VULNERABLE RAPE: LEGAL AND JURISPRUDENTIAL ANALYSIS OF THE FAMILY CONSTITUTION BETWEEN THE AGGRESSOR AND THE VICTIM
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202412092223
Barbara Murielli Bemvindo de Souza1
Naityllan Araújo Domingos2
João Lucas Bispo Lino Vasconcelos3
RESUMO
O presente trabalho aborda a teoria do distinguishing e suas implicações nas decisões jurídicas sobre o crime de estupro de vulnerável, conforme o artigo 217-A do Código Penal brasileiro. A pesquisa examina a evolução das interpretações jurisprudenciais sobre este dispositivo penal, com ênfase na aplicação de novos entendimentos nos Tribunais Superiores, especialmente no que diz respeito às circunstâncias que envolvem o consentimento da vítima e a constituição de família. O objetivo geral é compreender os novos entendimentos jurisprudenciais e como eles impactam as decisões de primeiro grau, considerando os princípios do melhor interesse da criança, da razoabilidade e da proporcionalidade. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, com base em doutrinas jurídicas, artigos científicos e jurisprudências, além da abordagem quantitativa para análise das decisões judiciais. A pesquisa buscou evidenciar as mudanças nos posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça, particularmente no que diz respeito à aplicação da teoria do distinguishing e como essa teoria pode influenciar na condenação ou absolvição em casos de estupro de vulnerável, considerando o contexto familiar e os direitos constitucionais.
Palavras-chave: Teoria do “Distinguishing“. Estupro de Vulnerável. Artigo 217-A. Código Penal Brasileiro. Direitos Fundamentais.
ABSTRACT
This paper addresses the theory of “distinguishing” and its implications for legal decisions on the crime of rape of a vulnerable person, according to article 217-A of the Brazilian Penal Code. The research examines the evolution of case law interpretations on this criminal provision, with emphasis on the application of new understandings in the Superior Courts, especially with regard to the circumstances involving the consent of the victim and the formation of a family. The general objective is to understand the new case law understandings and how they impact first instance decisions, considering the principles of the best interest of the child, reasonableness and proportionality. The methodology used was bibliographical research, based on legal doctrines, scientific articles and case law, in addition to the quantitative approach to analyze judicial decisions. The research sought to highlight the changes in the positions of the Supreme Court of Justice, particularly with regard to the application of the theory of “distinguishing”, and how this theory can influence the conviction or acquittal in cases of rape of a vulnerable person, considering the family context and constitutional rights.
Keywords: “Distinguishing” Theory. Rape of Vulnerable Individuals. Article 217-A. Brazilian Penal Code. Fundamental Rights.
Introdução
As normas jurídicas são criadas com o objetivo de guiar e controlar o comportamento da sociedade. Assim, com a constante evolução dos ambientes sociais, a legislação brasileira terá que acompanhar, seja por meio de jurisprudências e súmulas, ou seja por decreto de leis. Um dos temas que está sendo objeto de grandes debates e divergências nas cortes superiores e na própria sociedade é como estão sendo julgados os crimes de estupro de vulnerável.
Nos últimos anos, a interpretação do artigo 217-A do Código Penal brasileiro (CP), que trata do estupro de vulnerável, tem gerado intensos debates na doutrina e jurisprudência, especialmente com o surgimento de novas abordagens que questionam a rigidez da norma penal. Este artigo tipifica como crime a conjunção carnal ou a prática de ato libidinoso com pessoas menores de 14 anos, sem exceções. Contudo, recentes decisões judiciais têm colocado em pauta a aplicação de uma nova teoria, chamada de distinguishing, que propõe uma análise mais detalhada da gravidade do caso concreto e do contexto social em que ele ocorre. A ideia central dessa teoria é que, em determinadas situações, a simples ocorrência de um ato sexual não seria suficiente para justificar uma condenação, especialmente quando o ato é consentido pela vítima e sua família.
Esse novo entendimento jurisprudencial tem provocado discussões acaloradas, uma vez que a teoria questiona a rigidez da legislação penal frente a casos que envolvem relações familiares e o direito de constituição de família, além de levar em consideração o melhor interesse da criança. A teoria do distinguishing sugere que, em casos específicos, a análise da adequação do tipo penal deve considerar a gravidade concreta da conduta e a relevância social do fato, o que pode levar à absolvição do réu, dependendo das circunstâncias do caso. Essa mudança tem gerado implicações jurídicas e sociais significativas, pois coloca em confronto direitos constitucionais, como o direito à intimidade e à liberdade, com a proteção integral da criança.
