SAÚDE MENTAL E ADOLESCENTE EM CUMPRIMENTO DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO: CUIDADO EM LIBERDADE?

MENTAL HEALTH AND ADOLESCENTS IN CORRECTIONAL MEASURES WITH FREEDOM RESTRAINT: CARE IN FREEDOM?

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.11477737


Helena Godoy Brito 1
Iara Flor Richwin 2


RESUMO

Pessoas em situação de privação de liberdade estão mais vulneráveis ao adoecimento mental e sofrimento psíquico. Quando pensamos em adolescentes, temos que compreender que, por serem pessoas em desenvolvimento, a relação entre privação de liberdade e sofrimento psíquico se torna ainda mais complexa. O presente estudo busca compreender como se organiza o cuidado em saúde mental para adolescentes em contexto de privação de liberdade no Distrito Federal. Foram analisados prontuários de saúde da Gerência de Saúde de uma Unidade de Internação do Sistema Socioeducativo (SSE) do DF e realizadas entrevistas semiestruturadas com profissionais do sistema socioeducativo e da secretaria de saúde.

Palavras-chaves: Saúde Mental, Adolescência, Privação de Liberdade, Atenção Psicossocial, Socioeducativo.

ABSTRACT

People deprived of liberty are more vulnerable to mental illness and psychological suffering. When we think about adolescents, we have to understand that, as they are developing people, the relationship between deprivation of freedom and psychological suffering becomes even more complex. The present study seeks to understand how mental health care is organized for adolescents in the context of deprivation of liberty in the Federal District. Health records from the Health Management of an Inpatient Unit of the Socio-educational System (SSE) in DF were analyzed and semi-structured interviews were carried out with professionals from the socio educational system and the health department.

Keywords: Mental Health, Adolescence, Deprivation of Liberty, Psychosocial Care, Socioeducational.

INTRODUÇÃO

A história da loucura se confunde com a história da exclusão social [1]. A forma como compreendemos o que é loucura norteia, também, a forma como cuidamos, ou em muitos casos, desassistimos os ditos loucos. A loucura, por muito tempo, foi tratada como uma questão que necessitava ser excluída e enclausurada para ser tratada em instituições asilares que se tornaram grandes depósitos humanos [2], onde aqueles que eram indesejados socialmente eram despejados à própria sorte com um modelo de cuidado em que havia a aplicação de “tratamentos” cruéis, de tortura, enclausuramento, agressões, violações e objetificação dos sujeitos em nome do “melhor tratamento” [1,2].

Esse cenário começa a se transformar no pós-guerra com o movimento da psiquiatria democrática e da reforma desse modelo asilar[1]. Reconfigurar a atenção à saúde mental deve pressupor o fechamento dos manicômios e das instituições psiquiátricas asilares, de forma a negar toda e qualquer forma terapêutica que se organize por práticas de exclusão, controle, tutela e por abordagens que sejam estigmatizantes e pautadas pela violência e desumanização dos sujeitos [1].

Diferente do modelo asilar, a reforma psiquiátrica prevê que o cuidado da loucura deve ser pensado em liberdade, e não nos porões de aprisionamento dessas instituições. Esse cuidado deve ser territorializado, considerando a subjetividade dos sujeitos, suas próprias organizações sociais e comunitárias para ordenar a prática terapêutica. Trata-se, portanto, de pensar a clínica da atenção psicossocial de forma criativa, de maneira a reinventar nossas práticas na direção da desconstrução do manicômio [3]. No Brasil, é com a Lei da Reforma Psiquiátrica [4] que o cuidado em saúde mental passa a ser operacionalizado territorialmente pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), nesse novo paradigma de cuidado.

No que se refere aos direitos das crianças e adolescentes no Brasil e à assistência e prestação de serviços a esse público, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) [5] inaugura um novo marco paradigmático, o da proteção integral, que considera crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direitos e pessoas em desenvolvimento, superando o princípio da tutela e da condição irregular presente nos Códigos de Menores [6]. Sobre os aspectos de saúde, o SINASE [7] prevê o direito à atenção integral à saúde, respeitando sempre sua condição de pessoa em desenvolvimento e fortalecendo o Sistema de Garantia de Direitos (SGD), incluindo-se o cuidado e atenção em saúde mental, tendo como norte o princípio da incompletude institucional, que rompe com a ideia de instituição total, compreendendo que a responsabilidade pela atenção e cuidado às demandas dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa é compartilhada entre diferentes políticas, sendo fundamental a atuação e articulação intersetorial do SSE com as outras políticas públicas [8].

