FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO DE ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202505281602


Ueudison Alves Guimarães
Gislene Coelho Dias Costa
Nazaré Apparecida Vilhena Aguiar
Simone Lopes de Oliveira
Vaneska Maria de Melo Silva
Maria da Conceição de Araújo
Marriete da Silva Cruz
Leidiane Aparecida dos Santos


RESUMO

A escola não é, para o docente, um cenário neutro nem um lugar de convergência pacificada. Ela é, antes, um território de fricções permanentes, onde a presença do estudante com deficiência desloca hábitos, desafia normativas e exige reelaboração dos próprios modos de ensinar. O que se denomina formação, nesse contexto, não pode ser confundido com etapas de capacitação, mas deve ser tratado como campo ético, político e linguístico em disputa. Este estudo tem como objetivo analisar os sentidos atribuídos à formação docente para a educação de estudantes com deficiência, problematizando suas lacunas, possibilidades e contradições. A metodologia bibliográfica adotada mobiliza referenciais críticos sobre inclusão, políticas de formação e pedagogias emancipadoras.

Três eixos organizam a investigação: a prática docente tensionada pela presença do corpo que escapa à norma; a formação continuada como espaço de escuta que se recusa ao diagnóstico e se abre à alteridade; e os impasses que configuram a inclusão como promessa ainda não cumprida — frequentemente reduzida à adaptação acrítica de conteúdos e comportamentos. Ao final, não se busca uma solução, mas o adensamento de perguntas. Em que medida a formação docente pode deixar de vigiar para acolher? Como reverter a lógica da adequação para fazer da escola um lugar de pertencimento radical? Essas questões sustentam o presente trabalho.

Palavras-chave: Inclusão. Formação. Diferença. Docência. Singularidade.

ABSTRACT

For teachers, school is not a neutral setting or a place of peaceful convergence. Rather, it is a territory of permanent friction, where the presence of students with disabilities changes habits, challenges norms and demands a reworking of teaching methods. In this context, what is called training cannot be confused with stages of qualification, but should be treated as an ethical, political and linguistic field in dispute. This study aims to analyze the meanings attributed to teacher training for the education of students with disabilities, problematizing its gaps, possibilities and contradictions. The bibliographic methodology adopted mobilizes critical references on inclusion, training policies and emancipatory pedagogies. Three axes organize the investigation: teaching practice under tension due to the presence of the body that escapes the norm; continuing education as a space for listening that refuses diagnosis and opens itself to otherness; and the impasses that configure inclusion as an unfulfilled promise — often reduced to the uncritical adaptation of content and behaviors. In the end, the aim is not to find a solution, but to raise questions. To what extent can teacher training stop monitoring and start welcoming? How can we reverse the logic of adaptation to make schools a place of radical belonging? These questions underpin this work.

Keywords: Inclusion. Training. Difference. Teaching. Singularity.

1. INTRODUÇÃO

A escola pública, quando acolhe estudantes com deficiência, expõe tensões que extrapolam o plano institucional e adentram o território da ética, da linguagem e da política. Não se trata de adicionar conteúdos inclusivos a um projeto já estabelecido, mas de deslocar a própria gramática que sustenta o cotidiano escolar. Cada estudante que escapa à norma desestabiliza práticas e saberes, abrindo interstícios de reinvenção que exigem mais do que adaptação: requerem escuta, memória e criação.

Este estudo tem como objetivo analisar os sentidos atribuídos à formação docente para a educação de estudantes com deficiência, problematizando suas lacunas, possibilidades e contradições. A metodologia bibliográfica adotada mobiliza referenciais críticos sobre inclusão, políticas de formação e pedagogias emancipadoras.

Pensar a formação docente diante da diferença não implica apenas mobilizar saberes específicos, mas questionar as fundações do ato de educar. Estudantes com deficiência não interpelam o currículo apenas por suas necessidades particulares, mas pelo potencial de deslocar a noção mesma de normalidade que organiza a vida escolar. Formar para a diferença é, nesse contexto, formar para a incerteza, para o inacabamento e para o reconhecimento da educação como processo eminentemente coletivo.

As diretrizes normativas que orientam a formação inclusiva frequentemente obscurecem a distância entre o enunciado legal e a materialidade da prática. Políticas formuladas em instâncias distantes do chão da escola não capturam a densidade dos encontros cotidianos, nos quais o estudante não se ajusta ao script previsto e o docente é convocado a recriar percursos diante do imprevisto.