O tema abordado neste trabalho se insere nesse contexto de transformações na interpretação jurídica e na aplicação do direito penal, principalmente em relação à proteção das crianças e adolescentes. Considerando a complexidade e as repercussões dessa nova linha de entendimento, é necessário investigar como as mudanças nas decisões dos Tribunais Superiores, especialmente o Superior Tribunal de Justiça (STJ), podem influenciar as decisões em instâncias inferiores e quais os impactos dessas decisões para a sociedade.
Além disso, a discussão sobre o consentimento da vítima e a legalidade do relacionamento sexual no âmbito familiar exige uma análise crítica das normas penais existentes e a forma como elas são aplicadas, de modo a garantir uma interpretação que resguarde os direitos fundamentais da pessoa humana, em especial o direito à dignidade e à proteção integral da criança, conforme preconiza a Declaração Universal dos Direitos da Criança, a qual o Brasil é signatário.
O objetivo geral deste trabalho é compreender a conjectura dos novos entendimentos dos Tribunais Superiores, com foco na teoria do distinguishing e suas implicações nas decisões de primeiro grau, especialmente nos casos envolvendo o artigo 217-A do CP.
Este trabalho será desenvolvido com base em pesquisa bibliográfica, utilizando doutrinas jurídicas e artigos científicos sobre direito penal, direito constitucional e jurisprudência, com foco nas novas orientações do Superior Tribunal de Justiça sobre o artigo 217-A do Código Penal. A pesquisa será de natureza qualitativa, com análise crítica das decisões judiciais, utilizando-se de uma abordagem quantitativa para observar a prevalência e os efeitos de tais decisões nas instâncias inferiores.
O método hipotético-dedutivo será aplicado para explorar as lacunas existentes no ordenamento jurídico e para propor soluções adequadas ao caso, considerando as mudanças nas interpretações da legislação penal e seus impactos na sociedade e na proteção dos direitos fundamentais.
1. Abordagem conceitual e estatística do estupro de vulnerável
O Código Penal brasileiro, apesar de ter sido decretado em 1940, traz assuntos muito atuais, bem como a criminalização de certas condutas que, anteriormente, não eram criminalizadas. Em seu Título VI, Capítulo II é tratado sobre os crimes sexuais contra pessoa vulnerável, mas, especificamente, no artigo 217-A sobre o estupro de vulnerável.
“Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.” […]
Essa prática é descrita neste dispositivo legal como a ação de ter conjunção carnal4 ou praticar outro ato libidinoso5 com menor de 14 anos, com alguém enfermo ou deficiente mental, que não possua o necessário discernimento para a prática de tal ato, bem como com alguém que, por outra causa, não possa oferecer resistência. É possível também perceber que o estupro de vulnerável está no rol de crime hediondos (art. 1º, inciso VI da Lei nº 8.072 de 1990), tanto a modalidade simples quanto a modalidade tentada.
Para Nucci (2020), o elemento subjetivo do crime de estupro de vulnerável é a busca da satisfação da lascívia, implícita no tipo. Assim, a ação segue acompanhada de determinado animus, que é indispensável para a sua realização. (p. 790).
Outrossim, é possível observar uma nítida distinção com o artigo 213, o qual discrimina o crime de estupro que tem como sujeito passivo qualquer pessoa, quando neste aponta como o núcleo do tipo o verbo constranger, ou seja, “tolher a liberdade, forçar ou coagir alguém” (NUCCI, 2020, p. 769).
Ao passo que o núcleo do tipo do crime de estupro de vulnerável é ter e praticar, não sendo necessário considerar a ocorrência ou não de constrangimento real para a configuração da prática delituosa, uma vez que se conclui na premissa de ser vulnerável. (MARCÃO et al, 2018).
A partir disto, é possível observar que o bem jurídico tutelado destes dois crimes também é divergente. Enquanto em um é validado a proteção da liberdade sexual do sujeito passivo, em outro é ratificado a proteção da dignidade sexual da pessoa vulnerável.
