O ABANDONO AFETIVO PARENTAL: ANÁLISE DA RESPONSABILIDADE CIVIL NA LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202510291040


Lidiane Saraiva Aguilera1
Thaiane Costa Frota2
Maria Lídia Brito Gonçalves3


RESUMO 

O presente estudo aborda a responsabilidade civil decorrente do abandono afetivo parental no ordenamento jurídico brasileiro, destacando a evolução histórica do conceito de família e a consolidação da afetividade como princípio jurídico e vetor interpretativo do Direito de Família contemporâneo. A pesquisa, de natureza qualitativa, descritiva e documental, fundamenta-se na interpretação da doutrina, legislação e jurisprudência pertinente ao tema, com ênfase na decisão paradigmática do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferida no Recurso Especial nº 1.159.242/SP. O estudo evidencia a transformação do modelo familiar patriarcal para um modelo socioafetivo, orientado pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade familiar e do melhor interesse do menor, previstos na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nesse contexto, reconhece-se que o abandono afetivo configura uma violação aos deveres inerentes à parentalidade responsável, uma vez que a ausência injustificada de cuidado, amparo emocional e convivência representa uma omissão ilícita com repercussões psicológicas e sociais no desenvolvimento dos filhos. Conclui-se que, embora o afeto não possa ser juridicamente imposto, sua inobservância injustificada pode ensejar responsabilidade civil por danos morais, desde que comprovados os elementos caracterizadores do ilícito — culpa, dano e nexo causal. Dessa forma, a jurisprudência brasileira vem consolidando o entendimento de que o afeto possui relevância jurídica e valor normativo, constituindo um elemento essencial à realização dos direitos fundamentais no âmbito das relações familiares. 

Palavras chaves: família; afetividade; responsabilidade civil; abandono afetivo; dano moral. 

ABSTRACT 

This study addresses civil liability arising from parental emotional abandonment in the Brazilian legal system, highlighting the historical evolution of the concept of family and the consolidation of affectivity as a legal principle and interpretative vector of contemporary Family Law. The research, qualitative, descriptive, and documentary in nature, is based on the interpretation of doctrine, legislation, and case law relevant to the topic, with an emphasis on the paradigmatic decision of the Superior Court of Justice (STJ) in Special Appeal No. 1,159,242/SP. The study highlights the transformation of the patriarchal family model into a socio-affective model, guided by the principles of human dignity, family solidarity, and the best interests of the child, as enshrined in the 1988 Federal Constitution and the Child and Adolescent Statute (ECA). In this context, it is recognized that emotional abandonment constitutes a violation of the duties inherent in responsible parenthood, since the unjustified absence of care, emotional support, and interaction represents an unlawful omission with psychological and social repercussions on the development of children. It follows that, although affection cannot be legally imposed, its unjustified disregard may give rise to civil liability for moral damages, provided that the elements characterizing the wrongdoing—fault, damage, and causal link—are proven. Thus, Brazilian case law has consolidated the understanding that affection has legal relevance and normative value, constituting an essential element for the realization of fundamental rights within family relationships. 

Keywords: family; affection; civil liability; emotional abandonment; moral damage. 

1. INTRODUÇÃO 

A instituição familiar, ao longo da história, tem sido uma das mais importantes estruturas sociais, evoluindo constantemente para se adaptar às transformações culturais, políticas e jurídicas. Do modelo patriarcal fundado na autoridade do pai e no casamento formal, passou-se a reconhecer, no ordenamento jurídico brasileiro, famílias plurais, diversas em suas formas e constituições, cujo fundamento repousa não mais apenas no vínculo sanguíneo ou patrimonial, mas, sobretudo, na afetividade. Essa mudança de paradigma foi consolidada pela Constituição Federal de 1988, que estabeleceu, no artigo 226, a família como base da sociedade, e no artigo 227, a proteção integral à criança e ao adolescente. Esses dispositivos inauguraram uma nova era no Direito de Família, em que o afeto passa a ser compreendido como um valor jurídico e um princípio norteador das relações parentais (Lobo, 2014).

