O AUTISTAR NA ESCOLA: A INSISTÊNCIA EM EXISTIR QUE EXIGE UM CURRÍCULO OUTRO

THE AUTIST IN MOTION: ANTI-ABLEIST PEDAGOGY AND AN ALTERNATIVE CURRICULUM

EL AUTISTAR EN MOVIMIENTO: LA INSISTENCIA EN EXISTIR REQUIERE UN CURRÍCULO DIFERENTE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202509151213


Clara Tatiana Dias Amaral1
Marlucy Alves Paraíso2


Resumo

O artigo traz resultados de uma pesquisa que investigou o movimento de crianças autistas na escola, mostrando que suas existências nesse território abalam as pedagogias capacitistas e obrigam a forjar um currículo outro. Traz, como mote para essa experimentação, a investigação das vivências provocativas de crianças autistas nos anos iniciais do Ensino Fundamental em três escolas distintas. Utiliza vários conceitos retirados da vertente do pensamento da diferença do currículo para a invenção de uma pedagogia aberta e conectada com a vida. Defende que a pedagogia anticapacitista é um modo de educar lutando contra a violência da discriminação e da exclusão. Essa pedagogia, construída para lidar com a existência de crianças autistas que na contemporaneidade tem sua presença na escola, coloca foco na oportunidade de conviver e aprender com a variabilidade de corpos e diversos arranjos de existência, o que a aproxima com alguns discursos da inclusão escolar. Este artigo articula episódios cartografados na pesquisa feita em escolas de educação básica para estabelecer relações com a inclusão e para pensar um currículo outro: um currículo que não quer deixar ninguém para trás. O argumento desenvolvido é o de que mesmo diante da fragilidade, das adversidades e das manifestações de silenciamentos, tentativas de exclusão de crianças autistas nas escolas, a pedagogia anticapacitista é construída para resistir, não deixar ninguém para trás, impelir a uma jornada que nos faz inventar formas de estarmos todos juntos na escola, desafiando as normas das políticas e dos currículos formais.

Palavras-chave: autismo; anticapacitismo; currículo.

Abstract

The article seeks to conceptualize the autistic person in motion in order to challenge ableist pedagogies and forge an alternative curriculum. It uses, as a guiding theme for this experimentation, the investigation of the provocative and inventive experiences of autistic children enrolled and regularly attending the early years of Elementary School in different institutions. It draws on various concepts from the perspective of curriculum theory based on the philosophy of difference, aiming at the invention of an open educational method connected to life. The research piece advocates the need to think of an anti-ableist teaching approach as a way of educating through resistance against the violence of discrimination and exclusion. It also values the opportunity to coexist and learn from the variability of bodies and diverse modes of existence, aligning itself with the discourse of inclusive education. The article interweaves episodes narrated through participant observation in basic education schools with elements from the 1999 Chinese film “Not One Less”, to establish connections with inclusion and to reflect on a curriculum that seeks to leave no one behind. The argument developed is that the anti-ableist pedagogy, and the inclusive curriculum it mobilizes, propel us on a journey to build and invent ways for everyone to be together in school, even in the face of fragility, adversity, and manifestations of exclusion.

Keywords: autism; anti-ableism; curriculum

Resumen

El artículo busca pensar el autistar en movimiento para sacudir las pedagogías capacitistas y forjar un currículo otro. Toma como eje para esta experimentación la investigación de vivencias provocadoras e inventivas de niños autistas matriculados y con asistencia regular en los primeros años de la Educación Primaria en distintas escuelas. Utiliza varios conceptos provenientes de la vertiente del pensamiento de la diferencia del currículo para la invención de una pedagogía abierta y conectada con la vida. Defiende la necesidad de pensar una pedagogía anticapacitista como una forma de educar en lucha contra la violencia de la discriminación y la exclusión. También valora la oportunidad de convivir y aprender con la variabilidad de cuerpos y diversos arreglos de existencia, lo que la aproxima al discurso de la inclusión escolar. Este artículo articula episodios narrados a partir de la observación participante en escuelas de educación básica con elementos de la película china de 1999, Ni uno menos, para establecer relaciones con la inclusión y pensar un currículo que no quiere dejar a nadie atrás. El argumento desarrollado es que la pedagogía anticapacitista y el currículo que no quiere dejar a nadie atrás, movilizados por ella, impulsan una travesía que nos lleva a construir e inventar formas de estar todos juntos en la escuela, incluso ante la fragilidad, las adversidades y las manifestaciones de la exclusión.

Palabras clave: autismo; anticapacitismo; currículo.

Um olhar para deslocamentos e avivamentos escolares 

Andar, saltar, subir, pular, correr, dançar; chutar, balançar, empurrar, puxar, riscar. Esses e muitos outros movimentos vívidos são mobilizados na experiência de estar na escola na companhia de crianças autistas. Esses deslocamentos crianceiros, aqui chamados de autistar, inquietam professoras, colegas, profissionais de apoio à inclusão e as suas mães. Introduzem estranhamentos, assombros e certas extravagâncias produtivas em sua caminhada escolar em meio aos fluxos avivados que constituem sua crianceria que deslizam entre as ordens e classificações tão comuns nas escolas.Em uma investigação realizada para uma tese de doutorado, que subsidia este artigo, foi pesquisado o autistar em um espectro ampliado que inclui o terrífico, o excessivo, o transgressor, o desmedido, o monstruoso apontado, observado e registrado quando se fala em crianças nomeadas como autistas e que frequentam as escolas. Esse autistar aqui é tomado com outros sentidos, já que em vez de querer hierarquizar comparando com outras existências, seu traço considerável “terrível” pelo discurso capacitista, serve aqui para abrir possibilidades no pensamento e incitar a criação na escola já que são movimentos de crianças aqui entendidos como movimentos soltos, inacabados e que sempre escapam das normas. Aquilo que é considerado excessivo em uma pedagogia capacitista3 é visto, na pesquisa que subsidia este artigo, como energia vital, como um fogo que está contido e necessita transbordar, com toda sua intensidade. Do mesmo modo, o “desmedido”, por ser menor, centrado no cotidiano e nas suas nuances, é aqui visto como práticas que não podem ser mensuradas, nem tem seus sentidos fixados e também não são unificadas. O autistar portanto é considerado aqui um acontecimento transgressor, engajado na produção potente da diferença, que viabiliza o monstruoso, por ser feito de conexões díspares e por apontar para novas e insuspeitas direções.