“Tutela-se, de maneira ampla, a dignidade sexual da pessoa vulnerável e não mais a sua liberdade sexual, na medida em que, estando nessa condição, a vítima é considerada incapaz de consentir validamente com o ato de caráter sexual. Pode-se dizer que, especificamente, o bem tutelado é a própria vulnerabilidade, no campo sexual, das pessoas tidas por vítimas do delito.” (MARCÃO et al, 2018, p. 66)
O Brasil registrou, entre os anos de 2021 e 2023, 164.199 mil casos de estupro contra crianças e adolescentes de 0 a 19 anos, em estudo realizado pela Unicef e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Nos entendimentos do próprio Superior Tribunal de Justiça, em sua Súmula 593, é concretizado que são irrelevantes o consentimento e a experiência sexual anterior da vítima ou a existência de relacionamento amoroso com o agente para configuração deste crime.
Entretanto, em recentes julgados das Cortes Superiores brasileiras, os casos em que possuírem suspeitas do crime de estupro de vulnerável estão analisados de forma não convencional.
É inegável que, na estrutura jurídica brasileira, coexistem os dois sistemas jurídicos de common law, com base histórica e aprofundamento nos precedentes judiciais, e de civil law, parâmetros com bases na legislação.
A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988, em seu rol de direitos e garantias fundamentais, determinou o princípio da legalidade prevendo, no artigo 5º, inciso II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. (BRASIL,1988).
Ou seja, a Carta Magna estabeleceu as funções desse princípio de que são a de proteger o cidadão de eventuais abusos do estado e a de instrumento norteador de jurisprudências. (THAMAY et al, 2021).
Em síntese, a imputação deste tipo penal está sendo alvo de intensos debates no âmbito jurídico brasileiro em razão de novos entendimentos do STJ, que estão repercutindo e estão começando a serem usados no primeiro grau da justiça.
1.1 A inovação fomentada pela teoria do distinguishing.
A teoria do distinguishing, também conhecida como teoria da distinção, emerge como uma importante abordagem dentro do direito penal, propondo que a tipificação penal não deve ser aplicada de maneira rígida e automática a todos os casos.
Em vez disso, o julgador deve analisar as circunstâncias concretas de cada caso, distinguindo as diferentes variáveis que podem existir entre um fato e outro. Isso implica em um olhar mais profundo sobre a gravidade da situação, levando em consideração o contexto no qual o ato ocorreu.
Essa teoria é especialmente relevante em crimes de natureza sexual, como o estupro de vulnerável. No caso deste tipo de delito, a simples tipificação do ato sexual com uma pessoa menor de 14 anos como crime de estupro de vulnerável pode ser contestada quando não há evidências de violência ou coação.
A teoria sugere que a existência de consentimento por parte da vítima, ou uma relação de afeto com o agressor, pode ser levada em consideração no momento da análise do caso. Baptista (2020) destaca que essa abordagem tem como objetivo tornar a aplicação da pena mais justa, considerando as especificidades do ato e do contexto, e não aplicando de forma indiscriminada as normas penais.
A proposta visa garantir que a justiça seja feita de forma equilibrada, evitando uma aplicação inflexível da lei, que possa resultar em injustiças. Segundo Geraldino e Miranda (2024), a aplicação do direito penal deve ser contextualizada, levando em conta não apenas o ato em si, mas os fatores que envolvem a relação entre as partes e as circunstâncias sociais e psicológicas em que o crime ocorreu.
Segundo Nucci (2020), a teoria do distinguishing questiona a aplicação automática e uniforme da lei penal, defendendo uma análise mais contextualizada de cada caso. No caso do estupro de vulnerável, a simples idade da vítima não deve ser a única consideração; é essencial entender o contexto da relação entre a vítima e o acusado, bem como verificar a presença de coação ou violência.
A teoria busca garantir uma justiça proporcional, respeitando os direitos das vítimas e as circunstâncias do ato. Nesta seara, em casos em que a relação resulte numa gravidez e na possível constituição de família, o STJ tem priorizado a distinção de paradigmas fáticos, ou seja, estudam todas as nuances do caso para, se presentes os requisitos, desconfigurar o crime.
Cunha (2017) destaca que essa teoria exige uma reavaliação contínua dos conceitos de violência e consentimento, o que traz consigo uma reflexão mais profunda sobre os direitos das vítimas e os limites da atuação do Estado na regulação da vida sexual e afetiva. Essa visão propõe que a justiça seja aplicada de forma mais flexível, mas sem descurar da proteção das vítimas e da prevenção de abusos.
Em última instância, a aplicação da teoria do distinguishing permite ao direito penal ser mais sensível às complexidades da vida real, onde os elementos subjetivos muitas vezes são tão importantes quanto os objetivos.
