REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202405142141
ALBUQUERQUE, Raimundo Fabrício Paixão1
RESUMO
O presente artigo discute a complexidade das decisões judiciais no âmbito da violência doméstica, com foco na convivência familiar entre pais agressores e filhos. A pesquisa, de caráter documental, baseia-se no relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de 2019, que revela diferentes abordagens sobre a aplicação de medidas protetivas em casos de violência doméstica. A análise se concentra na tensão entre o direito à convivência familiar e a proteção integral da criança, observando a prevalência da guarda compartilhada mesmo em cenários de violência, onde a segurança da mãe e da criança pode ser comprometida. O estudo explora as implicações da aplicação da Lei da Alienação Parental, que, em muitos casos, pode ser utilizada para manipular o sistema jurídico, prejudicando as vítimas. A partir da literatura de teóricos da violência doméstica e da convivência familiar, o artigo propõe uma reflexão crítica sobre as lacunas do sistema judiciário na proteção da mulher e da criança em situações de violência, e sugere a necessidade de uma abordagem mais sensível e eficaz para a proteção desses direitos fundamentais.
Palavras-chave: violência doméstica, convivência familiar, medida protetiva, alienação parental.
1 INTRODUÇÃO
A violência doméstica é um espelho partido que reflete, em múltiplos ângulos, as falhas profundas de uma sociedade que se diz civilizada. Ao longo do tempo, as mulheres, em sua maioria, tornaram-se as principais vítimas desse espelho. Elas são as que se dobram diante de seus fragmentos, tentando encaixar os pedaços quebrados de suas vidas. E, ao mesmo tempo, as crianças, muitas vezes inocentes, se tornam as espectadoras silenciosas dessa tragédia diária. Porém, existe algo em seu silêncio que ressoa, um eco que reverbera pela sua integridade emocional e física. Como explicar a lógica que prevalece no sistema judiciário brasileiro, em que, muitas vezes, as decisões sobre a convivência familiar entre pais agressores e filhos são tomadas sem levar em consideração a dor que já se imiscui nas crianças, mesmo que não explicitamente agredidas?
A Lei Maria da Penha, pilar da proteção às mulheres em situação de violência, construiu um caminho de luta contra essa realidade cruel. Mas, como toda construção, seus tijolos ainda não foram assentados com a estabilidade necessária. Ao mesmo tempo em que garante medidas protetivas à mulher, a legislação se vê em um paradoxo quando o tema é a guarda compartilhada e as visitas do agressor aos filhos. O princípio da proteção integral da criança, consagrado no ordenamento jurídico, que assegura à criança o direito a um ambiente seguro e saudável, muitas vezes esbarra em uma interpretação que ignora o contexto familiar. O que se observa é a perpetuação de uma lógica que, em nome do direito de convivência familiar, legitima o direito do agressor de se aproximar da vítima, utilizando os filhos como uma ponte para isso.
É nesse cenário que surge o relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), publicado em 2019, que se debruça sobre o papel do Judiciário nas questões envolvendo a violência doméstica. O estudo revela um embate entre duas perspectivas, contraditórias em sua essência, mas igualmente presentes nas salas de audiência. De um lado, juízes que compreendem a convivência do agressor com os filhos como uma forma de garantir o direito à paternidade, uma necessidade imperiosa de preservar os laços familiares. De outro, aqueles que questionam a sanção de visitas de um pai agressor, especialmente quando a convivência coloca em risco a integridade emocional da mãe e da criança. Entre essas duas vertentes, para o conceito da alienação parental, uma legislação que, em sua essência, visa proteger a criança, mas que, em muitos casos, acaba sendo mal interpretada, sobrepondo-se à realidade das vítimas de violência.
A palavra “proteção” ecoa, mas o que é realmente proteger? Há uma desconexão entre o que as leis estipulam e o que as vítimas experienciam no cotidiano de seus medos, de suas inseguranças. O sistema judiciário, embora revestido de um manto de imparcialidade, muitas vezes falha em enxergar as nuances dessa realidade, e o resultado é a perpetuação de uma dinâmica em que a mulher, em sua fragilidade, e a criança, em sua dependência, continuam sendo as vítimas secundárias. A justiça, portanto, não pode se contentar com uma resposta que parece correta na superfície, mas que, na prática, ignora as emoções, os sentimentos e a dor das pessoas envolvidas.
