REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202510090731
Thais Alves de Araujo1
Resumo
A notabilidade da Convenção Americana de Direitos Humanos desenvolvida no âmbito do sistema regional americano, provém não só de sua abrangência geográfica, mas também por seu catálogo de direitos e pela estruturação de um sistema de supervisão e controle das obrigações assumidas pelos Estados. A república Federativa do Brasil é um dos Estados-partes da Convenção Americana desde 1992, reconhecendo a competência jurisdicional da Corte em 1998. A partir desse momento, toda a jurisprudência desse tribunal internacional influencia a nossa ordem jurídica, sobretudo nos casos em que o Estado condenado é Brasil. Nesse sentido, o propósito deste artigo é analisar o desenvolvimento do sistema regional interamericano em face das condenações do Estado brasileiro perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, e os impactos das condenações no âmbito interno.
Palavras-chave: Convenção Americana de Direitos Humanos, sistema regional americano, sistema de supervisão, controle das obrigações, condenações, Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Abstract
The notability of the American Convention on Human Rights, developed within the scope of the American regional system, comes not only from its geographical scope, but also from its catalog of rights and the structuring of a system of supervision and control of the obligations assumed by States. The Federative Republic of Brazil has been one of the States Parties to the American Convention since 1992, recognizing the jurisdictional jurisdiction of the Court in 1998. From that moment on, all the jurisprudence of this international court influences our legal order, especially in cases in which the State condemned is Brazil. In this sense, the purpose of this article is to analyze the development of the inter-American regional system in the face of the convictions of the Brazilian State before the Inter-American Court of Human Rights, and the impacts of the convictions domestically.
Keywords: American Convention on Human Rights, American regional system, supervision system, control of obligations, convictions, Inter-American Court of Human Right
1. INTRODUÇÃO
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos responsável pela promoção e garantia dos direitos humanos na região das Américas, tem sua origem histórica na proclamação da Carta da Organização dos Estados Americanos (Carta de Bogotá) de 1948, aprovada na 9ª Conferência Interamericana.
Concebido em um momento marcado por regimes repressivos e autoritários, o Sistema Interamericano foi gradualmente consolidando-se. Quase oito décadas de história permitiram construir um arcabouço para reagir as violações massivas e estruturais, reparar vítimas em casos específicos e moldar parâmetros normativos no Direito Internacional dos Direitos Humanos. Essa construção ao longo do tempo traduziu-se em um aumento efetivo nos níveis de promoção e proteção aos direitos humanos nas regiões das Américas, possuindo como importante baliza a Convenção Americana de Direitos humanos, composta por dois órgãos principais: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Na ótica interna, a República Federativa do Brasil é um dos Estados-partes da Convenção Americana desde 1992, reconhecendo a competência jurisdicional da Corte em 1998. Desde então, o Estado brasileiro já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em diversas ocasiões, envolvendo temas como violência policial, tortura, desaparecimentos forçados, execuções extrajudiciais, massacres em presídios, violência doméstica, trabalho escravo, discriminação racial, violação do direito à consulta prévia dos povos indígenas, entre outros.
Essas condenações representam um importante instrumento de responsabilização do Estado perante a comunidade internacional e de exigibilidade dos direitos das vítimas, no entanto, o cumprimento das sentenças da Corte Interamericana ainda é um desafio para o Estado brasileiro, em razão das dificuldades institucionais, políticas e sociais para implementar as determinações do órgão. Por outro lado, as condenações podem ser analisadas como uma oportunidade para o avanço do país na proteção e promoção dos direitos humanos, fortalecendo o regime democrático e o compromisso com os valores da dignidade humana e a prevalência dos direitos humanos.
