VULNERABILIDADE, DIREITOS HUMANOS E DIGNIDADE HUMANA COMO FUNDAMENTOS DA POSITIVAÇÃO DO DEPOIMENTO ESPECIAL

VULNERABILITY, HUMAN RIGHTS AND HUMAN DIGNITY AS FOUNDATIONS FOR THE AFFIRMATION OF THE SPECIAL TESTIMONY.

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202408151514


Maria Domitila Prado Manssur


RESUMO

Orientam o presente trabalho a identificação do vulnerável no processo penal e as razões que justificam a sua inclusão em sistema de proteção estabelecido, especialmente, para sua oitiva nas duas fases da persecução penal, como vítima ou testemunha de violência, sem risco ao equilíbrio entre a acusação e a defesa. A Lei n. 13.413/2017 integra a escuta especializada e o depoimento especial a preexistente sistema protetivo de vulneráveis. Há identificação de infrações penais praticadas, de forma recorrente, contra vulneráveis pela idade, mostrando-se imprescindível o alinhamento entre profissionais do Direito, da Psicologia e do Serviço Social, com respeito às suas competências e limitações éticas, em união de esforços para, durante a persecução penal, contribuir para a revelação de fatos relevantes ao Direito, de acordo com a dignidade do menor e de seus melhores interesses, como garante a Constituição Federal. 

Palavras-chave: Depoimento especial. Vítima e testemunha vulnerável. Dignidade humana. Devido processo legal. Eficiência e garantismo. 

ABSTRACT

The present work is guided by the identification of the vulnerable in the criminal process and for the reasons that justify his inclusion in a protection system established, especially for his hearing, in the two phases of criminal prosecution, as a victim or witness of violence, without risk against balance between prosecution and defense. The Law n. 13.413/2017 integrates specialized listening and special testimony with the pre-existing protective system of the vulnerable, and in this step, the principle of the judge’s integrity, which guides the interception of the law to morals and social aspirations, contributes to the conclusion of strong value of victims and witnesses’ words as evidences of violence in the criminal process. There is identification of criminal offenses committed, recurrently, against vulnerable, due to age, proving indispensable the alignment between professionals of Law, Psychology and Social Work, concerning their respective competences and ethical limitations, joining efforts to, in stages of criminal prosecution, allow the disclosure of facts relevants to the Law, in accordance with the dignity of the minor and his best interests, as the Federal Constitution guarantees. 

Keywords: Special testimony. Vulnerable victim and witness. Due process of law. Efficiency and guaranteeism binomial. 

1.1 Vulnerabilidade e direito

A vulnerabilidade está associada à ideia de fraqueza e impossibilidade de reação a ataques; as pessoas vulneráveis podem ser atingidas mais facilmente por suas condições sociais, culturais, políticas, étnicas, econômicas, educacionais, de gênero e de saúde1, encontrando-se em situação de desigualdade em relação a outros grupos2.

No ordenamento jurídico, há normas e regras de proteção destinadas às pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade por específica condição pessoal. Reconhece-se, assim, a facilidade de vilipêndio de bens jurídicos dos quais são titulares e a dificuldade que enfrentam no exercício do direito de ação para protegê-los, permanecendo, não raras vezes, à margem do sistema de justiça.

“Vulnerável” é termo recorrente no direito penal brasileiro, previsto, v.g.,  no artigo 217-A, caput, do Código Penal, ao qualificar o sujeito passivo menor de catorze anos, vítima de estupro, espécie de crime contra a dignidade sexual. 

Antes da Lei n. 12.015/2009 havia no Código Penal dois delitos cujo sujeito passivo era o vulnerável: o de estupro, previsto no art. 213, caput, e o de atentado violento ao pudor, descrito pelo art. 214, caput, do citado diploma legal.

Para a tipificação de ambos se exigia emprego de violência ou grave ameaça, falando-se em presunção de violência, por força do disposto no artigo 224, caput, do Código Penal, se praticados contra vítimas menores de catorze anos, “alienadas” ou “débeis mentais” ou contra quem não pudesse oferecer resistência, ainda que o agente não empregasse violência real. 

A alteração legal estabeleceu o critério da idade, objetivo, para definir a vulnerabilidade, afastando o subjetivo, por presunção da violência, a permitir a relativização, à prova do consentimento e erro sobre elemento constitutivo do tipo penal, com as consequências do reconhecimento deste advindas, de acordo com o art. 20 do Código Penal.