Para discutir o autistar fizemos uma conexão com a Crip Theory – ou teoria aleijada em sua tradução para o português, de acordo com Anahí Mello, Valéria Aydos e Patrice Schuch (2022) – que rejeita a ideia de que não ter deficiência seja um dado natural de todo ser humano. Essa teoria desconfia das práticas que se organizam em termos de padrões e parâmetros corporais e comportamentais aglutinados na ideia de “capacidade corporal compulsória” ou neuroconvergência compulsória. Em vez de se interessar pelos processos que fazem a criança autista parar de balançar, impedir-lhe de repetir tudo o que ouve, reduzir o sacudir de braços e “ser indistinguível de uma pessoa neurotípica” (Prizant, Fields-Meyer, 2023, p. 35), o autistar da pedagogia anticapacitista, inspirada na Teoria Crip busca uma experiência afirmativa e estética da diversidade corporal das deficiências e  formas alternativas de ser e estar autistando na escola e no mundo, isto é de resistir às normas e re-existir no mundo.

Em vez de ecoar a falta, falar de presenças e transbordamentos. Em vez de exaltar a hierarquia das capacidades corporais humanas, exaltar os processos criativos e as resistências em curso. Em vez de enfatizar determinismos e produção de corpos (in)capazes, enfatizar narrativas tortas, monstruosas, deslocadas, incômodas, abjetas, insubordinadas com a deficiência. Foi nesse movimento em meio ao desequilíbrio, tropeço, a queda e o improviso que ficamos à espreita do encontro com as crianças autistas e das suas produções no território escolar. Na pesquisa que subsidia este artigo, fomos instigadas com toda essa possibilidade de um pensamento-monstruoso, da desfamiliarização do território escolar, liberando suas certezas ao abri-lo para um vir-a-ser escola, sem projetos e promessas, a uma liberdade sem garantias para o professorar e o autistar. Essas considerações sobre o torto, o grotesco, o incômodo, o abjeto e insubordinado com a deficiência foram colocadas em foco na pesquisa buscando mapear a possibilidade de um currículo criado com crianças autistas que produza experiências e possibilite um aprender por meio de pedagogias outras. 

A pesquisa foi realizada, por meio da cartografia, durante um ano letivo em três turmas dos anos iniciais do Ensino Fundamental, de três escolas públicas na região metropolitana de Belo Horizonte/Minas Gerais, nas quais encontramos, observamos, acompanhamos e fizemos interações diversas com três crianças autistas, as demais crianças de suas turmas, professoras de Atendimento Educacional Especializado, professoras do ensino regular, profissionais de apoio à inclusão e as mães das crianças autistas. A cartografia, metodologia inspirada na filosofia da diferença de Gilles Deleuze e Félix Guatarri (1996), foi usada tanto para produzir um mapa aberto dos movimentos que conduziram ao que chamamos de pedagogias anticapacitistas como para explorar as experiências e conexões potencializadoras do aprender vivenciadas nos encontros com crianças autistas.

Cartografar não é estabelecer desde o princípio um caminho linear. Ao contrário de outros métodos que oferecem modelos norteadores e diretrizes para o pesquisador, a cartografia não delineia uma técnica padronizada que pode ser pré-determinada no início das investigações. Ela se faz no processo da pesquisa e ela acompanha e registra processos. Na cartografia ficamos abertas aos desdobramentos realizados na pesquisa, aos passos dados para frente e para trás, para um lado e para o outro; registramos episódios falando das sensações e das conexões que fizemos, tendo em mente que é o ambiente que explica os caminhos escolhidos durante o processo de construção dos mapas. O mapa foi tomado sempre como aberto, “conectável, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente” (Deleuze e Guatarri, 1996, p. 21).

Na cartografia realizada usamos procedimentos variados, tomados de outras metodologias – tais como a observação, a conversa em grupo, o registro em diário de bordo, registro fotográfico e pequenas filmagens – mas rearranjados e reconectados na pesquisa, para tornar visíveis as sensações possibilitadas no território cartografado, as composições e combinações traçadas, os processos e os sujeitos por eles atravessados. O cartografar nesta investigação, portanto, foi sempre aberto a novos traçados, já que constituído sobretudo pelo acompanhamento de processos existenciais no “currículo-menor” – esse que é “construído em processos de exterioridade ao Estado, […] no cotidiano da escola” (Paraíso, 2023, p. 14). Isso porque a cartografia demarca um território com suas linhas; que são constitutivas das pessoas, da vida, da natureza.

Com base nos resultados dessa cartografia, neste artigo exploramos como as professoras das escolas investigadas lidam com esse inquietante autistar. Que acontecimentos, experimentações e criações são mobilizados? Como as crianças experienciam a novidade, a transformação, novas possibilidades de vida na escola autistando? Mostramos que, para autistar, em permanente e produtivo movimento, as crianças e suas professoras modificam as pedagogias capacitistas, especialistas em criar ausências, faltas e falhas, e se motivam com outras manobras, com a criatividade e com a poesia de uma outra pedagogia – que chamamos aqui de pedagogia anticapacitista.

Capacitismo é aqui entendido como uma forma de opressão que se baseia na ideia de que pessoas com deficiência são incapazes e inferiores. Trata-se de uma discriminação que vê pessoas com deficiência como não possuindo capacidades, como inferiores, comparado às pessoas consideradas normais. Com o uso de raciocínios capacitistas são produzidos preconceitos, discriminações, hierarquizações e exclusões de pessoas com deficiência. O anticapacitismo, por sua vez, é aqui entendido como a luta contra preconceitos que hierarquizam pessoas de acordo com pressupostos sobre a capacidade dos corpos – o capacitismo –, e que leva à compreensão de que algumas pessoas são mais capazes do que outras para trabalhar, aprender, amar, cuidar etc. A pedagogia anticapacitista, então, é constituída por modos de ensinar operacionalizados que colocam essa luta como foco das ações pedagógicas.

