REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7210377
Autores:
Márcia Luísa de Sousa Bezerra Rodrigues1
Timoteo Madaleno Vieira2
RESUMO
O presente artigo traz uma investigação sobre os fatores ansiogênicos no Ensino Remoto devido à Pandemia COVID 19. Tendo como eixo norteador a teoria do Sistema de Estruturação de Crenças Sociointerativo (SECS), considera-se que a ausência de capital afetivo associado a diversos fatores ocasionados pela Pandemia, como restrições, isolamento, interferência no espaço e tempo de estudo, modificações abruptas na forma de ser avaliado, podem contribuir para lógicas de interação menos saudáveis, estruturando crenças oxidantes em relação ao Ensino Remoto, podendo acarretar patologias como Ansiedade nos interagentes.
Palavras-chave: Ansiedade; Ensino Remoto; Crenças; Pandemia.
ABSTRACT
This article presents an investigation into the anxiogenic factors in Remote Learning due to the COVID 19 Pandemic. Having as a guideline the theory of the Social-Interactive Belief Structuring System (SECS), it is considered that the absence of affective capital associated with several factors caused by the Pandemic, such as restrictions, isolation, interference in the space and time of study, abrupt changes in the way of being evaluated, can contribute to less healthy interaction logics, therefore, structuring oxidizing beliefs in relation to Remote Learning, which can lead to pathologies such as Anxiety in the interactors.
Keywords: Anxiety; Remote Teaching; beliefs; Pandemic.
A ansiedade é um conceito que faz referência a uma emoção natural, assim como a raiva e a alegria. É uma experiência comum sentir-se ansioso frente a uma nova experiência ou a alguma situação que, em princípio, é interpretada como uma ameaça ou desafio. Segundo Graeff (2011), a ansiedade pode ser definida como uma emoção relacionada ao comportamento de avaliar riscos no ambiente. Mesmo não estando em situações reais de perigo, o organismo se manifesta de forma instintiva, fisiológica ou emocional diante de uma ameaça iminente. A intensidade dessa manifestação dá-se, em grande parte, devido a situações já vivenciadas anteriormente (BAPTISTA; CARVALHO; LORY, 2005).
Situações novas, em que a pessoa é avaliada ou que podem exigir o desenvolvimento de novas habilidades e conhecimento para que metas sejam atingidas, podem desencadear respostas de medo frente às possibilidades de se conseguir ou não responder adequadamente a tais demandas. As interpretações dessas demandas e de si mesmo diante delas, o valor dado às percepções dos outros e o sentido atribuído às tarefas e metas, podem afetar a forma como tais situações irão influenciar o funcionamento da pessoa.
Por quê, entretanto, uma mesma situação pode causar grau maior ou menor de ansiedade e o que influencia o sentido saudável ou patológico que as reações a isso assumem? Essa reflexão será aqui desenvolvida tendo como base a Teoria Sistema de Estruturação de Crenças Sociointerativo (SECS) publicada por Anderson Clayton Pires em 2013. De acordo com a perspectiva do SECS, isso depende de como o indivíduo interpreta a situação e atribui sentido a ela. A interpretação que cada indivíduo faz de uma situação determinará a intensidade e o sentido da reação de ansiedade ou de ausência da mesma.
CONHECENDO O SISTEMA DE ESTRUTURAÇÃO DE CRENÇAS SOCIOINTERATIVO
Cada indivíduo estrutura um sistema de crenças, construído e constantemente modificado utilizando-se de informações oriundas de experiências vividas e significadas no decurso de sua existência, dentro de um espaço social, por meio de interações sociais. Pode-se imaginar, esquematicamente, um sistema de crenças como uma teia que reúne elementos muito diversos: palavras, imagens, aromas, odores, e todas as experiências. Nas relações de encontro com outros sistemas de crenças e sob influências de cada ambiente, esses elementos vão ocupando espaço nessas teias mentais (sistema de crenças) enquanto o indivíduo interpreta e atribui significado a esses elementos. Dessas interpretações, significações e atribuições de valores a cada elemento, fato ou situação se originam as crenças.
