REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202411301512
Thamara Pereira Santos Figueira
Mariana Gabriela Da Silva Silvestre
Orientador: Prof. Bruno Amazan Avelar de Araujo
RESUMO
O presente artigo explora a herança digital no contexto jurídico brasileiro, com foco no Direito Sucessório. A partir de uma abordagem qualitativa, baseada em pesquisa bibliográfica e análise documental, busca-se compreender os desafios e lacunas legislativas que envolvem a transmissão de bens digitais, como perfis monetizados, moedas digitais e acervos virtuais. A ausência de regulamentação específica no Código Civil e a complexidade dos contratos de licença de uso são apontadas como barreiras para a sucessão desses ativos. Além disso, o estudo destaca a relevância do testamento como ferramenta para organizar o destino de bens digitais e analisa experiências internacionais que podem servir de inspiração para o Brasil. Conclui-se que a criação de um marco legal é imprescindível para garantir segurança jurídica, respeitar os direitos patrimoniais e existenciais dos titulares e promover equilíbrio no tratamento desses ativos no âmbito sucessório
Palavras-chave: Bens digitais, Brasil, criptomoedas, direito sucessório, exploração econômica, herança digital, legado digital, milhas aéreas, perfis de rede social, transmissão jurídica.
ABSTRACT
This article explores digital inheritance in the Brazilian legal context, focusing on Succession Law. Using a qualitative approach, based on bibliographical research and documentary analysis, we seek to understand the challenges and legislative gaps that involve the transmission of digital assets, such as monetized profiles, digital currencies and virtual collections. The absence of specific regulations in the Civil Code and the complexity of use license contracts are highlighted as barriers to the succession of these actions. Furthermore, the study highlights the relevance of the will as a tool for organizing the destination of digital goods and analyzes international experiences that can serve as inspiration for Brazil. It is concluded that the creation of a legal framework is necessary to guarantee legal certainty, respect the patrimonial and existential rights of holders and promote balance in the treatment of these assets in the inheritance context.
Keywords: Digital goods, Brazil, cryptocurrencies, inheritance law, economic exploitation, digital inheritance, digital legacy, air miles, social network profiles, legal transmission.
1. INTRODUÇÃO
A crescente digitalização da vida humana trouxe à tona uma nova categoria de bens a serem considerados no âmbito do Direito Sucessório: os bens digitais. Este artigo aborda essa transformação digital e sua implicação para o Direito, especificamente em relação à transmissão jurídica e à exploração econômica de bens digitais. Dentre esses bens, incluem-se milhas aéreas, criptomoedas e perfis em redes sociais que possuem valor tanto econômico quanto afetivo. Este aspecto transforma o modo como concebemos a sucessão patrimonial e os direitos dos herdeiros frente a um espólio cada vez mais imaterial e fragmentado.
A abordagem do legado digital não se limita a identificar bens que compõem o patrimônio digital, mas também a entender a sua natureza jurídica, oscilando entre dúvidas sobre sua transmissibilidade e os direitos dos herdeiros. Essa questão complexa é enraizada em discussões sobre a adequação das normas legais vigentes, muitas das quais foram elaboradas em um contexto pré-digital, para atender às contingências atuais.
O objetivo deste estudo é analisar a possibilidade de transmissão jurídica e exploração econômica desses bens digitais, explorando as lacunas legislativas e os desafios jurídicos que se apresentam no contexto brasileiro. Estudos revelam que, enquanto algumas jurisdições internacionais têm avançado na regulamentação da herança digital, o Brasil ainda enfrenta dificuldades significativas em adaptar sua legislação às demandas contemporâneas do mundo digital.
O questionamento central gira em torno dos desafios jurídicos e das lacunas na transmissão e exploração econômica desses bens no âmbito do Direito Sucessório brasileiro. Este aspecto é crucial, considerando a rápida evolução das tecnologias digitais e o crescente valor econômico associado a bens digitais. A literatura destaca a importância de desenvolver um entendimento mais profundo sobre como esses bens podem ser geridos e transmitidos em conformidade com o direito vigente.