Este artigo está organizado em mais três cenários ou movimentos iniciais. O primeiro é esta introdução. No segundo cenário narramos histórias sobre o caminhar, os seus incômodos, sua produtividade e o esgarçamento das tramas da pedagogia capacitista. Nele também mostramos os perigos, incertezas e aventuras da pedagogia anticapacitista, no território disputado da escola, acionado pela presença de crianças que fogem do padrão neurotípico. No último movimento, apresentamos a faceta ensaística da pedagogia anticapacitista que se vale da dúvida, da provocação, mas também da concretude, da poesia e da vida.

Histórias sobre o caminhar inventando percursos na educação

1. Caminhar buscando uma conexão e a proliferação de experiências

    Ansiava pelo próximo encontro com Aurora4, uma criança com 9 anos de idade, cheia de vida e energia como um raiar do dia. Estava matriculada no 1º ano do Ensino Fundamental. O seu nível de comprometimento funcional e nível de apoio, conforme o DSM-5 – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – é o nível 2, “exigindo apoio substancial”. Naquela manhã me preparei calçando os meus tênis e vestindo roupas confortáveis. Também separei um brinquedo de encaixe que pensei ser interessante para começarmos nossa brincadeira e fui cantarolando pelo caminho, puxando da memória algumas canções infantis. Mas, para minha surpresa, ao chegar na escola encontrei Aurora caminhando de um lado para outro em um auditório com as portas fechadas.

    Assim que entrei no espaço do auditório percebi uma ligeireza por parte da Profissional de Apoio à Inclusão que lá estava, para bater a porta, fechando-a logo às minhas costas. Meu olhar percorreu a sala. Era um espaço com 6 metros de comprimento e 4 metros de largura aproximadamente. Haviam alguns livros didáticos organizados em pilhas em uma bancada, dois armários, quatro mesas circulares com cadeiras escolares no seu entorno e dois computadores.

    Uma cortina fechada servia como uma divisória ao fundo do auditório, criando outro ambiente. O espaço era bem arejado pois havia janelas largas e gradeadas na parede oposta à entrada. 

    Me aproximei de Aurora para dizer um oi. Seu olhar estava quase perdido. Parece que estava vendo alguma coisa que eu não enxergava. Ela permanecia caminhando. Aos poucos recordei que “pôr um pé na frente do outro é uma brincadeira infantil” (Gros, 2023, p. 9). Assim, passei a observar e depois a caminhar ao seu lado. Os adultos que estavam com ela naquele espaço insistiam em tirar de suas mãos alguns livros que ela encontrava nesta sua caminhada e pegava. Aurora havia começado a folhear o livro e chegou a dobrá-lo em uma das suas mãos.

    – “A bibliotecária deixou esses livros didáticos guardados aqui nesta bancada. Em breve irá distribuí-los para os estudantes das turmas do sexto ao nono ano”.  Foi o que disseram diante da expressão de espanto que fiz quando vi o livro ser retirado com rispidez das mãos de Aurora. Explicaram ainda que Aurora já havia rabiscado uns desses livros e que para evitar algum contratempo, foi separado um livro que Aurora poderia folhear e rabiscar caso desejasse. Esse livro foi oferecido nas mãos de Aurora e ela o abandonou na superfície da primeira mesa que viu pela frente.

    Mesmo tendo sido tirado de suas mãos o livro que desejara, Aurora permanecia em sua caminhada. Ela não ficava parada. Talvez porque caminhar é um movimento simples, em que “é preciso, antes de mais nada, duas pernas5” (Gros, 2023, p. 9), e isso ela tinha: duas pernas compridas, além de braços e mãos ligeiras. Como uma companheira de caminhada, passei a observar que traçados Aurora percorria, o que aos seus olhos parecia mais interessante, que trilhas ousava experimentar. Aos meus olhos, quando encarava a porta do auditório fechada, quando pensava naquele aprisionamento de Aurora e nas múltiplas possibilidades que ela poderia ter lá fora, imaginava que ela queria sair, e sentia pesar por ela estar na sala fechada. Nada da intensidade do céu, do calor dos raios solares, das risadas e das criancices dos pequenos. Apenas Aurora, duas jovens e um amontoado de coisas.

    – “Aurora, veja aqui o brinquedo que eu trouxe”. Falei isso para ela ao mesmo tempo que ia tirando da sacola de pano cru um cubo plástico colorido com peças de diferentes cores e formatos para serem encaixadas em suas faces. Coloquei essas peças em uma das mesas redondas. Aurora passou por mim e nem direcionou o olhar. Fui até ela e, me posicionando à sua frente, chamei novamente. – “Venha, Aurora”. Ela foi até a mesa, passou a mão por algumas peças e, logo em seguida, continuou sua caminhada.

    Custei um pouco a perceber que Aurora flanava e, talvez, pensava em outras coisas diferentes das que eu, como mulher, adulta e professora pensava. Comecei, assim, a andar ociosamente. Foram tantos passos, traçados improvisados e algumas paradas. Em alguns momentos, o meu sentimento era de desconforto. Em outros de esquecimento de mim e dos outros. Em alguns outros momentos, ainda, o meu sentimento era de desânimo diante daqueles laços sufocantes e apertados demais da escola. Naquela altura eu não conseguia decifrar os sentimentos de Aurora, mas os meus, uma pesquisadora e profissional que trabalha com o tema da inclusão há mais de duas décadas, eram vários e conflitantes.