Nesse contexto, emerge a discussão sobre o abandono afetivo parental, conduta caracterizada pela omissão injustificada de um dos genitores em prestar os cuidados afetivos e emocionais indispensáveis ao desenvolvimento saudável dos filhos. Tal ausência, quando reiterada, pode ensejar a responsabilização civil por danos morais, com base nos artigos 186 e 927 do Código Civil, que disciplinam o dever de reparar o dano causado por ato ilícito, inclusive omissivo. A responsabilização não tem por finalidade impor o amor ou o afeto, sentimentos subjetivos e espontâneos, mas garantir o cumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar, como a convivência, o cuidado e a orientação dos filhos, conforme estabelecido nos artigos 1.634 e 1.638 do Código Civil. Como destaca Venosa (2020), “a responsabilidade dos pais não se limita à obrigação alimentar, mas compreende também a convivência e a assistência moral e emocional dos filhos”. 

A jurisprudência brasileira, ainda que com decisões oscilantes, tem reconhecido o abandono afetivo como fato gerador de responsabilidade civil em casos excepcionais, desde que comprovado o dano e o nexo causal com a conduta omissiva do genitor. O Superior Tribunal de Justiça firmou esse entendimento no Recurso Especial n.º 1.159.242/SP, em que se afirmou que a falta de convivência afetiva, quando injustificada e geradora de sofrimento ao filho, pode ser objeto de reparação moral. A ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, destacou que “o afeto, quando inserido no plano dos deveres jurídicos, pode ter sua ausência sancionada pela via indenizatória, desde que presentes os pressupostos da responsabilidade civil” (Brasil, 2012). Decisões como essa consolidam o entendimento de que o afeto, além de valor ético, assume, em determinadas circunstâncias, relevância jurídica. 

No entanto, o tema não está isento de controvérsias. Parte da doutrina argumenta que o reconhecimento da responsabilidade civil por abandono afetivo esbarra na impossibilidade de mensurar ou impor sentimentos, violando princípios como a liberdade individual e a autonomia privada. Para esses autores, a tentativa de judicialização da afetividade esvazia a espontaneidade das relações familiares e pode abrir precedentes perigosos para a banalização de ações indenizatórias. Por outro lado, há uma corrente majoritária que defende a responsabilização não como imposição de amor, mas como forma de garantir os direitos fundamentais da criança e do adolescente, como a dignidade, o afeto e o desenvolvimento emocional. Como defende Dias (2020), “não se trata de obrigar a amar, mas de reconhecer que a ausência culposa do cuidado e da convivência pode causar dano passível de reparação”. 

Diante dessa dualidade, propõe-se analisar a viabilidade da responsabilização civil por abandono afetivo parental no ordenamento jurídico brasileiro, à luz da doutrina, da legislação vigente e da jurisprudência consolidada. Como objetivo geral, busca-se compreender os fundamentos jurídicos que amparam a possibilidade de indenização nos casos em que a omissão afetiva ultrapassa a esfera moral e adentra a seara do ilícito civil. Especificamente, pretende-se: examinar o conceito e a evolução da afetividade como princípio jurídico; identificar os elementos essenciais para configuração do abandono afetivo; e analisar os critérios utilizados pelos tribunais superiores para reconhecer o dano moral decorrente da ausência afetiva parental. 

A relevância da pesquisa está em contribuir para o amadurecimento da doutrina e da jurisprudência sobre o tema, oferecendo uma análise crítica e sistematizada das principais correntes interpretativas. Trata-se de um debate sensível, pois envolve a ponderação entre o direito à convivência familiar, assegurado constitucionalmente, e os limites da intervenção estatal nas relações privadas. Além disso, a pesquisa visa reforçar a proteção integral do menor, conforme estabelecido no artigo 227 da Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. O reconhecimento da responsabilidade civil por abandono afetivo, quando cabível, não busca substituir a presença emocional, mas assegurar justiça à vítima de omissão parental, promovendo sua reparação e prevenindo condutas negligentes em futuras relações familiares. 

A abordagem será feita por meio de pesquisa bibliográfica e documental, com base em autores consagrados do Direito de Família e nas decisões mais recentes do STJ. A metodologia utilizada neste estudo fundamenta-se em teorias científicas que organizam e explicam o conhecimento acumulado sobre o objeto de pesquisa. O estudo adota a Teoria da Responsabilidade Civil, com base nos princípios da dignidade da pessoa humana e da função reparatória do dano, pilares do ordenamento jurídico brasileiro. 