Além do que está previsto no SINASE [7], é a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei em Regime de Internação e Internação Provisória (Pnaisari) [9] que norteia a organização da assistência à saúde dos adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas.

No que tange a discussão da questão da saúde mental e do adoecimento psíquico em adolescentes que cumprem medidas socioeducativas de internação, apesar dos avanços legais e dos novos marcos paradigmáticos que inauguram o modelo de atendimento socioeducativo desses últimos anos, o SSE ainda é atravessado por um ideal punitivista e de controle moral de um grupo específico de jovens que são compreendidos como perigosos e desviantes, e as unidades de internação, em muitos aspectos, se assemelham e se aproximam das características de uma prisão convencional [10]. A formação social histórica brasileira é estruturada pelo racismo, perpetuando práticas que, mesmo reformadas, continuam a criminalizar determinados grupos vulnerabilizados e tratar a pobreza como caso de polícia e não como falta de políticas públicas, na direção de docilizar e controlar esses corpos.

Estudos [10,11] apontam o entrelaçamento entre racismo e a cultura de aprisionamento em massa de corpos negros, em sua maioria jovens, isso se revela, portanto quando observamos o perfil e adolescentes que estão em cumprimento de medida socieducativa restritivas de liberdade do DF [12} em que se observa uma predominancia de adolescentes negros, provenientes de contextos familiares de grande vulnerabilidade social e econômica e com baixa escolaridade.

Ao discutir os efeitos da privação de liberdade no processo de adoecimento mental de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação, VILARINS [13] recupera a discussão de GOFFMAN [14] sobre o processo de mortificação do eu em instituições totais, que consiste na eliminação da identidade e subjetividade dos sujeitos que são colocados nesses espaços, cuja rotina de atividades e procedimentos se mostram simbolicamente incompatíveis com o processo de construção e afirmação do “eu” dos indivíduos que ali estão [13]

As Unidades Socioeducativas de internação também são organizadas com normas rígidas e procedimentos padrões de conduta que resultam nessa mortificação do eu. Os adolescentes acautelados nesses espaços devem se adequar a essas regras ou serão punidos. Não há autonomia ou liberdade para definir sua rotina nessas instituições, as roupas, o corte de cabelo, barba e bigode, tudo é procedimento. A imagem de um adolescente de cabeça baixa, mão nas costas, andando em fila com o uniforme branco e azul das unidades é a representação desse processo de mortificação dos sujeitos e de suas “algemas invisíveis”[13].

A produção científica sobre saúde mental e adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação aponta para a elevada medicalização dos adolescentes em contexto de privação de liberdade e alta de diagnósticos e questões relacionadas ao uso de álcool e outras drogas [13, 15, 16, 17]. Outras pesquisas nessa área revelam que o cuidado em saúde mental referenciado na RAPS tem apresentado desafios para sua plena execução, seja por problemas estruturais da rede de atenção psicossocial (RAPS) – por exemplo, falta de profissionais –, seja por questões estruturais das Unidades Socioeducativas e do contexto de privação de liberdade – ausência de transportes para realizar o deslocamento dos adolescentes aos serviços externos ou mesmo critérios de segurança que prejudicam as articulações em rede [16, 18].

METODOLOGIA

 Trata-se de um estudo qualitativo e exploratório, realizado pela análise crítica de documentos, a saber, prontuários da Gerência de Saúde (GESAU) da Unidade de Internação de São Sebastião (UISS) de adolescentes que fizeram acompanhamento em saúde mental durante o período em que estiveram acautelados na UISS. A pesquisa qualitativa também abrangeu a realização de entrevistas semiestruturadas com informantes-chave, tanto do SSE quanto da RAPS do Distrito Federal.

A UISS foi escolhida como lócus de desenvolvimento da pesquisa por ser uma das unidades de atendimento socioeducativo que executa a medida de internação no DF, cujo perfil de adolescentes atendia aos critérios da pesquisa: adolescentes do sexo masculino, com idades entre 12 e 17 anos, que cumpriam medida de internação estrita.