Nesse sentido se orienta a jurisprudência, na melhor linha da defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes, vítimas principais de crimes contra a dignidade sexual3, especialmente as meninas4.

A menção ao dispositivo legal, que não foi escolhido despropositadamente – os menores de catorze anos são, em larga escala, submetidos a depoimento especial porque vítimas de crimes sexuais – e foi alvo de recente alteração legislativa, tem por objetivo deitar luzes sobre a efetiva existência de sistema de proteção no ordenamento jurídico relacionado aos vulneráveis5

Se é possível identificar no direito penal as consequências decorrentes da vulnerabilidade – no caso específico mencionado, o preceito secundário mostra severidade no apenamento –, no direito processual penal há regras que propiciam, nas duas fases da persecução penal, tratamento diferenciado ao vulnerável, no que se inclui o depoimento especial, sem afronta ao due process of law6

Na Lei n. 13.431/2017, a vulnerabilidade foi estabelecida pela idade da vítima; evidente o critério cronológico absoluto7 ao reconhecer que a criança e o adolescente (art. 2º do ECA) se encontram em situação de hipossuficiência com relação ao grupo de testemunhas e vítimas de violência maiores de dezoito anos e, diante de tal condição específica, merecem tratamento específico e protetivo para o relato de fato relevante ao Direito, em processo administrativo ou judicial.  

Afirmar a criança e o adolescente como vulneráveis diante do sistema de justiça, por outro lado, implica reconhecer-lhes “graus de protagonismo (agency) e se culmina com um outro entendimento de possibilidade de sua subjetividade jurídica”, como anotado por Eduardo Rezende Melo8 ao discorrer sobre os resultados dos movimentos sociais pelo direito à autodeterminação de menores e ao prestígio, em favor deles, dos direitos à promoção, proteção e participação, que vão além da preocupação com as suas necessidades básicas.  

Ingressa, dessa maneira, formalmente, no ordenamento jurídico pátrio, sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, qualificada a vulnerabilidade pela idade, com a positivação da escuta protetiva, gênero do qual são espécies a escuta especializada e o depoimento especial, confirmando a posição dos menores como sujeitos jurídicos de direitos humanos fundamentais.  

1.2 Direitos humanos e dignidade humana 

Entendidos como “essenciais e indispensáveis à vida digna”, os direitos humanos, nas palavras de André de Carvalho Ramos, consistem em “um conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida pautada na liberdade, igualdade e dignidade”9

Marcos da positivação dos direitos humanos, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (França) e a Declaração de Independência das treze colônias (Estados Unidos da América) têm como características comuns o reconhecimento de direitos naturais do homem10, anteriores à constituição de seus respectivos Estados e limitantes das atuações destes.

No entanto, em face da ausência de efeitos sancionatórios, a natureza dessas declarações é essencialmente propositiva, vínculo moral a ser observado e fundamento para legítima oposição dos oprimidos aos abusos perpetrados pelo próprio Estado. 

Salientando o mérito dessas declarações, Marcos Alexandre Coelho Zilli destaca que a francesa, pelo caráter universal que pretende, ao afirmar direitos cuja titularidade não se limita aos franceses, representa global conquista na proteção da defesa da dignidade humana anterior e superior ao Estado10.   

No entanto, em face da ausência de efeitos sancionatórios, a natureza dessas declarações é essencialmente propositiva, vínculo moral a ser observado e fundamento para legítima oposição dos oprimidos aos abusos perpetrados pelo próprio Estado. 

As fronteiras se aproximam e atenuam − ou deveriam se aproximar ou atenuar − em resposta dos países democráticos à violação dos direitos humanos, que ocupam, na sociedade contemporânea, posição de preocupante destaque.

Segundo Flávia Piovesan, na condição de reivindicações morais, os direitos humanos “nascem quando devem e podem nascer”11, encontrando na sua internacionalização a “resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo”, que atribuiu ao Estado a marca de “grande violador de direitos humanos”12. 