Este estudo busca, por meio de uma pesquisa documental, explorar as contradições dessa aplicação jurídica, examinando as decisões judiciais que envolvem a convivência familiar em casos de violência doméstica. Analisando relatórios e posicionamentos de especialistas, procuraremos entender como o sistema de justiça pode, e talvez deva, transformar a proteção legal em proteção efetiva. As palavras “direitos”, “proteção”, “convivência familiar” e “violência doméstica” serão exploradas não apenas em sua acepção jurídica, mas também em seu significado humano, pois não podemos desconsiderar que, por trás de cada norma, existe um ser humano vivendo uma experiência de dor, de trauma e de luta por sua própria dignidade. O que queremos é encontrar uma resposta que não apenas acolha a lei, mas que também acolha o ser humano, no fundo de seu ser, com suas feridas, suas esperanças e suas necessidades de proteção verdadeira.
Essa pesquisa se lança nesse abismo, tentando tecer, sem perder o rigor científico, as linhas tênues que conectam a lógica jurídica à vivência das mulheres e crianças afetadas pela violência. Não se trata apenas de resolver um conflito de normas, mas de compreender a experiência concreta das vítimas, com seus medos e suas angústias, e, quem sabe, construir uma visão mais justa, sensível e, por fim, mais humana da aplicação do direito.
2 CICLO DE VIOLÊNCIA E DESAFIOS INSTITUCIONAIS
Quando se trata de relações de poder, principalmente, mergulhadas numa perspectiva patriarcal, a presente pesquisa necessita compreender a relação da mulher agredida com os agentes estatais, numa elucidação da rede de apoio institucional ofertada, questionando se a rede funciona como suporte à mulher ou como teias que a prende.
Antes dessa análise, leia-se que historicamente, segundo Cardoso (1997), a configuração social feminina tradicional impõe que para as mulheres serem consideradas completas, precisam ter um companheiro permanente. A autora aponta que esse estereótipo tem sido um fardo às mulheres que enfrentam a violência de gênero e pode contribuir para a sua permanência em relacionamentos em que são vítimas de diversas formas de violência. Num ciclo costumeiro de retorno à relação após a separação, ainda que possua um vasto histórico de sucessivos episódios de agressões.
A autora esclarece que esse padrão de comportamento repetitivo de retorno ao agressor pode ser explicado pela dinâmica emocional que ocorre no relacionamento abusivo. Quando a mulher finalmente consegue enfrentar o medo e se separa do cônjuge ou companheiro, pode acontecer uma suposta mudança de comportamento do agressor, “seu marido inicia um jogo emocional, apelando para o seu perdão” (Cardoso, 1997, p. 265), fazendo com que ela se sinta mais confiante e dedicada à preservação desse relacionamento.
Elucida que esse processo pode resultar na retomada do ciclo da violência, que pode ser tão devastador quanto antes. Uma das razões da manutenção desse ciclo encontra-se no “desequilíbrio da divisão do poder que faz com que a pessoa agredida perceba a si mesma como subjugada ou dominada pela outra, possua menor autoestima, seja menos autônoma (Cardoso, 1997, p. 266).
O intrigante fenômeno de reconciliação entre vítimas e agressores é uma realidade de complexa apreensão. Como observado por Saffioti em 1997, antes das avançadas medidas de proteção às mulheres, o cenário se delineava. Desde a criação das pioneiras Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) em 1985, muitas mulheres, finalmente encorajadas, encontraram voz para denunciar atos violentos perpetrados por homens. Todavia, como apontado pela autora, uma parcela considerável daquelas que ousavam comunicar os crimes de seus próprios maridos ou parceiros à instituição policial, posteriormente buscava reverter sua denúncia, procurando retirar a queixa, um fenômeno enigmático que Saffioti, naquela época, reconhecia como desafiador de decifrar em sua totalidade.
Segundo Cortês e Matos (2009), com frequência, mulheres que sofrem violência doméstica acabam renunciando (ou retratando, desistindo ou retirando a queixa), o que é utilizado como argumento na área policial e judicial para minimizar a seriedade do ocorrido, inclusive, em relação às vítimas futuras que comunicarão esse tipo de crime, como se em briga de marido e mulher o problema fosse privado, não uma questão pública. As autoras esclarecem que a tendência à renúncia surge com maior frequência quando a vítima se encontra em uma teia de dependência financeira e emocional do agressor, ou quando o temor de retaliações mais severas paira no horizonte.