Pires (2013a), desenvolve uma compreensão a partir de definições diversas do conceito de crença que aparecem no senso comum, na filosofia, teologia e ciências, mostrando que a tarefa de o definir é complexa. Para esse autor, as crenças são condicionantes da forma como uma pessoa atribui sentido a cada experiência e a cada coisa no mundo, no rito hermenêutico, dentro de cada contexto sociointerativo. A crença é o fundamento intencional da ação humana. Por isso, as crenças são “concebidas como construções originadas de uma experiência eminentemente sociointerpretativa” (PIRES, 2013a, p. 10) e estão divididas em dois gêneros: Alcalinas e Oxidantes. Segundo Pires (2013), as crenças Alcalinas têm uma função terapêutica (kalogênica) e as crenças Oxidantes possuem função adoecedora (patogênica).
Todo sistema de crenças é formado por crenças de ambos os gêneros, alcalinas e oxidantes. Quando predominam crenças alcalinas a pessoa tende a manter maior nível de sobriedade. Isso significa interpretar as experiências e a si mesmo nelas com mais clareza e capacidade de avaliar bem as evidências que dão suporte a uma compreensão da realidade vivida. Delas se desenvolve maior potencial de compreensão realista, mas que visa à superação dos desafios vividos. São crenças que estão na base de uma atitude esperançosa, bem como da capacidade de se manejar bem as frustrações e experiências negativas.
Por outro lado, quando predominam crenças do tipo oxidante, as interpretações tendem a sofrer distorções. As distorções atuam como obstáculos à compreensão sóbria das experiências. Olhando uma experiência através de uma crença oxidante, a pessoa tende a perceber tanto a situação como a si mesmo de forma distorcida. Inimigos imaginários, bem como a percepção de obstáculos maiores do que realmente são e a falta de recursos para enfrentá-los, são desdobramentos possíveis de interpretações enviesadas por distorções. Evidências que questionam a crença tendem a ser descartadas enquanto as que a confirmam ganham um valor exagerado e podem ser generalizadas.
As crenças, por sua vez, são a base das lógicas de interação estabelecidas entre os interagentes. A teoria propõe o conceito de lógica de interação como alternativa ao de comportamento. Isso, porque o comportamento é considerado como ação social, subjetivamente visada (WEBER, 2009). O sentido da ação é definido pelo próprio interagente. Trata-se de ação consciente que tem as crenças como fundamento intencional. A ação, portanto, tem uma lógica. São ações racionais, porque têm finalidade (planejamento), visando sempre determinados fins. Nas ações, portanto, cada interagente comunica crenças que precisam ser interpretadas pelos outros. Nas lógicas de interação as pessoas impactam os sistemas de crenças umas das outras, nessa dinâmica relacional (Pires, 2013).
O adoecimento e a saúde são, portanto, fortemente influenciados pela dinâmica das lógicas de interação estabelecidas entre as pessoas. Crenças alcalinas definem lógicas de interação kalogênicas (saudáveis), enquanto crenças oxidantes definem lógicas de interação patogênicas (adoecidas). É nas interações que a patonoesis (o adoecimento) ou a kalonoesis (um funcionamento saudável) ganham movimento. Se as lógicas de interação que predominam no ambiente escolar forem de natureza patogênica, esse será um ambiente propício ao adoecimento dos interagentes. Espera-se, portanto, que o ambiente escolar seja pensado a partir do tipo de interação que ali predomina.
É importante considerar que cada ambiente estabelece modos próprios de interação, porque se organiza a partir de crenças que definem modos aceitos como adequados de funcionar, as regras de conduta e o sentido de tudo que faz parte desse contexto. Essas crenças, coletivamente compartilhadas no ambiente, exercem um tipo de coerção sobre a consciência das pessoas (DURKHEIM, 2008). Esse é um fator importante analisado por Pires (2013a). O sistema de crenças de cada interagente (cada pessoa) opera através de lógicas de interação que precisam ser analisadas contextualmente, em cada ambiente onde são estabelecidas e mantidas. O mesmo indivíduo, pensado como uma unidade ontológica, opera através de muitas lógicas de interação.
As lógicas de interação variam de acordo com o ambiente social e os sentidos definidos como normas de conduta (crenças e valores) de cada ambiente. Isso significa que, se o objetivo é promover uma relação saudável dos estudantes com o processo educacional e uma dinâmica interacional kalogênica entre professores e estudantes, faz-se necessário pensar sobre as crenças e valores coletivamente compartilhados e que atuam influenciando as lógicas de interação no ambiente escolar. Nas lógicas de interação saudáveis (kalogênicas) é maior o potencial para se desenvolver sistemas de crenças saudáveis e que visam promover a saúde dos interagentes. A saúde e o adoecimento são pensados a partir dos encontros entre sistemas de crenças, formando lógicas de interação kalogênicas ou patogênicas.