As nuances que envolvem a herança digital exigem uma análise aprofundada sobre como as plataformas digitais gerenciam os dados dos usuários falecidos e quais direitos são efetivamente transferidos aos sucessores. A resistência ou incapacidade das plataformas para gerir adequadamente esses aspectos pode potencializar conflitos sucessórios, além de criar uma insegurança jurídica significativa.
O fenômeno da digitalização, associado a uma cultura crescente de compartilhamento e valorização do conteúdo online, complexifica o quadro jurídico sucessório tradicional, obrigando juristas e legisladores a reavaliarem conceitos e princípios fundamentais. A doutrina jurídica está atualmente empenhada na busca por soluções adaptativas que possam integrar esses novos desafios dentro do arcabouço normativo existente.
A relevância do tema ganha destaque não apenas pelo impacto econômico que esses bens digitais podem ter sobre um espólio, mas também pela dimensão pessoal e afetiva que pode ser associada a muitos desses ativos, como redes sociais ou arquivos digitais de valor sentimental. Portanto, definir normativamente como tais bens serão geridos é de importância vital para garantir a continuidade segura e legal da gestão patrimonial
A ascensão do mundo virtual transformou profundamente a forma como interagimos, consumimos e gerimos nossos bens. Cada vez mais, a virtualização da vida cotidiana tem atribuído valor econômico significativo a ativos digitais, como perfis em redes sociais, arquivos online e até mesmo itens de jogos eletrônicos. Essa tendência reflete um cenário em que bens digitais se tornam progressivamente mais onerosos e economicamente relevantes. Hoje, é possível adquirir acervos digitais com alto valor monetário, moedas digitais como o Bitcoin são amplamente utilizadas como meio de pagamento, e companhias aéreas vendem milhas como estratégia de captação de receita. Esses exemplos ilustram como o mundo digital transcendeu seu caráter simbólico e alcançou uma dimensão patrimonial essencial na economia global.
Diante desse cenário, este artigo tem como objetivo analisar os impactos trazidos pelo instituto da herança digital no Direito brasileiro, especificamente no âmbito do Direito Sucessório, foram analisadas obras doutrinárias, artigos científicos e legislações nacionais e internacionais, além de casos jurisprudenciais que ilustram os desafios e avanços no tratamento jurídico da herança digital no Brasil, considerando os desafios impostos pela ausência de regulamentação específica. Além disso, busca-se investigar os principais obstáculos jurídicos e propor soluções que conciliem os direitos patrimoniais dos herdeiros com a preservação da memória e dignidade do titular falecido.
2. NATUREZA JURÍDICA DO BENS DIGITAIS
Com a evolução tecnológica e a migração acelerada das atividades para o ambiente virtual, os indivíduos passaram a acumular bens digitais que variam desde perfis em redes sociais até criptomoedas e bibliotecas digitais. Essas mudanças trouxeram consigo a necessidade de compreender e proteger juridicamente esses ativos, que são frutos diretos da revolução tecnológica.