Destacam que é notável que muitas mulheres que buscam justiça não desejam, de fato, se separar permanentemente de seus maridos ou parceiros, nem têm o desejo de vê-los presos. O principal objetivo da mulher agredida é interromper o ciclo de violência, buscando acabar com esse padrão doloroso. Na atualidade, verifica-se um notável fortalecimento do amparo à vítima no que concerne à questão da “retirada da queixa”. Um exemplo ilustrativo é o artigo 16 da Lei Maria da Penha (Brasil, 2006), que delineia as diretrizes para a renúncia à representação por parte da vítima em casos de ações penais públicas condicionadas. Tal modalidade de ação se caracteriza pela premissa de que a vítima deve explicitamente manifestar seu desejo de prosseguir com o processo criminal contra o agressor. [2]
Como exposto por Cortês e Matos (2009), a partir deste ponto, surgem novas abordagens, especialmente no que diz respeito à possibilidade de a vítima renunciar à representação. Agora, essa renúncia é restrita ao âmbito do juízo, conforme as disposições legais. Ela só pode ser efetuada perante o magistrado, em uma audiência específica para esse fim, que se distingue claramente das audiências de conciliação. É importante ressaltar, conforme apontado pelas autoras, que essa renúncia só é viável antes do juiz formalmente acolher a denúncia e requer a prévia manifestação do Ministério Público.
A vítima tem o direito de renunciar à representação em circunstâncias específicas, porém, essa escolha requer cautela e uma consideração cuidadosa das possíveis consequências. A realização de uma audiência especialmente designada para essa finalidade é uma salvaguarda essencial para assegurar que a vítima esteja agindo de forma voluntária e sem qualquer influência coerciva por parte do agressor. Observa-se um fortalecimento mais robusto da Lei Maria da Penha no que diz respeito à punição dos agressores. No artigo 17 (Brasil, 2006), destaca-se a proibição de impor penas de prestação pecuniária nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, além da eliminação da possibilidade de substituir a penalidade por pagamento de multa como única forma de punição.
A proibição de impor multas ou exigir doações de cestas básicas emerge como uma medida relevante no cenário de maior proteção à mulher. Garante que a punição corresponda à gravidade dos delitos cometidos pelos agressores. Para Cortês e Matos (2009) a violência doméstica e familiar contra a mulher não deve ser tratada como um crime de menor potencial ofensivo. Afirmam que mesmo atos considerados leves, como tapas, empurrões e beliscões, podem ser a porta de entrada para uma escalada de violência que pode culminar em feminicídio. O dever ser da lei protetora nem sempre encontra guarida na prática forense. Cortês e Matos (2009) apontam a persistente discriminação de gênero no sistema jurídico brasileiro, sendo que tal cenário não se limita apenas a atitudes maliciosas por parte dos profissionais do direito, mas também se encontra enraizado em uma crença rígida na inferioridade das mulheres.
Embora seja responsabilidade do poder legislativo a criação das leis, é o poder judiciário que as interpreta e as aplica. A proibição de converter a punição de agressores em multas é uma medida de proteção às vítimas, contrariando a tendência ocasional do judiciário de minimizar a gravidade do problema, geralmente, devido a visões tradicionais e machistas (Cortês; Matos, 2009). Um exemplo notável trazido à tona é o caso de um juiz de uma cidade mineira, mencionado por Cortês e Matos (2009), que ilustra um pensamento misógino e preconceituoso. Esse magistrado, ao questionar a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, usou argumentos enraizados em estereótipos sexistas e machistas, como alegar a suposta “ingenuidade e fragilidade emocional” do homem, e até sugerir que a independência da mulher resultaria em desilusão. Surpreendentemente, ele chegou ao ponto de associar a desgraça humana à figura feminina no Éden, negando a responsabilidade dos homens na persistente violência contra as mulheres ao longo da história (Cortês; Matos, 2009).
3 UMA ANÁLISE DO RELATÓRIO DO CNJ SOBRE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
A questão da discriminação e do descrédito enfrentada por mulheres vítimas de violência nos tribunais é um problema sério e preocupante. De acordo com o CNJ e IPEA (2019), a experiência de mulheres que voltam a se relacionar com seus agressores é frequentemente marcada por sentimentos de reprovação e desconforto nas audiências judiciais.