O caminho à internacionalização, de acordo com Marcos Alexandre Coelho Zilli – que, outrossim, situa a ruptura dos direitos humanos no período posterior à eclosão das duas grandes guerras mundiais −, não foi linear e transcendeu as fronteiras internas dos Estados, sistema internacional de proteção e monitoramento dos direitos humanos13

Estabelecida a sobreposição dos direitos humanos à soberania dos Estados − premissa do jusnaturalismo moderno14 −, a criação da Organização das Nações Unidas, a Declaração dos Direitos do Homem de 1948 e a elaboração dos Pactos Internacionais de Direitos Civis e do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que, em conjunto formam a chamada Carta Internacional dos Direitos Humanos – International Bill of Rights − constituem sistema internacional de proteção dos direitos humanos, ao qual se alinham os sistemas regionais − europeu, americano, africano e árabe − de proteção desses direitos, com a preocupação de estabelecer, implementar e punir as violações aos direitos humanos. 

O devido processo penal, como direito humano fundamental, surgiu no constitucionalismo moderno em oposição aos Estados absolutistas, constituindo verdadeiro limite ao poder jurisdicional, e se pauta pelos princípios da legalidade, proporcionalidade e razoabilidade. Pode-se afirmar, nessa linha de raciocínio, que o direito ao devido processo constitucional integra a esfera da dignidade humana e, consequentemente, o núcleo intangível de direitos, ao lado, v.g., do direito à vida e à liberdade. 

O reconhecimento do status de direito humano fundamental levou à inclusão do due process of law no rol de garantias processuais em diversos instrumentos internacionais protetivos de direitos humanos, a demonstrar, não obstante a diversidade cultural e jurídica dos Estados membros signatários, conteúdo mínimo a ser observado em suas diretrizes processuais. 

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, de natureza declaratória, mas simbolicamente relevante por reconhecer direitos humanos subjetivos que ultrapassam os limites da soberania dos Estados, estabelece garantias mínimas de observância obrigatória (art. 9º), repetidas no Pacto Internacional dos Direitos Políticos e Civis de 1966 (art. 14) e nos instrumentos que criaram os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos e as Cortes de Proteção desses direitos. 

Não colidem dignidade humana e devido processo legal – continente e conteúdo –, reconhecidos como direitos humanos fundamentais; inexiste conflito entre ambos, porque coexistem e são complementares.  

Ajusta-se às finalidades da Lei n. 13.431/2017 a ideia de que a vítima e a testemunha de violência, vulneráveis pela idade, são únicas, importantes e insubstituíveis, ao passo que a presença delas na persecução penal, além de relevante, no sentido de fornecer elementos de convicção de valia inquestionável ao encontro da verdade processual, impõe respeito e tratamento sem discriminação, em estrita observância às suas peculiares condições de pessoa em desenvolvimento.  

O depoimento especial, se analisado sob os postulados éticos de Immanuel Kant, decorre da necessária garantia à dignidade da criança e do adolescente ouvidos sobre violência sofrida ou presenciada, em virtude das deletérias consequências que o ato administrativo ou processual pode lhes causar, respeitando seu espaço diferenciado e exclusivo existencial. As crianças e adolescentes, vítimas ou testemunhas, que comparecem, administrativa ou judicialmente, para relatar determinada violência são insubstituíveis e assim devem ser considerados pelo sistema de justiça ao qual interessam, genuinamente, as suas narrativas. 

Ao discorrer sobre a pessoa humana e seus direitos, Fábio Konder Comparato alude à filosofia kantiana, utilizada na elaboração teórica do conceito de pessoa para afirmar que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas, de acordo com o primeiro postulado ético de Kant15.

A propósito da dignidade humana e seus elementos, André de Carvalho Ramos, também pautado na filosofia kantiana, sustenta que para Kant, tudo tem seu preço ou uma dignidade: aquilo que tem um preço é substituível e tem equivalente; já aquilo que não admite equivalente, possui uma dignidade. Assim, as coisas possuem preço; os indivíduos possuem dignidade. Nessa linha, a dignidade da pessoa humana consiste que cada indivíduo é um fim em si mesmo, com autonomia para se comportar de acordo com seu arbítrio, nunca um meio ou instrumento para a consecução de resultados, não possuindo preço16.

André de Carvalho Ramos conclui pelo direito do cidadão ao respeito recíproco, à proteção do Estado contra o “tratamento degradante” e a “discriminação odiosa”, com fornecimento de “condições materiais mínimas de sobrevivência”, condições mínimas para afirmação, segundo o autor, da dignidade humana, “não importando qualquer outra condição referente à nacionalidade, opção política, orientação sexual, credo…”17

Fortemente vinculada a Lei n. 13.431/2017 à dignidade humana e aos demais direitos fundamentais que a integram (art. 1º, III, CF), especialmente o devido processo legal, o depoimento especial não apresenta risco ao acusado. Além de alinhada com o ordenamento jurídico pátrio, está de acordo com o paradigma internacional estabelecido pelas democracias modernas de incondicional respeito aos seres humanos como sujeitos de direitos que neles próprios se exaurem. 