A pesquisa tem caráter exploratório e descritivo. A abordagem exploratória se justifica pela necessidade de mapear as diversas interpretações jurídicas e os argumentos favoráveis e contrários ao reconhecimento do dever de indenizar nesses casos (Gil, 2008). Já a abordagem descritiva visa apresentar e analisar as decisões dos tribunais brasileiros, destacando os fundamentos jurídicos e as tendências jurisprudenciais sobre o tema (Bardin, 2011). 

A técnica de coleta de dados adotada neste estudo é a análise documental, que abrange a revisão de legislações, doutrinas jurídicas e jurisprudências. Serão analisadas normas do Código Civil, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da Constituição Federal, bem como julgados de tribunais superiores e estaduais que tratam da responsabilidade civil por abandono afetivo parental. Para a análise dos dados, foi empregada a análise de conteúdo, técnica qualitativa que permite interpretar e compreender as mensagens extraídas dos documentos normativos e das decisões judiciais. Além disso, a pesquisa utilizou a abordagem gramatical-lógica para interpretar dispositivos normativos e extrair o sentido jurídico das normas relacionadas à responsabilidade civil. 

Para garantir a robustez dos dados analisados, as pesquisas foram conduzidas em bases de dados jurídicas reconhecidas, como Biblioteca do Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), SciELO, LexML Brasil e Google Acadêmico, selecionadas pela sua relevância na área do Direito. Foram incluídos apenas artigos científicos, jurisprudências e normativas diretamente relacionadas ao tema, excluindo-se aqueles que não apresentaram relevância acadêmica ou jurídica. A metodologia adotada permitiu uma análise crítica e aprofundada da responsabilidade civil por abandono afetivo parental, proporcionando um panorama amplo sobre a normatização e a jurisprudência do tema no Brasil. 

2. A EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA E O NOVO PARADIGMA CONSTITUCIONAL 

A concepção jurídica de família sofreu significativas transformações ao longo da história, acompanhando as mudanças sociais, culturais e políticas de cada época. Durante o período colonial e imperial, a estrutura familiar brasileira era marcada por um modelo patriarcal e patrimonialista, regulado pelo direito canônico, em que o casamento era indissolúvel e os filhos nascidos fora dele eram excluídos da legitimidade jurídica (Santos, 2018, p. 168). Esse modelo começou a ser questionado a partir do advento da República e se transformou definitivamente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que inaugurou um novo paradigma de igualdade, liberdade e dignidade dentro das relações familiares (LOBO, 2014, p. 37). 

O texto constitucional de 1988 não apenas rompeu com a rigidez formalista do passado, como também reconheceu a pluralidade das entidades familiares, garantindo proteção jurídica à união estável, à monoparentalidade e à filiação socioafetiva. O artigo 226 da Constituição reconhece como família tanto a união formal quanto as relações constituídas por laços de afeto e convivência contínua. A afetividade, portanto, passou a ter relevância jurídica, tornando-se um dos fundamentos do Direito de Família (Farias; Rosenvald, 2014, p. 41). 

A Constituição também estabeleceu, no artigo 227, que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com prioridade absoluta, o direito à vida, à saúde, à educação, à dignidade e à convivência familiar. Esse dispositivo desloca o foco do Direito de Família da estrutura para a função, priorizando o bem-estar dos seus membros, sobretudo os mais vulneráveis. Assim, a afetividade deixou de ser mero valor ético para assumir contornos normativos e objetivos no ordenamento jurídico brasileiro (Dias, 2020, p. 56). 

A nova concepção constitucional de família está fortemente atrelada à ideia de solidariedade familiar e ao princípio da dignidade da pessoa humana, previstos no artigo 1.º, inciso III, da Constituição Federal. Essas diretrizes impõem deveres recíprocos de cuidado, atenção e respeito entre os membros da entidade familiar. O afeto, nesse sentido, passa a ser compreendido como elemento estruturante das relações familiares, com potencial para gerar direitos e deveres legalmente exigíveis (Calderón, 2017, p. 102). O modelo constitucional vigente impõe também uma revisão da função do poder familiar, que passa a ser visto não mais como prerrogativa, mas como conjunto de deveres. Entre esses deveres, estão a convivência, o cuidado emocional, a orientação ética e o suporte moral necessário ao pleno desenvolvimento do filho. A ausência desses elementos pode comprometer o processo de formação da personalidade da criança, abrindo caminho para discussões sobre a responsabilização civil do genitor ausente (VENOSA, 2020, p. 349). 