Senti um descaso, porque como muitas vezes a gente voltou [ela e o autor da violência], eles começam a não dar muita bola. Que eu me lembre, eu dei parte umas duas ou três vezes contra ele (CNJ; IPEA, 2019, p. 137).
Parece haver uma falta de entendimento por parte dos autores jurídicos sobre as razões que levam as mulheres a retornarem aos agressores. O estudo realizado por Pereira, Camargo e Aoyama (2018) investigou as variáveis que contribuem à permanência das mulheres em relacionamentos abusivos. Os resultados indicaram que diversas variáveis estão envolvidas na decisão das mulheres de permanecerem em relacionamentos com agressores, incluindo fatores emocionais, financeiros, a esperança da mudança do comportamento do parceiro, a preocupação com a criação dos filhos e a falta de rede de apoio.
Segundo as autoras, as questões emocionais, como o medo, a baixa autoestima e a dependência emocional do parceiro, foram apontadas como uma das principais razões para a permanência dessas mulheres em relacionamentos abusivos. Esclarecem que algumas vítimas podem permanecer em um relacionamento abusivo na expectativa de que o parceiro se torne menos violento ou de que o relacionamento melhore com o tempo.
Cortês e Matos (2009) mencionam os resultados da pesquisa Ibope/Instituto Avon de 2009, a qual investigou as percepções e reações da sociedade em relação à violência contra a mulher. Um dos aspectos abordados foi a permanência das mulheres em relacionamentos abusivos, mesmo diante das agressões.
Os resultados revelaram que 24% dos entrevistados identificaram a falta de recursos financeiros como um fator significativo que as impedia de sair desses relacionamentos, enquanto 23% destacaram a preocupação com a criação dos filhos. Além disso, a pesquisa evidenciou que cerca de 17% dos entrevistados acreditavam que o medo de serem mortas caso rompessem o vínculo era um motivo para as mulheres não deixarem os agressores. Ressaltam que esse medo foi mais pronunciado entre indivíduos com menor poder aquisitivo, baixa escolaridade e faixas etárias mais jovens, de acordo com os dados levantados na pesquisa.
A falta de compreensão e sensibilidade ante ao fenômeno por parte desses profissionais pode diminuir a motivação da vítima para buscar auxílio, agravando ainda mais a situação delicada. “Alguns estudos localizados vêm apontando dificuldades do sistema de justiça em acolher as mulheres em situação de violência, ouvi-las, tornar compreensível o trâmite judicial e dar uma resposta satisfatória a suas demandas” (CNJ; IPEA, 2019, p. 13).
Conforme ressaltado no relatório, essa questão surge devido à dificuldade que muitos profissionais do direito (juízes, promotores, advogados, entre outros) têm em compreender as complexas dinâmicas da violência doméstica e em lidar com as nuances das relações abusivas. “As declarações de um defensor público que atua pelas vítimas são elucidativas. Em entrevista, ele relata que costuma desencorajar as mulheres a seguirem com o processo criminal mencionando que, com tal atitude, elas podem prejudicar a família, em especial, os filhos” (CNJ; IPEA, 2019, p. 79).
Um outro exemplo de insensibilidade pode ser observado no caso de uma das entrevistadas, que solicitou uma medida protetiva após ter sido ameaçada. A promotora responsável pelo caso insinuou que a vítima estava se beneficiando da medida para questões patrimoniais, o que a entrevistada negou. Ela ainda apresentou áudios e exames que comprovam a violência que sofreu, incluindo um bolo de folhas com mensagens de ameaça que ela guarda em sua bolsa, mas que não mostrou a ninguém durante a audiência (CNJ; IPEA, 2019).
Guimarães e Pedroza (2015) lembram que a violência doméstica é um problema complexo e multifacetado, que não pode ser compreendido de forma simplista. “Configurado tanto como uma questão de saúde pública como de garantia e respeito aos direitos humanos” (p. 263).
Conforme apontado no relatório conjunto do CNJ e IPEA de 2019, algumas mulheres em situações de violência doméstica e familiar expressam persistente frustração, mesmo após receberem medidas protetivas e com o processo criminal em andamento na instância judicial correspondente. Elas mencionam a ausência de acompanhamento por parte das autoridades, evidenciada pela falta de contato para verificar se houve reincidência de agressões ou para assegurar sua segurança.