1.3 Tratados e documentos internacionais e escuta protetiva 

  Há dissenso, entretanto, na doutrina e na jurisprudência acerca da aplicabilidade imediata dos tratados internacionais dos direitos humanos. Fábio Konder Comparato, sobre a posição dos direitos humanos normativos, com base na doutrina jurídica germânica e citando Jorge Bacelar Gouveia, aproveita para sustentar a aplicabilidade imediata dos tratados internacionais de direitos humanos, a distinção feita entre direitos humanos e direitos fundamentais e seus fundamentos18.

Os primeiros (humanos) − nomeados típicos − são os positivados nas Constituições, nas leis e nos tratados internacionais, em contraposição aos segundos (fundamentais) − nomeados atípicos −, ainda não declarados em textos normativos.

No magistério do autor, a positivação dos direitos humanos, além de representar reconhecimento oficial do seu conteúdo pela autoridade política do país, pode gerar a sensação de segurança maior no meio social no que concerne à sua força cogente, o que, entretanto, não lhe confere maior valia que os direitos fundamentais sem atributo de norma. Conclui que o único fundamento para a vigência dos direitos humanos  

só pode ser a coletiva, a convicção, longa e largamente estabelecida na comunidade, de que a dignidade da condição humana exige o respeito a certos bens ou valores em qualquer circunstância, ainda que não reconhecidos no ordenamento estatal, ou em documentos normativos internacionais19.  

O art. 5º, § 2º, CF alinha direitos e garantias, expressos no caput, às normas constitucionais emanadas de tratados internacionais dos quais é signatário, ao passo que o § 3º do mesmo dispositivo constitucional, introduzido pela EC 45/2004, confere status de emenda constitucional aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados, “em cada Casa do Congresso  Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros”, em descompasso com a “supremacia absoluta da norma imperativa de direito internacional geral” (jus cogens) afirmada por Fábio Konder Comparato20

E, firmado na premissa de que a dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico, anuncia a invalidade do argumento de que a submissão do direito interno ao direito internacional, em matéria de respeito aos direitos humanos, afronta a soberania nacional21. 

A aplicação imediata dos tratados internacionais, independentemente de processo legislativo, foi defendida na doutrina, com base no art. 5º, § 1º, CF, que autoriza a aplicação imediata de normas definidoras de direitos e garantias fundamentais22.

Decidiram em outro sentido, entretanto, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em abono da teoria do duplo estatuto dos tratados de direitos humanos, do que decorre a atribuição de natureza constitucional aos aprovados pelo rito do art. 5º, § 3º, CF e supralegal aos demais23.  

A impossibilidade atual de aplicação imediata dos tratados de proteção dos direitos humanos dos quais o Brasil é signatário pode ser contornada, entretanto, pela possibilidade de aplicação imediata de suas normas, por interpretação do art. 5º, § 1º, CF.  

Em aresto de julgamento realizado no STF, foi decidido que “direitos e garantias fundamentais devem ter eficácia imediata (CF 5º, § 1º, CF); a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos deve obrigar o Estado a guardar-lhes estrita observância. (…)” (Extr 986, Plenário, rel. Min. Eros Grau, j. 15.08.2007, DJ 05.10.2007)24

As regras de direitos humanos fundamentais, normas imperativas de direito internacional geral, são aceitas pela comunidade internacional e de aplicabilidade imediata, e, de relevância em tema de depoimento especial pela anterioridade dos principais documentos internacionais que tutelam os direitos humanos das vítimas e testemunhas vulneráveis potencialmente submetidas à escuta protetiva, devem ser citadas as encontradas nas Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing)25; na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, no Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança26 referente à Venda de Crianças, à Prostituição Infantil e à Pornografia Infantil27 e na Resolução n. 20/2005 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas28.

Nesse sentir, os direitos humanos – nos quais se inclui o direito do vulnerável à escuta protetiva pelo sistema de justiça – estão compreendidos em sistema global, construído pela sociedade contemporânea, de acordo com normas éticas e de valoração dos matizes da dignidade do ser humano. 

