras operações imobiliárias também se enquadram nesse conjunto de planejamento. 

 Para que isso ocorra, o Plano Diretor possui, basicamente, quatro etapas: estudos preliminares, diagnóstico, plano de diretrizes e instrumentação do plano. Essa sequência aparenta-se a projetos de pesquisa em geral. No primeiro momento, o processo se concentra em analisar os problemas e as necessidades existentes em seu município para, no segundo momento, realizar estudos mais aprofundados sobre tais questões, identificando diversas variáveis, inclusive, o adensamento de tais problemas. Na terceira etapa, o Plano propõe, de fato, a resolução prática e legal de tais pontos, estabelecendo as metas e o cronograma para sua realização. Por fim, passa a utilizar os instrumentos necessários para atingir seus objetivos e tornar a habitabilidade do município mais controlável, confortável, justa e segura. 

4. CIDADE: GESTÃO PÚBLICA E TERRITÓRIO DO CIDADÃO 

4.1 Gestão Pública 

A gestão pública não é algo atual. No século XX, diversos modelos administrativos constituíram Estados e Nações, demonstrando uma riqueza histórica e uma diversidade política imensas. Após a crise econômica de 1929 eclodida nos Estados Unidos, a importância do Estado obteve amplo reconhecimento em relação ao planejamento e à organização social, por meio do fortalecimento de empregos e subsídios estatais para as empresas privadas. Durante anos, essa mentalidade ganhou força até se transformar radicalmente durante a década de 70, quando o neoliberalismo irrompeu na economia mundial. Ainda no contexto da Guerra Fria, havia uma disputa forte sobre os modelos econômicos (capitalismo versus socialismo) representados pelas figuras do EUA e da URSS. 

No entanto, a década de 70 foi marcada pela disseminação de propostas e ações que visavam reformar do Estado, tornando-o mais fraco em detrimento do livre-mercado. Curiosamente, essa ideologia neoliberal surgiu e se fortaleceu após uma série de crises presentes nos grandes conglomerados capitalistas, devido às guerras e aos problemas relacionados ao petróleo. De acordo com Carneiro e Menicucci,  

Na visão que se vai se tornar dominante à época, os problemas defrontados pelo capitalismo são percebidos como manifestação do excesso de intervencionismo estatal na vida econômica e nas relações societais em sentido amplo. Um liberalismo renovado, com forte sustentação na teoria econômica neoclássica, desloca o consenso keynesiano construído no pós-guerra, argumentando que o Estado havia se tornado muito grande e a administração pública ineficiente ou pouco eficaz […]. (2013, p. 137). 

 Na década seguinte, esse movimento se manteve criando grandes ecos no Brasil até, pelo menos, a década de 90. Em seu período de redemocratização, a população brasileira elegeu Fernando Collor de Melo que utilizava, inclusive, um discurso repleto de valores neoliberais e classificava o Estado, em suas propagandas eleitorais, como um grande elefante dentro de uma pequena sala. O ponto é que esse movimento buscava reformar o aparelho de administração pública com o objetivo de reduzir os serviços públicos para melhorá-los. 

 Tais debates e conflitos possuem uma questão clara em seu panorama: a gestão pública possui um desempenho satisfatório ao que se propõe cumprir no cenário democrático? Deve-se levar sempre em conta que toda democracia – se, de fato, almeja ser o que afirmar ser – precisa de características imutáveis, como, por exemplo, a transparência, a prestação de contas, o planejamento, a representação direta ou indireta, etc. A essência da gestão pública alia-se, nesse sentido, plenamente à democracia e às relações sociais e políticas da sociedade brasileira. Isso significa que a gestão “é o planejamento, a organização, a direção e o controle de bens e interesses públicos, agindo de acordo com os princípios administrativos, visando o bem comum por meio de seus modelos delimitados no tempo e no espaço” (SANTOS, 2014, p. 47). 

Por isso, uma série de indicadores de desempenhos são utilizados para responder a essa pergunta ao mesmo tempo em que serve para fiscalizar a própria gestão. De certo modo, o Estatuto da Cidade garante isso por meio da participação do cidadão. Ora, se os estudos são realizados e as metas estabelecidas, então o próprio Plano se constitui como um indicador de desempenho municipal em relação ao urbanismo e aos desenvolvimentos da cidade – desde que os cidadãos estejam cientes dele. A questão é, então, como essas informações podem chegar realmente à população que, muitas vezes, não possui tempo para acompanhar os densos debates políticos diários em suas respectivas cidades. 