Hoje, centenas de itens, antes restritos ao mundo físico, são adquiridos, armazenados e geridos digitalmente. Essa transição não apenas diversificou o conceito de patrimônio, mas também desafiou o Direito a acompanhar o ritmo dessas mudanças. Cada usuário, ao longo de sua vida, acumula bens digitais de valor patrimonial e existencial, cuja proteção jurídica é essencial para garantir sua integridade e transmissibilidade. O problema reside, em grande parte, no fato de que a titularidade dos bens digitais ainda é amplamente negligenciada por muitos usuários da internet e carece de interpretação por parte dos Tribunais. Durante a vida, muitas pessoas deixam de se pronunciar sobre o destino de seus acervos digitais, moedas ou milhas, ignorando a necessidade de planejar a sucessão desses ativos. Após o falecimento, essa ausência de planejamento se agrava, uma vez que os familiares, por desconhecimento ou falta de informação, muitas vezes deixam de adotar providências em relação a esses bens, ou sequer têm ciência da existência desses ativos digitais. (LAMM et al,.2012)
Um exemplo emblemático da valorização desses bens no ambiente virtual ocorreu em 2011, quando um jovem chinês adquiriu uma espada para uso em um jogo virtual, avaliada em 16 mil dólares. Casos como esse reforçam a relevância econômica e simbólica dos bens digitais e evidenciam a necessidade de conscientização e regulamentação sobre a natureza e sucessão desses ativos, garantindo segurança jurídica e evitando perdas patrimoniais no ambiente digital.( STERLING.,2011)
2.1 Nova classificação Jurídica
No ordenamento jurídico brasileiro, os bens digitais ainda são tratados como “bens” no sentido amplo do Código Civil de 2002. Contudo o entendimento de Bruno Zampier (2021) é que:
O termo “bens digitais” seria mais adequado para designar ativos que surgiram a partir da revolução tecnológica, como perfis em redes sociais, arquivos em nuvem e criptomoedas. Essa terminologia específica reconhece a singularidade desses bens, que transcendem as classificações tradicionais e demandam um tratamento jurídico próprio.
Sávio de Aguiar Soares (2012), por sua vez, utiliza o conceito de “tecnodigital” para se referir a bens virtuais que emergem no contexto da digitalização. A expressão “Bens Digitais” tem sido rotineiramente usada em julgados e pela doutrina nacional.
Nesse contexto, é importante destacar a influência do culturalismo de Miguel Reale, que orientou a elaboração do Código Civil de 2002. Reale defendia que o direito deve acompanhar as transformações culturais e sociais de seu tempo, adaptando-se às necessidades da sociedade. Essa perspectiva é particularmente relevante quando se considera a inclusão do termo “bens digitais” no ordenamento jurídico. A rápida evolução tecnológica e a crescente importância econômica e existencial dos bens digitais reforçam a necessidade de que o direito brasileiro adote uma postura dinâmica e atualizada, capaz de incorporar esses novos ativos em suas categorias normativas. Assim, a inserção desse termo no direito atual não apenas reconhece a relevância desses bens, mas também reflete a filosofia culturalista de Reale, ao alinhar o direito às mudanças culturais e tecnológicas da contemporaneidade.
2.2 A Dualidade dos Bens Digitais; Bens Patrimoniais
Os bens patrimoniais digitais representam uma nova fronteira no Direito, desafiando os conceitos tradicionais de propriedade ao expandir a noção de patrimônio para incluir ativos imateriais. Esses bens, embora incorpóreos, possuem valor econômico mensurável e são fundamentais para a compreensão do direito de propriedade na era digital. Exemplos incluem criptomoedas, coleções de ativos virtuais e acervos adquiridos em ambientes digitais, como livros eletrônicos e arquivos de mídia.
A doutrina aponta para a necessidade de revisar o conceito clássico de propriedade, definido no art. 1.228 do Código Civil de 2002, que descreve as faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar. Esse entendimento, centrado em bens tangíveis, não abarca plenamente a complexidade dos bens digitais. Conforme Judith Martins, a propriedade não pode ser restrita àquilo que se pode materialmente tocar, pois o mundo real abrange também o virtual. Essa visão amplia a noção de patrimônio, reconhecendo a importância dos bens digitais no contexto jurídico contemporâneo. (MARTINS-COSTA JUDITH., p.645, 2008)
Adicionalmente, a compreensão da titularidade de bens incorpóreos, como apontado por Augusto Teixeira de Freitas em seu “Esboço de Código Civil”, já indicava uma visão abrangente da propriedade, ao considerar o credor proprietário de seus direitos de crédito. Essa perspectiva fornece uma base histórica para integrar os bens digitais ao Direito, estabelecendo sua natureza patrimonial e sua legitimidade como parte do patrimônio transmissível.(FREITAS, TEIXEIRA AUGUSTO., 2003)
A relevância de considerar os bens digitais como patrimoniais está também na proteção dos direitos do titular e no impacto que esses ativos podem gerar na coletividade. A função social da propriedade, prevista na Constituição Federal, no ART 170, Inciso III, reforça a necessidade de regulamentar o uso e a transmissão desses bens, garantindo que sua exploração esteja alinhada a interesses jurídicos e sociais mais amplos.