2. BREVES NOTAS A RESPEITO DOS DIREITOS HUMANOS
Direitos Humanos é uma expressão intrinsecamente ligada ao direito internacional público. Assim, quando fala-se em “direitos humanos”, o que tecnicamente se está a dizer é que há direitos que são garantidos por normas de índole internacional, isto é, por declarações ou tratados celebrados entre Estados com o propósito específico de proteger os direitos essenciais do ser humano.2
Os Direitos Humanos compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana, conjugando direitos considerados indispensáveis para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e com condições existenciais mínimas. Possuindo como características marcantes universalidade, essencialidade, superioridade normativa (preferenciabilidade) e reciprocidade.3
Essas características impõe o reconhecimento de que os Direitos Humanos são direitos de todos, combatendo a visão de privilégios e discriminações, possuindo conteúdo de valores supremos do ser humano e a prevalência da dignidade humana, não admitindo-se o sacrifício de um direito essencial para atender as “razões de Estado”, estabelecendo deveres de proteção ao Estado e seus agentes públicos, mas também à coletividade.4
Assim, verifica-se que os direitos humanos são os direitos previstos em tratados e demais documentos internacionais, que resguardam inicialmente a pessoa humana das ingerências praticadas pelo Estado ou por outrem.5
2.2. PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS
Com o objetivo de assegurar a proteção da pessoa humana, contra as subversões aos seus direitos essenciais, formou-se um sistema global de proteção, com o esforço das nações para salvaguardar os Direitos Humanos.
O advento da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, balizou a adoção de inúmeros instrumentos internacionais de proteção, conferindo um lastro axiológico e unidade valorativa a esse campo do direito, com ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. Nesse sentido, destaca-se o ensinamento de Flávia Piovesan:
“O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação de um sistema internacional de proteção desses direitos. Tal sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos, na busca da salvaguarda de parâmetros protetivos mínimos — do ‘mínimo ético irredutível’.6
Ao lado do sistema global, nascem os sistemas regionais de proteção, objetivando internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais, particularmente na Europa, América e África. Consolidando a convivência do sistema global da Organização das Nações Unidas (ONU), com os instrumentos do sistema regional, integrado pelos sistemas interamericano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos.7
Importante frisar, que os sistemas de proteção aos direitos humanos complementam-se, ao sistema nacional de proteção, com a finalidade de proporcionar a maior efetividade possível na proteção e promoção dos direitos humanos.
No tocante ao cenário interno, além do sistema Global, a República Federativa do Brasil, integra o sistema interamericano de proteção aos Direitos Humanos.
Sua origem histórica ocorre com a proclamação da Carta da Organização dos Estados Americanos (Carta de Bogotá) de 1948, aprovada na 9° Conferência Interamericana, ocasião em que também celebrou-se a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Adicionalmente, o sistema conta com outros instrumentos internacionais, destacando-se a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969.
Forçoso ressaltar que o estudo da proteção internacional dos direitos humanos está intimamente ligado ao estudo da responsabilidade internacional do Estado, uma vez que os instrumentos internacionais permitem invocar a tutela internacional, e responsabilizar o Estado violador dos Direitos Humanos.
2.1. CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
A Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, ou Pacto de San José da Costa Rica, foi adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos, por ocasião da 9° Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969, em São José, na Costa Rica, no entanto, a Convenção entrou em vigor internacional somente em 18 de julho de 1978, conforme determinava o § 2º de seu artigo 74, após ter obtido 11 ratificações.8
Convém ressaltar que o Brasil é parte da Convenção em comento desde 1992, em razão do regime militar instaurado a época da elaboração do documento internacional.9
Em seu preâmbulo, a Convenção ressalta o reconhecimento de que os direitos essenciais da pessoa humana derivam não da nacionalidade, mas sim da sua condição humana, o que justifica a proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados, conforme dispõe o artigo 2° da Convenção.10
A importância da Convenção Americana de Direitos Humanos, de acordo com André de Carvalho Ramos, decorre não só de sua abrangência geográfica, mas também por seu catálogo de direitos civis e políticos e “pela estruturação de um sistema de supervisão e controle das obrigações assumidas pelos Estados, que conta inclusive com uma Corte de Direitos Humanos”.11
Nesse sentido a Convenção Americana de Direitos humanos na II parte de seu texto, estabeleceu os meios de proteção, destinados a garantir a efetividade dos direitos nela previstos, consignando em seu artigo 33 que os órgãos autorizados a tratar de assuntos relacionados ao cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados-partes são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.12