Portanto, observa-se que a evolução do conceito de família no ordenamento jurídico brasileiro culminou na valorização da afetividade como princípio normativo implícito, com impacto direto nas relações parentais. Essa transformação foi essencial para a construção da tese da responsabilidade civil por abandono afetivo, cuja análise jurídica só é possível dentro desse novo paradigma constitucional. 

2.1 O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA 

O princípio da afetividade emerge como uma das mais relevantes conquistas do Direito das Famílias contemporâneo, promovendo uma reconfiguração das relações jurídicas baseadas no afeto, na solidariedade e no respeito mútuo. Embora não esteja expressamente positivado na Constituição Federal, esse princípio é extraído de uma interpretação sistemática de dispositivos como os artigos 1.º, inciso III, 5.º, §2.º, e 227, que juntos delineiam a dignidade da pessoa humana e a proteção integral à criança e ao adolescente como fundamentos da ordem jurídica brasileira (Pereira, 2014, p. 60). 

No contexto familiar, o princípio da afetividade se manifesta como obrigação jurídica dos pais para com os filhos, no sentido de zelar pelo seu bem-estar emocional, promovendo vínculos de convivência, cuidado e presença. Segundo Paulo Lobo (2014, p. 66), “a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles”. Essa concepção rompe com a ideia de que o afeto é mera liberalidade, e o insere no rol das obrigações parentais legalmente exigíveis. A doutrina majoritária reconhece a afetividade como verdadeiro princípio jurídico, dotado de força normativa e aplicabilidade concreta. Autores como Maria Berenice Dias, Flávio Tartuce, Giselle Groeninga e Rodrigo da Cunha Pereira defendem que o afeto constitui elemento essencial à configuração da entidade familiar e ao exercício responsável da parentalidade. Eles sustentam que a ausência injustificada do dever de convivência pode configurar ilícito civil e ensejar reparação por dano moral (Calderón, 2017, p. 103-107). 

Ainda que exista resistência por parte de uma minoria doutrinária — que entende ser o afeto um valor subjetivo e, portanto, inapreensível pelo Direito — a jurisprudência tem demonstrado receptividade ao princípio da afetividade, especialmente nos casos em que sua omissão produz danos mensuráveis. A afetividade, nesse cenário, deixa de ser mera expressão da liberdade privada e passa a integrar o núcleo essencial do direito à convivência familiar, com consequências jurídicas objetivas (Farias; Rosenvald, 2014, p. 147). A aplicação prática do princípio da afetividade pode ser observada em decisões judiciais que reconhecem o vínculo socioafetivo como critério de filiação, em detrimento da biologia, bem como em ações de guarda, adoção e alimentos, onde o afeto é elemento central na ponderação judicial. O reconhecimento da parentalidade socioafetiva, inclusive, tem como pressuposto essencial a presença constante, o cuidado emocional e a criação de vínculos afetivos duradouros, reforçando a compreensão de que a afetividade possui valor jurídico vinculante (LOBO, 2014, p. 72). 

Verifica-se portanto que, o princípio da afetividade transformou profundamente o Direito de Família brasileiro, aproximando-o de sua função social e protetiva. Sua concretização exige do intérprete e do julgador sensibilidade jurídica para reconhecer os vínculos reais e os danos advindos da sua omissão, o que torna possível a responsabilização por abandono afetivo dentro de um sistema constitucional que prioriza o afeto como fundamento das relações familiares. 

2.2 A RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO PARENTAL 

A responsabilidade civil, no ordenamento jurídico brasileiro, está fundamentada nos artigos 186 e 927 do Código Civil, que impõem o dever de reparar os danos causados por ato ilícito, inclusive por omissão culposa. Aplicada ao campo das relações familiares, essa responsabilidade passa a ser discutida quando a conduta omissiva do genitor — especialmente no exercício do poder familiar — resulta em prejuízos psíquicos ou morais à prole. O abandono afetivo parental, nesse contexto, é entendido como a omissão reiterada e injustificada do pai ou da mãe em prestar cuidados emocionais, afetivos e sociais ao filho, prejudicando o seu desenvolvimento e comprometendo sua dignidade (Dias, 2020, p. 97). 