Consolidar práticas formativas críticas demanda enfrentar a ilusão de que a inclusão se resolve com o domínio técnico de adaptações curriculares. O que se põe em questão é a necessidade de ruptura com a lógica da adaptação passiva, substituindo-a por processos formativos que recusem o ajustamento e sustentem a diversidade como valor constitutivo do espaço escolar. Não há inclusão sem transformação radical das práticas pedagógicas.

Formar-se para a inclusão exige, portanto, a abertura para o desconforto e para a reformulação de crenças pedagógicas naturalizadas. O estudante com deficiência, ao ocupar o espaço escolar, desafia narrativas de competência, de autonomia normativa e de eficiência. Sua presença desacomoda práticas cristalizadas e convoca o docente a reelaborar o sentido da própria ação educativa, não como concessão, mas como produção conjunta de possibilidades.

A formação continuada, quando reduzida a eventos esporádicos ou orientações prescritivas, perde sua capacidade de problematizar a experiência e se converte em estratégia de contenção da diferença. Em contrapartida, pensar a formação como campo de investigação e de reconstrução do cotidiano escolar implica admitir a incompletude como condição formativa, reconhecendo a complexidade dos vínculos que sustentam o fazer pedagógico.

Cada gesto formativo comprometido com a inclusão precisa reconstituir o vínculo entre prática e reflexão, recusando soluções imediatistas e abrindo espaço para a escuta crítica. Não se trata de preencher lacunas normativas, mas de construir percursos que sustentem o estudante em sua singularidade, sem reduzir sua presença à metáfora da superação ou ao modelo da integração subordinada à lógica produtiva.

O desafio da formação para a educação de estudantes com deficiência reside, em última instância, na disposição para se implicar nos conflitos que marcam o cotidiano escolar. Não há respostas prontas, nem caminhos lineares. A construção de práticas inclusivas implica risco, hesitação e abertura permanente ao inusitado. Formar-se para a inclusão é, nesse horizonte, aceitar a complexidade como condição, não como desvio a ser corrigido.

Esta introdução não propõe uma resposta conclusiva. Propõe, antes, uma interrupção das certezas, um convite à hesitação crítica diante das promessas fáceis de inclusão. Se o gesto educativo pretende acolher a singularidade em sua radicalidade, a formação docente precisará sustentar a contradição como elemento constitutivo, não como obstáculo a ser eliminado. Nesse intervalo de incerteza talvez se localize a única fidelidade possível à diferença.

2. METODOLOGIA

A produção deste estudo parte da compreensão de que investigar não é meramente levantar dados, mas elaborar perguntas cujas respostas exigem mergulhos interpretativos sobre práticas, discursos e políticas. A escolha metodológica, nesse sentido, não é neutra: carrega em si um posicionamento diante do real, uma leitura de mundo e uma aposta epistêmica que precisa ser explicitada. A metodologia, portanto, integra o próprio gesto de construir conhecimento.

A investigação delineada aqui opta por uma abordagem qualitativa, com base em fontes bibliográficas de reconhecida legitimidade acadêmica. Tal escolha ancora-se na necessidade de compreender criticamente os sentidos atribuídos à formação docente para a educação de estudantes com deficiência, articulando as condições históricas e discursivas que moldam essa prática. O objetivo não é acumular informações, mas construir interpretações capazes de deslocar entendimentos cristalizados.

Foram mobilizados autores que tratam da formação docente sob o viés da inclusão, da crítica institucional e da pedagogia da diferença. A seleção priorizou publicações atualizadas (de 2010 a 2024), bem como obras clássicas da área de metodologia científica. Os textos foram analisados à luz da problematização dos modelos formativos vigentes, buscando conexões entre política educacional, experiência docente e direitos dos estudantes com deficiência.

Segundo Lakatos e Marconi (2003, p. 84):

Com o passar do tempo, muitas modificações foram feitas nos métodos existentes, inclusive surgiram outros novos. No momento, o que nos interessa é o conceito moderno de método (independente do tipo). Para tal, consideramos, como Bunge, que o método científico é a teoria da investigação. Esta alcança seus objetivos, de forma científica, quando cumpre ou se propõe a cumprir as seguintes etapas: descobrimento do problema ou lacuna num conjunto de conhecimentos; colocação precisa do problema; procura de conhecimentos ou instrumentos relevantes; tentativa de solução; invenção de novas ideias; obtenção de solução; investigação das consequências da solução e prova da solução (LAKATOS; MARCONI, 2003, P. 84).