4.2 Território do cidadão 

O regime político do Brasil é, basicamente, uma democracia representativa. Isso significa que, apesar de a população poder escolher seus políticos em diversas esferas de poder e atuar de modo limitado na gestão pública, ela não pode decidir diretamente os rumos do país. A criação de leis e de orçamentos públicos, a destinação de dinheiro, a criação de editais e licitações, entre tantos outros processos, são serviços exclusivos do poder legislativo e do poder executivo, cujos cargos são atingidos por meio de eleição, concurso público ou indicação política. Esse cenário gera uma série de problemas e indagações bastante pertinentes, afinal a “representatividade democrática” não significa necessariamente “representatividade política”. 

Como explica Gabriel Vitullo, é extremamente importante “a rediscussão do conceito de representação política, rompendo com a homologia que se estabelece entre este e a democracia representativa” (2009, p. 272). O uso indiscriminado de tais noções pode levar a confusões políticas sérias para o cotidiano de cada cidadão. Ora, a representação política da democracia brasileira não estabelece necessariamente que os políticos eleitos atuem do modo esperado por seus eleitores, causando assim uma falta de representatividade política. Atos corruptos e desleais ao voto e aos interesses da população deixam claro a distinção entre tais conceitos e, de certo modo, explicam a dissonância entre os ideais da legislação brasileira e as atuações de seus políticos. 

De qualquer modo, a democracia e os caminhos legais do Brasil estabelecidos por meio da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade podem estreitar os laços entre a representatividade política e a representatividade democrática em relação à gestão pública e ao urbanismo. Conforme Carneiro e Menicucci explicam, a 

democracia na administração pública pode melhorar o controle e a eficiência, fortalecendo, simultaneamente, a cidadania, direta e indiretamente. Essa democratização obriga a assumir a reforma administrativa como uma reforma política que constrói a cidadania como um ator político, dotando-a de meios de influência sobre a administração, de forma a conectar democracia, controle e eficiência. (2013, p. 173). 

Assim, apesar de ser indireta, a democracia brasileira exige a participação popular, por meio dos caminhos legais, para a efetivação da cidadania e dos ideais de bem-estar e progresso. Isso se amplia ainda mais no momento em que a gestão pública adquire amplos poderes sobre os cidadãos e suas propriedades, sem, no entanto, conseguir garantir que a expansão e o desenvolvimento urbanos sejam efetivados. Afinal, o que adianta uma legislação versátil em seu planejamento se os municípios crescem desenfreada e descontroladamente, se não se estabelece a distinção entre áreas residenciais e industriais, se não se concilia a mobilidade com a expansão urbana, etc.? 

No limite, o território brasileiro pertence a cada cidadão. Embora esse seja um longo debate, tanto a Constituição de 1988 quanto o Estatuto da Cidade não apenas permitem como, sobretudo, incentivam a participação popular na real construção de suas cidades. Com isso, a gestão pública continua sendo realizada por meio de representantes eleitos, concursados ou indicados politicamente, porém sem desconsiderar os apelos e as sugestões de todo e qualquer cidadão que queria participar da elaboração do Plano Diretor de seu município. 

Essa comunhão recai em alguns outros problemas, como, por exemplo, a falta de interesse e de conhecimento da própria população. No entanto, abre o debate para o incentivo, por um lado, da participação política em tais caminhos legais existentes na sociedade brasileira. Por outro lado, demonstra que cada cidadão deve exigir que tais caminhos sejam potencializados e facilitados, estabelecendo novas formas de comunicação entre a gestão pública e a sociedade. Nesse sentido, a tecnologia pode ser uma grande aliada para a participação e fiscalização da gestão pública, sobretudo em relação aos projetos e às ações municipais de urbanismo. 

4.3 Uma proposta tecnológica para a participação no planejamento urbano 

Sabendo que as democracias precisam ser transparentes exatamente para que os eleitores possam conhecer as ações e gestões de seus governantes, todos os setores precisariam expor dados e informações relacionados aos processos administrativos de seus municípios. Em relação ao Plano Diretor Municipal, essas informações são bastante certeiras. Em outras palavras, bastaria que os representantes e seus secretários informassem a população sobre o andamento do Plano, sobre os gastos, sobre os problemas ao longo do percurso, etc. As metas e os objetivos da expansão e do desenvolvimento urbano poderiam, assim, ser fiscalizados pelos cidadãos. Essa conexão seria ainda mais frutífera em cidades de pequeno e médio porte cujas relações sociais são mais próximas e a cobrança pode ser mais efetiva. 