2.2. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
A Comissão Interamericana, é um órgão principal e goza de autonomia no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). Composta por sete membros eleitos a título pessoal pela Assembleia Geral da OEA, a Comissão tem ampla atuação, pois suas atribuições estendem-se a todos os países membros da OEA, amparados não apenas na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mas na própria Carta da Organização, representando um mecanismo importante para o monitoramento dos Direitos Humanos nos países que não ratificaram a Convenção Americana de Direitos Humanos e, que não reconheceram a competência da Corte, explicando dessa forma um regime de dupla proteção, um Convencional e outro baseado na Carta da OEA e nos direitos previstos na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948.13
Desde sua criação em 1959, a Comissão está voltada à promoção e à observância dos Direitos Humanos na região. O artigo 41 da Convenção Americana de Direitos Humanos, põe em destaque o marco geral promocional e de monitoramento ao elencar no mencionado artigo as funções da Comissão.14
Além dessas atividades de promoção e monitoramento, a Comissão incorporou uma importante função quanto ao tratamento de casos específicos de violações aos Direitos Humanos. Inspirado no então vigente sistema regional europeu, o sistema interamericano estruturou-se igualmente como um modelo bifásico, de denúncias e queixas de violações iniciadas no âmbito da Comissão, com a possibilidade de submissão da denúncia à Corte Interamericana, por intermédio da Comissão.15
Nesse aspecto, observa-se que o acesso a Comissão pode ser realizado por qualquer pessoa, individualmente ou em grupo, ou por entidade não governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-membros da OEA, mediante petições que contenham denúncias ou queixas de violações da Convenção Americana por um Estado-parte, nos termos de seu artigo 44, observados os requisitos de admissibilidade das comunicações ou petições, expressos no artigo 46, § 1º, da Convenção.16
Uma vez admitida a denúncia ou queixa, poderá a Comissão abrir um procedimento interno em face do Estado responsável pela violação alegada na petição. Em qualquer etapa do exame de uma petição ou caso, a Comissão, por iniciativa própria ou a pedido das parte, colocara à disposição meios para uma solução amistosa sobre o assunto.
No entanto, caso não se tenha alcançado uma solução amistosa, a Comissão dará prosseguimento à tramitação da petição. Estabelecida a existência de uma ou mais violações, a Comissão preparará um relatório preliminar com as proposições e recomendações que considerar pertinentes e o transmitirá ao Estado de que se trate. Nesta hipótese, fixará um prazo para que tal Estado informe a respeito das medidas adotadas em cumprimento a essas recomendações.
Caso os Estados-partes da Convenção Americana tenham aceitado a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana, a Comissão, ao notificar o peticionário, dar-lhe-á oportunidade para apresentar, no prazo de um mês, sua posição a respeito do envio do caso à Corte.
Nessa vertente, se o Estado de que se trate houver aceitado a jurisdição da Corte Interamericana em conformidade com o artigo 62 da Convenção Americana, e a Comissão considerar que o Estado não deu cumprimento às recomendações contidas no relatório aprovado de acordo com o artigo 50 do citado instrumento, poderá a Comissão submeter o caso à Corte.17
2.3. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Segundo o artigo 1º de seu Estatuto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos é um órgão judicial autônomo, cujo objetivo é a aplicação e interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos.18
Conforme a previsão do artigo 64 da Convenção Americana de Direitos Humanos, a Corte detém uma competência consultiva relativa à interpretação das disposições da Convenção, bem como das disposições de outros tratados concernentes à proteção dos Direitos Humanos nos Estados Americanos.19
Além disso, a Corte possui uma competência contenciosa, de caráter jurisdicional, própria para o julgamento de casos concretos, quando alega-se que um dos Estados-partes na Convenção violou algum de seus preceitos.
No que tange a competência contenciosa da Corte Interamericana esta é limitada aos Estados-partes da Convenção que reconheçam expressamente a sua jurisdição. Convém ressaltar que o Brasil é parte da Convenção em comento desde 1992, aceitando a competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998, a partir desse momento, todas as decisões e a jurisprudência deste tribunal internacional influenciam a nossa ordem jurídica, devendo conduzir as atividades de todos os juízes e tribunais nacionais, sobretudo nos casos em que o Estado condenado é o próprio Brasil.
No tocante ao acesso a Corte, tanto os particulares quanto as instituições privadas estão impedidos de ingressar diretamente à Corte (artigo 61). No caso do sistema interamericano, será a Comissão que, nesse caso, atua como instância preliminar à jurisdição da Corte que submeterá o caso ao conhecimento da Corte, podendo também fazê-lo outro Estado pactuante.20
A respeito da competência em razão da matéria, importante esclarecer que a Corte não fica impedida de examinar, na sentença, outras violações da Convenção Americana, ainda que não originalmente alegadas na demanda apresentada pela Comissão.