2. Aspectos para constituição de família
O conceito de família é fundamental no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente quando se trata de casos que envolvem a proteção de menores e o enfrentamento de crimes graves, como o estupro de vulnerável.
Ao longo do tempo, a definição de família foi ampliada e adaptada, incorporando diversas configurações familiares além da tradicional união entre homem e mulher, reconhecendo a pluralidade de arranjos familiares presentes na sociedade contemporânea devido sua constante evolução.
No entanto, a CRFB trouxe uma visão mais ampla, ao reconhecer diversas formas de constituição familiar, dando espaço a novas configurações, como uniões estáveis, famílias monoparentais e outras formas de convivência familiar.
De acordo com a Constituição, a família deve ser protegida por todos os meios legais possíveis, independentemente de sua constituição, promovendo, assim, a inclusão e a proteção de todos os seus membros, especialmente dos mais vulneráveis (Brasil, 1990).
“Filiação é o vínculo existente entre pais e filhos; vem a ser a relação de parentesco consanguíneo em linha reta de primeiro grau entre uma pessoa e aqueles que lhe deram a vida, podendo, ainda (CC, arts. 1.593 a 1.597 e 1.618 e s.), ser uma relação socioafetiva entre pai adotivo e institucional e filho adotado ou advindo de inseminação artificial heteróloga.” (DINIZ, 2024)
Diniz (2024) destaca que a família, para além de sua concepção jurídica, também carrega um caráter simbólico e emocional importante. O conceito de família, segundo a autora, se sustenta no vínculo afetivo, que supera as relações biológicas e se estabelece por meio da convivência.
Isso é particularmente relevante em um contexto em que, muitas vezes, as famílias são compostas por pessoas que não são parentes biológicos, mas que, pela convivência e afetividade, se inserem nesse conceito, como é o caso de famílias formadas por adoção, ou aquelas em que a relação de parentesco se dá por afinidade, como o casamento ou a união estável.
A definição de família no Brasil é profundamente influenciada pela Constituição Federal de 1988, que assegura sua proteção como um direito fundamental. Segundo o Brasil (2024), a nossa Lei Máxima garante que a família, independentemente de sua estrutura, deve ser considerada a base da sociedade e deve ser protegida pelo Estado.
Isso inclui tanto a família nuclear, composta por pai, mãe e filhos, quanto as famílias monoparentais ou formadas por relações não tradicionais, como as uniões estáveis ou famílias adotivas. O legislador, ao expandir o conceito de família, procurou adaptar o direito às transformações sociais e à realidade das famílias brasileiras.
É importante destacar que a legislação brasileira reconhece a pluralidade de formas de constituição da família, sem impor um modelo único e rígido. Para Diniz (2024), esse reconhecimento das diversas formas familiares representa um avanço importante na garantia dos direitos fundamentais dos membros da família.
A proteção da criança e do adolescente, por exemplo, está no centro dessa expansão conceitual, uma vez que a Constituição assegura a esses indivíduos o direito a um ambiente familiar saudável e seguro, onde possam desenvolver-se plenamente.
A evolução do conceito de família reflete também uma mudança no entendimento do papel do Estado. Conforme Batista e Azevedo (2024), o Estado deve garantir que todas as formas de família sejam respeitadas e protegidas, independentemente de sua configuração.
Para os autores, a Constituição de 1988 reforça a ideia de que a família é um direito fundamental, que não pode ser restringido por normas rígidas que não acompanham as mudanças da sociedade. Em vez disso, o Estado deve adotar uma postura de promoção da igualdade e da dignidade de todos os membros da família, principalmente quando se trata da proteção dos mais vulneráveis.
Além disso, Diniz (2024) observa que, ao longo dos anos, o direito brasileiro tem buscado fortalecer a família como espaço de proteção, cuidado e educação, alinhando-se aos princípios do direito internacional, como a Convenção sobre os Direitos da Criança.
A família é vista como um elemento central no desenvolvimento da criança e do adolescente, devendo assegurar-lhe um ambiente seguro e saudável, livre de abusos e negligências. A ampliação da definição de família visa garantir que as crianças e adolescentes estejam inseridos em ambientes familiares que promovam seu desenvolvimento pleno e saudável.