A consolidação da tese de que o abandono afetivo pode gerar responsabilização civil decorre de decisões judiciais cada vez mais consistentes. Um marco importante foi o julgamento do Recurso Especial n.º 1.159.242/SP, em que o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a ausência imotivada e prolongada de um pai na vida da filha poderia configurar dano moral indenizável. A ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, defendeu que o afeto, quando alçado à condição de dever jurídico, impõe ao genitor a obrigação de cuidado, atenção e convivência, sendo sua omissão passível de reparação pecuniária (Brasil, 2012). Essa decisão abriu precedente importante para a aplicação da responsabilidade civil no âmbito das relações parentais. A doutrina brasileira tem corroborado essa interpretação. Para Gurgel (2018, p. 35), a responsabilização civil por abandono afetivo não implica em coagir sentimentos ou obrigar o amor, mas sim garantir o cumprimento dos deveres jurídicos derivados do poder familiar. A autora afirma que o afeto, ao se tornar um valor jurídico, passa a ser exigível na forma de convivência e cuidado, e sua ausência pode causar danos que precisam ser compensados. Nessa linha, a indenização cumpre dupla função: compensatória, para a vítima do abandono, e pedagógica, como forma de prevenir a repetição da conduta omissiva. 

Contudo, nem todos os julgadores e estudiosos concordam com a aplicação automática da responsabilidade civil nesses casos. Críticas importantes surgem quanto à dificuldade de mensuração do dano afetivo e à subjetividade envolvida na análise da culpa. Argumenta-se que nem toda ausência configura abandono, sendo necessário distinguir a omissão dolosa e reiterada de situações de afastamento circunstancial ou motivado. Além disso, existe o receio de banalização da judicialização das relações familiares, o que exigiria maior prudência na admissão da indenização por abandono afetivo (Melo Neto, 2024). A jurisprudência recente tem caminhado no sentido de estabelecer critérios rigorosos para o reconhecimento do dano moral por abandono afetivo, exigindo prova concreta da omissão e de seus efeitos psicológicos. A demonstração do nexo causal entre a conduta do genitor e o dano sofrido pelo filho é indispensável, sendo comum a exigência de laudos periciais e testemunhos qualificados. Autores como Santos e Oliveira (2024, p. 12) reforçam que o dano moral, nesses casos, pode ser presumido (in re ipsa), mas ainda assim requer elementos objetivos para a sua configuração judicial. 

A análise doutrinária e jurisprudencial realizada ao longo da pesquisa evidencia a consolidação de uma nova compreensão jurídica acerca das obrigações parentais, especialmente no que se refere ao dever de convivência, cuidado emocional e afeto. A afetividade, antes considerada um elemento subjetivo e ético da relação entre pais e filhos, passou a ser reconhecida como valor jurídico com efeitos práticos, capaz de fundamentar a responsabilização civil do genitor omisso. Esse entendimento decorre da leitura sistemática da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código Civil, que consagram o princípio da proteção integral, a dignidade da pessoa humana e o dever de cuidado parental como pilares das relações familiares (Lobo, 2014; Dias, 2020).

Os resultados obtidos a partir do levantamento bibliográfico indicam que a doutrina nacional majoritariamente admite a possibilidade de indenização por abandono afetivo, desde que estejam presentes os elementos clássicos da responsabilidade civil: conduta omissiva culposa, dano comprovado e nexo causal. Autores como Clara Gurgel (2018), Monnycc Brilhante (2022) e Maria Berenice Dias (2020) defendem que o dever de afeto é inerente ao poder familiar, e sua omissão reiterada e injustificada caracteriza violação de dever jurídico. Essas autoras sustentam que o afeto, quando juridicamente vinculado ao exercício da parentalidade, torna-se exigível judicialmente, sobretudo nos casos em que sua ausência compromete o desenvolvimento emocional do filho. 

O levantamento jurisprudencial reforça esse entendimento. A decisão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n.º 1.159.242/SP, relatada pela Ministra Nancy Andrighi, é paradigmática ao reconhecer que a omissão afetiva paterna, quando injustificada, pode ensejar reparação por dano moral. Na ocasião, a Corte concluiu que “o descumprimento voluntário e injustificado dos deveres inerentes à autoridade parental pode configurar ato ilícito e, portanto, dar origem à responsabilidade civil” (BRASIL, 2012). Esse julgado consolidou o entendimento de que o afeto, embora subjetivo, adquire relevância objetiva quando ausente de forma culposa e lesiva. 