A Corte não relata casos e não faz qualquer tipo de recomendação no exercício de sua competência contenciosa, mas profere sentenças, que, segundo o Pacto de San José, são definitivas e inapeláveis (artigo 67). Ou seja, as sentenças da Corte são obrigatórias para os Estados que reconheceram a sua competência em matéria contenciosa.21
Dessa forma, as sentenças proferidas pela Corte Interamericana, são definidas como sentenças internacionais, não estrangeiras, e não necessitam passar, portanto, pelo procedimento homologatório previsto pela legislação nacional para que tenham exequibilidade doméstica. Assim, quando a Corte Interamericana prolata uma sentença responsabilizando o Estado, as autoridades estatais têm o dever de bem e fielmente cumpri-la em todos os seus termo.
Portanto, observa-se que a Convenção Americana de Direitos Humanos, permite invocar a tutela internacional, e responsabilizar o Estado violador dos Direitos Humanos, competindo a Corte, resolver sobre os casos de violação de Direitos Humanos perpetrados pelos Estados traduzindo a ideia de justiça segundo a qual os Estados estão vinculados ao cumprimento daquilo que assumiram no cenário internacional.
3. ESTUDO DE CASO: CONDENAÇÕES DA CORTE INTERAMERICANA EM FACE DO BRASIL E SEUS IMPACTOS NA ORDEM INTERNA
O Continente Americano, é marcado por questões endêmicas de violações de Direitos Humanos, em razão tanto do nível de desigualdade social ainda presente como em decorrência de um passado próximo em que dominava-se regimes autoritários nos Estados da região, cujos reflexos se fazem sentir até hoje, notadamente à vista da impunidade ainda operante das violações aos direitos, ocasionando por consequência as condenações da República Federativa do Brasil, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
3.1. DAMIÃO XIMENES LOPES VS. BRASIL
Em 1º de outubro de 1999, Damião Ximenes Lopes contava com 30 anos de idade, apresentando um quadrado de deficiência mental, foi internado na ocasião, por sua mãe, na instituição de repouso Guararapes, conveniada com o Sistema Único de Saúde (SUS).
Quando de seu ingresso na instituição, Damião não apresentava qualquer sinal de lesão corporal. Contudo, narra-se que em 3 de outubro de 1999, Ximenes Lopes desencadeou uma crise de agressividade, perdendo seu eixo de orientação, recusando-se a sair do banho, motivo pelo qual foi retirado à força por um funcionário do local e por outros pacientes. Durante a noite daquele mesmo dia, Damião sofreu uma nova crise, voltando a ser submetida à contenção física, assim permanecendo até a manhã do dia seguinte.
No dia 4 de outubro Damião foi visitado por sua mãe, que o encontrou sangrando, com hematomas, sujo, com odor de fezes e as mãos amarradas atrás do corpo, demonstrando dificuldade para respirar, gritando por ajuda da polícia. A vítima foi medicada pelo diretor clínico do hospital e, posteriormente, deixada sem qualquer supervisão, falecendo no mesmo dia.
Não obstante, os familiares de Damião ingressaram com processo em decorrência dos fatos ocorridos na instituição de repouso, conveniada com o Sistema Único de Saúde, no entanto, não foram realizadas maiores investigações, bem como não foram punidos os responsáveis.
Inconformada com a morte de Damião justamente em uma casa de repouso, sua irmã apresentou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos uma denúncia (por e-mail) narrando todos os fatos, dando ensejo a tramitação da petição nº 12.237. Após tal denúncia, a ONG Justiça Global tomou conhecimento do caso e assessorou a irmã de Damião na garantia de seus direitos, passando a ser copeticionária e responsável pela representação da família perante a Comissão e Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Comissão alegou, em síntese, que o Estado havia violado a Convenção Americana em razão dos maus-tratos e posterior morte de Damião Ximenes Lopes em uma instituição para deficientes mentais, bem como pela falta de investigação e punição dos responsáveis. Por sua vez, o Estado reconheceu parcialmente sua responsabilidade internacional.
Durante a tramitação na Corte, observou-se que havia um processo penal pendente de resolução há mais de seis anos no Poder Judiciário brasileiro, em que sequer havia prolação de sentença em primeira instância, semelhante a ação de reparação civil.