3. Entendimentos atuais do Superior Tribunal De Justiça
Como fora supramencionado, a interpretação do Art. 217-A do CP e suas implicações jurídicas e sociais têm sido objeto de intensos debates na doutrina e na jurisprudência. A sociedade, muitas vezes, se vê diante de um dilema entre a punição rigorosa e as complexidades dos casos específicos, em que fatores como o consentimento e as circunstâncias da relação precisam ser avaliados cuidadosamente.
Cruz (2024) defende que a aplicação do Art. 217-A deve ser rigorosa, pois o crime de estupro de vulnerável envolve uma vítima em situação de total vulnerabilidade, que, por sua condição, não possui a capacidade plena para consentir com a prática sexual.
Para o autor, a proteção integral da criança e do adolescente, prevista pela Carta Magna e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), deve ser considerada para garantir que qualquer ato sexual com menores de 14 anos seja tratado como uma violação dos direitos fundamentais dessa pessoa. Nesse contexto, a interpretação do artigo visa a proteção da dignidade humana, especialmente dos mais vulneráveis.
O princípio do melhor interesse da criança, consagrado na CRFB e no ECA, deve ser o fundamento central na aplicação do Art. 217-A. Cruz (2024) destaca que, em muitos casos, o processo judicial não pode ser apenas uma questão de aplicar a lei de forma mecânica, mas deve envolver uma análise profunda sobre as consequências do processo para o menor. Caso contrário, o direito penal, ao tentar proteger a criança, pode resultar em um agravamento da sua situação, causando-lhe mais danos do que benefícios.
A jurisprudência tem demonstrado uma evolução no entendimento sobre a aplicação do Art. 217-A. Cruz (2024) argumenta que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem adotado uma abordagem mais criteriosa, considerando o contexto de cada caso. Embora a lei seja clara ao estabelecer a incapacidade de consentimento de menores de 14 anos, a jurisprudência tem analisado de forma mais humanitária as consequências de uma condenação, levando em consideração a preservação da estrutura familiar e o respeito aos direitos do menor.
Ademais, há julgados do Superior Tribunal de Justiça, principalmente da 5ª e 6ª turma, que entendem que as situações reais deverão ser apreciadas de acordo com a gravidade da conduta e sua relevância social, não sendo suficiente a mera aplicação do tipo penal.
PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. 1. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. RESP REPETITIVO 1.480.881/PI E SÚMULA 593/STJ. PARTICULARIDADES DO CASO CONCRETO. NECESSIDADE DE DISTINÇÃO. 2. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL. INEXISTÊNCIA DE RELEVÂNCIA SOCIAL. FORMAÇÃO ANTERIOR DE NÚCLEO FAMILIAR. HIPÓTESE DE DISTINGUISING. 4. CONDENAÇÃO QUE REVELA SUBVERSÃO DO DIREITO PENAL. COLISÃO DIRETA COM O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA DO JUSTO. 5. AUSÊNCIA DE ADEQUAÇÃO E NECESSIDADE. INCIDÊNCIA DA NORMA QUE SE REVELA MAIS GRAVOSA. PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE AUSENTES. 6. PRETENSÃO ACUSATÓRIA CONTRÁRIA AOS ANSEIOS DA VÍTIMA. 7. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. NECESSIDADE DE PONDERAÇÃO. SITUAÇÃO MUITO MAIS PREJUDICIAL QUE A CONDUTA EM SI. 8. PROTEÇÃO DA MÃE E DA FILHA. ABSOLVIÇÃO PENAL QUE SE IMPÕE. ATIPICIDADE MATERIAL RECONHECIDA. 9. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
- A hipótese trazida nos presentes autos apresenta particularidades que impedem a simples subsunção da conduta narrada ao tipo penal incriminador, motivo pelo qual não incide igualmente a orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial Repetitivo n. 1.480.881/PI e no enunciado sumular n. 593/STJ.
- Um exame acurado das nuances do caso concreto revela que a conduta imputada, embora formalmente típica, não constitui infração penal, haja vista a ausência de relevância social e de efetiva vulneração ao bem jurídico tutelado. De fato, trata-se de dois jovens namorados, cujo relacionamento foi aprovado pela família da vítima, com constituição de núcleo familiar, com o nascimento de uma filha, sendo o acusado um bom pai, na acepção moral e material.
- Não obstante a necessidade de uniformização da jurisprudência pátria, por meio da fixação de teses em recursos repetitivos, em incidentes de assunção de competência bem como por meio da edição de súmulas, não se pode descurar do caso concreto, com as suas particularidades próprias, sob pena de a almejada uniformização acarretar injustiças irreparáveis.