Apesar dos diferentes mecanismos de acompanhamento e monitoramento de medidas protetivas existentes, há unidades que não dispõem de nenhum ou os dispositivos são insuficientes. Diante disso, inclusive, foi recorrente ouvir de atores jurídicos que as mulheres são as próprias responsáveis pelo monitoramento e pela notificação aos órgãos de justiça (CNJ; IPEA, 2019, p. 58).
Uma entrevistada afirmou que o processo já está em andamento desde 2013 e que, apesar de terem ocorrido quatro audiências de ratificação, as autoridades nunca demonstraram interesse em saber se houve alguma mudança na situação dela (CNJ; IPEA, 2019).
Disse que se sentiu feita de palhaça, pois a justiça não fez nada para ajudá-la. Concluindo ser decepcionante ver que mesmo após a luta da Maria da Penha pela implementação da lei, a situação não mudou e muitas mulheres ainda se encontram em situações de vulnerabilidade, num cenário semelhante ao da pioneira da lei (CNJ; IPEA, 2019). Talvez um dos fatores centrais que conduzem muitas mulheres vítimas de violência doméstica a retomarem contato com seus agressores seja a ausência de uma rede institucional de apoio eficaz e bem estruturada.
Da leitura do relatório, depreende-se inúmeros relatos de mulheres que sentem falta de atenção e acompanhamento por parte das autoridades, e em alguns casos, até se deparam com situações de discriminação, o que pode contribuir para um sentimento de desamparo e a sensação de não contar com o respaldo necessário para romper o ciclo de abuso. O relatório (CNJ; IPEA, 2019) destaca que dentro das unidades judiciais, é frequente encontrar situações em que, além das exigências para avaliar a consistência dos relatos das mulheres, há também a presença de profissionais pouco capacitados para lidar com a sensibilidade do tema em discussão. Isso pode resultar no adiamento de audiências e na ausência de apoio emocional para as mulheres, especialmente quando manifestam emoções como o choro durante seus depoimentos.
A situação se agrava, segundo o relatório, quando as próprias mulheres são responsabilizadas pelo não cumprimento das medidas protetivas pelos acusados. No entanto, apesar desses obstáculos evidenciados, o documento da instituição salienta que a maioria das mulheres entrevistadas manifestou a intenção de procurar ajuda novamente se enfrentarem novos episódios de violência, ou até mesmo indicar o caminho para outras mulheres em situação similar. Essas reações ambivalentes possivelmente refletem uma mescla de descontentamento com a assistência oferecida pelo sistema judiciário e uma fé persistente na importância de lutar pelos próprios direitos, confiando na eventual realização da justiça, mesmo que demorada. Percebe-se, assim, que o viés judicial ainda é encarado como o canal central para buscar socorro, apesar dos desafios presentes. Entretanto, na prática se verifica a ineficiência do poder estatal.
O site G1 (2019) expõe uma matéria sobre uma jovem mulher vítima, uma caixa de supermercado, de 26 anos. Ela foi brutalmente assassinada a pauladas na frente de sua mãe, no Amazonas. Sendo que nos últimos dois anos, a vítima registrou quatro boletins de ocorrência contra seu marido, que foi preso como suspeito do crime. Entre as denúncias registradas, estavam ameaças, injúria e lesão corporal.
Em um dos B.Os, registrado em 4 de julho de 2018, a vítima relatou ter recebido ameaças de morte do companheiro, que alegava que iria “rasgá-la toda de faca”. Dias depois, em 12 de julho, denunciou novamente o marido, que ameaçou matá-la por cobrar a pensão dos filhos. Em 17 de agosto de 2018, registrou seu último B.O antes de ser morta quase um ano depois. Nesse registro, afirmou que o agressor a asfixiou com as próprias mãos (G1, 2019).
De acordo com o mesmo veículo, durante o incidente, o suspeito também agrediu a mãe da vítima, o que resultou em sua hospitalização, tendo sido liberada posteriormente. Segundo relatos da tia da vítima, episódios anteriores de violência doméstica já haviam levado à separação do casal. No entanto, motivada pela preocupação com os filhos, a vítima decidiu dar uma nova chance ao marido, voltando a conviver com ele (G1, 2019).