Não obstante, os magistrados consideraram pertinente rememorar, que todo Estado é internacionalmente responsável por atos ou omissões de quaisquer de seus poderes ou órgãos em violação dos direitos internacionalmente consagrados. Com efeito, ao analisar a investigação policial e as diligências relacionadas à morte de Damião Ximenes Lopes e o processo penal, a Corte estabeleceu que, em vista das circunstâncias violentas nas quais se deu a morte de Damião, era necessário investigar exaustivamente a cena do crime, bem como a autópsia e análise do corpo, de forma rigorosa, por profissionais competentes e empregando os procedimentos apropriados.
Ato contínuo, a Corte observou que, no caso que ora nos ocupa, o primeiro exame do cadáver da vítima foi feito no chão da instituição, quando o médico aferiu que não havia nenhum objeto que pudesse ter causado asfixia no paciente ou marcas de estrangulamento, o que motivou a declaração de causa mortis como parada cardiorrespiratória. Não obstante, o processo penal também não foi levado a cabo pelas autoridades públicas com afinco, tendo o Estado pecado gravemente na realização da devida diligência diante da situação.
Nesse sentido, a Corte Interamericana no ano de 2006, por unanimidade, admitiu o reconhecimento, por parte do Estado, da violação do artigo 4º (direito à vida) e artigo 5º (integridade pessoal) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, bem como condenou o Estado pela violação do artigo 1º (dever de respeitar os direitos), artigo 8º (garantias judiciais) e artigo 25 (proteção judicial) do mesmo instrumento internacional.
Importante destacar que essa foi a primeira condenação do Estado brasileiro, sendo, por isso mesmo, um caso paradigma no âmbito dos Direitos Humanos no cenário brasileiro – o qual reconheceu parcial responsabilidade internacional, no que tange aos artigos 4º e 5º, admitindo, portanto, a ocorrência de maus-tratos e posterior morte de Damião Ximenes Lopes.
3.2. CASO GOMES LUND E OUTROS (“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS. BRASIL
Os fatos ocorreram no contexto da ditadura militar brasileira, quando, entre abril de 1972 e janeiro de 1975, as Forças Armadas empreenderam campanhas de informação e repressão contra os membros da chamada “Guerrilha do Araguaia”, incluindo assassinatos e desaparecimentos forçados. Segundo a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, houve 354 vítimas da ação do Estado brasileiro naquele contexto.
Em 1979, sob o argumento da “conciliação nacional”, foi editada a Lei de Anistia brasileira, razão pela qual, até a apresentação da petição perante a Comissão Interamericana, o Estado não havia investigado, processado ou punido os responsáveis pelas violações de Direitos Humanos cometidas no período do regime militar.
Em 1995 a Comissão Interamericana recebeu – do ramo brasileiro do Centro por la Justicia y el Derecho Internacional (CEJIL) e da Human Rights Watch/Américas – a petição do caso contra o Brasil, dando conta do desaparecimento dos guerrilheiros do Araguaia, pedindo reparação pelas violações aos Direitos Humanos. Por conseguinte, em 26 de março de 2009 a Comissão Interamericana, após os trâmites regimentais e sem resposta satisfatória do Estado, considerou que o Estado brasileiro não havia devidamente implementado as recomendações submetendo o caso à jurisdição da Corte Interamericana.
Adentrando ao mérito da questão, o tribunal contencioso retomou o entendimento constante em seus julgados a respeito da existência de elementos concorrentes e constitutivos de um desaparecimento forçado.
Ato contínuo, a Corte asseverou que o dever de prevenção do Estado abarca todas aquelas medidas de caráter jurídico, político, administrativo e cultural que promovam a salvaguarda dos Direitos Humanos. Desse modo, para que uma investigação seja efetiva, os Estados devem estabelecer um marco normativo adequado para o desenvolvimento desta – o qual implica regular como delito autônomo em sua legislação interna o desaparecimento forçado de pessoas, posto que a persecução penal é um dos instrumentos adequados para prevenir futuras violações aos Direitos Humanos dessa natureza.