Para manter seus ideais, as democracias devem, de certo modo, acompanhar o progresso do mundo. A tecnologia pode servir como uma importante aliada aos processos políticos e sociais, contribuindo para a cidadania e para o exercício da política (SANT’ANA, 2009). As transformações e os avanços alteraram significativamente todas as relações humanas. A economia se globalizou realmente, as relações humanas ultrapassam as distâncias, o conhecimento se tornou muito mais acessível. 

O ambiente das comunicações também mudou, com a inclusão das novas tecnologias que, de um lado, oferece mais recursos e, de outro lado, acelera os processos e altera uma cultura bastante tradicional de relacionamentos entre as comunidades interna e externa das organizações. Assim, temos notícias via satélite e por redes de computadores, Internet e Intranet, a explosão da informação em nosso cotidiano, crescente autonomia comunicacional do cidadão, a diminuição da prestação de serviços públicos presenciais, o crescente envolvimento da mídia com o mercado, enfim tudo parece indicar que existe uma grande transformação da cultura de comunicação na sociedade contemporânea. (FERREIRA, 2012, p. 02) 

O novo ritmo das comunicações possibilitado por novos instrumentos tecnológicos, como celulares e computadores, aponta para um desenvolvimento, no mínimo, interessante. Como muitos brasileiros possuem uma longa jornada de trabalho (muitas vezes, prolongada pelo trânsito das grandes cidades), não existe tempo nem energia hábeis para acompanhar as questões relacionadas ao urbanismo de sua cidade. No entanto, a realização de aplicativos de celular e de outras plataformas digitais poderia ampliar a participação popular, disseminando informações sobre a expansão e sobre o desenvolvimento urbano municipal. 

Para isso, seria necessária a máxima transparência das informações cujas fontes digitais seriam alimentadas por secretários responsáveis por diversos setores. Essa é uma ideia que poderia ser aplicada em diversos lugares e, de certo modo, já possui alguns excelentes exemplos. Aplicativos relacionados à carreira de candidatos políticos e à transparência pública atuam nesse sentindo. Porém, no âmbito do urbanismo – sobretudo em relação aos Planos Diretores Municipais –, existe ainda um uso bastante modesto das ferramentas tecnológicas de comunicação.  

Como dito, a utilização de tais tecnologias permitira que o cidadão se aproximasse dos processos políticos e sociais de sua cidade. Para isso, a atualização semanal, quinzenal e mensal deveria ser realizada com constância e fidelidade. Entre tais dados, seriam informados os gastos, as dívidas, os desafios e as metas, possibilitando, assim, não apenas a transparência dos processos urbanos, como, sobretudo, a solidificação da democracia. A representação política poderia se tornar uma representação democrática e vice-versa consolidando os ideais da Constituição Federal de 1988 e aperfeiçoando a gestão pública em uma clara e mútua relação entre o cidadão e o Estado. 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

 As histórias da teoria e da prática políticas são bastante complexas e amplas. Elas se adensam quando a democracia está no horizonte da análise e, ainda mais, quando a sociedade brasileira pauta o debate. Como foi demonstrado, a discussão sobre as relações e as experiências democráticas surge em Atenas na antiguidade – já em meio a grandes dificuldades. Na modernidade, os grandes pensadores percebem que a participação política depende de uma série de situações, incluindo questões relacionadas à alienação e ao desinteresse político. 

No Brasil, a participação política também apresenta grandes dificuldades. Apesar de existir vários motivos para explicar essa inércia, grandes esforços das lideranças políticas e econômicas ao longo da história brasileira tentaram desincentivar ou mesmo proibir e perseguir a participação política dos indivíduos. Nota-se um esforço ainda maior para isso no período do regime militar. A partir disso, explica-se parte da apatia da sociedade em relação aos assuntos políticos que deveriam ser de seu interesse. No entanto, o cenário é mais complexo. 

Após a redemocratização do país e da criação de sua Constituição Federal em 1988, novos instrumentos legais passaram a existir, permitindo e potencializando a participação política. Em relação ao direito urbanístico, criou-se o Estatuto da Cidade para regulamentar os planos diretores de expansão e de desenvolvimento municipais cujos artigos abriram-se para a elaboração colaborativa de diversos setores da sociedade. Nesse sentido, a gestão pública assumiu um novo caráter, permitindo ser englobada – mesmo que parcialmente – pela atuação dos cidadãos.  