A delegada titular da delegacia especializada em Manaus, informou que a vítima chegou a obter uma medida protetiva contra seu marido após registrar três B.Os de ameaça e um de lesão corporal. A medida foi concedida e, a partir daí, não registrou mais nenhuma denúncia, o que levou a polícia a acreditar que a medida protetiva estava sendo efetiva. Porém, não sabiam que a vítima havia retornado ao convívio com o agressor, o que acabou culminando em sua morte (G1, 2019).
Ora, não deveria a instituição estatal manter contato com a vítima de agressão após denúncia? Quando a delegada fala que não sabia que a vítima havia retornado ao agressor, revela a inércia do poder público à espera da mulher agredida tomar atitudes, enquanto aguarda, com o monopólio da violência abrandado, de braços cruzados, ingenuamente, acreditando que o agressor obteve uma regeneração. E ainda lança sobre a vítima a responsabilidade de supervisionar a eficácia da medida protetiva, o silêncio da mulher agredida implica no entendimento de uma falsa crença nas autoridades de que tudo vai bem. Onde fica o impulso oficial? E a supervisão acerca do estado da vítima de maneira contínua?
Essa situação demonstra a inércia do poder público em lidar com a violência doméstica. Medidas protetivas são importantes, mas não podem ser a única ação tomada, principalmente, considerando a ausência de acompanhamento das vítimas por parte do poder público, conforme relatório do CNJ (2019).
O quadro da ineficiência da rede de apoio institucional se agrava devido ao despreparo de seus agentes. Uma vítima entrevistada no relatório, do CNJ e IPEA (2019), relatou ter sido intimidada e ficado com medo ao fazer o primeiro boletim de ocorrência. Além disso, foi informada na delegacia de que não era necessário solicitar uma medida protetiva, pois a ameaça teria sido considerada apenas “da boca para fora”. Apesar de ter registrado três boletins de ocorrência, a vítima nunca obteve uma medida protetiva. Esses relatos evidenciam uma falha gritante no sistema de proteção às vítimas de violência doméstica.
Se o estado não encarar o problema com seriedade e limitar-se apenas à formalização das queixas, sem uma atuação eficiente, é provável que as vítimas se sintam cada vez mais inseguras, levando-as a questionar o sentido de denunciar. Esse desânimo pode levá-las a permanecer em relacionamentos abusivos, por vezes, por não se sentirem protegidas pela rede de apoio institucional e preferirem evitar um enfrentamento direto com o agressor.
Segundo relatório, uma outra vítima contou que na última vez que foi à delegacia, relatou que tinha ido pegar o dinheiro da pensão na casa do ex-marido acompanhada pelo atual companheiro. No entanto, o atendente na delegacia perguntou de forma inadequada: “Ué, ele falou que não era para você ir lá com o seu marido e você foi?”. A mulher expôs que há uma grande insegurança em procurar a Justiça porque a pessoa não sabe de que lado as autoridades vão ficar (CNJ; IPEA, 2019).
Lin Chau Jong et al (2008) apontam que muitas vítimas ainda hesitam em denunciar seus agressores, em razão da preocupação com o processo judicial e o medo da reação do agressor. Apontam que a lei prevê medidas protetivas e atendimento especializado para mulheres em situação de violência, porém, ainda existe falta de confiança na instituição responsável por garantir essas medidas e descrença na atuação do poder estatal em protegê-las de um resultado pior, chamado feminicídio.
4 O USO DOS FILHOS COMO INSTRUMENTO DE COAÇÃO
A partir de agora, será discutido um tema delicado e controverso que envolve o uso dos filhos como meio para que um agressor se aproxime da mulher, mesmo diante de uma medida protetiva, seja para buscar uma reconciliação forçada ou para exercer intimidação. Abordaremos essa questão sob a ótica do direito brasileiro e conforme elucidações anteriores.
De acordo com Pereira, Camargo e Aoyama (2018), a preocupação com a criação dos filhos foi apontada como uma razão relevante para a permanência de mulheres agredidas em relacionamentos abusivos, uma vez que, geralmente, elas temem que a separação possa prejudicar os filhos. Em sua pesquisa de doutorado realizada na Universidade de São Paulo (USP), Lin Chau Jong (2006) discute como a pressão social e familiar leva as mulheres a permanecerem em relacionamentos abusivos, principalmente devido às preocupações com o bem-estar emocional de seus filhos em caso de separação.