Assim, o tribunal internacional observou que não existia controvérsia quanto aos fatos em relação ao desaparecimento forçado dos integrantes da Guerrilha do Araguaia, nem da responsabilidade estatal a respeito dos fatos, existindo somente uma diferença entre o número de vítimas. Por esse motivo, os magistrados concluíram em 2010 que o Estado era responsável pelos desaparecimentos forçados e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal contemplados, respectivamente, nos artigos 3º, 4º, 5º e 7º da Convenção Americana, todos em relação ao artigo 1º do mesmo instrumento.
Em seguida, os magistrados apontaram que a obrigação de investigar as violações de Direitos Humanos encontra-se dentro das medidas positivas que devem ser adotadas pelo Estado, a fim de garantir os direitos reconhecidos pela Convenção.
Ademais, a Corte observou que as anistias ou figuras análogas, têm sido um dos obstáculos alegados por alguns Estados para não investigar e eventualmente punir os responsáveis por violações de Direitos Humanos. Não obstante, não só no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, como também em outros mecanismos de proteção da dignidade humana, é unânime o entendimento de incompatibilidade de Leis de Anistia e as obrigações convencionais dos Estados, uma vez que aquelas contribuem para a impunidade e constituem um obstáculo para o cumprimento do direito à verdade.
No que concerne ao artigo 13 da Convenção, o tribunal internacional reiterou o entendimento de que, em uma sociedade democrática, é indispensável que as autoridades estatais atuem observando o princípio da máxima divulgação, o qual estabelece a presunção de que toda informação é acessível, e sujeita a um sistema restrito de hipóteses de exceção. De igual modo, os magistrados retomaram o posicionamento de que toda pessoa, incluindo os familiares das vítimas de graves violações de Direitos Humanos, tem o direito de conhecer a verdade.
3.3. IMPACTOS DAS CONDENAÇÕES DA CORTE INTERAMERICANA NA ORDEM INTERNA
A decisão da Corte Interamericana relativa ao Caso Ximenes Lopes reabriu no Brasil a discussão sobre maus-tratos a pacientes em casas de saúde, propiciando a adoção de medidas sobre o tema, dentre elas a Lei nº 10.216/2001 (Lei de Reforma Psiquiátrica), que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental no Estado brasileiro.
Segundo a Lei de Reforma Psiquiátrica, os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental devem ser assegurados “sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra” (artigo 1º). Por sua vez, os direitos das pessoas com transtorno mental são elencados no artigo 2º, parágrafo único, da Lei.
Noutro giro, em decorrência da condenação no caso conhecido como “Guerrilha Do Araguaia”, o Estado brasileiro criou, por intermédio da Lei nº 12.528/2011, a Comissão Nacional da Verdade, com “a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de Direitos Humanos praticadas no período fixado no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988), a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (artigo 1º).
A Comissão, como se depreende da Lei nº 12.528/2011, não pune ou indeniza, haja que a Lei em comento tem por viés examinar e esclarecer as graves violações de Direitos Humanos cometidas no Brasil, sobretudo na vigência do regime autoritário. Nos termos do artigo 11 da Lei nº 12.528/2011, a Comissão Nacional da Verdade teria “prazo até 16 de dezembro de 2014, para a conclusão dos trabalhos”, findo o qual deveria apresentar “relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as conclusões e as recomendações”. O Relatório Final, com 3 volumes, foi entregue no dia 10 de dezembro de 2014.
Por conseguinte, resta a análise do Supremo Tribunal Federal em relação a Lei de Anistia brasileira (Lei nº 6.683/1979) diante dos parâmetros do denominado controle de convencionalidade, seguindo assim, o entendimento firmado no âmbito Sistema Interamericano de Direitos Humanos cujo enfoque é de considerar-se como incompatível as Leis de Anistia em face das obrigações convencionais dos Estados.
Diante dos casos apresentados, observa-se que a responsabilidade internacional conduz a ideia de justiça pela qual os Estados estão vinculados ao cumprimento daquilo que assumiram no cenário internacional, devendo observar seus compromissos de boa-fé e sem qualquer prejuízo, como alegações de legislação interna ou respeito à soberania, compreendendo que um dos pilares de uma sociedade democrática é a proteção e promoção dos Direitos Humanos.
4. CONCLUSÃO
Concebido em um momento marcado por regimes repressivos e autoritários, o Sistema Interamericano foi gradualmente consolidando-se. Essa construção ao longo do tempo traduziu-se em um aumento efetivo nos níveis de promoção e proteção aos direitos humanos nas regiões das Américas, possuindo como importante baliza a Convenção Americana de Direitos humanos.