Trata-se de movimento histórico e em constante mutação, como bem salientado por Flávia Piovesan ao discorrer sobre a internacionalização dos direitos humanos e a humanização do direito internacional29.

Se, por um lado, a dignidade da pessoa humana se apresenta como precípua preocupação dos humanistas, as citações compiladas apenas confirmam, na outra ponta, que as vítimas reais e potenciais reclamam garantias para a satisfação de seus direitos fundamentais, aumentando, em linha com o seu grau de vulnerabilidade, a justificativa para a sua inclusão em sistema de proteção legitimado pelo ordenamento jurídico, sem risco a outras garantias fundamentais. 

CONCLUSÃO

A escuta protetiva encontra eco nas Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing), na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, no Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à Venda de Crianças, à Prostituição Infantil e à Pornografia Infantil e na Resolução n. 20/2005 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, tratados internacionais ratificados pelo Brasil; em âmbito nacional, respalda a legislação específica o direito fundamental à dignidade humana (art. 1º, III, CF) e o prestígio ao princípio da prioridade absoluta dos interesses do menor (art. 227, caput, CF).

Os direitos humanos − assim considerados o devido processo legal e o direito do vulnerável ao depoimento especial − fazem parte de sistema global, em constante mutação, construído pela sociedade contemporânea, consoante normas éticas e de valoração dos matizes da dignidade do ser humano, em movimento linear de internacionalização e humanização, o que se confirma no estudo do direito comparado, sob as perspectivas da common law e da civil law, indicativo da admissibilidade da escuta protetiva do vulnerável pela idade como meio de prova eficaz e válido. 

A edição da Lei n. 13.431/2017 traz à luz dimensão negativa do princípio da proporcionalidade, aplicado à promoção de direitos garantidos pelos art. 1º, III, e 226, CF, à criança e adolescente, às declarações, em solo administrativo e judicial, acerca de violências física, psicológica, sexual e institucional sofrida ou presenciada, de acordo com a sua condição de pessoa em desenvolvimento e preservação de sua saúde física, psíquica e mental.  

A escuta protetiva mais especificamente o depoimento especial, por se tratar de procedimento que importa, especialmente, ao processo penal – apresenta-se como reflexo da preocupação global com os direitos humanos da criança e do adolescente e não conflita com o due process penal.  

O Estado, pelo depoimento especial, meio de prova eficaz à revelação de fatos relevantes ao Direito e que impacta, sobremaneira na concepção do justo, apresenta a eficiência almejada na promoção da ordem social, ao passo que o due process of law, garantido pela observância dos direitos que dele decorrem, nas duas fases da persecução penal, sustenta o garantismo, com preservação do equilíbrio no binômio garantismo e eficiência na aplicação da lei penal pela violação de bem jurídico tutelado.