Com isso, a democracia não é exercida apenas pelo voto periódico (de quatro em quatro anos ou dois em dois anos), mas, sim, pelo conhecimento dos processos políticos e pela participação de cada indivíduo. De certo modo, o cidadão se torna uma espécie de sócio de sua cidade, cujas recomendações e críticas são elaboradas a partir das informações disponibilizadas e dos canais que permitem sua contribuição efetiva na gestão pública. Para isso, propõe-se a utilização de tecnologias digitais para estreitar os laços entre a rotina intensa de cada indivíduo e os debates e processos densos existentes no ambiente político a fim de consumar a democracia e os ideias democráticos da sociedade brasileira. 

Cada pessoa poderia, desse modo, acompanhar relatórios, cobrar as promessas e metas políticas, além de refletir sobre as informações e as etapas urbanísticas de sua cidade. Baseado no Estatuto da Cidade, a legislação auxilia a população a participar de sua “empresa”, ou melhor, de sua sociedade, podendo ser potencializada por diversas tecnologias digitais, como aplicativos de celular e plataformas digitais. Isso não é a panaceia contra todos os males políticos do Brasil. Mas, com toda certeza, atua de modo positivo em relação ao urbanismo para que a sociedade brasileira participe da política e consuma a democracia adquirida a tanto custo e suor ao longo de sua história.  

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1, 2Artigo apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e Urbanismo da FACUMINAS como requisito parcial para obtenção do título de especialização em Gestão de Cidades e Planejamento Urbano, sob a orientação da Profª. Me. Bianca Yureidini Santos

3Como Chauí afirma, Marx reinterpreta o conceito de alienação a partir da noção iluminista dos fisiólogos próximos à Revolução Francesa (2008, p. 25). No entanto, também o reinterpreta contra a concepção positiva de Hegel sobre esse termo e a partir de Feuerbach. Em “O conceito de alienação no jovem Marx”, Barros demonstra que tal noção está atrelada a várias perspectivas dentro da própria filosofia marxiana, em relação à religião, à política, à reificação do trabalhador, etc. (2011, p. 237). De qualquer modo, a alienação parece possuir para Marx, em seus vários desdobramentos, um ponto em comum: a não consciência e irreflexão de alguma determinada etapa ao longo da totalidade de algum processo e, portanto, o distanciamento e a cisão entre as partes que deveriam se correlacionar necessariamente, como, por exemplo, no caso do trabalhador e o produto que ele fabrica.

4Poderia se dizer que tal interpretação ainda conteria o sujeito alienado, ou seja, por não ter tomado consciência sobre sua vida, ele protege sua própria alienação. No entanto, talvez, exista aqueles sujeitos que, embora dominados, tomem consciência sobre sua política e sobre sua história e, mesmo assim, não almejem a nenhuma vertente política revolucionária; apesar de isso parecer contraditório dentro da percepção marxiana, Nietzsche explica esses casos por meio de sua análise sobre a sociedade e seus fundamentos gregários, como se o sujeito não se importasse em ser dominado e defender seus dominadores desde que houvesse segurança e conforto para ele.

5Citação do artigo: “Os discursos de celebração da ‘Revolução de 1964’” de Lucileide C. Cardoso. “NOTICIÁRIO DO EXÉRCITO – Centro de Comunicação Social do Exército Brasília, 31 mar. 1989 – ano XXXII, n.7713, Ordem do Dia – 31 de março. “Aniversário da Revolução Democrática de 1964”. Autores: almirante de esquadra Henrique Sabóia – ministro da Marinha, general de exército Leônidas Pires Gonçalves – ministro do Exército; tenente – brigadeiro Octávio Júlio Moreira Lima – ministro da Aeronáutica” (CARDOSO, 2011, p. 139). 

6Em Combatendo a desigualdade social, “de acordo com um relatório do IPEA publicado em 2005, somente Serra Leoa, assolada por guerras, apresentava uma disparidade de renda maior que a do Brasil. Segundo esse órgão governamental de pesquisa, no Brasil os 10% mais ricos da população detêm 46% da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres possuem apenas 13%. Os recursos combinados das 5.000 famílias mais ricas do país – isto é, 0,0001% da população – constituem 40% do produto interno bruto (PIB) da nação. No campo, a distribuição da riqueza é ainda mais desigual. Um por cento dos proprietários rurais controla 45% de todas as terras cultiváveis da nação, ao passo que 37% dos proprietários rurais possuem apenas 1% da mesma área. Sem dúvida, o Brasil é uma das nações com maior concentração de terra do mundo” (CARTER, 2010, p. 36).

7Um novo Censo Demográfico seria realizado em 2020. No entanto, devido à pandemia causada pelo COVID-19, ele foi adiado para 2020, conforme explica o site do IBGE: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencianoticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/27160-censo-e-adiado-para-2021-coleta-presencial-de-pesquisas-esuspensa.