Importante considerar que o sistema de crenças não é rígido, mas flexível. Na constante interpretação das experiências vividas, sentidas e significadas (no rito hermenêutico), ele está sempre mudando. Essas mudanças podem ocorrer tanto pela estruturação e predominância de crenças com função kalogênica como de outras com função patogênica. Por isso, uma lógica de interação que em dado momento funciona de forma terapêutica (kalogênica) pode tornar-se patogênica e vice-versa, a partir de uma experiência vivida, sentida e significada. Para que seja possível desenvolver lógicas de interação kalogênicas a teoria do SECS destaca um vetor de natureza interacional que define a saúde/resiliência do elo social, nas lógicas de interação: o capital afetivo.
Pires (2013a, p. 171) define o capital afetivo como responsável por “um sistema de funcionamento alcalino das crenças kalogeracionais”. Pela lógica do capital afetivo, um interagente percebe o outro como tendo um valor simbólico e moral significativo. Disso resulta maior preocupação em preservar a integridade e saúde do sistema de crenças do outro nas lógicas de interação. Esse modo de significar o outro torna o elo social mais resiliente. A elasticidade promovida pelo capital afetivo contribui para evitar a quebra do elo social. O capital afetivo é um tipo de lógica de interação kalogênica (saudável). A elasticidade significa maior tolerância ao choque/conflito inevitavelmente produzido pelas diferenças que são próprias de cada pessoa/interagente. Isso resulta em maior capacidade criativa para se enxergar novas possibilidades de interpretação renovadoras das lógicas de interação.
As interações sociais, porém, não são lineares ou estáticas. As lógicas de interação possuem uma intencionalidade determinada pela crença de cada indivíduo interagente e, portanto, são imprevisíveis em contextos muito complexos como o de uma sociedade globalizada. É impossível garantir a estabilidade do capital afetivo nas interações professor-aluno. Em vários momentos essas interações irão apresentar elementos complexos e de divergentes interpretações muitas vezes desprovidas de afeto pelo outro. Isso pode gerar crenças patogênicas, tornando a relação entre os interagentes cada vez menos atrativa e definida pela lógica do capital desprezativo.
Nesse caso, o capital desprezativo revela diretamente a existência de crenças afirmativas de que o outro não tem importância moral ou simbólica que o torne tão indispensável na estrutura de relacionalidade que envolve o eu e o tu. Do desinteresse afetivo decorre a lógica de interação patogênica, pela qual processos de construção progressiva de contingenciamento da doença relacional se desenvolvem e ganham densidade ontológica. (PIRES, 2013a, p. 45).
O capital desprezativo é um tipo de lógica de interação instrumental, na qual o outro é percebido sem um valor simbólico e moral que o torne indispensável. Nesse caso, o outro pode ser significado de modo funcional/pragmático, ocupando uma função instrumental na interação. Quando o outro ocupa uma função meramente instrumental seu valor afetivo é baixo ou inexistente. Interage-se com o outro, portanto, tendo como critério de sustentação da interação o que ele pode oferecer (seus predicados ou sua função pragmática) e não seu valor em sentido afetivo. As interações, então, tendem a se tornar mais frágeis. Sem a ação do capital afetivo no modo de perceber o outro, a tolerância tende a ser baixa ou ausente. Isso torna o elo social rígido, com baixo potencial criativo. Os sentidos da interação definidos pelas crenças oxidantes se enrijecem e tornam-se resistentes à renovação. Os interagentes, nesse caso, tendem a perder sua capacidade criativa para enxergar novos sentidos com potencial de renovar a lógica de interação.
Se o capital afetivo pode ser entendido como saúde inter-relacional, o capital desprezativo é “sinônimo de patologia microrrelacional” (PIRES, 2013a, p. 177). Não é possível, portanto, estabelecer interações saudáveis (kalogênicas) sem o capital afetivo.