Por outro lado, algumas decisões do próprio STJ, como o REsp n.º 1.159.242/SP, têm ressaltado a necessidade de cautela na aplicação da responsabilidade civil por abandono afetivo, a fim de evitar a banalização de demandas judiciais motivadas por desavenças familiares ou ressentimentos subjetivos. A jurisprudência mais recente tem exigido prova concreta do dano psíquico e do nexo causal com a omissão parental, geralmente por meio de laudos psicológicos e outros elementos objetivos. Assim, nota-se que a responsabilidade civil por abandono afetivo não pode ser presumida automaticamente, exigindo uma análise casuística e criteriosa. 

Outro ponto importante discutido na literatura é a função pedagógica da indenização. Conforme argumenta Gurgel (2018), a reparação por abandono afetivo não visa compensar o amor não recebido, mas sim alertar a sociedade para a gravidade da omissão afetiva e promover a responsabilidade na parentalidade. Nesse sentido, o dever de indenizar assume também um papel preventivo, funcionando como instrumento de conscientização jurídica sobre o impacto da negligência afetiva no desenvolvimento infantil. 

A análise de artigos recentes, como o de Santos e Oliveira (2024), aponta que a jurisprudência dos tribunais estaduais têm seguido orientação semelhante à do STJ, adotando uma postura equilibrada. Há decisões que reconhecem a indenização quando evidenciada a omissão dolosa e o sofrimento emocional do filho, mas também julgados que negam a reparação por entenderem que a simples ausência de vínculo afetivo não configura, por si só, ilícito civil. Esses dados indicam que ainda não há uniformidade absoluta, mas sim uma tendência de amadurecimento da jurisprudência sobre o tema. No plano doutrinário, verifica-se consenso quanto à legitimidade da atuação judicial nos casos em que a omissão parental compromete os direitos fundamentais do filho. Venosa (2020) afirma que a convivência familiar é dever jurídico, e não mera faculdade dos pais, sendo sua violação passível de controle estatal e, quando comprovado o dano, de responsabilização. De forma semelhante, Lobo (2014) sustenta que o direito à convivência e ao afeto é componente essencial da dignidade da criança e, por isso, deve ser protegido como qualquer outro direito da personalidade. 

Além disso, o estudo revelou que há projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional que buscam reconhecer expressamente o abandono afetivo como conduta ilícita, o que reforça a importância e a atualidade do tema. O Projeto de Lei n.º 3.212/2015, por exemplo, propõe a inclusão do abandono afetivo no rol dos atos atentatórios à dignidade da criança, estabelecendo critérios objetivos para a configuração do dano moral decorrente da omissão afetiva. Embora ainda não aprovado, o projeto indica uma preocupação legislativa crescente com a regulamentação do tema. 

Ademais, os dados coletados demonstram que o reconhecimento da responsabilidade civil por abandono afetivo parental é compatível com os princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se de uma construção jurisprudencial e doutrinária em processo de consolidação, que busca equilibrar o respeito à autonomia privada com a proteção dos direitos da personalidade da criança e do adolescente. A efetivação dessa responsabilidade depende de uma análise sensível e técnica por parte do Judiciário, que deve considerar as especificidades de cada caso, sem desconsiderar os efeitos profundos da ausência afetiva na formação dos filhos. Verifica-se que a discussão em torno do tema, revela a progressiva valorização da afetividade como bem jurídico tutelável. O Direito das Famílias, ao incorporar essa dimensão imaterial das relações parentais, caminha para uma atuação mais humana, ética e coerente com os valores constitucionais. Ao reconhecer que o cuidado emocional é tão importante quanto o sustento material, o ordenamento jurídico dá um passo importante para a concretização da proteção integral à infância e à adolescência. 

Diante do exposto, resta claro que a responsabilidade civil por abandono afetivo parental é uma construção jurídica legítima e coerente com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção integral da criança e do adolescente. Embora envolva aspectos subjetivos e sensíveis, a reparação civil não se presta a suprir o amor não dado, mas a coibir condutas omissivas lesivas que desrespeitam os deveres parentais legalmente exigíveis. A consolidação dessa tese representa um avanço na efetivação dos direitos da personalidade e na afirmação da afetividade como valor jurídico concretamente protegível. 