O estudo foi desenvolvido a partir da análise de 11 prontuários de saúde de adolescentes que estiveram acautelados na UISS no período de jan/2022 a jan/2023 e que realizaram algum acompanhamento em saúde mental nesse período. Para realizar o recorte de acompanhamento em saúde mental foram consideradas as seguintes variáveis: atendimento pela equipe psicossocial da GESAU/UISS; encaminhamento para o CAPS; encaminhamento para serviços de urgência e emergência em saúde mental; e uso de medicação psiquiátrica. Ainda como critério de inclusão dos prontuários, também se considerou o tempo de acautelamento dos adolescentes na UISS, sendo escolhidos apenas aqueles adolescentes que permaneceram na instituição por mais de 30 dias.

Vale ressaltar alguns desafios encontrados na análise qualitativa e quantitativa dos prontuários. A leitura e análise desses documentos revelaram a ausência do registro de informações importantes, como, por exemplo, dados sobre o perfil socioeconômico dos adolescentes acompanhados, informações sobre raça/cor, orientação sexual e identidade de gênero, entre outras. Além disso, foram identificadas algumas lacunas e inconsistências nos registros sobre as ações de saúde. Alguns prontuários não contavam com informações relativas à inclusão dos adolescentes no Protocolo de Prevenção ao Suicídio (PPS); à realização de estudos de caso multidisciplinares; ao cancelamento, reagendamento ou realização efetiva de atendimentos no CAPS; ou aos motivos de  encaminhamento ao CAPS. 

 Para as entrevistas semiestruturadas foram selecionados 03 profissionais que atuam na no acompanhamento de saúde e saúde mental dos socioeducandos:  um profissional da RAPS, cujo serviço é referenciado para acompanhar os adolescentes acautelados na UISS (profissional 01 atua em um CAPS que é referência da região Leste) e dois profissionais do SSE do DF (profissional 02 atua na gestão das ações de saúde a nível de sistema socioeducativo do DF, na Unidade de Gestão de Políticas e Atenção à Saúde de Jovens e Adolescentes – UNISAU; profissional 03 atua na Gerência de Saúde da região Leste).

           Após aprovação do Comitê de Ética da FEPECS (Parecer Consubstanciado nº6.6 21.531), a pesquisa foi realizada seguindo as seguintes etapas: leitura dos prontuários para avaliar os critérios de inclusão e exclusão dos documentos para a pesquisa; coleta de dados através de leitura minuciosa dos prontuários, identificando as principais categorias de análise; entrevista semiestruturada com profissionais; degravação das entrevistas, tabulação e sistematização dos dados no programa Microsoft Excell; análise e discussão dos dados, tendo como norte teórico a reforma psiquiátrica e esse novo modelo de atenção e clínica psicossocial territorializada, de base comunitária e que prioriza a liberdade na intervenção.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O perfil dos adolescentes que realizaram acompanhamento em saúde mental, dentro do recorte do presente estudo, é de adolescentes que estavam com idade entre 15 e 16 anos na época em que iniciaram o acompanhamento em saúde mental na UISS. Oito adolescentes (73% da amostragem) apresentaram histórico de saúde mental anterior ao cumprimento da medida de internação, contra 03 (27%) que não apresentaram demanda em saúde mental antes da medida de internação. Além disso, em 08 dos prontuários analisados havia registro de prescrição de medicamentos psicotrópicos antes da entrada na UISS.

A partir dos registros dos profissionais de saúde da GESAU/UISS, identificou-se que o sofrimento psíquico desses adolescentes se intensifica e se agudiza quando é aplicada a medida de internação estrita: surgem as incertezas em relação à duração da medida; ocorre o afastamento prolongado do convívio familiar; impõe-se o peso da privação de liberdade e da reflexão sobre sua trajetória de vida; ocorrem possíveis crises de abstinência decorrentes da interrupção abrupta do uso de drogas; são confrontados com o tempo ocioso dentro de um pequeno quarto e com as restrições e rigidez das normas de segurança. A dor desses adolescentes por vezes é tão intensa que os leva à busca por estratégias para fugir e escapar das grades que os prendem:

[…] segue com dificuldade para adormecer, mas identificamos que, possivelmente, há uma tentativa de buscar alívio e refúgio no sono, o que o leva a querer dormir o maior tempo possível e a formular a demanda de um ‘remédio mais forte’ (Prontuário n. 01).

É diante desse cenário de aniquilação dos sujeitos e de suas identidades que compreende-se que o contexto de privação de liberdade é adoecedor, podendo gerar sofrimento, ansiedade, angústias, depressão e tristeza extrema e até o desejo de morte. Na análise dos prontuários, quando levantadas as principais queixas dos adolescentes em questões de saúde mental, as maiores incidências foram: questões relacionadas ao uso de álcool e outras drogas (apareceu em 07 casos, 63,63%); sentimentos de tristeza intensa (apareceu em 06 casos, 54,54%); insônia e dificuldades para dormir (aparece em 05 casos, 45,45%); ansiedade (aparece em 05 casos, 45,45%); e questões relacionadas a ideação e tentativas de suicídio (aparece em 04 casos, 36,36%).