A notabilidade da Convenção, deriva não só de sua abrangência geográfica, mas também por seu catálogo de direitos civis e políticos e pela estruturação de um sistema de supervisão e controle das obrigações assumidas pelos Estados, conduzindo a responsabilização do Estado violador dos Direitos humanos, traduzindo a ideia de justiça segundo a qual os Estados estão vinculados ao cumprimento daquilo que assumiram no cenário internacional.
No que tange a ótica interna, o Estado brasileiro é parte na Convenção Americana de Direitos Humanos, desde 1992, aceitando a competência da Corte Interamericana em 1998, gerando como reflexo a primeira condenação em 2006, no caso “Damiao Ximenes Lopes vs. Brasil”.
Ao longo dos quase 30 anos de submissão a competência contenciosa da Corte Interamericana outras sentenças condenatórias foram prolatadas contra o Estado brasileiro, reconhecendo a responsabilidade internacional por ações ou omissões imputáveis de acordo com as regras do direito internacional público, das quais resultou-se violação de direito alheio ou violação abstrata de uma norma jurídica internacional.
Em que pese a realidade brasileira denotar a persistência nos casos de violação aos direitos humanos, é preciso ressaltar que as condenações perante a Corte Interamericana possuem seu caráter de importância, representando o reconhecimento internacional da responsabilidade do Estado brasileiro pelos graves abusos cometidos, por vezes em contextos de impunidade. Por conseguinte, as condenações oferecem um viés de reparação às vítimas e aos seus familiares, acarretando ainda o dever jurídicos de observância à sentença e adoção de medidas para prevenir e remediar as violações de direitos humanos, oportunizando o avanço na proteção e promoção desses direitos, fortalecendo o regime democrático e o compromisso da República Federativa do Brasil com os valores da dignidade humana e a prevalência dos direitos humanos.
2 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direitos humanos. 11° ed. Rio de Janeiro: Método, 2025, p. 3.
3 RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 11° ed. São Paulo: Saraiva, 2024, p 5.
4 Ibidem, p. 5.
5 Atualmente pauta-se à proteção do meio ambiente no sistema interamericano, a técnica utilizada tem consistido em requerer proteção a um direito da primeira categoria no qual se “embute”, pela via reflexa, a proteção ambiental, nominado de greening ou esverdeamento do sistema interamericano.
6 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 10° ed. Editora Saraiva, 2024, p. 13.
7 Ibidem, p. 13.
8 RAMOS, André de Carvalho. Op. Cit., p. 294.
9 O Brasil depositou a carta de adesão em 25 de setembro de 1992, data em que o tratado passou a vigorar internamente, sendo posteriormente promulgado por meio do Decreto n. 678, de 6 de novembro do mesmo ano. RAMOS, André de Carvalho. Op. Cit., p. 294.
10 BRASIL. Decreto n.° 678, de 6 de novembro de 1992. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 24/05/2025.
11 RAMOS, André de Carvalho. Análise crítica dos casos brasileiros Damião Ximenes Lopes e Gilson Nogueira de Carvalho na Corte Interamericana de Direitos Humanos. II Anuário Brasileiro de Direito Internacional. Volume 1. Belo Horizonte: CEDIN, 2006. p. 11
12 BRASIL. Decreto n.° 678, de 6 de novembro de 1992. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 24/05/2025.
13 ALBUQUERQUE, Aline; PERES, Luciana. Sistema interamericano de direitos humanos : teoria e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p 55.
14 BRASIL. Decreto n.° 678, de 6 de novembro de 1992. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 24/05/2025.
15 ALBUQUERQUE, Aline; PERES, Luciana. Op. Cit., p. 55.
16 BRASIL. Decreto n.° 678, de 6 de novembro de 1992. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 24/05/2025.
17 BRASIL. Decreto n.° 678, de 6 de novembro de 1992. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 24/05/2025.
18 BRASIL. Decreto n.° 678, de 6 de novembro de 1992. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 24/05/2025.
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1 Advogada, bacharel em Direito pelo Centro Universitário Fieo, especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestranda em Direitos Humanos pelo Centro Universitário Fieo.