Diante dessa formulação, compreende-se que a metodologia não é etapa estanque, mas dimensão constitutiva do próprio processo investigativo. Não se trata de escolher um caminho entre outros, mas de explicitar a direção do olhar, a intencionalidade da análise e os limites daquilo que se pode afirmar. Ao assumir o método como teoria da investigação, desloca-se a atenção do “como” se pesquisa para o “por que” e “para quem” se produz saber.

A pesquisa bibliográfica, nesse contexto, não se restringe à leitura de textos, mas implica a reconstrução de um campo de tensões conceituais. A cada obra mobilizada, busca-se não apenas seu conteúdo, mas seu lugar no debate, sua filiação teórica e sua potência de deslocamento. Trata-se de ler criticamente, reler politicamente e interpretar como quem interroga o mundo a partir de seus próprios pontos de conflito.

A delimitação do corpus priorizou produções acadêmicas que articulam formação docente, práticas inclusivas e políticas de reconhecimento. Foram desconsiderados textos meramente prescritivos ou alinhados a perspectivas adaptativas normativas. O objetivo foi compor um conjunto capaz de sustentar a problematização dos limites e possibilidades da formação inclusiva, com densidade analítica e compromisso com a dignidade dos sujeitos envolvidos no processo educativo.

A estrutura textual resultante foi organizada em três eixos: no primeiro capítulo, discute-se a prática docente diante da diversidade funcional; no segundo, investiga-se o papel da formação continuada como espaço crítico; e, por fim, o terceiro capítulo analisa os desafios ético-políticos que atravessam a consolidação de práticas inclusivas. Cada seção foi redigida como movimento reflexivo, e não como resposta técnica.

3. REFERENCIAL TEÓRICO 

3.1 A complexidade da prática docente frente à diversidade funcional no ambiente escolar

A escola, enquanto espaço de disputas simbólicas e práticas normatizadas, carrega em si um projeto de constituição de sujeitos a partir de parâmetros hegemônicos de normalidade. A entrada dos estudantes com deficiência neste espaço desestabiliza essas gramáticas tradicionais, exigindo que a prática docente não apenas absorva novas técnicas, mas elabore outros modos de se relacionar com o conhecimento e com a alteridade.

A diferença funcional não se limita a um traço identitário do estudante; ela tensiona a organização curricular, as formas de avaliação e os próprios modos de interação pedagógica. O estudante que escapa à norma não demanda apenas acessibilidade física, mas convoca a reconfiguração dos tempos, dos espaços e das expectativas de aprendizagem. Formar docentes para este cenário implica deslocar o foco da adaptação técnica para a escuta crítica.

Tavares e Santos (2016) destacam que a formação docente para a inclusão, muitas vezes, permanece atrelada a um paradigma assistencialista que reforça estigmas em vez de desconstruí-los. Para os autores, a deficiência é frequentemente tratada como déficit a ser superado, e não como expressão legítima de modos plurais de ser e estar no mundo. Tal percepção fragiliza a potência transformadora do trabalho pedagógico.

A formação continuada, pensada sob a ótica crítica, deve afastar-se dos modelos de capacitação técnica rápida que neutralizam a experiência do docente. Trata-se de criar espaços de formação onde a escuta, a dúvida e o deslocamento de certezas constituam práticas permanentes. Em tempos de normatização crescente da educação, formar-se para a diferença é também resistir à homogeneização dos processos formativos.

Oliveira e Araújo (2017) analisam que a formação oferecida aos docentes, muitas vezes, associa a inclusão a procedimentos normativos que padronizam as práticas educativas. As autoras alertam para o risco de que a diferença se torne apenas mais uma categoria de gestão burocrática, esvaziando sua potência de interrogação. A prática inclusiva, nesse horizonte, não é uma aplicação de protocolos, mas uma reinvenção do ato educativo.

O estudante com deficiência, ao ocupar o espaço da escola, interroga a própria noção de normalidade sobre a qual se sustentam práticas pedagógicas tradicionais. A formação docente crítica, nesse sentido, deve ir além da preocupação com acessibilidade ou suporte, para instaurar uma pedagogia que acolha a diferença como princípio constitutivo, e não como exceção a ser administrada no interior de um sistema preexistente.