Essa relação entre adoecimento mental e privação de liberdade também apareceu nos relatos dos profissionais. Nas entrevistas, eles reforçam que hoje, no âmbito do SSE, uma das das principais demandas de saúde é a questão da saúde mental dos adolescentes.

A saúde mental é uma demanda recorrente no socioeducativo. Em relação à saúde, das questões de saúde integral do Adolescente, são duas as questões principais: a saúde mental e a saúde bucal. Nenhuma das outras demandas abarca tanto quanto essas duas (Entrevista n 02).

Compreender o potencial adoecedor e produtor de sofrimento psíquico dos contextos da privação de liberdade, perpassa, também, compreender que esses processos não estão restritos aos adolescentes acautelados, mas que os profissionais que ali estão inseridos, também são atravessados por esses aspectos. Tanto adolescentes quanto servidores caem nesse abismo de desumanização e da mortificação das suas subjetividades. Os adolescentes não são vistos para além dos atos infracionais cometidos, sendo reduzidos a eles. E os profissionais do socioeducativo acabam executando suas ações de forma mecânica e automatizada, perdendo o senso crítico, sem se perceber como reprodutores de situações violentas, como evidencia o relato abaixo:

Quando eu fiz essa intervenção com essa dupla de agentes, eles falaram assim “não é porque a nossa conduta de segurança é que eles têm que sentar aí no chão” e eu falei: então, mas aqui é saúde e a gente senta na cadeira. […] e aí nessa conversa sobre o que que é o CAPS, da clínica do coletivo, da clínica peripatética, do sujeito, da família, da comunidade, esse agente ele respirava fundo… Eu acho que na hora ele se tocou do que ele estava fazendo e ele falou “eu tô me sentindo muito mal. Tô assim sem ar” […] Ele falou “nossa, eu não tava me dando conta aqui, eu estava no automático. Desculpa. Porque é uma norma e eu tenho que cumprir”. Daí a mecanização do trabalho também. Eles não tem mais nem crítica. Eu vou lá, faço e pronto, não me interessa se o adolescente queria fazer xixi, tomar uma água, sentar numa cadeira […] A gente não tá pedindo demais. A gente só está pedindo o essencial, que é o direito básico (Entrevista nº 01).

É nesse cenário de aniquilação dos sujeitos e de suas identidades que o cuidado em saúde mental aos adolescentes privados de liberdade acontece. Se na Reforma Psiquiátrica Brasileira a proposta era de romper com o cuidado em saúde mental asilar que institucionaliza os pacientes, os isolando, com os socioeducandos internados é, justamente, em contexto de privação de liberdade e de institucionalização que esse cuidado acontece.

a) Ênfase do cuidado no acompanhamento com Médico Psiquiatra:

Os dados revelaram que o cuidado em saúde mental dos adolescentes internados tem sido focado na consulta individualizada com médico psiquiatra, mesmo quando esses adolescentes são referenciados nos CAPS. Isso choca frontalmente com os princípios da reforma psiquiátrica brasileira, que objetivam romper com o modelo centralizado na perspectiva do cuidado pela psiquiatria, inaugurando, com os CAPS, um novo modelo de atenção e de se fazer clínica [3].

Na análise dos prontuários apenas um dos adolescentes acompanhados não foi referenciado ao CAPS. Os outros dez casos foram encaminhados para algum CAPS enquanto estavam acautelados na UISS. Isso revela uma valorização desse serviço de saúde, sendo os CAPS a principal rede de apoio para as Unidades Socioeducativas. Apesar dessa valorização do CAPS, a análise dos prontuários e as entrevistas revelaram que o cuidado para os adolescentes fica, sobremaneira, restrito às consultas individuais com os médicos psiquiatras desses equipamentos de saúde.

A gente não consegue o acompanhamento como um todo do CAPS […] Então a gente fica só na demanda psiquiátrica mesmo. Os encaminhamentos, em geral, são feitos para o atendimento psiquiátrico (Entrevista n.02).

[Acompanhamento] Psiquiátrico, né? O acolhimento é que acontece pela equipe multiprofissional […] mas o acompanhamento em si mesmo, é com o psiquiatra (Entrevista n. 03).