- Da mesma forma que o legislador não consegue prever todas as variáveis possíveis da conduta incriminada, igualmente as teses firmadas em repetitivos nem sempre albergam as peculiaridades do caso concreto. Assim, cabe ao aplicador da lei, aferir se a conduta merece a mesma resposta penal dada, por exemplo, ao padrasto que se aproveita de sua enteada ou àquele que se utiliza de violência ou grave ameaça para manter conjunção carnal.
- Ora, as situações precisam ser sopesadas de acordo com sua gravidade concreta e com sua relevância social, e não apenas pela mera subsunção ao tipo penal. É nesse ponto, inclusive, que reside o instituto da distinguishing ou distinção, que autoriza a não aplicação de uma tese firmada, quando verificadas particularidades que impedem o julgamento uniforme no caso concreto. […]
(AgRg no AREsp n. 2.405.738/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 24/10/2023, DJe de 30/10/2023.)
O Agravo Regimental, interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão monocrática do STJ, defendeu a ocorrência do crime previsto no art. 217-A do Código Penal e a ausência de composição de núcleo familiar entre o réu e a vítima, não apresentando particularidades para relativizar a vulnerabilidade da vítima. No entanto, no referido caso a vítima tinha 12 (doze) anos e o suposto agressor tinha 18 (dezoito) anos, tendo eles um relacionamento, de conhecimento e consentimento dos pais, que só foi denunciado pela mãe, após a garota engravidar, por medo das consequências legais suscetíveis a ela.
Neste sentido:
[…] 6. A condenação de um jovem que, na época dos fatos, tinha 19 anos, hoje com 25 anos, que não oferece nenhum risco à sociedade, ao cumprimento de uma pena de, no mínimo, 8 anos de reclusão, revela uma completa subversão do direito penal, em afronta aos princípios fundamentais mais basilares, em rota de colisão direta com o princípio da dignidade humana. Dessa forma, estando a aplicação literal da lei na contramão da justiça, imperativa a prevalência do que é justo, utilizando-se as outras técnicas e formas legítimas de interpretação (hermenêutica constitucional).
7. Verifico, aliás, que a incidência da norma penal, na presente hipótese, não se revela adequada nem necessária, além de não ser justa, porquanto sua incidência trará violação muito mais gravosa de direitos que a conduta que se busca apenar. Dessa forma, a aplicação da norma penal na situação dos autos não ultrapassa nenhum dos crivos dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. […]
(AgRg no AREsp n. 2.405.738/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 24/10/2023, DJe de 30/10/2023.)
Desta forma, verificou-se que o rapaz era presente na vida da menor (agora mãe) e arcava com todas as responsabilidades da paternidade imputada a ele. A mera aplicação da pena prevista no Código Penal destruiria a família que formou com a vítima, em relação à dignidade humana deles, mas também em relação à criança sendo gestada.
O Direito Penal é regido por vários princípios, sendo um deles extremamente relevante a casos como esses: princípio da proporcionalidade. A partir do caso concreto, há a possibilidade de analisar a relevância social e a efetiva vulneração do bem jurídico tutelado. Será mesmo benéfico a aplicação da pena privativa de liberdade, entre 8 e 15 anos, para um rapaz que é pai e sustenta sua família?
O Superior Tribunal de Justiça decidiu pelo indeferimento, ou seja:
[…] 8. Nesse encadeamento de ideias, considero que a tese firmada no Recurso Especial n.º 1.480.881/PI não se aplica à hipótese dos presentes autos, haja vista as particularidades trazidas, que retiram a tipicidade material da conduta. Oportuno destacar que referida conclusão não demanda reexame de fatos e provas, mas a mera reavaliação dos elementos constantes dos autos, o que não encontra óbice no enunciado 7 da Súmula desta Corte.
- Se por um lado a Constituição da República consagra a proteção da criança e do adolescente quanto à sua dignidade e respeito (art. 227), não fez diferente quando também estabeleceu que a família é a base da sociedade, e que deve ter a proteção do Estado, reconhecendo a união estável como entidade familiar (art. 226, §3°). Antes, ainda proclamou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (1o, III) e o caminho da sociedade livre, justa e fraterna como objetivo central da República (preâmbulo e art. 3o, III)
- Com efeito, proclamar uma censura penal no cenário fático esquadrejado nestes autos é intervir, inadvertidamente, na relação dos pais e da criança, que viveram em união estável, de forma muito mais prejudicial do que se pensa sobre a relevância do relacionamento e da relação sexual prematura entre vítima e recorrente.