    Tal como Friedrich Nietzsche – que pensava caminhando – e o andarilho – personagem conceitual que o filósofo criou (2000) –, Aurora e eu nos pusemos a caminhar no território escolar. A decisão de caminhar colocava em suspenso às certezas do que, no caso da Aurora, seria a escola. Havia uma desconexão temporária, das redes que, mais tarde, nomeei como pedagogias capacitistas. Abria a possibilidade de tentar outra coisa que não fosse o sentar na cadeira em frente à uma carteira escolar, agarrar um instrumento em suas mãos e traçar formas, letras, números. Experimenta-se, dessa forma, “uma alegria simples” (Gros, 2023, p. 12) que pode se exceder, conhecer a liberdade e transbordar em rebeldia. 

    Conheci, assim, na caminhada, inspirada por Aurora, “a liberdade de ser ninguém, porque o corpo que caminha não tem história, só uma corrente de vida imemorial” (Gros, 2023, p. 13). Aurora manifestava, em sua errância pelo auditório, a sua vida naquele espaço fechado e apartado. Aurora aproxima-se, assim, do andarilho de Nietzsche (2000) que representa o buscador solitário, aquele que rompe com as tradições, valores estabelecidos e certezas herdadas para embarcar em uma jornada pessoal de autoconhecimento, superação e criação de novos valores. 

    Essa caminhada errante, tida como condição necessária para o pensamento livre e a transformação, interpelou-nos e nos fez considerar como uma importante estratégia da pedagogia anticapacitista. Afinal Aurora resistia a sentar e parar como todos queriam que ela o fizesse e ela resistia caminhando ou caminhava resistindo. Suas caminhadas mobilizaram a pensar que um professorar na pedagogia anticapacitista é uma busca por conectar, um constante movimento para sentir, comunicar e encontrar. Trata-se de um professorar que não pode nunca estar completamente satisfeito; que precisa viver o peso da dúvida e da travessia ao encarar o autistar como parte de seu ofício no território escolar.

    O meu caminhar – de pesquisadora buscando conectar com Aurora – ficou mais duro e um pouco mais determinado a encontrar ali alguma expressão de recusa diante da pedagogia que tinha como referência corpos afeitos à escolarização. Não podia ser à toa que Aurora estava fechada naquele espaço, longe dos olhos e do contato com as demais crianças e demais adultos da escola. Mas mesmo ali, fechada no auditório, Aurora não parava de caminhar. Este caminhar foi lido como um convite à rebeldia de escapar afirmando uma pedagogia outra: a pedagogia anticapacitista. Caminhar é um movimento que se contrapõe ao estar sentado, encurvado, dobrado em dois e que “acaba por despertar em nós essa parte rebelde, arcaica: nossos apetites tornam-se toscos e intransigentes, e nossos elãs, inspirados. Porque caminhar nos coloca na vertical do eixo da vida: arrastados pela torrente que mana abaixo de nós” (Gros, 2023, p. 12). Por tudo isso consideramos que o caminhar, esse gesto simples e antigo, no currículo vivido por uma criança autista na escola é um elemento importante da pedagogia anticapacitista construídos por nós com Aurora no currículo-menor “que movimenta e faz movimentar” (Paraíso, 2023, p. 15).

    Importante dizer que, em um determinado momento, com as pernas pesadas de tantas andanças, segurei Aurora pelas mãos e fui me abaixando para sentar de pernas cruzadas no chão. Aurora seguiu meu movimento e se assentou à minha frente. Diante daquele acontecimento inesperado, com meus músculos finalmente livres e relaxados em contato com o chão, a única coisa que me veio à cabeça foi começar a cantar, com uma voz mansa, a música infantil “Alecrim dourado”.

    Embalados pela canção, nossos olhares se encontraram pela primeira vez. Quem trabalha com crianças autistas sabe da força que tem esse acontecimento que é o encontro de olhares. Foi tamanha a minha alegria que desatei na cantoria. O repertório foi diversificado, indo de cantigas de roda a Bia Bedran. Ao cantar, eu batucava com as mãos, fazia gestos, batia palmas e Aurora me observava. Eu queria aproveitar aquele momento de interação porque imaginava que seria raro. Eis aqui outras importantes estratégias da pedagogia anticapacitista: aproveitar qualquer momento de conexão na busca por uma interação; variar o repertório daquilo que possibilitou conectar; experimentar; se alegrar com qualquer pequena conquista porque a alegria abre portas e contagia.

    II. Caminhar como quem batalha e segue com coragem

      Perseguindo o movimento e as linhas que se abrem com as experiências da pedagogia anticapacitista encontrei-me com Jorge6, uma criança de nove anos de idade matriculada no terceiro ano do Ensino Fundamental. Em sua escola tive contato com um relatório clínico que assim o descrevia: “um menor em tratamento com quadro de autismo infantil. Apresenta agitação psicomotora, auto e heteroagressividade, não fala, brinca sozinho, não gosta de ser tocado. CID F 84.0”. 

      Com baixa estatura, um corpo magro, usando uma chupeta azul na boca e sacudindo um palito de plástico entre os dedos, ele transparecia certa fragilidade à primeira vista. Mas outras imagens e derivações eram logo produzidas quando se demorava um pouco mais neste encontro. Munido de uma vitalidade invejável, suas capacidades físicas e habilidades com a bola nos pés eram sua marca registrada. Foi assim que eu pude enxergar Jorge para além do relatório médico que foi apresentado como um marcador fechado sobre ele. Tal como o santo, que tem o seu nome, ele se destacava por sua coragem e por empunhar as “armas” que possuía para lutar contra incômodos, expressar descontentamentos, acolher as crianceirices e sorrir com intensidade. 

      Com a capacidade imaginativa instigada por esse autistar de Jorge, como uma potência que impulsiona a investigar, lembramos da obra de Maria Luisa M. Nogueira e Ana Beatriz Oliveira em seu livro de literatura infantil “Autistas podem voar?”. Esta obra tem a força de ser escrita por uma mãe de uma criança autista e ilustrado por uma jovem autista.

      Autistas podem fazer bagunça?
      Dar gargalhadas,
      dançar e pular até 
      chegar no nunca. […]

      Autistas podem pular e fazer barulhinhos?
      É um jeito de organizar
      a vida, como se fosse
      um carinho. […]

      Autistas podem voar?
      Na imaginação de super-heróis
      E no coração valente
      Que sempre sabe amar

      (Nogueira, Oliveira, 2022).