Isso é reforçado pela análise dos prontuários que revela que, dos 10 adolescentes encaminhados para atendimento nos CAPS, 06 não tinham qualquer registro que identificasse possíveis atendimentos multiprofissionais coletivos, tendo eles comparecido, exclusivamente, nos atendimentos individuais em psiquiatria e com foco na reavaliação da conduta medicamentosa. Essa dinâmica se mostra de forma ainda mais intensa nos casos de adolescentes que tiveram acompanhamento apenas nos CAPSad, já que nenhum desses adolescentes teve registro de atendimentos multiprofissionais coletivos.

Nos casos em que houve situações de ideação de suicidio, automutilação e tentativas de autoextermínio, os registros também revelaram que o foco do atendimento esteve centrado na emergência psiquiátrica, prescrição medicamentosa e retirada de itens com potencial lesivo, tendo poucas informações a respeitos de outras ações terapêuticas e de promoção da saúde, como aumento dos espaços de escuta qualificada e atendimentos psicoterapêuticos, inclusão em mais atividades pedagógicas e ocupacionais, aumento dos encaminhamentos para RAPS, inclusão nos grupos terapêuticos dos CAPS, dentre outras, reforçando, portanto, essa tendência da centralidade do cuidado na psiquiatria e indo na contramão do que preconiza a reforma psiquiátrica, mas reforçando uma tendência nacional de foco nesse tipo de acompanhamento [19].

b) Elevada medicalização dos adolescentes em contexto de privação de liberdade:  Outro aspecto que marca o cuidado em saúde mental oferecido aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação é a hipermedicalização. O tratamento medicamentoso é priorizado em detrimento de outras estratégias terapêuticas, impactando na qualidade do atendimento em saúde mental que é reduzido ao uso de fármacos: 

Quando você fala “ele não vai participar do grupo, é só uma sertralina, é só a receita e tá tudo bem”. Não, não está, porque aqui ele vai conhecer um adolescente que ele vai apaixonar e vai casar. Como já aconteceu. Deu match. É aqui ele vai se perceber em outros adolescentes ou ele vai se impactar com outras culturas, com outras realidades diversas. E que isso vai provocar nele sim alguma reflexão e alguma mudança. (Entrevista n. 01).

Na análise dos prontuários, 10 adolescentes fizeram uso de medicação psicotrópica enquanto acautelados na UISS, desses adolescentes, 09 fizeram uso de mais de uma substância de forma concomitante. As medicações que tiveram maior incidência de prescrição foram: ácido valpróico (prescrito em 06 casos – 60%); fluoxetina (05 casos –  50%); levomepromazina (04 casos – 40% ); risperidona (04 casos, 40%) e a prometazina (que também aparece em 04 casos – 40%).

Identifica-se que as medicações prescritas consistem em antidepressivos, antipsicóticos e anticonvulsivantes, muitos usados como estabilizadores de humor, controle da ansiedade, controle da agressividade, agitação e hiperatividade e também por suas ações sedativas. Chama a atenção que uma das medicações mais prescritas nos casos analisados é a prometazina, que não é uma medicação psicotrópica, mas um anti-histamínico extremamente forte, que tem como um dos efeitos colaterais seu alto poder sedativo. Essa medicação tem sido utilizada no socioeducativo como medicação para auxiliar o adolescente que apresenta queixas de insônia e dificuldades com o sono.

Uma das medicações que ela é campeã na unidade é a prometazina. Ela é utilizada no período noturno. É a medicação de primeira escolha da médica que atende na unidade, já que a principal queixa é de padrão de sono alterado […] Por parte dos profissionais do CAPS, aqui, os meninos usam bastante ácido valpróico, também chamado de depakene. Ele já tem uma gama maior ali, ele abarca mais questões de sintomatologias características aí de transtornos comportamentais, auxiliando a questão de agitação psicomotora, agressividade. Antes também a campeã era Fluoxetina por ser um estabilizador de humor (Entrevistado n. 03).

Outro fator que merece destaque é a avaliação feita pelos profissionais de que, nas unidades socioeducativas que contam com profissionais médicos da atenção primária atuando internamente, o nível de prescrição medicamentosa é significativamente maior, quando comparado às unidades que não contam com essa atuação.

[…] Aí também tem outro em outro dilema, porque quando eu entro com o médico numa unidade de internação a taxa de medicamento triplica (Entrevista n. 02).