Ela observa que o parceiro abusivo pode utilizar os filhos como uma ferramenta de manipulação, ameaçando tirar a guarda ou prejudicar o relacionamento entre mãe e crianças como forma de forçar a reconciliação. Essa dinâmica complexa também é frequentemente abordada no contexto jurídico, onde questões relacionadas à guarda e aos direitos parentais podem complicar ainda mais a situação das mulheres em relacionamentos abusivos.
Este é um assunto delicado. De acordo com o relatório do CNJ e IPEA (2019), numa análise do poder judiciário perante o fenômeno, indica-se que, geralmente, as medidas protetivas só são aplicadas aos filhos quando estes também são vítimas da violência. Segundo o documento, existem situações em que a mulher é vítima de violência doméstica e possui uma medida protetiva que proíbe o agressor de se aproximar. No entanto, ela compartilha a guarda ou a visitação dos filhos. Alguns profissionais jurídicos defendem que as visitas pré-agendadas do agressor aos filhos não constituem violação da medida protetiva, inclusive apontando prejuízos emocionais às crianças.
E a jurisprudência brasileira caminha nesse sentido, conforme decidiu o TJ-MG (2021), no processo de nº 10000210187027001, onde se depreende que o magistrado tem a obrigação de considerar o interesse da criança e o princípio da proteção integral em casos que envolvem a guarda e o regime de visitas. Salvo, se houver uma situação excepcional em que a mãe precise ser protegida do pai, a guarda compartilhada não deve ser recomendada, embora seja a norma no sistema jurídico brasileiro.
Entretanto, se não houver restrições ou suspensões de visitas ordenadas pelas autoridades criminais competentes e não houver evidências de violência do pai contra a criança, e se os laços emocionais entre pai e filha não forem afetados, o direito às visitas deve ser mantido, conforme decidiu o colegiado. Ainda se pontuou que mesmo que seja necessário que uma terceira pessoa intermedeie a entrega e a devolução da criança durante as visitas, desde que não haja nada negativo a ser considerado, a relação entre pai e filha não deve ser supervisionada em sua totalidade.
Essa interpretação é questionável, pois não considera que a visita do agressor pode ser prejudicial à integridade emocional e física da mulher e dos filhos. Uma oportunidade para que o agressor manipule ou coloque em risco à vida da vítima. Em algumas situações, é possível observar que o direito de convivência com o pai violento é priorizado em relação às consequências da conduta agressiva deste com a mãe, que pode afetar a criança de forma direta ou indireta (CNJ; IPEA, 2019).
O relatório do CNJ e IPEA (2019) apresenta perspectivas contrastantes sobre o assunto. Conforme a pesquisa, alguns juízes defendem a necessidade de investigar se há violência contra os filhos quando o pai agride a mãe. Isso ocorre porque a agressão à progenitora pode ser um indicativo de que as crianças também estão sofrendo violência.
Por outro lado, há magistrados que argumentam que os pedidos de restrição de visitas de homens acusados de violência doméstica e familiar contra a mulher aos filhos não são justificados. A percepção do fenômeno controverso se intensifica com as declarações de juízes que sugerem que tais solicitações são impulsionadas pelo desejo da mãe de exercer controle sobre o filho e restringir o acesso do pai a ele. Em certas situações, esses magistrados chegam a indagar as mulheres sobre seu desejo real de conviver com o próprio filho (CNJ; IPEA, 2019).
O relatório traz a fala de uma defensora pública em que, segundo ela, a lei da alienação parental tem impactado negativamente as mulheres, especialmente em casos de violência doméstica. A entrevistada aponta que as crianças são testemunhas da violência e podem relatar que suas mães foram agredidas verbalmente ou fisicamente pelo pai, o que pode resultar em relutância em relação ao agressor. Revela que durante as audiências para discutir o direito de visita, o pai alega que a mãe está praticando a alienação parental. No entanto, essa alegação pode ser devido à criança ter conhecimento da violência ou tê-la testemunhado, segundo a defensora.
Ainda conforme a defensora pública, infelizmente, a lei da alienação parental não leva em consideração as mulheres que são vítimas de violência doméstica e isso pode prejudicá-las. Pontua que a alienação parental é particularmente preocupante em casos de violência doméstica, pois quando as crianças são entrevistadas por psicólogos ou em audiências, pode ser difícil determinar como elas sabem sobre a violência. Essas crianças podem ter apenas quatro ou cinco anos de idade, mas podem reter essas informações por um longo tempo.