A tentativa de normatizar a diferença implica sua captura pelo discurso da eficiência educacional. Quando a deficiência é reduzida à categoria de desvio a ser corrigido, perde-se a oportunidade de ressignificar práticas e repensar a própria função social da escola. Cada estudante que desafia a norma carrega a potência de ampliar o que se entende por aprendizagem, por relação pedagógica e por reconhecimento.

Sobre esse ponto, Oliveira e Araújo (2017, p. 840) afirmam:

A conceituação da deficiência fixa as diferenças individuais desses sujeitos, dando a impressão de que eles são uma massa amorfa, destituída de identidade e individualidade. Sendo assim, a pessoa com deficiência deixa de ser um indivíduo e se transforma em um ‘caso’ que, ao mesmo tempo, constitui um objeto para o conhecimento e uma tomada para o poder (OLIVEIRA; ARAÚJO, 2017, p. 840).

A formulação apresentada evidencia como a prática pedagógica, ao adotar discursos medicalizantes, pode esvaziar a singularidade dos estudantes com deficiência, transformando-os em objetos de intervenção. Formar-se criticamente, portanto, implica recusar essa objetificação, abrindo-se a práticas educativas que reconheçam a heterogeneidade como constitutiva da experiência escolar e promovam a emergência de outros modos de convivência e aprendizagem.

No cotidiano da escola pública, os docentes são confrontados com desafios que escapam às soluções prescritas. A prática inclusiva não se efetiva pela aplicação de métodos importados, mas pela elaboração situada de respostas a problemas inéditos. A formação docente voltada para estudantes com deficiência deve, assim, privilegiar percursos formativos que acolham a incompletude como motor de criação pedagógica.

Cada estudante que tensiona a norma convoca o docente a repensar não apenas suas estratégias didáticas, mas sua própria posição frente ao saber e à diferença. Formar-se para a inclusão exige, nesse horizonte, reconhecer-se também em processo, atravessado por dúvidas, incertezas e redescobertas. A prática pedagógica torna-se, nesse movimento, espaço de produção de sentidos e não mera execução de políticas.

A escola, longe de ser um espaço homogêneo e harmônico, é atravessada por relações de poder, desigualdades e conflitos. A formação crítica de docentes precisa, portanto, abandonar idealizações e assumir a complexidade como condição formativa. Formar para a inclusão não é um gesto de boa vontade, mas um compromisso ético com a transformação das práticas que produzem exclusão no cotidiano escolar.

A construção de uma escola inclusiva passa pela reinvenção dos vínculos entre conhecimento, corpo e linguagem. O estudante com deficiência não solicita concessões, mas desafia a prática docente a descentrar-se e a construir outras possibilidades de escuta e de reconhecimento. Nesse percurso, a formação continuada precisa ser compreendida como espaço de deslocamento e criação, e não como ajuste a padrões preestabelecidos.

3.2 A formação contínua como estratégia de emancipação e reconhecimento dos estudantes com deficiência

A formação contínua não se apresenta como apêndice da trajetória docente, mas como campo constitutivo das práticas pedagógicas. Quando pensada como itinerário ético e político, ela deixa de ser mero aprimoramento técnico para se converter em dispositivo de criação, deslocamento e escuta. Nesse sentido, não basta disponibilizar cursos: é preciso problematizar as estruturas formativas que reproduzem lógicas excludentes travestidas de inovação.

Este capítulo parte da hipótese de que formar-se continuamente é romper com o conforto das certezas instituídas e permitir-se afetar pelo encontro com a diferença. O estudante com deficiência, nesse cenário, não aparece como exceção a ser assimilada, mas como sujeito que convoca o docente a reposicionar-se frente à linguagem, ao tempo e à aprendizagem. A formação, aqui, é tomada como um processo em que se constrói uma ética da atenção mútua.

Ao investigarem ações extensionistas voltadas à formação para a inclusão, Martins, Antunes e Monteiro (2019) ressaltam que o diálogo entre universidade e escola favorece o deslocamento das práticas formativas para territórios mais críticos e colaborativos. A formação passa a ser vivida como experiência situada, em que os saberes docentes são convocados a confrontar narrativas prescritivas e a produzir novos modos de conceber a relação entre ensino e diferença.

Essa formulação exige que se abandone a ideia de formação como transmissão de modelos prontos. Quando a experiência se torna matéria formativa, o docente não apenas adquire instrumentos: ele reelabora seu próprio lugar no processo pedagógico. A formação deixa de ser verticalizada e passa a se configurar como construção coletiva, em que a escuta não é concessão, mas condição da prática inclusiva.