2.3 A Dualidade dos Bens Digitais; Bens existenciais
Os bens digitais, especialmente aqueles de natureza existencial, possuem uma relação intrínseca com os direitos da personalidade, protegidos pelo artigo 11 e seguintes do Código Civil. Esses direitos, que abrangem atributos fundamentais como privacidade, imagem, honra e memória, refletem a necessidade de proteção especial no contexto da herança digital.
Segundo Anderson Schreiber (2019), os direitos da personalidade são inalienáveis e imprescritíveis, o que os coloca em uma posição especial quando relacionados a bens digitais existenciais. Ele argumenta que “os bens digitais que carregam valores emocionais ou identitários precisam ser tratados como extensões da personalidade do titular, com proteção jurídica compatível” (SCHREIBER, 2019, p. 78). Isso inclui mensagens, fotografias, diários virtuais e outros conteúdos digitais que estão diretamente ligados à dignidade do indivíduo.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso X, garante a inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da imagem, o que fundamenta a proteção jurídica de bens digitais existenciais. Maria Helena Diniz reforça que “os bens digitais de caráter existencial não podem ser considerados apenas sob a ótica patrimonial, mas devem respeitar a dignidade e os valores do titular, mesmo após sua morte”. Ela defende que a regulamentação da herança digital deve assegurar um equilíbrio entre a memória do falecido e os interesses dos herdeiros. (HELENA DINIZ, MARIA., 2020).
2.4 Sucessão de acordo com o Código Civil e a inserção no meio Digital.
O Código Civil Brasileiro disciplina a transmissão de bens, direitos e obrigações do falecido aos seus herdeiros por meio da sucessão, regulamentada em duas modalidades principais: a sucessão legítima e a sucessão testamentária. Essas formas de sucessão foram concebidas em um contexto jurídico tradicional, onde os bens eram predominantemente tangíveis, como imóveis, veículos e valores financeiros. No entanto, com o crescimento dos bens digitais, como perfis em redes sociais, moedas digitais e acervos virtuais, surge um desafio: o Código de 2002 não prevê explicitamente como esses ativos devem ser tratados no âmbito sucessório É indubitável que os bens digitais devem ser objeto de sucessão, especialmente quando possuem caráter patrimonial. Esses ativos representam não apenas valores econômicos, mas também interesses que merecem proteção jurídica. Assim, é fundamental que o ordenamento jurídico permita a transmissão desses bens, seja pela via testamentária, onde o titular pode determinar seu destino de forma detalhada, ou pela via legítima, garantindo que sejam incorporados ao patrimônio dos herdeiros de acordo com a ordem de vocação hereditária prevista no Código Civil.
2.5 Sucessão ou extinção de bens existenciais
Os bens digitais existenciais, por sua íntima ligação com a identidade, a memória e os sentimentos do titular, representam um dos aspectos mais desafiadores no contexto da herança digital. Esses bens, que incluem diários virtuais, fotografias pessoais, mensagens privadas e postagens em redes sociais, não possuem valor econômico direto, mas carregam uma dimensão simbólica e afetiva que transcende a esfera patrimonial.