Segundo o citado relatório do CNJ, uma entrevista com uma mulher vítima de violência doméstica ilustra essa perspectiva. Ela conta que, logo após a separação, não permitia que seu ex-parceiro visse seu filho porque ele fazia ameaças tanto a ela quanto à criança. Entretanto, em uma audiência na vara de família, o juiz decidiu pela guarda compartilhada, o que causou grande ansiedade e insegurança na vítima.
Coloca-se sobre a vítima de agressão o enquadramento de alienação parental, quando, na verdade, está lutando pela sua proteção, sem amparo estatal adequado, e ao mesmo tempo protegendo os filhos. Sugere-se que os magistrados percebam que os filhos, ainda que não agredidos, são vias para que o agressor se aproxime de sua vítima. Entende-se que os filhos possuem o direito ao convívio com a paternidade, porém, esse direito pode suprimir, em alguns casos, a tranquilidade e segurança da mulher. Ou seja, o direito garante aos filhos o “espetáculo” de presenciarem o agressor intimidando suas mães, por vezes, agredindo-as e até matando-as, tudo isso em nome do melhor interesse do menor, que, leia-se, melhor interesse do agressor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há algo de profundamente inquietante no modo como o sistema de justiça brasileiro, em sua tentativa de equilíbrio, tantas vezes desequilibra os pratos da balança. O peso da lei, quando mal aplicado, recai sobre quem já está frágil, oprimido, ferido. Mulheres e crianças que sobrevivem à violência doméstica carregam em seus corpos e almas marcas que nem o tempo é capaz de apagar por completo. Ainda assim, é nesse cenário de vulnerabilidade que, ironicamente, o Judiciário frequentemente deixa de exercer seu papel protetor, transformando o direito à convivência familiar em uma ferramenta de perpetuação do trauma.
Este artigo não pretende esgotar as discussões nem oferecer respostas definitivas, pois o tema que nos move é, antes de tudo, humano, e o humano resiste às simplificações. No entanto, o percurso traçado aqui nos permite algumas reflexões fundamentais. A primeira delas é que a convivência familiar, embora seja um direito inegável, não pode ser tratada como um absoluto. Como bem destaca o relatório do CNJ, há uma necessidade urgente de ponderação quando esse direito colide com a segurança emocional e física da mulher e da criança. A convivência não pode ser um lugar de revitimização, mas, sim, um espaço de acolhimento e reconstrução.
Há também a constatação de que o Judiciário, muitas vezes, opera a partir de uma visão fragmentada da realidade, enxergando a violência doméstica como algo que se encerra no ato físico, ignorando suas consequências emocionais e simbólicas. É preciso reconhecer que a violência é um ciclo, e esse ciclo se perpetua quando a vítima é forçada a conviver com seu agressor, mesmo que indiretamente, através dos filhos. Nesse contexto, a aplicação da lei deve ultrapassar a literalidade e alcançar a sensibilidade.
Além disso, a própria ideia de alienação parental, tão frequentemente evocada, precisa ser revisitada. Não se trata de ignorar o sofrimento da criança diante de um rompimento parental conflituoso, mas de reconhecer que, em muitos casos, a presença do agressor não é um direito a ser preservado, mas um risco a ser evitado. Proteger uma criança significa mais do que garantir sua convivência com ambos os pais; significa assegurar que ela cresça em um ambiente onde a violência, seja física ou emocional, não seja normalizada.
As considerações finais deste artigo não são um ponto de chegada, mas um convite ao aprofundamento. O caminho para um sistema de justiça mais humano, mais sensível e mais comprometido com a realidade das vítimas de violência doméstica ainda é longo. Mas, ao reconhecermos as falhas, já damos o primeiro passo na direção de um horizonte onde a proteção legal não seja apenas um conceito, mas uma prática efetiva.
Por fim, o que este texto propõe, em sua essência, é a revalorização do humano dentro do jurídico. Que a justiça, ao aplicar a lei, não esqueça que ela é feita para pessoas reais, com dores reais, e que seu papel maior não é garantir a letra fria, mas assegurar o calor da dignidade, do respeito e da proteção. É apenas quando a lei se alia à empatia que ela cumpre verdadeiramente seu propósito.
REFERÊNCIAS
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[2] Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público (Artigo 16, lei nº 11.340/2006).
1Graduado em Psicologia, Direito, Filosofia, Mestre em Sociedade e Cultura (UFAM).