Outro problema percebido pelos profissionais entrevistados diz respeito ao tipo de medicação prescrita pelos profissionais da rede de saúde.  Em grande parte são medicamentos de alto custo e que, apesar de serem padronizados e terem dispensação pelas farmácias de alto custo da rede SUS, são medicações com baixa disponibilidade na rede, dificultando o acesso pelas equipes.

Na análise dos dados obtidos na pesquisa, observa-se que os profissionais da atenção primária ao realizar o manejo das demandas leves em saúde mental desses adolescentes, focam no tratamento medicamentoso sem oferecer outras práticas terapêuticas que possam contribuir para qualidade de vida e redução do sofrimento psíquico que, no caso desse público, tem forte ligação com a condição de privação de liberdade.

[…] porque não adianta também a gente entrar com a medicação e o adolescente ficar o tempo todo grogue, sem conseguir, muitas vezes, se levantar e ficar ali letárgico e não conseguir participar das atividades, nem da escola. Então não é assim que a gente tem que trabalhar (Entrevista n. 03).

Embora os profissionais que atuam no SSE reconheçam que hoje o acompanhamento em saúde mental tem se limitado a reavaliação psiquiátrica com foco na renovação das prescrições medicamentosas, também há um desejo em ampliar e qualificar a prestação de assistência aos adolescentes acautelados com outras intervenções terapêuticas, mas há ainda, um desafio de articulação entre o SSE e a rede de atenção psicossocial.

[…] acaba que fica muito nisso de renovação de receita, mas a gente já apontou com a gestora do CAPS, por exemplo, que a gente tem interesse de ter outras coisas, de ter outros tipos de atendimento (Entrevista n.02).

c) O sucateamento da RAPS e o impacto no acompanhamento dos adolescentes em privação de liberdade:

 Uma terceira tendência percebida no presente estudo é que o sucateamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) sobrecarga os serviços e isso impacta no acesso dos adolescentes ao cuidado em saúde mental. Estudos apontam para uma tendência ao desmonte e desfinanciamento da rede dos CAPS e de dispositivos extra-hospitalares que tem como base uma perspectiva territorial e comunitária de atuação, contra a supervalorização de serviços ambulatoriais, serviços de maior complexidade, como as emergências psiquiátricas nos Hospitais, ênfase no acompanhamento em Comunidades Terapêuticas e de internação compulsória [19].

Nas entrevistas com os profissionais faz-se evidente que a rede de CAPS no Distrito Federal é muito deficitária, não correspondendo à real demanda de atenção em saúde mental da população geral do DF, essa sobrecarga dos CAPS dificulta, inclusive, a atuação territorial e comunitária desses serviços. Além da quantidade de equipamentos de saúde serem inferiores à real demanda do DF, deixando a população descoberta, também é perceptível que há uma defasagem grande de recursos humanos e materiais nos CAPS, 

E mesmo tendo o redimensionamento dessa área de abrangência [que no início era Brasil], a gente continuou com a maior área populacional até hoje, em 2024 […] E aí, essa luta constante para ter o nosso espaço físico próprio, para que a gente tenha um RH de acordo com que o manual da força do dimensionamento de um RH de um CAPS prevê, que hoje é em torno de 1670 horas e nós temos 460 horas (Entrevista n. 01).

É porque a rede de saúde mental aqui do DF está muito frágil, está muito deficitária, então acaba que, por exemplo, tem algumas unidades [socioeducativas] que ficam tendo muita dificuldade […] Então realmente não tem outros lugares para enviar […] O problema é a limitação do próprio CAPS. É difícil, exigir muito, também, de um serviço que tem às vezes dois profissionais. Como é que você sustenta qualquer atendimento? (Entrevista n. 02).

Hoje, no Distrito Federal, pensando no recorte de idade do presente estudo (adolescentes de 12 anos à 17 anos, 11 meses e 29 dias), contamos, por exemplo, com 04 CAPS infantojuvenil, 01 CAPS I (que abrange todas as idades), 01 CAPSad II e 03 CAPSad III, que cobririam os adolescentes dentro do recorte etário do presente estudo.

Temos, portanto, uma limitação em questão de possibilidades de encaminhamento dos adolescentes vinculados no SSE. Além disso, a distância das Unidades Socioeducativas dos seus CAPS de referência também surgem como um grande desafio, pois exige uma estratégia de organização e logística que onera muito os processos de trabalho e que ao serem transpassados pela precariedade material das unidades socioeducativas, como a ausência de de veículos para realizar o transporte dos adolescentes, prejudicam gravemente a oferta de cuidados em saúde mental.