      Bagunçar, fazer barulhinhos, pular, voar; não falar, aprender coisas novas, pedir para descansar, ter medo, cortar cabelo e comer pizza. As ações que Nogueira e Oliveira (2022) atribuem às pessoas autistas escapam àquelas compreensões das crianças autistas como aquelas com ausências, faltas e falhas. As autoras listam várias possibilidades de ações das crianças autistas na tentativa de dar sentido ao que fazem, rompendo com a compreensão dessas pessoas como incapazes. Ela aponta para a diferença, o singular, o afirmativo como importantes para lidar com essa infância outra. Infância tão singular que seria capaz de voar, de “ser valente, estudiosa, bagunceira, parceira, super-herói, desenhista” (Nogueira e Oliveira, 2022). Kohan (2005), em movimento semelhante, compreende a criança autista como aquela que se encontra em “devir minoritário”. É a infância “como intensidade, um situar-se intensivo no mundo; um sair sempre do ‘seu’ lugar e se situar em outros lugares, desconhecidos, inusitados, inesperados”. O autistar teria, então, uma força crianceira que “não se espera, que irrompe, sem ser convidada ou antecipada” (Kohan, 2005).

      Foram vários e intensos os episódios que vivenciamos junto a Jorge na tentativa de mapear esse autistar. Em um deles, em uma manhã fria e seca, fui recepcionada na escola pela professora de Atendimento Educacional Especializado – AEE, com a informação de que havia uma nova profissional de apoio à inclusão acompanhando o estudante naquele mês. Nas palavras da professora, essa profissional era firme na voz e com relação aos combinados. Me disse ainda que a interação de Jorge com essa profissional havia produzido “uma maior adesão do estudante aos tempos e espaços da escola. Ele estava entrando e permanecendo mais tempo em sala de aula”. 

      Chegando à sala encontrei Jorge sentado ao fundo na última carteira da fileira próxima à parede. Haviam duas carteiras de distância entre a de Jorge e da outra criança que estava à sua frente. Em poucos minutos pude perceber que esta forma de o posicionar na sala de aula visava impedir ou tentar reduzir os seus movimentos em uma luta por seu silenciamento e apagamento da sua existência em sala de aula. De um lado a parede e do outro a carteira em que estava sentada a profissional de apoio e ao fundo outra parede impediam que ele saísse do lugar que foi designado para ser seu. No início ele chutou e empurrou as carteiras, as derrubando e correndo o risco de machucar os colegas, mas agora ele já se acostumou – explicou a profissional de apoio.

      A aula era de geografia e os estudantes da turma, orientados pela professora, faziam a leitura do livro didático e interpretavam oralmente as imagens sobre a temática “paisagem”. A participação das crianças era intensa. Algumas levantavam a mão para pedir para ler, enquanto outras diziam em voz alta as suas impressões sobre as imagens visualizadas. A professora ou os colegas de sala não se dirigem à Jorge. Enquanto isso, ele estava olhando o movimento da sala, chupando bico e balançando o palito plástico entre os dedos. Não havia nada sob sua mesa; nenhuma imagem; nenhum brinquedo; nenhum material. Apesar de toda a informação que circulava ali sobre o espaço geográfico parecia a nós – pesquisadoras e professoras que tentavam incansavelmente capturar o modo como Jorge reagia a sua presença em sala de aula – que nada aconteceu, que nada tocou, anulando as possibilidades de experiência diante do autistar.

      Passado um tempo, Jorge choramingou e tentou se levantar da cadeira. A profissional de apoio sugeriu que ele deitasse em seu colo. Jorge sorriu e acenou afirmativamente com a cabeça. E foi assim, deitado, que ele permaneceu mais um tempo ocioso até o momento em que foi autorizado a se levantar da cadeira, sair de trás da carteira e descer as escadas para o pátio da escola na hora do recreio. Os olhos de Jorge se encontraram com os meus e, neste instante, ele sorriu, olhando em seguida para baixo. Foi um dos poucos momentos que pude ver o seu sorriso naquela manhã. 

      Para fabular o autistar, imaginamos que as salas de aula, os parquinhos, as quadras, os auditórios escolares podem vir a ser um outro território para a infância afeita a múltiplos movimentos. Para caminhar uma criança precisa estar “fora” da espacialidade concêntrica da sala de aula, de suas paredes limitadoras e dos ideais unificantes do discurso pedagógico que é endereçado para “um grupo” (supostamente homogêneo) e não para “uma pessoa” com suas particularidades e diferenças (Goodson, 1995). O que vimos nas escolas pesquisadas em relação às crianças autistas foi uma espécie de luta constante entre uma espécie de educação alada, a pedagogia anticapacitista – que nasce com o compromisso de combater a educação engaiolada –, e a pedagogia capacitista que opera por raciocínios normalizadores que vem algumas pessoas como faltantes, incompletas, como possuindo alguma falha em relação à norma e ao normal.

      A pedagogia anticapacitista também tem existência nas escolas em ações que rompem com os raciocínios normalizadores e capacitistas, exatamente porque as crianças autistas lá estão impondo suas existências outras, deslocando pensamentos, exigindo outras ações pedagógicas. Trata-se de um modo de educar contra a violência causada pela discriminação e exclusão de pessoas neurodivergentes. Afinal, a pedagogia anticapacitista opera com um modo de expressão da deficiência como um marcador, dentre tantos outros, que se manifesta em pessoas que experimentam uma multiplicidade corporal e modos de viver sua diferença diferencialmente. Se contrapõe à pedagogia capacitista e sua relação hierarquizada entre mestre e aprendiz, que consiste em dotar os corpos de uma série de aptidões previamente definidas para atingir determinados saberes.