ANSIEDADE EM TEMPOS NORMAIS E EM TEMPOS DE PANDEMIA: FATORES ANSIOGÊNICOS NO ENSINO REMOTO
A pandemia da Covid-19 impactou de um modo inédito a rotina das pessoas em todo o mundo. O senso de segurança ontológica, já bastante prejudicado no cenário de um mundo globalizado, sofreu um impacto ainda maior. Por segurança ontológica entende-se um senso de segurança do indivíduo, fundado na percepção de ordem e estabilidade da vida (GIDDENS, 2007). No cenário global de incerteza causado pelas reações à pandemia da Covid-19, a insegurança e a incerteza foram elevadas de forma significativa.
Desde 11 de março de 2020, diversos tipos de distanciamento social foram impostos, com diferentes níveis de rigor. O isolamento no espaço doméstico, a proibição de circulação em vários ambientes e outras restrições de movimento e acesso a recursos, se tornaram parte da vida em todo o planeta. Segundo o site BBC News em março de 2020 (BBCNEWS, 2020), estimou-se que ao menos 2,8 bilhões de pessoas estavam vivendo sob algum tipo de restrição de movimento ou acesso a serviços desde o início da pandemia. Esse é um cenário em que as interações sociais foram seriamente afetadas.
O ensino remoto, preocupações com os riscos de adoecimento, um grande volume de informações dramáticas veiculadas diariamente pelos meios de comunicação, as divergências de opiniões na comunidade médica e científica e entre autoridades diversas, produziram um cenário de grande incerteza. O aumento da insegurança criou um cenário ainda mais propício ao adoecimento das pessoas (GAMEIRO, 2020). Conforme revisão sistemática de estudos sobre adoecimento mental realizada por Moreira, Sousa e Nóbrega (2020), estudantes estão entre as categorias sociais mais afetadas mentalmente no contexto da pandemia de Covid-19. O estudo mostra que entre os problemas classificados como mentais, o estresse e a ansiedade ocupam lugar de destaque. Os autores ressaltaram que o cenário favorece tanto o surgimento de sintomas de quadros patológicos em pessoas saudáveis, como potencializa sintomas em pessoas que já têm histórico de transtornos mentais.
Esse cenário de incertezas, preocupações, medos e inseguranças, contrasta com as expectativas produzidas no cenário hedocultural idealizado pela sociedade do século 21. Dificilmente um adolescente sente prazer ao ter que gerir o próprio tempo e responsabilizar-se pelo seu próprio aprendizado. Não parece ter um potencial prazeroso não conseguir assistir a uma videoaula pela falta de acesso ou acesso limitado à internet, ou mesmo pela falta de atrativos desse formato. Os espaços físicos das residências nem sempre são tão harmoniosos e confortáveis e o acúmulo de atividades de naturezas distintas num mesmo espaço somado à redução da vida social pode promover estresse mais elevado na vida cotidiana. Este é um cenário onde a obtenção de prazer nas atividades cotidianas pode se tornar mais difícil. Como já foi exposto, em lógicas de interações frágeis pela ausência do capital afetivo, o risco de adoecimento é alto. Nesse caso, a tolerância à ausência de prazer é baixa.
Para Camargo (2009), tratando especificamente da ansiedade e concordando com Beck (1997) e Pires (2013a), a interpretação que cada indivíduo faz de uma situação é o que determinará a intensidade da reação de ansiedade. Quanto mais ameaçadoras parecerem ser as consequências da situação e quanto menos recursos a pessoa avaliar que tem para enfrentá-la, maior será a reação de ansiedade. As restrições das interações sociais associadas ao fluxo acelerado de informações pessimistas advindas sobretudo da internet e da televisão podem afetar a interpretação da realidade de cada indivíduo e levar à estruturação de crenças com potencial oxidante. Para Pires (2013a, p. 144) “o gênero da crença está associado às experiências vividas e significadas dos/pelos interagentes […]”. O modo como uma pessoa sente uma situação enquanto a interpreta pode ser influenciado pelas notícias que recebe e pelo modo como as mesmas são comunicadas. Isso se soma aos outros fatores de natureza sociointerativa.