A exclusão ou sucessão desses bens levanta questões éticas e jurídicas complexas. De um lado, está a proteção dos direitos da personalidade do titular falecido, como a privacidade, a honra e a imagem, garantidos pela Constituição Federal e pelos artigos 11 a 21 do Código Civil. De outro, está o interesse dos herdeiros em preservar o legado emocional e simbólico desses ativos. Essa dualidade reflete a dificuldade de enquadrar bens digitais existenciais nas estruturas jurídicas tradicionais, concebidas em um período pré-digital.
A complexidade jurídica surge, em grande parte, da natureza imaterial e não tangível desses bens, que desafia a lógica tradicional da transmissão patrimonial. Além disso, o caráter personalíssimo dos bens existenciais cria obstáculos significativos para sua transmissão. A jurisprudência brasileira ainda não consolidou parâmetros claros sobre o tema, o que resulta em decisões contraditórias e fragmentadas.
3. A COMPLEXIDADE DOS BENS DIGITAIS E A JURISPRUDÊNCIA ATUAL
A interpretação e sucessão dos bens digitais apresentam desafios únicos no Direito Sucessório, especialmente devido à sua natureza híbrida. Esses ativos combinam valor econômico e aspectos ligados à personalidade e identidade do titular. Teixeira e Leal (2020, p. 343) destacam que contratos de licença de uso, comuns em serviços de streaming e redes sociais, frequentemente limitam o direito de transmissão desses bens após o falecimento do titular. Essa característica levanta questões sobre a transmissibilidade patrimonial dos bens digitais e exige uma análise cuidadosa da jurisprudência e suas implicações. (LEAL LIVIA, TEIXEIRA, ANA., 2020)
3.1 Jurisprudência Brasileira e os Desafios da Transmissibilidade de Contratos Digitais
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob relatoria do ministro Moura Ribeiro, decidiu que as milhas aéreas acumuladas em programas de fidelidade são pessoais e intransferíveis, mesmo em casos de herança, conforme o Recurso Especial nº 1.878.651/SP, julgado em 4 de outubro de 2022. Fundamentada na premissa de que esses programas recompensam a fidelidade do consumidor, a decisão reforça a interpretação restritiva de contratos personalíssimos. Embora as milhas não sejam um bem digital, essa jurisprudência oferece um paralelo relevante para a análise de contratos de licença de uso no ambiente digital, onde a transmissibilidade de bens é igualmente limitada.
No contexto da herança digital, esse entendimento pode limitar a transmissão de bens relacionados a serviços como Netflix, Spotify e Amazon Prime, que concedem apenas uma licença temporária de uso ao titular. A ausência de transferência de propriedade nesses contratos gera desafios significativos para os herdeiros, especialmente em casos de bens que possuem valor econômico e afetivo.
Um caso de grande repercussão no Brasil ilustra esse problema. A 31ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) manteve a decisão que negou o pedido de indenização de uma mãe que teve o perfil de sua filha falecida excluído de uma rede social (TJ-SP, AC: 1119688-66.2019.8.26.0100). O magistrado responsável pela decisão destacou:
(…) A Não se ignora a dor da autora frente a tragédia, no entanto não há como imputar à apelada a responsabilidade pelos abalos morais decorrente da exclusão dos registros, já que decorrem de vontade em vida pela usuária, ao aderir os Termos de Serviços da apelada, os quais previam expressamente a impossibilidade de acesso ao conteúdo.
Esses casos demonstram como o Direito é desafiado a lidar com bens intangíveis que combinam valor afetivo e econômico. O principal obstáculo não é apenas a ausência de normas claras, mas também a falta de uniformidade nas interpretações judiciais, o que amplia a complexidade das questões envolvendo bens digitais no contexto sucessório.