1Vulnerabilidade é termo de origem latina que deriva de vulnerabilis, que significa “algo que causa lesão”. Demonstra a incapacidade ou a fragilidade de alguém, motivada por circunstâncias especiais. HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva; 2009. Vulnerabilidade; p. 1961.
2Artigo de Talita Cavalcante Arruda de Morais e Pedro Sadi Monteiro, intitulado Conceitos de vulnerabilidade humana e integridade individual para a bioética, sobre os significados e conceitos de vulnerabilidade e integridade, remete à declaração universal sobre a bioética e os direitos do homem. Os autores citam Neves MP. Article 8: respect de la vulnérabilité humaine et de l’intégrité personnelle. In: Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e a Cultura. La déclaration universelle sur la bioéthique et les droits de l’homme: histoire, principes et application. Paris: Unesco, 2009. p. 167-77. Disponível em: https://doi.org/10.1590/198380422017252191. Acesso em: 14 mar. 2020. Cf. MORAIS, Talita Cavalcante Arruda de; MONTEIRO, Pedro Sadi. Conceitos de vulnerabilidade humana e integridade individual para a bioética. Revista Bioética, v. 25, n. 2, Brasília, maio/ago. 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-80422017000 200311&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 14 mar. 2024.
3
Arestos do Superior Tribunal de Justiça afirmam a violência real, absoluta, na prática do delito de estupro contra menores de catorze anos, vulneráveis nos termos da lei penal: “1. O cerne da controvérsia cinge-se a saber se a conduta do recorrido – que praticou conjunção carnal com menor que contava com 12 anos de idade – subsume-se ao tipo previsto no art. 217-A do Código Penal, denominado estupro de vulnerável, mesmo diante de eventual consentimento e experiência sexual da vítima. 2. Para a configuração do delito de estupro de vulnerável, são irrelevantes a experiência sexual ou o consentimento da vítima menor de 14 anos. Precedentes. 3. Para a realização objetiva do tipo do art. 217-A do Código Penal, basta que o agente tenha conhecimento de que a vítima é menor de 14 anos de idade e decida com ela manter conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, o que efetivamente se verificou in casu. 4. Recurso especial provido para condenar o recorrido em relação à prática do tipo penal previsto no art. 217-A, cc o art. 71, ambos do Código Penal, e determinar a cassação do acórdão a quo, com o restabelecimento do decisum condenatório de primeiro grau, nos termos do voto” (STJ, REsp 1.371.163/DF, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 25.06.2013) e “A configuração do tipo estupro de vulnerável prescinde da elementar violência de fato ou presumida, bastando que o agente mantenha conjunção carnal ou pratique outro ato libidinoso com menor de catorze anos, como se vê da redação do art. 217-A, nos termos da Lei n. 12.015/2009” (EDcl no AgRg no Ag 706.012/GO, 5ª Turma, rel. Min. Laurita Vaz, DJe 22.03.2010).
4No escopo da Recomendação Geral n. 35 sobre Violência de Gênero contra as Mulheres do Comitê para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), item 14, após afirmar que as mulheres são, predominantemente, vítimas de violência de gênero, as referências dos documentos são expressamente estendidas às meninas. O princípio do direito internacional consuetudinário da não prática de violência contra as mulheres, construído por opinio juris e práticas relatadas pelos Estados Partes à comissão, alinha-se com a proteção das crianças e adolescentes do sexo feminino na questão da violência de gênero e pela idade, consideravelmente maior com relação ao grupo de crianças e adolescentes do sexo masculino.
5No sistema anglo-americano, a vulnerabilidade da criança testemunha é reconhecida, no processo penal, sem qualquer margem para discussão. Segundo Jenny McEwan, “there can be no doubt that children are particularly vulnerable witnesses”. Tradução livre: não há dúvida de que as crianças são testemunhas particularmente vulneráveis. Conclui a autora que a vulnerabilidade leva a diferenciado, específico, estreito, processo investigativo (McEWAN, Jenny. Evidence and the adversarial process: the modern law. 2. ed. Oxford: Hart Publishing, 1998. p. 135).
6Due process legal e devido processo legal identificam, neste trabalho, garantia constitucional prevista no art. 5º, LV, CF.
7“Nos termos do art. 2º do Estatuto, será criança a pessoa com até 12 (doze) anos incompletos, e adolescente aquela que tiver entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos. A idade é o fator determinante para a fixação de quem é criança, adolescente ou adulto. Adota-se um critério cronológico absoluto, sem qualquer menção à condição psíquica ou biológica. Assim, é o aniversário de 12 anos que faz a criança tornar-se adolescente, e o aniversário de 18 anos que faz o adolescente tornar-se adulto” (ROSSATO, Luciano Alves; LEPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério. Estatuto da Criança e do Adolescente. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 86).
8MELO, Eduardo Rezende. Crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual: a emergência de sua subjetividade jurídica no embate entre modelos jurídicos de intervenção e seus direitos. In: SANTOS, Benedito Rodrigues dos; GONÇALVES, Itamar Batista; VASCONCELOS, Maria Gorete O. M.; BARBIERI, Paola Barreiros; VIANA, Vanessa Nascimento. Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual. Brasília: EdUCB, 2014. p. 95.