      Uma estratégia da pedagogia anticapacitista é ser performativa, fazendo ver e fazendo fazer. Sob este olhar para o autistar, ela rompe com os modelos previamente estabelecidos do que é sala de aula e produz acontecimentos. Se aproxima assim do olhar de Larrosa (2002) ao sujeito da experiência e à importância de nos atentarmos para o que nos afeta, que afetos produz, que marcas são inscritas, que vestígios e efeitos são gerados. Ela busca afrontar as pedagogias capacitistas que são atravessadas por um afã de mudar o autistar e produzir crianças incapazes de experiência. Meninos e meninas esses que insistem em balançar, vociferar, choramingar, levantar, empurrar carteiras e existir na sala de aula. Se opõe as práticas que, partindo da Classificação Internacional de Doenças ou do Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais, consideram o autistar como desviante ou inferior, restrito em sua capacidade de aprender – entendido como o processo de adquirir e processar informação – e na possibilidade de fazer coisas. A pedagogia anticapacitista, em sua estratégia experimental – inspirada por Larossa (2002, p. 25) – requer abertura feita de “paixão, de padecimento, de paciência, de atenção”, requer uma “disponibilidade fundamental” com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e risco.

      A pedagogia anticapacitista valoriza a oportunidade de aprender e desenvolver a alteridade, nos encontros com a variabilidade de corpos e os diversos arranjos de existências possíveis, o que é nomeado como inclusão escolar nos currículos. Entendemos neste trabalho que há dois modos de conceber a inclusão. O primeiro deles é nomeado de inclusão maior (Orrú, 2016), que é criada e atualizada por meio de políticas e práticas que seguem as legislações educacionais vigentes. Essas leis e políticas públicas educacionais brasileiras – tais como a Política Nacional de Educação Especial em uma Perspectiva Inclusiva, PNEEPEI (Brasil, 2008); a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Brasil, 2012); a Lei Brasileira de Inclusão, LBI (Brasil, 2015) – ordenam os territórios escolares que estão ancorados no direito ao acesso e permanência das pessoas com deficiência nas escolas.

      Contudo, sempre há resistências; sempre é possível seguir linhas de fuga menores que são produzidas re-colocando a todo momento a problemática da inclusão. Trata-se de movimentos de uma inclusão menor que, sem a imposição legal como sua principal motivação, produz turbulências ao promoverem certo sentimento de pertencimento ao grupo como finalidade dessa inclusão menor. Para Orrú (2016, p. 50), “esses microcontextos, em que a inclusão se faz presente em disputa acirrada com aquilo que já está posto no macrocontexto da sociedade para diferenciar e classificar pessoas, é que concebemos como um espaço ‘menor’, que existe e coexiste com o ‘maior’” (Orrú, 2016, p. 50).

      A pedagogia anticapacitista alia-se ao conceito de inclusão menor para valorizar, em suas ações, as variadas formas de viver e reivindicar justiça e equidade como princípios, produzindo um currículo que não quer deixar ninguém para trás. Trata-se de um currículo que se movimenta na direção de voos, rotas, percursos, práticas, e, possibilidades de aprender mais abertas. O currículo que não quer deixar ninguém para trás é uma prática em permanente disputa e (des)construção, que foge à determinação prévia dos conhecimentos e saberes, tempos e espaços de aprendizagem, metodologias e recursos didáticos, abarcando relações intensivas entre os sujeitos, os códigos e seus modos de enxergar e narrar as diferenças experimentadas, como será mostrado a seguir.

      III. Caminhar com e apesar das incertezas, medos e inseguranças

        Podemos entender, por meio de Larossa (2002), que experiência contém a dimensão da travessia e do perigo. Envolve ser colocado à prova, tal como um aventureiro em sua viagem para o exterior ou um pirata desbravando mares inóspitos. Implica em sofrer, padecer, aceitar à medida em que nos submetemos a algo. Dessa forma, o autistar como experiência não é algo que nos deixa em pé, seguras de nós mesmas, erguidas. Ele derruba, vira do avesso, tomba, inclina. Faz sofrer, interpela, padece. Nos passa, nos forma e nos transforma. 

        Foi confrontando estes perigos que me coloquei em frente ao portão da escola, antes de atravessar seus muros, com perguntas ecoando em meu pensamento: Como ensinar uma criança que não atende aos comandos básicos?  Uma criança que não comunica? Uma criança que não senta? Foram essas as indagações que a professora de Helen7 havia feito na última vez em que eu estive na escola. Esses questionamentos colocam em foco capacidades tidas como mínimas e necessárias para o ensinar e aprender em território escolar, de acordo com uma pedagogia capacitista, tais como sentar, comunicar, compartilhar atenção, memorizar. Colocam em foco, também, o “sentimento do insuportável”, o peso, a carência, diante de um professorar que se mostrava incompleto e impensável quando entrava em contato com uma criança autista. Isso está articulado a uma imagem da criança autista que performava a falta de capacidade, a incompletude, a ineducabilidade. E agora, eu sabia que teria que me haver com essas questões novamente. 

        Lembrei-me da primeira vez que vi a professora de Helen, ela era uma mulher determinada e de semblante sério. Eu estava caminhando ao lado da estudante, que traçava círculos contornando os dois pavimentos do prédio escolar, quando apareceu a professora carregando uma caixa rosa contendo diferentes materiais. A professora vai até ela e a convida para sentar em um banquinho ao lado do bebedouro. Helen senta e a professora tira da caixa uma pasta que contém uma atividade impressa com a foto de sua mamãe e a letra M. Ela observa a foto e, em seguida, levanta e continua sua caminhada.

        A caixa com materiais itinerantes era acionada diversas vezes na tentativa de capturar aquela estudante que, em seu autistar, parecia escapar da escola, do ensinar e aprender. Nesta caixa havia além de atividades impressas em uma pasta, um tablet, livros sonoros, livros literários pop-up, brinquedos sonoros com estímulos táteis do tipo pop-it, embalagens com areias sinéticas, uma girafa de brinquedo com as pernas articuladas, massinhas e slimes. Para tentar capturar Helen em sua errância, a professora contava com a parceria de duas profissionais de apoio à inclusão. No entanto, todo este aparato era considerado insuficiente, diante do desconhecido, inquietante, estranho, autistar.