3.2 A Complexidade dos Contratos de Licença de Uso
A sucessão de bens digitais enfrenta desafios que vão além de sua natureza híbrida, sendo diretamente impactada pela estrutura dos contratos de licença de uso. Perfis monetizados em redes sociais como YouTube, Instagram e TikTok exemplificam essa complexidade, pois são frequentemente vinculados a contratos publicitários e direitos de propriedade intelectual. Esses contratos, por sua vez, reforçam a ideia de que o titular do perfil não detém plena propriedade do ativo, mas apenas uma licença de uso temporária, intransferível em muitas situações. A ausência de precedentes claros na jurisprudência sobre herança digital aprofunda a incerteza jurídica acerca da sucessão desses bens.
Os contratos de licença de uso são redigidos de maneira a limitar os direitos do usuário ao estrito uso pessoal, inviabilizando sua transmissão patrimonial. Essa restrição se torna especialmente problemática quando se trata de bens digitais com significativo valor econômico ou afetivo, como contas de redes sociais, bibliotecas digitais e serviços de streaming. Esses bens são simultaneamente de interesse dos herdeiros e da sociedade, seja pelo valor financeiro que carregam, seja pela preservação da memória e legado do titular.
Um caso que ilustra essa dificuldade envolve o ator Bruce Willis, cuja situação repercutiu amplamente em 2012, segundo matéria publicada;
(…), Willis desejava incluir em seu planejamento sucessório a doação de sua biblioteca digital e coleção de discos on-line para suas filhas, mas foi surpreendido ao descobrir que, nos termos do contrato, ele não possuía a propriedade desses itens, apenas uma licença pessoal e intransferível de uso
A questão central reside na desproporcionalidade entre os direitos do usuário e as prerrogativas das plataformas digitais, que, ao restringirem a transferência de licenças, ignoram o valor patrimonial e pessoal que esses bens representam. Além disso, essa limitação demonstra um descompasso entre os contratos digitais e os princípios do Direito Sucessório, que historicamente reconhece a transmissão de bens patrimoniais aos herdeiros.
3.3 Os Contratos com as Plataformas Digitais
Na ausência de uma regulamentação clara, os contratos firmados entre os usuários e as plataformas digitais têm se tornado determinantes no destino dos bens digitais após o falecimento de seus titulares. Muitas vezes, esses contratos são considerados desproporcionais ou abusivos, uma vez que podem prever a exclusão permanente do acervo digital na falta de uma determinação expressa do titular em vida. Esse cenário priva os herdeiros de acessar e administrar o patrimônio digital do falecido, criando uma situação de insegurança jurídica e de potencial violação de direitos sucessórios.
Enquanto a sucessão de bens tangíveis é amplamente reconhecida e garantida, o mesmo não ocorre com os bens digitais, cuja transmissibilidade ainda é desconhecida por boa parte da sociedade. Esse desconhecimento é agravado pelas cláusulas contratuais que frequentemente favorecem as plataformas, em detrimento dos usuários e seus herdeiros. Essa realidade destaca a necessidade de maior conscientização sobre o valor patrimonial e existencial dos bens digitais, além de reforçar a urgência de um debate jurídico que promova maior equilíbrio entre as partes envolvidas.
Algumas plataformas têm desenvolvido ferramentas específicas que permitem aos usuários escolher um “contato herdeiro” para gerenciar suas contas após a morte. No entanto, essas ferramentas oferecem funcionalidades limitadas. Por exemplo, no Facebook, o contato herdeiro pode realizar ações como escrever uma publicação fixada no perfil, atualizar fotos de perfil e capa, solicitar a remoção da conta e baixar uma cópia do conteúdo compartilhado, desde que essa opção tenha sido previamente ativada. Por outro lado, esse contato não pode acessar mensagens privadas, remover amigos ou fazer novas solicitações de amizade. Essas limitações mostram que o poder decisório sobre os bens digitais ainda reside majoritariamente nas plataformas, em detrimento dos interesses dos herdeiros ou da vontade do titular.