Ainda que as políticas públicas enfatizem a importância da formação continuada, muitas vezes seu desenho institucional reproduz lógicas burocráticas que inviabilizam a criação de espaços de reflexão. A ênfase em resultados mensuráveis e em conteúdos padronizados tensiona o tempo da escuta, sufoca a dúvida e transforma a diferença em obstáculo a ser superado. A formação, assim, torna-se técnica, não pensamento.

Muniz e Silveira (2024) afirmam que processos formativos que se enraízam na escuta coletiva e na realidade escolar ampliam a capacidade do docente de agir de forma crítica diante das demandas inclusivas. Para as autoras, a formação não deve se resumir a conteúdos generalistas, mas ser atravessada pelas vivências do cotidiano escolar, acolhendo os conflitos e incertezas como parte legítima do processo educativo.

Essa perspectiva amplia a noção de formação ao incluir a experiência como fonte de saber e não como obstáculo a ser superado. O reconhecimento do conflito como motor da aprendizagem e da diferença como produtora de novos sentidos exige uma política formativa que desestabilize os binarismos entre ensinar e aprender, entre saber e aplicar, entre formar e já estar formado. A continuidade reside justamente nessa incompletude assumida.

No cenário cotidiano da escola pública, as iniciativas formativas mais potentes são aquelas que se constroem a partir da prática e da troca entre pares. Quando o docente encontra no outro a possibilidade de espelhar suas dúvidas e reelaborar suas certezas, a formação ganha densidade e vitalidade. É na pluralidade dos percursos que se sustenta a ideia de formação como experiência coletiva.

Muniz e Silveira (2024) observam que esse tipo de formação não prescinde de estrutura, mas recusa a rigidez. Em vez de manuais prontos e diagnósticos fechados, emerge a necessidade de dispositivos formativos que se movam junto com as escolas, abrindo espaço para a criação de estratégias locais e sensíveis às singularidades dos estudantes com deficiência. A escuta torna-se, nesse horizonte, ferramenta e fim.

Compreender a formação como processo inacabado requer reconhecer que o saber docente não se esgota em normativas. Pelo contrário, ele se alimenta de lacunas, incertezas e da própria precariedade dos encontros. Cada estudante que desafia o planejamento e interrompe a linearidade do conteúdo oferece a possibilidade de formar-se para além da expectativa. Nesse sentido, a formação é também um modo de construir resistência à previsibilidade.

Martins, Antunes e Monteiro (2019) argumentam que a abertura de espaços de escuta e partilha nos processos formativos contribui para reconfigurar a imagem do estudante com deficiência, não como “alvo” da inclusão, mas como sujeito ativo da construção pedagógica. Quando a formação se estrutura a partir da alteridade, desloca-se a função docente para o campo da corresponsabilidade e da reinvenção do fazer educativo.

A articulação entre escuta e prática pedagógica produz deslocamentos não apenas nas estratégias, mas nas próprias formas de habitar a escola. Quando o estudante deixa de ser silenciado e passa a ser compreendido como interlocutor legítimo, rompe-se o ciclo da fala autorizada que naturaliza a exclusão. Nesse processo, a formação torna-se política de reconhecimento, não protocolo de adequação.

A emancipação dos sujeitos envolvidos no processo educativo não se realiza por meio da aplicação de conteúdos, mas pelo exercício constante da escuta crítica e da reformulação da prática. A formação contínua, nesse horizonte, deve resistir à ideia de que se forma para repetir: forma-se para criar, errar, recomeçar. A diferença não é uma etapa da aula — é sua própria condição.

A consolidação de uma formação ética e comprometida com a diferença exige não apenas recursos técnicos, mas tempo, vínculo e disposição para transformar a escola a partir de dentro. O estudante com deficiência, ao ocupar esse espaço, devolve ao docente a pergunta sobre o que significa educar. É nesse gesto de retorno — que desconcerta, inquieta e desloca — que a formação ganha sentido pleno.

3.3 Desafios ético-políticos na construção de práticas inclusivas na formação docente

A prática docente inclusiva, mais do que uma adesão técnica a protocolos de acessibilidade, implica um compromisso ético com a desconstrução de lógicas historicamente excludentes. Cada estudante que desafia o padrão normativo convoca o docente a reformular não apenas métodos, mas modos de presença, de escuta e de vínculo. A inclusão, nesse sentido, é menos uma meta a ser atingida do que um processo permanente de deslocamento crítico.