Durante a Pandemia, as interações professor-aluno foram limitadas, reduzidas à comunicação apenas por meio de aplicativos e/ou aulas gravadas. Tanto professores como estudantes tiveram suas rotinas concentradas no ambiente doméstico. A interação aluno-aluno de modo direto (presencial) foi suspensa, portanto, na maioria das escolas. Sendo assim, a experiência do ensino remoto durante a pandemia pode ter prejudicado o funcionamento do sistema de crenças de estudantes e professores. Se o cenário hedocultural já não favorecia o capital afetivo, somou-se a isso o medo e as incertezas como potenciais condições de agravamento das lógicas de interação patogênicas. Este parece ser um cenário propício à complexificação de condições de ansiedade patológica já existentes no ambiente físico da escola.
Ao mesmo tempo, é importante verificar como a situação específica de avaliação escolar tem sido vivida e se continua, no ensino remoto, ocupando um lugar de destaque entre os fatores ansiogênicos da vida educacional. Diante disso, foi aplicado um questionário constituído por 10 (dez) questões semiestruturadas, que foi respondido por 34 alunos do Ensino Médio Técnico Integrado do IF Goiano, Campus Trindade, durante o terceiro trimestre letivo de 2021, sob livre adesão, sem critérios de escolha ou exclusão, com o objetivo de investigar os significados que estavam sendo atribuídos, por parte dos alunos, à experiência do Ensino Remoto. Os dados obtidos foram analisados e distribuídos em 3 categorias: I. O Ensino remoto e a família; II. O Ensino Remoto e à Escola; III. O Ensino Remoto: desafios e expectativas para a conclusão do ano letivo.
METODOLOGIA
O presente trabalho é de natureza qualitativa e interpretativa. O método qualitativo apresenta-se como o mais adequado para o objetivo de identificar as crenças e sua relação com a saúde dos discentes em situações de avaliação escolar. De acordo com Minayo (1994), a pesquisa qualitativa busca compreender a visão de mundo dos sujeitos diante das diversas situações através de valores, crenças, atitudes, representações, significados e opiniões. Para isso, a pesquisa foi desenvolvida dentro do ambiente escolar, a fim de “[…] captar o universo das percepções, das emoções e das interpretações dos informantes” (TRIVIÑOS, 1987, p. 82).
Para alcançar os objetivos definidos neste trabalho, foi aplicado um questionário semi-estruturado com questões abertas e fechadas, aos alunos do IF Goiano, durante o terceiro trimestre letivo de 2021, que tratou da percepção dos mesmos quanto ao ensino remoto, como esses estudantes se saíram ao utilizar este método como ensino e como esse método de ensino aliado às experiências vividas com seus familiares, amigos e professores durante o período de Pandemia contribuíram para estruturação de crenças alcalinas ou patogênicas.
O universo de pesquisa foi composto por discentes dos 1ºs, 2ºs e 3ºs anos dos cursos Técnicos Integrados ao Ensino Médio, do Instituto Federal Goiano – Campus Trindade. Participaram da pesquisa alunos de ambos os sexos. No momento da coleta dos dados, esses estudantes tinham idades entre quatorze e dezessete anos. Não foi adotado nenhum critério de exclusão para a participação no estudo, ficando livre a participação de qualquer aluno dos cursos Técnicos Integrados ao Ensino Médio.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados apresentaram os impactos do contexto de pandemia sobre a saúde dos estudantes e suas lógicas de interação tanto na família como na escola (em situação de ensino remoto). Os relatos dos participantes apontam a presença de crenças sobre si mesmos, a própria capacidade de enfrentamento dos desafios, bem como sobre a percepção dos outros e a dificuldade para estudar. A seguir, são apresentados e discutidos esses resultados.
O ENSINO REMOTO E A FAMÍLIA
Os dados obtidos revelaram que 94,1 % dos participantes eram incentivados pela família a continuarem estudando durante o ensino remoto. Ao serem questionados se a família e/ou amigos falavam mais frases de incentivo ou desmotivação em relação ao ensino-aprendizagem, porém, 51% relataram ouvir frases de incentivo contra 49% de desmotivação. Apesar do incentivo mencionado por 94,1 % a continuarem estudando durante a pandemia, 52,9% relataram sentir-se preocupados com maior frequência, 20,8 % disseram sentir cansaço, angustia, frustração, incapacidade, ansiedade, tranquilidade e 17,6% relataram sentir tristeza e raiva.