- Submeter a conduta do recorrente à censura penal levará ao esfacelamento da relação entre o pai, a mãe e a criança, ocasionando traumas muito mais danosos que se imagina que eles teriam em razão da conduta imputada ao impugnante. No jogo de pesos e contrapesos jurídicos não há, neste caso, outra medida a ser tomada: a opção absolutória na perspectiva da atipicidade material.
- Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no AREsp n. 2.405.738/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 24/10/2023, DJe de 30/10/2023.)
É indubitável que este caso não se iguala aos casos em que o menor de 14 anos sofre este estupro em que há claros indícios de violação à sua dignidade sexual e humana, e, ainda, engravida de forma completamente indesejável.
A Carta Magna zela, em seu artigo 226 e 227, pela proteção família, da criança e adolescente, decretar o cerceamento da liberdade através do cumprimento da lei penal traria traumas à família já constituída, ensejando uma superestimação na importância da relação sexual prematura entre a suposta vítima e agressor.
Diante disto, pode-se observar que a teoria do distinguishing está fortalecida, por mais que pouca parte dos operadores do direito ainda não usem, a doutrina e o STJ já estão expondo que, somente a aplicação da legislação não será o suficiente para trazer à sociedade a verdadeira justiça.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conclusão, este trabalho buscou analisar os novos entendimentos adotados pelos Tribunais Superiores, especialmente a teoria do distinguishing e suas implicações na interpretação e aplicação do artigo 217-A do Código Penal Brasileiro, que trata do estupro de vulnerável. A partir dos objetivos estabelecidos, foi possível observar que a aplicação dessa teoria, que propõe a análise da gravidade concreta de cada caso, pode, de fato, alterar as decisões judiciais, principalmente em primeiro grau.
O estudo revelou que, embora a tipificação penal seja rigorosa, a teoria supracitada oferece uma abordagem mais flexível, permitindo a ponderação de aspectos como consentimento da vítima e o contexto familiar, o que pode impactar na responsabilização do réu.
A análise da constituição de família, à luz das doutrinas e jurisprudências atuais, trouxe à tona o desafio de equilibrar a proteção do direito familiar com a necessidade de garantir a segurança e o bem-estar das crianças e adolescentes. Em muitos casos, a possibilidade de constituição de uma família, mesmo em situações envolvendo relações de vulnerabilidade, traz uma complexidade jurídica que precisa ser tratada com sensibilidade, sem renunciar à proteção integral dos direitos do menor.
No entanto, a interpretação do artigo 217-A do Código Penal, à luz das novas diretrizes jurisprudenciais, tem sido moldada para atender tanto à proteção das vítimas quanto à necessidade de considerar as especificidades de cada situação, criando um cenário jurídico dinâmico e em constante evolução.
Em síntese, a aplicação da teoria do “distinguishing” em casos de estupro de vulnerável revela uma importante mudança na forma de interpretação da legislação penal brasileira, permitindo uma justiça mais ponderada e que, ao mesmo tempo, preserva os direitos fundamentais das crianças e adolescentes, respeitando os princípios constitucionais do melhor interesse e da proporcionalidade.
Por fim, é fundamental que as decisões judiciais sejam cada vez mais sensíveis ao contexto social e familiar dos casos, de modo a evitar decisões que possam gerar injustiças ou aprofundar o sofrimento das vítimas e de suas famílias.
4Também chamada de cópula tópica, coito, ou imissão penis. Trata-se de relação sexual entre homem e mulher, com penetração do pênis na vagina, com ou sem ejaculação (imissio seminis). (ESTUDANTE DE MEDICINA)
5Atos libidinosos diversos da conjunção carnal. (ESTUDANTE DE MEDICINA)
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1Bacharelanda no curso de Direito da Faculdade AGES Campus de Senhor do Bonfim-BA.
E-mail: muriellibarbara@hotmail.com.
2Bacharelanda no curso de Direito da Faculdade AGES Campus de Senhor do Bonfim-BA.
E-mail:
naityllandomingos@hotmail.com
3Advogado, Bacharel em Direito pela Facape, e especialista em Direito Eleitoral pela PUC-MG.
E-mail: joao.lino@ulife.com.br.