Essa abordagem demonstra uma ingerência das plataformas em questões que deveriam ser tratadas no âmbito jurídico e familiar. O controle sobre a exclusão ou manutenção desses bens digitais, que envolvem tanto aspectos patrimoniais quanto de personalidade, ultrapassa a esfera técnica e interfere em valores fundamentais de sucessão e memória. Como resultado, os bens digitais, que poderiam ser explorados economicamente ou preservados como parte do legado pessoal, acabam sendo regidos por contratos unilaterais que não refletem os interesses do titular ou de seus sucessores.
Portanto, é essencial que os titulares tenham maior controle sobre o destino de seus bens digitais, seja por meio de disposições claras em vida ou de mecanismos que garantam aos herdeiros o direito de decidir sobre a preservação ou exclusão desses ativos. Esse equilíbrio entre direitos patrimoniais, existenciais e familiares é indispensável para promover uma sucessão digital justa e respeitosa, que reflita as particularidades desses bens e a complexidade das relações humanas no ambiente virtual.
4. TESTAMENTO COMO ALIADO NA SUCESSÃO DOS BENS DIGITAIS
O testamento desempenha um papel fundamental no planejamento sucessório, permitindo que o titular organize a destinação de seus bens após a morte. No contexto dos bens digitais, essa ferramenta assume uma relevância ainda maior, dada a ausência de regulamentação específica no Brasil e a crescente complexidade desses ativos. Flávio Tartuce (2020, p. 396) ressalta que o testamento pode abranger bens adquiridos no ambiente virtual, como contatos, publicações, seguidores e criptomoedas, possibilitando ao titular determinar seu destino de forma clara e legalmente válida
4.1 A Cultura do Planejamento Sucessório: Brasil x Inglaterra
No Brasil, o número de pessoas que formulam testamentos ainda é significativamente baixo, especialmente se comparado a países como a Inglaterra, onde cerca de 40% da população adulta possui um testamento formalizado. Essa disparidade revela uma lacuna cultural no planejamento sucessório, que reflete diretamente na ausência de previsões sobre bens digitais. (THORNHILL, 2012)
No contexto brasileiro, o testamento é muitas vezes visto como algo distante, reservado a situações excepcionais ou a indivíduos com patrimônio elevado. Essa visão, além de cultural, é reforçada pela falta de divulgação e incentivo ao planejamento sucessório. No entanto, com o aumento da relevância dos bens digitais no patrimônio das pessoas, torna-se cada vez mais necessário sensibilizar a população sobre a importância de regular, em vida, o destino de seus ativos.
Um sistema mais acessível e simplificado de elaboração de testamentos poderia estimular o planejamento sucessório no Brasil, incluindo a criação de mecanismos digitais para a formulação e registro desses documentos, inspirando-se nas práticas bem-sucedidas de outros países.
4.2 Brasil e Experiências Internacionais
O testamento, embora fundamental no planejamento sucessório, enfrenta barreiras específicas quando aplicado aos bens digitais sujeitos a contratos de licença de uso. Essas limitações decorrem de cláusulas de intransferibilidade frequentemente presentes em contratos com plataformas digitais, como Apple e Netflix, que restringem a transmissão patrimonial desses bens. Mesmo que o titular expresse sua vontade em testamento, essas disposições contratuais podem prevalecer, evidenciando um conflito entre o desejo do testador e as normas contratuais. A jurisprudência brasileira ainda não oferece respostas definitivas para esse impasse.
No cenário internacional, algumas legislações têm enfrentado o desafio de regulamentar a herança digital de maneira mais abrangente. Nos Estados Unidos, o Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act (UFADAA) concede a herdeiros e representantes legais o direito de acessar bens digitais, desde que autorizados previamente pelo titular ou mediante determinação judicial. Essa abordagem reconhece a importância de garantir acesso aos bens digitais enquanto preserva os direitos de privacidade e segurança.