Excerto 24: Recebi mais apoio dos colegas que me incentivaram a continuar. Fiquei desmotivada depois das inúmeras cobranças repetitivas dos familiares. (Aluno 10, questionário 2).
Excerto 25: Da escola eu consigo ouvir mensagens mais positivas no requisito que se importam de verdade com a saúde mental dos alunos e dos funcionários também. Isso me faz sentir aliviado mesmo depois de ter pensado demais e ter crises de ansiedade. Da família depende do dia e momento. Às vezes ouço que esse ano foi perdido e que é melhor eu repetir de ano e começar de ano por causa de certas matérias, mesmo eu não querendo isso e odiar bastante sobre essa hipótese acontecer. Eu também escuto outras coisas negativas, mas acabo tentando não pensar muito ou sobre, porque acabo inventando problemas que nem existem, e esse momento de isolamento só piorou isso, me causando uma certa desmotivação aos estudos, mas acho que tudo vai voltar ao normal quando eu ir presencialmente para o IF. (Aluno 32, questionário 2).
O ENSINO REMOTO E A ESCOLA
Quando questionados sobre o amparo da escola (professores e servidores) durante a pandemia, 76,5 % dos alunos disseram que se sentiram amparados, porém quase a metade dos participantes revelaram que sentiram vontade de trancar o curso durante a Pandemia.
Excerto 26: Já tive vontade de trancar e não tenho muita motivação pra continuar não, eu tenho uma dificuldade absurda de estudar em casa, eu sempre costumava deixar isso pra fazer mais na escola mesmo, em casa qualquer coisinha tira meu foco e eu acabo não conseguindo realizar atividades (Aluno 2, questionário 2).
Excerto 27: Já tive vontade de trancar o curso, por saber que o ensino remoto não funciona tão bem quanto o presencial. (Aluno 8, questionário 2).
O ENSINO REMOTO: DESAFIOS E EXPECTATIVAS PARA A CONCLUSÃO DO ANO LETIVO
Durante o Ensino Remoto os dados revelaram que os alunos sentiram maior dificuldade de aprendizado nas disciplinas exatas e nas disciplinas técnicas e que, no Ensino remoto ficou mais difícil aprender tanto as disciplinas do núcleo regular comum quanto as da área técnica. Ficou evidente também o medo que os alunos sentiam de não conseguirem ser aprovados no final do ano letivo (38,2%) ou de não terem aprendido o suficiente (47,1%).
Excerto 28: Pesquisadora: Em qual (s) disciplina (s) você teve mais dificuldade (de aprender) durante o Ensino Remoto?
Excerto 29: Mecânica de Equilíbrio, Física Mecânica, Química, Matemática, Matemática Aplicada. ( Aluno 32, questionário 2).
Excerto 30: Meu desempenho caiu muito em matemática e química… programação nem se fala. ( Aluno 29, questionário 2).
Excerto 32: Pesquisadora: Com relação às disciplinas do Núcleo Regular Comum, no ensino remoto ficou mais fácil ou mais difícil aprender? Por quê? Cite exemplos e especifique.
Excerto 33: Pra mim ficou mais difícil, porque faz muita falta um professor pra explicar o conteúdo às vezes, da pra pesquisar e tudo mais só que não é a mesma coisa, além de envolver bastante leitura, o que acaba sendo cansativo a maior parte do tempo. (Aluno 2, questionário 2).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O paradoxo apresentado nas respostas dos alunos, motivação versus desmotivação, incentivo versus medo, destacam que cada sistema de crenças é único. Numa mesma situação, a partir das interpretações que cada pessoa faz, condicionadas pelas suas crenças, os impactos sofridos são diferentes (PIRES, 2013a). Apesar do incentivo recebido por familiares, amigos e professores, vários alunos significaram o Ensino Remoto como algo de menor valor perante ao Ensino Presencial.
As mesmas famílias que incentivaram seus filhos a continuarem estudando, também diziam frases de desmotivação em relação ao ensino-aprendizagem durante a pandemia; ou seja, é evidente que crenças oxidantes imperavam sobre as alcalinas no que tange ao Ensino Remoto. Esses dados mostraram a importância de se compreender melhor o papel fundamental das lógicas de interação no desenvolvimento na estruturação de crenças dos estudantes. As interações no ambiente familiar parecem ter produzido impacto significativo, bem como as interações, mesmo por via remota, com os professores e servidores.