        Gostaria de uma contrapartida para essa pesquisa – disse a professora, direcionando o seu olhar para mim. Tantas pessoas vem até a escola e não oferecem nada em troca. Uma formação que abordasse o que fazer para ensinar uma criança que não atende os comandos básicos, por exemplo – continuou a professora. Mas o que seriam comandos básicos? – perguntei. Ao que ela respondeu: Veja, Helen não comunica. Não usa símbolos. Não sabemos o que ela quer. Helen não senta. Como ensinar uma aluna que não senta? – disse a professora. 

        O diálogo com a professora de Helen me confrontava e ressoava em meu pensamento. Desterritorializava as forças homogeneizadoras baseadas numa inclusão maior (Orrú, 2016) que procuram implementar políticas pensadas fora do ambiente escolar. Atuava também junto a inclusão menor, que denuncia a pseudoinclusão (Orrú, 2016) acionada pela inclusão maior, argumentando que esta, apesar de conter as diretivas que versam sobre o direito de todos à educação e promover um impacto na garantia do acesso físico à escola, permanece co-existindo em territórios hostis, em que a rispidez e a brutalidade da discriminação e do preconceito criam mecanismos de exclusão pela diferença. Contudo, não se trata da existência de binarismo inclusão maior versus inclusão menor. A inclusão menor sempre acontece na inclusão maior, em uma combinação engenhosa de tensões (Orrú, 2016).

        Assim, a inclusão-maior apresenta a estratégia que faz operar o princípio da educação para todos que tem como sua principal ação a matrícula e o acesso de todos/as à escola. Ela demanda, porém, estratégias de uma inclusão menor, que produz um esforço, exigido de toda comunidade escolar, para manter a conquista de estarem estudando e aprendendo juntos na mesma escola, crianças autistas e crianças neurotípicas. Ao entrecruzar com a inclusão-menor me deparei com práticas como a parceria da turma que escapam a pedagogia capacitista. 

        Passados alguns meses, a professora de Helen me contou que estava tendo sucesso com uma prática desenvolvida no segundo semestre letivo. A estudante estava sendo conduzida, pela profissional de apoio e inclusão, à sala de aula ao final da tarde. Sua carteira estava posicionada em frente ao quadro e próxima à porta de entrada. Para identificar a carteira havia uma fotografia da sua mãe e do tio materno afixada. Não havia cadeira posicionada e Helen permanecia em pé diante da sua carteira.

        A professora elaborou uma série de atividades que poderiam ser propostas pelas próprias crianças. Havia uma escala que determinava qual colega iria mediar a atividade com Helen em cada dia e a turma esperava ansiosa o dia de estar com ela. O estudante determinado poderia escolher diante das atividades previamente planejadas pela professora, qual iria propor. Os colegas tinham a responsabilidade, ainda, de registrar em um caderno específico qual foi a atividade e como foi a participação da Helen na mesma. A professora me contou entusiasmada que desde a implementação desta prática, ela estava realizando atividades. Diante da existência provocativa de Helen, em seu autistar, a professora apostou nas relações crianceiras e na suspensão de determinadas verdades como aquelas que dizem que para ensinar e aprender era necessário sentar ou que para comunicar era necessário falar verbalmente ou apontar imagens e símbolos predefinidos.

        A professora, com movimentos de uma pedagogia anticapacitista, neste momento, já não fazia as mesmas perguntas que me inquietaram em uma determinada tarde de agosto. Isso porque a pedagogia anticapacitista olha para o que tem no seu território e experimenta. Sem certeza a professora aceita operar com o currículo incontrolável. Ela deseja não deixar Helen para trás8; ela faz parcerias com e entre as crianças para operacionalizar uma pedagogia outra, impulsionando um currículo que não quer deixar ninguém para trás. Por mais que diferentes políticas tentem controlá-lo, impondo competências comuns, capacidades mínimas e normais exigidas, por exemplo, havia brechas para a criação de uma política e pedagogia outras, uma pedagogia anticapacitista, como será mostrado no tópico a seguir.

        A experiência de Aurora, Jorge e Helen como abertura para uma nova pedagogia

        A pedagogia anticapacitista movida por sua inquietude e impulso criador, lança luz sobre o autistar de que ela fala e que ela gostaria de dar a conhecer. Ao mesmo tempo, ela fala sobre si mesma como expressão que parte da travessia e do perigo, da abertura e da exposição, da receptividade e da transformação. Esta é outra importante estratégia da pedagogia anticapacitista: preparar substratos, ideias, sentimentos, formas de expressão que algum dia virão a ser criação. Ela age de forma experimental e ensaística, sendo ensaio entendido aqui como tentativa. Ela inventa, interroga, prova, comunica, apalpa, aponta tudo o que pode se dar a ver. É nesse mesmo sentido que o currículo que não quer deixar ninguém para trás se manifesta como um impulso, um processo revolucionário. 

        Jogam-se para debaixo do tapete os manuais e livros de lições, como no caso de Aurora e perambulam ao seu lado pelo auditório para cocriar um pensamento e uma pedagogia que movimenta, caminha. Diante da fragilidade e da imprevisibilidade das práticas, saberes, materiais, textos, imagens que envolvem o autistar em território escolar, a professora ocupa-se com a seleção e produção de materiais anticapacitistas, tais como, no caso de Helen: a identificação da sua carteira com as fotografias da sua mãe e do seu tio, a produção de atividades utilizando imagens da Galinha Pintadinha, a seleção de jogos de encaixe de cores e formas como o “Giro Mágico” e a proposição de atividades com pintura a dedo. São recursos que procuram afetar o seu autistar, ao mesmo tempo em que são tecidas entre as professoras e as crianças redes de saberes e conhecimentos.