A formação docente precisa ser compreendida como um território de tensões, no qual a dimensão política do ato educativo não pode ser neutralizada em nome da eficiência. Formar para a inclusão não significa apenas conhecer recursos adaptativos, mas problematizar as próprias concepções de normalidade que sustentam práticas pedagógicas cotidianas. A ética da inclusão se funda no reconhecimento da alteridade como condição constitutiva do espaço escolar.

Rodrigues e Lima-Rodrigues (2011) defendem que a formação docente inclusiva não pode se pautar exclusivamente pela transmissão de conteúdos normativos, sob risco de esvaziar a potência crítica da educação. Para os autores, formar para a inclusão é formar para a desconstrução dos modos convencionais de perceber, agir e educar. Trata-se de sustentar uma prática pedagógica que não se acomoda ao conforto da homogeneidade.

A formação, nesse horizonte, não é uma sequência de conteúdos a serem dominados, mas um processo de abertura ao imprevisto que o outro carrega. A diferença não solicita apenas acolhimento, mas exige redesenho das próprias gramáticas pedagógicas. Cada estudante que desestabiliza a norma introduz no cotidiano escolar uma oportunidade de deslocamento ético que a formação continuada deve ser capaz de sustentar.

A trajetória formativa do docente, sobretudo no campo da inclusão, demanda que se ultrapassem as fronteiras entre teoria e prática, entre formação inicial e continuada. A escola não é laboratório de aplicação de métodos, mas espaço de produção de práticas situadas, atravessadas pelas condições históricas concretas dos sujeitos. A formação crítica implica, portanto, insurgir contra a domesticação da diferença.

Arroyo (2007, p. 165) fórmula de modo contundente:

Essa ocupação vem criando a consciência de que a especificidade na formação de educadoras e educadores do campo não é mais para ser questionada, mas garantida. Vai se consolidando a consciência de que os direitos carregam as especificidades de seus sujeitos concretos, dos coletivos sociais históricos que são titulares desses direitos. A presença forte, questionadora, de coletivos de educadoras e educadores do campo nos cursos de Pedagogia da Terra desafia alunos e professores das faculdades e seus currículos nas concepções de formação e de educação (ARROYO, 2007, p. 165).

A formulação apresentada desloca a formação do âmbito das competências abstratas para o reconhecimento dos sujeitos históricos que habitam a escola. Em vez de neutralizar a diferença no interior de padrões homogêneos, a formação crítica acolhe a especificidade como elemento constitutivo da prática pedagógica. Cada direito educacional, nesse sentido, carrega a memória de uma luta concreta, de uma disputa ética que a formação docente precisa preservar e reatualizar.

As práticas formativas que negam a historicidade dos estudantes com deficiência tendem a reproduzir a exclusão sob outras roupagens. Quando a diferença é apenas administrada e não problematizada, perde-se a potência formadora dos encontros. A escola inclusiva não se constrói por adição de dispositivos técnicos, mas pela criação de condições para que cada estudante possa inscrever sua experiência no tecido da vida escolar.

A formação docente, compreendida como prática de resistência, implica assumir a escola como território de contradições. A política da inclusão não se realiza em um espaço neutro, mas em uma arena de forças em disputa. Cada gesto pedagógico que reconhece a singularidade do estudante e a legitima como parte constitutiva do projeto educativo desafia as racionalidades normalizadoras que atravessam as instituições escolares.

Rodrigues e Lima-Rodrigues (2011) salientam que a formação inclusiva exige tensionar os processos tradicionais de socialização escolar, que tendem a naturalizar padrões excludentes. Para os autores, a prática docente deve ser repensada à luz de uma ética da alteridade, que não reduz o outro à função de objeto de intervenção. A educação inclusiva se faz, nesse contexto, como exercício cotidiano de desconstrução e reinvenção.

Cada movimento de escuta que reconhece o estudante em sua complexidade desmonta, ainda que parcialmente, as estruturas que legitimam a exclusão. Formar para a inclusão não é corrigir desvios, mas habitar a diferença sem a pretensão de reduzi-la. Nesse sentido, a formação docente torna-se também uma formação política, pois disputa os sentidos possíveis de escola, de aprendizagem e de convivência.