O medo de não aprender ou de reprovar ao final do ano devido à ausência física do professor revela a saturação das relações de ensino-aprendizagem à distância. Isso ressalta ainda crenças que valorizam a presença física do professor na interação professor-aluno. Tais constatações corroboram estruturações de crenças oxidantes, favorecendo ao adoecimento. A situação de ensino remoto, caso fosse mais prolongada, poderia aumentar o nível de estresse nas lógicas de interação, produzindo a repetição de lógicas patogênicas. Ao se repetir, essas lógicas vão se enrijecendo, como afirmado na teoria do SECS. Esse fenômeno é chamado de contingenciamento por Pires (2013). A repetição de movimentos interacionais com pouco ou nenhum capital afetivo leva a um enrijecimento das lógicas de interação, tornando mais difícil produzir a renovação das mesmas. Isso resulta em adoecimento relacional.
É importante considerar que o ensino remoto pode ter oferecido oportunidades de reflexão sobre o papel das lógicas de interação no ambiente familiar e como podem influenciar a estruturação de crenças que impactam as interações na escola. Da mesma forma, essa situação de crise colocou em destaque a necessidade de se promover lógicas de interação saudáveis também na escola, já que a percepção de suporte por parte dos professores e servidores parece ter tido função terapêutica relevante. Reflexões como esta podem levar a melhor compreensão tanto de interagentes do ambiente familiar como da escola sobre a importância de se compreender essa relação entre crenças, lógicas de interação e a sáude/adoecimento dos relacionamentos. O que se chama a atenção aqui é para o fato de as pessoas não podem ser compreendidas como unidades isoladas, mas sim inseridas em sistemas de estruturação de crenças de natureza sociointerativa. A saúde das lógicas de interação é fundamental para o desenvolvimento da saúde dos interagentes. Isso pode fazer toda a diferença na capacidade de enfrentamento de situações de crise, como ocorreu com a pandemia.
REFERÊNCIAS
BAPTISTA, A.; CARVALHO, M.; LORY, F. O medo, a ansiedade e as suas perturbações. Psicologia, v. 19, n. 1/2, p. 267-277, 2005. https://doi.org/10.17575/rpsicol.v19i1/2.407.
BECK, A. T. et al. Terapia cognitiva da depressão. Trad. S. Costa. Porto Alegre: Artmed, 1997.
CAMARGO, Eduardo Vieira. A ansiedade e seus efeitos na aprendizagem. España: Universidade de León, Departamento de Psicología, Sociología y Filosofía, 2009.
DURKHEIM, Emile. A educação moral. Traduzido por Raquel Weiss. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
GAMEIRO, Natália. Depressão, ansiedade e estresse aumentam durante a pandemia. Brasília: Fiocruz, 2020. Disponível em: https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/depressao-ansiedade-e-estresse-aumentam-durante-a-pandemia/
GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2007.
GRAEFF, Frederico G. Ansiedade, pânico e o eixo hipotálamo-pituitária-adrenal. Rev. Bras. Psiquiatr. v. 29, Supl. I, p. S3-S6, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462007000500002.
MOREIRA, W. C.; SOUSA, K. H. J. F.; SOUSA, A. R. de; SANTANA, T. da S. ZEITOUNE, R. C. G.; NÓBREGA, M. do P. S. de S. Mental health interventions in times of COVID-19: a scoping review. SciELO Preprints, 2020. Disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/1007/1437
PIRES, Anderson Clayton. Sistema de Estruturação de Crenças Sociointerativo: estruturação de crenças, lógicas de interação e processos de contingenciamento. Psicólogo Informação, v. 17, n. 17. jan./dez. 2013a.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. I. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa; rev. tec. Gabriel Cohn. 4 ed. Brasília: UnB, [1913], 2009.
1Mestranda em Educação Profissional e Tecnológica do Instituto Federal de Goiás (IFG) e servidora do Instituto Federal Goiano (IF Goiano – Campus Anápolis).
E-mail: marcia.rodrigues@ifgoiano.edu.br
2Doutor em Psicologia (Psicologia Clínica e Cultura – UnB) e professor do Instituto Federal de Goiás (IFG – Campus Goiânia).
E-mail: timoteo.psi@gmail.com / timoteo.vieira@ifg.edu.br