9André de Carvalho Ramos acrescenta que “não há um rol determinado desse conjunto mínimo de direitos essenciais a uma vida digna.As necessidades humanas variam, e, de acordo com o contexto histórico de uma época, novas demandas sociais são traduzidas juridicamente e inseridas nas listas de direitos humanos” (Curso de direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 29).
10O autor esclarece que “a Declaração francesa, aliás, tem o grande mérito de assumir um caráter universal, consentâneo, aliás, com a dimensão e com o conteúdo dos direitos do homem. Não se limita, dessa forma, a afirmar direitos aplicáveis tão somente ao povo francês, mas sim a todo e qualquer ser humano que independentemente de sua nacionalidade. E por ter precedido à elaboração da Constituição, representa o verdadeiro ato de constituição de um povo que reconhece nos direitos naturais o fundamento dos direitos civis. Mas, seja por um lado ou pelo outro, a dimensão jurídica das declarações é propositiva, vale dizer, expressiva de princípios a serem obedecidos por todas as esferas do poder estatal. Não prescrevem efeitos sancionatórios, restando, apenas o vínculo moral e a perspectiva da resistência legítima por parte dos oprimidos. Tal característica, todavia, não lhes reduz a importância histórica, pois, além de configurarem o pressuposto para o nascimento das democracias modernas, representam o grande passo histórico rumo à conscientização, afirmação e à proteção de uma esfera de dignidade do homem, anterior e superior ao Estado” (ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Os caminhos da internacionalização do processo penal, direito processual penal internacional, cit., p. 33).
11PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 49.
12“É nesse cenário que se vislumbra o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Com efeito, o momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que é cruelmente abolido o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável” (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional, cit., p. 50-51).
13Ao afirmar o movimento de internacionalização, Marcos Alexandre Coelho Zilli menciona obra, nesse sentido, de Flávia Piovesan (Direitos humanos e justiça internacional, cit., p. 45. Cf. ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Os caminhos da internalização do processo penal, direito processual penal internacional, cit., p. 35-36).
14Sobre o jusnaturalismo moderno, Marcos Alexandre Coelho Zilli esclarece que, “enquanto o pensamento clássico justificava a existência do direito natural na supremacia da vontade da autoria divina, o jusnaturalismo moderno insere a razão no centro irradiador da teorização do direito natural”, acrescentando que “não era o homem o foco da atenção e do estudo, mas sim a natureza como produto de uma vontade e de uma lógica que eram superiores”, citando Johan Huizinaga e sua obra: O declínio da idade média. Tradução de Augusto Abelaira. São Paulo: Verbo, 1978. p. 197). Após afirmar a necessidade de harmonização de interesses sociais ao corpo social, remetendo à ideia de que, ao agregar o individualismo ao liberalismo, o jusnaturalismo moderno propicia o ideal de respeito dos direitos inatos do homem pelo Estado, segundo Guido Fassó (obra citada: Jusnaturalismo. In: BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política.12. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999. p. 658), termina por concluir que os eventos históricos que se seguem – Declaração da Independência das 13 colônias americanas e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 – dão concretude ao pensamento jusnaturalista moderno e desencadeiam um processo de positivação dos direitos do homem, quer sob o aspecto material – conteúdo −, quer sob o aspecto material – universalização (Os caminhos da internacionalização do processo penal, direito processual penal internacional. São Paulo: Atlas. 2013. p. 30-33).
15No magistério de Fábio Konder Comparato, o primeiro postulado ético de Kant (cf. obra citada Fundamentos para a metafísica dos costumes [Grundlegung zur Metaphysik der Sitten], que, segundo o autor é uma introdução à Crítica da razão prática [Kritik der praktischen Vernunft]),estabelece que só o ser racional possui a faculdade de agir segundo a representação de leis ou princípios; só um ser racional tem vontade, que é uma espécie de razão, denominada razão prática. A representação de um princípio objetivo, enquanto obrigatório para uma vontade, chama-se ordem ou comando (Gebot) e se formula por meio de um imperativo. De um lado, os hipotéticos, que representam a necessidade prática de uma ação possível, considerada como meio de se conseguir algo desejado. De outro lado, o imperativo categórico, que representa uma ação como sendo necessária por si mesma, sem relação com finalidade alguma, exterior a ela. Assevera, em conclusão, que o princípio primeiro de toda ética é o de que “o ser humano e, de modo geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio do qual esta ou aquela vontade possa servir-se ao seu talante” (grifos originais do autor). E prossegue: “Os entes, cujo ser, na verdade não depende de nossa vontade, mas da natureza, quando irracionais, têm unicamente um valor relativo, como meios, e chamam-se por isso de coisas; os entes racionais, ao contrário, denominam-se pessoas, pois são marcados, pela própria natureza, como fins em si mesmos; ou sejam como algo que não pode servir simplesmente de meio, o que limita, em consequência, nosso livre-arbítrio” (obra citada pelo autor: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, edição crítica da Félix Meiner Verlag de Hamburgo, 1994, p. 51). Arremata que a dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado, como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita. Daí decorre, como assinalou o filósofo, que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. A humanidade como espécie, e cada ser humano em sua individualidade, é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser trocado por alguma coisa. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 33-34).
16RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos, cit., p. 77.
17RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos, cit., p. 77.
18Fábio Konder Comparato, ao citar Jorge Bacelar Gouveia, faz menção à sua obra Os direitos fundamentais atípicos. Aequitas/Editorial Notícias, 1995. Apud COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, cit., p. 71.
19COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direito humanos, cit., p. 72-73.
20Fábio Konder Comparato menciona a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, que, em seu artigo 53, declara nulo o tratado cujas disposições estejam em conflito com uma norma imperativa de direito internacional geral, definida como “uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados em seu conjunto, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por nova norma de direito internacional geral da mesma natureza”. Conclui que as normas de direito internacional são dessa natureza (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, cit., p. 75).
21Antonio Augusto Cançado Trindade, ao discorrer sobre o impacto dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos em constituições recentes, explicita a internacionalização dos direitos humanos. Citando como exemplo a Constituição portuguesa de 1976, que estabelece que os direitos humanos nela consagrados “não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional” e “Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem” (artigo 16, 1 e 2)” (Instrumentos Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado. 1996. p.18), reafirma consciência jurídica universal, firmada na concepção humanista do Direito Internacional, que privilegia os seres humanos como destinatários últimos do Direito (droit des gens).
22Nesse sentido, conclusão de André de Carvalho Ramos (Curso de direitos humanos, cit., p. 479).
23Segundo André de Carvalho Ramos, Flávia Piovesan chegou a defender que, desde 1988, a Constituição ordenava a dispensa da incorporação e a adoção automática dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Bastaria o ato de ratificação e a entrada em vigor, no plano internacional, do tratado de direitos humanos para que esse fosse, automaticamente, válido internamente (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 71. Apud RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos, cit., p. 472).
24Julgamento colacionado em obra de André de Carvalho Ramos (Curso de direitos humanos, cit., p. 484).
25Em seu artigo 1.4, dispõe que a “Justiça da Infância e da Juventude será concebida como parte integrante do processo de desenvolvimento nacional de cada país e deverá ser administrada no marco geral de justiça social para todos os jovens, de maneira que contribua ao mesmo tempo para a sua proteção e para a manutenção da paz e da ordem na sociedade”.
26Em seu artigo 12, assegura à criança e ao adolescente o direito de serem ouvidos em todo processo judicial ou administrativo que possa afetar seu interesse.
27O protocolo estende, especificamente às crianças e aos adolescentes, direitos que já haviam sido reconhecidos às vítimas, no que diz respeito às suas oitivas pelo sistema de justiça, conforme se depreende do disposto em seu artigo 8º, que remete aos artigos 3º (interesse superior) e 12 (participação) da Convenção sobre os Direitos da Criança.
28Que aprovou a Diretriz n. 12, no sentido de que “as interferências na vida privada da criança devem ser limitadas ao mínimo necessário, ao mesmo tempo que são mantidos altos padrões de coleta de evidências para assegurar resultados justos e equitativos no processo de justiça”.
29De acordo com a autora, “Na condição de reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem e podem nascer. Como realça Norberto Bobbio, os direitos humanos não nascem todos de uma vez, nem de uma vez por todas. Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, um constante processo de construção e reconstrução. Refletem um construído axiológico, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social. No dizer de Joaquín Herrera Flores, os direitos humanos compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Invocam, nesse sentido, uma plataforma emancipatória voltada à proteção da dignidade humana. Para Carlos Santiago Nino, os direitos humanos são uma construção consciente vocacionada a assegurar a dignidade humana e a evitar sofrimentos, em face da persistente brutalidade humana. Para Luigi Ferrajoli, os direitos humanos simbolizam a lei do mais fraco contra a lei do mais forte, na expressão de um contrapoder em face dos absolutismos, advindos do Estado, do setor privado ou mesmo da esfera doméstica. O victim centric approach é a fonte de inspiração que move a arquitetura protetiva internacional dos direitos humanos, destinada a conferir a mais eficiente proteção às vítimas reais e potenciais de violação de direitos” (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional, cit., p. 49-50).

REFERÊNCIAS 

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