Na União Europeia, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) reforça a necessidade de proteger os bens digitais, especialmente no que se refere à privacidade e à gestão de dados pessoais. No entanto, o GDPR também deixa margem para que os estados-membros estabeleçam diretrizes nacionais específicas sobre a herança digital, possibilitando interpretações variadas dentro do bloco. Por fim, destaca-se o exemplo da Espanha, que deu um importante passo na regulamentação da herança digital com a aprovação da Ley Orgánica 3/2018, conhecida como Ley de Protección de Datos y Garantía de los Derechos Digitales. Essa legislação, ao reformar a antiga lei de proteção de dados, conferiu legitimidade aos herdeiros do titular falecido para gerirem sua herança digital. No entanto, a lei também resguarda a autonomia do titular ao prever que uma disposição testamentária pode estabelecer orientações específicas em sentido contrário.
Esses exemplos internacionais mostram que é possível equilibrar os interesses dos herdeiros com os direitos de personalidade do falecido, desde que haja um alinhamento entre as vontades individuais e as normativas legais e contratuais. A ausência de um marco regulatório no Brasil impede avanços nesse sentido, deixando os titulares e herdeiros em um estado de insegurança jurídica.
Com o aumento do valor e da relevância dos bens digitais no contexto sucessório, a introdução do testamento digital surge como uma solução prática e adaptada às novas realidades. Essa ferramenta permitiria ao titular definir, com clareza, o destino de bens como perfis monetizados, criptomoedas e bibliotecas digitais, registrando suas preferências de forma acessível e juridicamente válida.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sucessão de bens digitais representa uma questão emergente e desafiadora no ordenamento jurídico brasileiro, que ainda carece de regulamentação específica. Com a crescente relevância desses ativos no cotidiano e sua dupla dimensão, econômica e afetiva, torna-se indispensável a formulação de um marco legal que defina com precisão o destino desses bens após o falecimento de seus titulares. Atualmente, a ausência de normativas claras faz com que questões relacionadas à herança digital sejam tratadas de forma fragmentada, com base em legislações gerais, como o Marco Civil da Internet, a Lei de Direitos Autorais e a Lei Geral de Proteção de Dados. Essas normas, no entanto, não abrangem a totalidade das particularidades inerentes aos bens digitais no contexto sucessório.
A relevância do tema é evidenciada pela inclusão de um capítulo dedicado aos bens digitais na proposta de reforma do Código Civil, entregue ao Senado Federal. Essa proposta define patrimônio digital como perfis, senhas de redes sociais, criptomoedas, contas de jogos, fotos, vídeos e textos, permitindo sua descrição em testamentos e assegurando que sucessores legais possam solicitar a exclusão ou a conversão em memorial de perfis em redes sociais de pessoas falecidas.
Nesse contexto, é essencial que o legislador avance na construção de uma regulamentação que contemple a dualidade dos bens digitais, distinguindo os bens de valor patrimonial daqueles de natureza existencial. Tal abordagem é necessária para assegurar um equilíbrio que garanta o acesso dos herdeiros aos bens patrimoniais e, simultaneamente, proteja a privacidade, a memória e a dignidade do titular falecido.
Ademais, as plataformas digitais possuem um papel fundamental nesse processo. É imperativo que essas empresas revisem suas políticas de uso para possibilitar que os herdeiros administrem conteúdos digitais de maneira ética e respeitosa. A flexibilização de cláusulas contratuais que atualmente restringem a transmissão de bens digitais constitui uma medida crucial para evitar que as plataformas exerçam controle exclusivo sobre esses bens, desconsiderando os direitos patrimoniais e existenciais dos usuários e suas famílias.
Por fim, conclui-se que a regulamentação da herança digital deve ser uma prioridade para o Direito brasileiro. Essa medida não apenas beneficiaria os herdeiros, preservando o valor patrimonial e afetivo dos bens digitais, mas também proporcionaria maior segurança jurídica e preveniria abusos e interpretações ambíguas. A construção de um arcabouço jurídico sólido, que equilibre direitos patrimoniais, interesses familiares e a proteção da dignidade do falecido, é essencial para adequar o Direito às novas realidades digitais.
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