[…] tem outro ponto que é mesmo de logística, de que as unidades são muito distantes são dos CAPS em geral, então demanda muito ter uma estrutura para conseguir levar um adolescente… Lá da UISS pra ir para o CAPSi da Asa Norte vai aí uns 40 minutos. E aí você vai fazer esse deslocamento? E aí a demanda de saúde mental, por exemplo, de alguns adolescentes, pode ser de ir duas vezes na semana ao CAPS… Pensa nessa logística… (Entrevista n. 02).

 Por fim, outro problema apontado pelos profissionais é que o cuidado em saúde mental voltado ao público dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa está muito centrado no acompanhamento fornecido pelos CAPS, mesmo em situações de baixa complexidade, que poderiam ser manejadas, por exemplo, pela atenção primária, onerando ainda mais os CAPS e prejudicando o cuidado em saúde mental.

Outra coisa também que eu acho, é que o cuidado em Saúde Mental fica muito centrado no CAPS, sabe… E ao meu ver muitas das demandas dos adolescentes do sistema socioeducativo poderiam ser atendidas na UBS, porque a gente tem muito caso de insônia leve […] mas eu acho que, sei lá, 80% da demanda seria atendida na UBS tranquilamente (Entrevista n. 02).

d)    A segurança sobreposta à saúde – a contradição entre a defesa da clínica em saúde mental conforme os pressupostos da reforma psiquiátrica e a retomada de um modelo assistencial institucionalizante

Os dados revelam que os aspectos de segurança mostraram-se como grandes barreiras na garantia do atendimento em saúde mental para os adolescentes. As Unidades Socioeducativas de internação estrita têm como centralidade os procedimentos e normas de segurança, que pautam muitas questões relacionadas aos atendimentos em saúde mental, como nos deslocamentos dos adolescentes até as unidades de saúde, no uso ou não de algemas nesses deslocamentos, na estrutura e localização dos equipamentos de saúde que podem deixar as equipes de seguranças mais vulneráveis, entre outros aspectos.

 Identificou-se o embate entre a garantia do direito de acesso à saúde e a execução de normas e procedimentos de segurança, que, muitas vezes, se sobrepõem ao direito à saúde. As engrenagens e aparatos de segurança se revelam como potenciais elementos que favorecem à violação de direitos, colocando-se como obstáculo para o pleno acesso dos adolescentes privados de liberdade  ao cuidado em saúde mental.

 Nos relatos dos profissionais, uma das principais queixas apresentadas, e que reforça a tendência ao foco no acompanhamento individualizado em psiquiatria, é a questão da segurança sempre surgir como argumento para limitar a participação dos adolescentes em grupos terapêuticos, sendo esse um dos principais entraves ao acompanhamento psicossocial.

A partir do momento que um agente vem e me diz que o adolescente não vai participar de um grupo porque o chefe do plantão, o chefe da escolta, sei lá quem, enfim, disse que não, então a gente precisa rever se esse adolescente tem demanda para o CAPS, porque aqui a lógica é grupo e não atendimento ambulatorial. […] Já teve vezes assim do adolescente chegar e os agentes falarem: “olha, é que o chefe do Plantão acabou de dizer que não é para ele entrar no grupo, não é para tirar a algema. É só passar um remedinho, passar só uma receitinha que a gente já vai embora com ele”. […] Não, porque o coletivo dele é aquele. Ele já formou vínculo com os pares e vai ter intervenção e avaliação da psiquiatra que vai acontecer dentro do coletivo (Entrevista n. 01).

                  Outro aspecto delicado nessa dança entre procedimentos de segurança do socioeducativo e a rede de serviços de saúde mental da Secretaria de Saúde é que, muitas vezes, os profissionais de segurança querem transpor os procedimentos definidos para as Unidade de Internação para os espaços do CAPS, gerando desgaste e situações complexas que, muitas vezes, expõe o adolescente a situações vexatórias, desumanas e degradantes.

Então é algo que a gente banca mesmo. A gente se indispõe. Se chegar agora um adolescente para participar do coletivo e aí os agentes falam “não vamos tirar algema”, a equipe inteira já vai buscando esse diálogo, esse consenso […] Ah, mas e se acontecer de fugir? Nunca fugiu.”Ah, mas nós somos da segurança”. E nós somos da saúde. A gente precisa se implicar como política pública, como Estado, e ofertar um direito, porque isso é direito (Entrevista n. 01).