A prática pedagógica inclusiva, ao se descolar da lógica da adaptação, afirma a diferença como elemento constitutivo da educação e não como obstáculo a ser superado. Cada estudante que inscreve sua singularidade no espaço escolar redefine o próprio projeto de escolarização. A formação continuada deve, assim, sustentar esse movimento, criando espaços de reflexão, partilha e invenção coletiva de práticas que acolham o inédito.

Encerrar este percurso investigativo é reconhecer que os desafios ético-políticos da formação docente para a inclusão não se resolvem pela mera disseminação de protocolos. Eles exigem o reposicionamento do olhar, a reformulação dos vínculos e a insurgência cotidiana contra a exclusão naturalizada. É nesse campo minado, cheio de riscos e de promessas, que a formação docente se reinventa e faz da escola um espaço possível de liberdade.

4. DISCUSSÕES 

A formação docente que se pretende inclusiva não pode ser capturada por lógicas homogeneizadoras que apagam a singularidade dos sujeitos. Quando reduzida à técnica ou à normatização de condutas, ela deixa de ser campo de emancipação e se torna apenas mais um dispositivo de contenção. As práticas formativas exigem, portanto, abertura permanente ao conflito e à reinvenção do fazer pedagógico.

Em diálogo com Tavares e Santos (2016), compreende-se que uma formação alicerçada na escuta crítica desloca o foco da adaptação funcional para a construção de práticas mais responsivas à presença do estudante com deficiência. O desafio está menos em ensinar conteúdos e mais em transformar os vínculos entre saber, sujeito e escola, assumindo a diversidade como princípio estruturante do processo educativo.

Ao analisarem a formação oferecida por meio do Portal do Professor, Oliveira e Araújo (2017) denunciam o risco de que a retórica inclusiva oculte práticas medicalizantes que reafirmam o estudante com deficiência como objeto de intervenção. Essa crítica aponta para a necessidade de desconstruir os discursos que patologizam a diferença e interditam sua potência formativa.

No plano metodológico, Lakatos e Marconi (2003) reforçam que o percurso investigativo deve explicitar seus fundamentos, não apenas na escolha de técnicas, mas no posicionamento ético do pesquisador diante do objeto estudado. Formar-se, nesse sentido, implica assumir a própria incompletude como horizonte, reconhecendo que o saber pedagógico se constitui em meio a incertezas e rupturas.

Muniz e Silveira (2024), ao refletirem sobre práticas formativas enraizadas na experiência, mostram como a troca entre pares fortalece a capacidade docente de responder criativamente aos desafios da inclusão. Não se trata de aplicar modelos prontos, mas de produzir sentidos compartilhados no interior da escola. A formação, nesse caso, não é imposição vertical, mas movimento horizontal de escuta e invenção.

Tal movimento formativo exige tempo, vínculo e reconhecimento. Não há espaço para soluções instantâneas quando se trata de reconfigurar os sentidos do ensinar. Martins, Antunes e Monteiro (2019) defendem que a extensão universitária, ao promover a partilha entre espaços acadêmicos e escolares, potencializa deslocamentos discursivos e metodológicos na formação continuada de docentes comprometidos com a inclusão.

A formação, quando produzida coletivamente, não se restringe ao aperfeiçoamento de competências. Ela convoca o docente a se implicar em processos de leitura crítica do contexto, de construção de alternativas e de resistência às narrativas que culpabilizam os sujeitos por estruturas excludentes. Nesse sentido, Arroyo (2007) destaca que cada direito educacional carrega a especificidade de coletivos históricos que lutam para torná-lo efetivo.

Esse reconhecimento da luta como parte constitutiva do direito à educação exige que a formação deixe de pensar o estudante com deficiência como destinatário de concessões e passe a vê-lo como sujeito produtor de demandas. Rodrigues e Lima-Rodrigues (2011) lembram que o desafio da formação inclusiva está em reformular os próprios referenciais de normalidade, deslocando a ênfase da integração para o pertencimento.

A escola, ao ser tomada como território ético, demanda que a formação docente seja mais do que uma etapa burocrática. A continuidade desse processo não reside em sua duração, mas em sua capacidade de romper com o utilitarismo pedagógico. Como enfatizam Muniz e Silveira (2024), escutar os conflitos da prática cotidiana é o primeiro passo para não repetir as exclusões sob novas roupagens.