        Cria-se mesmo diante do medo e da incerteza. Esta potência criativa é mobilizada quando a professora que está habituada com o comum, deste território coletivamente habitado que é a escola, encara a diferença e faz com ela. Essa produtividade é acionada com a parceria entre Helen e as crianças da turma ao realizar as atividades diárias. Nesses encontros, há conexões e acontecimentos imprevisíveis. Também há aprendizados, alianças que são mobilizadas pela professora. O autistar de Helen, Aurora e Jorge, a princípio, não se aproximam das manifestações das demais crianças e isso amedronta e, ao mesmo tempo, mobiliza quando focam nas experimentações e tentativas, conhecendo as potências de Aurora, Helen, Jorge e suas potências ao professorar.

        Nada está garantido na pedagogia anticapacitista e no currículo que não quer deixar ninguém para trás, pois trata-se de um “currículo vitalista e menor” (Paraiso, 2023), um território de criação. Exige, então, um perambular permanente e persistente se contrapondo a rapidez das informações e as condutas pedagógicas que focam no tratar e remediar um problema – normalizar o aluno que se perdeu ou se conformar com o seu aluno a menos que se torna descartável, por exemplo – ao invés de sustentá-lo, indagá-lo e, a partir dele, fundamentar uma experiência singular. 

        Nesses movimentos, experimentos e no fazer com foi possível compreender a indeterminação da pedagogia anticapacitista e vivenciá-la como um lugar de acontecimento da vida. Deparamo-nos, assim, com infinitudes… Outros mapas, outras marcas do currículo e da pedagogia poderiam ser inventadas e aqui exploradas. Há de se permanecer, ininterruptamente, traçando-o. Inspirada em Kohan (2005) imaginamos que, após essa longa caminhada, “talvez possamos pensar de novo um outro lugar minoritário, molecular, para a infância, na espacialidade molar e concêntrica da escola”. E ainda nos atrevemos a pensar em um lugar que possibilitasse às crianças e adultos a interromper o que está dado e propiciar novos inícios.

        O que ficou evidente na investigação realizada foi que professoras e os/as estudantes permanecem como uma tormenta ou turbilhão, lutando e resistindo à exclusão e às pedagogias capacitistas. Eles/elas, em seu movimento, emitem vibrações que soam como um chamado a todos/as para andar traçando novos caminhos, compor com a pedagogia anticapacitista e o currículo que não quer deixar ninguém para trás, experimentando sua força, resistência e potência. 

        Sim, os/as autistas nas escolas necessitam de pedagogias anticapacitistas para sobreviverem nas escolas. Os/as autistas necessitam de currículos determinados a não deixar ninguém para trás que também gritem: “nenhum menos”. Isto porque as vivências que produzem essa pedagogia anticapacitista e esse currículo que não deixa ninguém para trás são envolventes, fortes, benéficas a todos/as, podendo transformar o mundo, a escola, todos os dias, em um lugar melhor para se viver.


        3A pedagogia capacitista é um modo de educar que produz um tipo particular de corpo (um padrão funcional e de estrutura corporal) que é projetado como perfeito, típico da espécie e, portanto, essencial e totalmente humano. É composta por práticas que ensinam e formam partindo desses referenciais de capacidade, significando a deficiência como uma condição inerentemente negativa devendo ser, sempre que possível amenizada, curada ou mesmo eliminada. A pedagogia capacitista distingue as crianças e jovens pela (in)capacidade de aprenderem na escola resultando em processos de exclusão e violência àqueles/as que não se adequam ou adaptam ao seu funcionamento (Soares, 2023).

        4Na tarefa de investigar modos de vida autistas no território escolar encontrei com uma criança nomeada aqui como Aurora que passou a fazer parte da pesquisa e foi de grande importância para mapearmos as possibilidades de uma pedagogia anticapacitista.

        5Frédéric Gros (2023), em sua obra intitulada “Caminhar: uma filosofia”, compreende o caminhar como um acontecimento simples e que não exige equipamentos, espetáculos, mercado. Não exige posições ou gestos corretos, pontuações ou resultados específicos, calçados revolucionários, meias incríveis, mochilas eficazes ou calças funcionais. Para Gros (2023, p. 9), “quando se está caminhando, só um tipo de eficiência conta: a intensidade do céu, o esplendor das paisagens”. Sabemos que nem mesmo duas pernas são exigência para se caminhar já que o caminhar pode ser com as mãos conduzindo as cadeiras de rodas, pode ser mediado por órteses e próteses, pode ter o suporte físico de exoesqueletos e outros sistemas como o sopro ou movimentos de cabeça para se locomover com autonomia.

        6Outra criança que encontrei nesta investigação e que passou a fazer parte da pesquisa foi aqui nomeada como Jorge. Acompanhar os traçados de seu autistar tiveram grande impacto para abrir outras linhas no mapa de uma pedagogia anticapacitista.

        7Helen foi outra criança que encontrei nas minhas andanças pelo território escolar investigando o autistar. Era uma criança com 8 anos de idade, iluminada e com uma potência como a de uma tocha. Estava matriculada no 2º ano do Ensino Fundamental. O seu nível de comprometimento funcional e nível de apoio, conforme o DSM-5 – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – é o nível 2, “exigindo apoio substancial”.

        8A saga da professora na busca de alternativas para não deixar Helen para trás nos remeteu ao filme “Nenhum a menos”, de 1999, do diretor Zhang Yimou. Este filme narra a jornada de Wei Minzhi, uma garota de 13 anos que é recrutada para lecionar em uma turma multiseriada com vinte e oito crianças. Iniciando-se na docência em um contexto de muitas exclusões, discriminações e fragilidades, a professora recebe apenas uma recomendação, a de que não deverá haver nenhum aluno a menos após o período de sua atuação na escola. É essa orientação que se torna um grande desafio e, ao mesmo tempo, impulsiona Wei para se transformar e transformar a sua prática pedagógica.

        REFERÊNCIAS

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        1Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora da Universidade Federal de Minas Gerais. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4968458376976659
        ORCID: 0000-0003-1243-4319

        2Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículos e Culturas (GECC). Currículo Lates: https://lattes.cnpq.br/4839214907972946
        ORCID: 0000-0002-3542-4650