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A presente pesquisa permitiu concluir que a responsabilidade civil por abandono afetivo parental constitui um instituto jurídico possível e necessário dentro da lógica do ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo. A análise legislativa, doutrinária e jurisprudencial revelou que, embora o afeto não seja juridicamente imposto como sentimento, o dever de cuidado, presença e orientação no exercício da parentalidade é juridicamente exigível. Quando esse dever é descumprido de forma dolosa ou culposa, e tal omissão resulta em danos emocionais comprováveis ao filho, abre-se a possibilidade legítima de reparação por dano moral. Assim, o abandono afetivo deixa de ser visto apenas como questão de ordem moral ou ética, assumindo contornos jurídicos concretos, com respaldo nos princípios da dignidade da pessoa humana e da proteção integral à criança e ao adolescente. 

O estudo também evidenciou que a jurisprudência nacional, especialmente do Superior Tribunal de Justiça, caminha no sentido de reconhecer a responsabilidade civil em casos específicos de abandono afetivo, exigindo, contudo, critérios técnicos para evitar decisões arbitrárias. Dentre esses critérios, destacam-se a exigência de prova do dano psíquico, do nexo causal e da culpa do genitor omisso. A indenização, nesses moldes, não visa obrigar ao amor, mas coibir condutas omissivas que violam deveres parentais essenciais. O caso paradigmático do REsp 1.159.242/SP representa marco nessa evolução, ao admitir a reparação não pelo sentimento em si, mas pela ausência de conduta de cuidado, que deveria ter sido desempenhada no exercício do poder familiar. 

Do ponto de vista teórico, observou-se a consolidação do princípio da afetividade como elemento normativo dentro do Direito de Família. A doutrina contemporânea reconhece que a convivência familiar e a presença afetiva não são meros deveres morais, mas obrigações jurídicas derivadas do poder familiar, que visam assegurar o desenvolvimento integral do filho. A responsabilização por abandono afetivo, portanto, não se presta a interferir na liberdade individual dos pais, mas sim a garantir os direitos da criança à convivência, ao afeto e à proteção emocional — direitos esses resguardados pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Código Civil. 

Por fim, a pesquisa reafirma a importância de se manter um equilíbrio entre a autonomia da vida privada e a atuação protetiva do Estado nas relações familiares. O reconhecimento da responsabilidade civil por abandono afetivo deve ser aplicado com cautela, mediante análise criteriosa e fundamentada de cada caso concreto, a fim de evitar tanto a impunidade quanto a banalização da judicialização dos vínculos familiares. Ainda assim, diante da realidade de milhares de crianças e adolescentes privadas do cuidado afetivo dos pais, o instituto da reparação civil representa não apenas uma resposta jurídica, mas também uma afirmação ética do compromisso do Direito com a dignidade, a equidade e a justiça social nas relações parentais. 

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14. GURGEL, Clara Sales. Responsabilidade civil por “abandono afetivo”: uma análise à luz da jurisprudência e doutrina pátria. Natal: UFRN, 2018. Monografia (Bacharelado em Direito). Disponível em: https://repositorio.ufrn.br/server/api/core/bitstreams/7ef80cbb-4210-44e0-a872 -8a3d2a7408a4/content. Acesso em: 04 set. 2025. 

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20. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. 

21. REVISTA ENCONTRO. Mais de 5 milhões de crianças brasileiras não têm o registro do pai. 2023. Disponível em: https://www.revistaencontro.com.br/canal/brasil/2023/05/mais-de-5-milhoes-de -criancas-brasileiras-nao-tem-o-registro-do-pai.html. Acesso em: 9 set. 2025. 

22. SANTOS, Ana Carolina; OLIVEIRA, Denis Márcio Jesus. A responsabilidade civil por abandono afetivo. Revista Foco, v. 17, n. 11, p. 01–26, 2024. DOI: 10.54751/revistafoco.v17n11-133. 

23. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Família. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2020.


1Acadêmica de Direito. E-mail: lidiane.saraiva23@gmail.com. Artigo apresentado à Faculdade Unisapiens, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito, Porto Velho/RO.
2Acadêmica de Direito. E-mail: anefrota111@gmail.com. Artigo apresentado à Faculdade Unisapiens como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito, Porto Velho/RO.
3Professora Orientadora. Professora do curso de Direito. E-mail: profmarialidia@gmail.com.