A crítica à medicalização da diferença, desenvolvida por Oliveira e Araújo (2017), reafirma a urgência de desconstruir os discursos que desumanizam os sujeitos sob a aparência da atenção especializada. O estudante com deficiência não pode ser traduzido em laudos ou planos individualizados; ele é presença concreta que exige reposicionamento ético e não aplicação de fórmulas pedagógicas.

Ao pensar a pesquisa como campo de escolhas éticas, Lakatos e Marconi (2003) nos alertam para o risco de neutralizar o conhecimento por meio de procedimentos formais. A prática investigativa e formativa deve estar alinhada a um projeto de sociedade que não normalize a desigualdade. É nesse sentido que a formação docente assume seu caráter político.

Encerrar estas discussões não significa esgotar o tema, mas deixar abertas as margens da escuta e da revisão permanente. A formação docente para a inclusão se constrói no atrito, na hesitação e na coragem de rever o que parecia incontestável. Nesse intervalo de dúvida e de criação coletiva, talvez se anunciem as possibilidades mais radicais de reinvenção da escola.

5. CONCLUSÃO 

A formação docente voltada à inclusão de estudantes com deficiência não pode ser compreendida como suplemento técnico ou como etapa posterior ao exercício da docência. Ela é parte constituinte do modo como se define o que é ensinar, quem se considera ensinável e quais vínculos se reconhecem como legítimos dentro do espaço escolar. A presença da diferença desestabiliza o lugar tradicional do docente e convida a uma escuta que não se encerra em respostas prontas.

O percurso deste estudo não pretendeu mapear exaustivamente práticas ou propor soluções acabadas. O que se buscou foi percorrer as inquietações que atravessam a formação docente no enfrentamento das desigualdades educativas, particularmente na presença insurgente dos estudantes com deficiência. Entre deslocamentos e resistências, a formação contínua revelou-se menos um processo de atualização técnica e mais um exercício de leitura crítica do cotidiano escolar, onde a diferença desafia a acomodação normativa e convoca a criação compartilhada.

A escola pública que se pretende democrática precisa abandonar a ideia de que a normalidade é o centro a partir do qual se mede o desempenho dos sujeitos. Cada estudante com deficiência desorganiza essa régua. Nesse gesto de deslocamento, emerge a urgência de uma formação docente que não busque padronizar, mas compreender a multiplicidade como condição da experiência formativa — tanto para quem aprende quanto para quem ensina.

As discussões evidenciaram que práticas inclusivas não se consolidam por meio de protocolos normativos, mas por percursos sensíveis à realidade vivida no chão da escola. Quando os processos formativos acolhem a escuta, a dúvida e a criação coletiva, abrem-se brechas para que os docentes se reconheçam como sujeitos que aprendem também com os estudantes com deficiência, e não apenas sobre eles. Essa inversão é o que sustenta o compromisso ético da inclusão.

Formar-se criticamente é aceitar a incompletude como horizonte. Não há formação plena, acabada ou neutra. Cada novo encontro, cada novo estudante, exige reelaboração de práticas e ressignificação de sentidos. A educação inclusiva, nesse movimento, não se realiza como tarefa pontual, mas como responsabilidade permanente. O que está em jogo não é apenas o acesso à escola, mas o pertencimento a ela — em sua complexidade e em sua potência transformadora.

Os dados e argumentos mobilizados neste estudo reafirmam que uma política formativa comprometida com a inclusão exige rupturas com estruturas tradicionais de transmissão de saber. O docente não é reprodutor de conteúdos nem executor de diretrizes; é coautor do processo educativo, sobretudo quando a formação o prepara para atuar junto a estudantes com deficiência, reconhecendo suas singularidades como pontos de partida para o processo pedagógico.

A diferença, quando reconhecida como constitutiva da experiência escolar, desorganiza a lógica da avaliação padronizada, do tempo único e do currículo homogêneo. A presença do estudante com deficiência desafia o docente a escutar mais do que falar, a hesitar mais do que corrigir, a construir caminhos junto e não antes. A formação, nesse horizonte, torna-se também exercício de descentramento e de construção ética.

Encerrar este percurso é assumir que a inclusão não será plenamente resolvida por decretos ou manuais, mas por compromissos cotidianos assumidos dentro e fora da sala de aula. Que a formação docente não sirva para legitimar ajustes mínimos, mas para sustentar uma transformação profunda nas formas de pensar a escola, o saber e o outro. Talvez seja aí que a educação pública se aproxime, enfim, da promessa de ser para todos.

6. REFERÊNCIAS

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