 Os profissionais entrevistados destacam, também, que os aspectos de segurança surgem como questões complexas para se pensar o atendimento em saúde mental de adolescentes que estão em privação de liberdade. Esses profissionais se veem entre a angústia de garantir um cuidado em saúde de qualidade para esses jovens e que vá na direção daquilo que preconiza a Reforma Psiquiátrica e aspectos estruturais que organizam as instituições de privação de liberdade. Os profissionais ficam nesse movimento entre até que ponto ceder às regras e rigidez dos aspectos de segurança e até que ponto brigar por um cuidado em saúde mental que condiz com o modelo de atenção psicossocial da reforma psiquiátrica, sem deixar que esses jovens fiquem desamparados enquanto cumprem sua medida socioeducativas. E, nesse avanço e retrocesso, podemos perceber o movimento dessa briga entre a valorização dos princípios da reforma psiquiátrica e do movimento de contrarreforma, que recupera aspectos do modelo asilar antigo

Outro aspecto que prejudica o cuidado em saúde mental dos adolescentes diz respeito à forma desumanizada com a qual os adolescentes saem das unidades durante os deslocamentos externos. Relatos dos profissionais entrevistados evidenciam que, em muitos casos, essas saídas não são feitas de forma cuidadosa, expondo os adolescentes que já apresentam algum grau de sofrimento psíquico a situações vexatórias e humilhantes, como por exemplo, casos de adolescentes que chegam ao serviços de atenção psicossocial passando mal ou vomitados por conta da forma como as escoltas são realizadas.

Hum, é muito complexo assim o menino da unidade de internação sair de maneira humanizada. Sempre vai sair de maneira muito terrível (Entrevista n. 02).

Mas é bem desgastante chegar a viatura aqui com os meninos […] E aí os meninos chegam vomitados. Como aconteceu agora, recentemente de novo, de dois adolescentes vomitados dentro de uma viatura. Ai vai e corre para o banheiro e passa um paninho que tá tudo bem? Não, não tá tudo bem não. Mas aí eu saí de lá para chegar aqui para você dizer que o menino não vai ser atendido? Sim, ele não vai ser atendido porque ele não está em condições de ser atendido. Ele vai ser exposto. Já existe um estigma, já tem uma roupa, já tem uma algema, já tem vocês [equipe e segurança] e ainda uma situação como essa? Então não, ele não vai ser atendido. (Entrevista n. 01).

A questão das escoltas dos adolescentes aos serviços de saúde mental também aparece como grande entrave ao acesso e garantia do direito à saúde. Na análise dos prontuários observamos que 30 encaminhamentos ao CAPS foram cancelados, dentre eles, 22 foram cancelados por falta/recusa de escolta (representando 73,33% do total de cancelamentos), 06 foram cancelamentos realizados pelo próprio CAPS (20%) e 02 foram de recusas dos adolescentes em ir ao encaminhamento (6,66%). Mais da metade dos cancelamentos realizados foram justificados ou pela ausência de serviço de escolta disponível para realizar o deslocamento ou pela recusa do serviço de escolta em realizar o acompanhamento do adolescente ao atendimento agendado. Em pelo menos uma das recusas do serviço de escoltas foi justificado a impossibilidade de acompanhar o adolescente nos grupos terapêuticos do CAPS por se tratar de uma atividade coletiva.

Dos jovens que a gente tem eu consigo já te falar que temos um adolescente… Um não, são dois adolescentes que precisam participar daqueles grupos terapêuticos que são oferecidos pelo Caps, só que aí eu vou entrar numa questão que é meio difícil para o socioeducativo, por questões de segurança A própria equipe de escolta não faz esse tipo de acompanhamento. Não tem um documento, não tem nada, mas há negativas para esses tipos de acompanhamentos. Esses grupos terapêuticos, eles acontecem semanalmente. Tem adolescente que não faz e não tem essa participação nos grupos terapêuticos pela dificuldade da gente [sistema socioeducativo] em conseguir garantir o acesso dele e a permanência dele nesses grupos terapêuticos (Entrevista n. 03). O deslocamento externo dos adolescentes, ao invés de possibilitar o acesso à saúde e resguardar esse direito básico, termina por violá-lo. As condições degradantes às quais os adolescentes são colocados durante a realização desses deslocamentos, a falta de recursos materiais e de pessoal que possibilite garantir a plena realização dos deslocamentos externos do SSE do DF e a compreensão de segurança que se sobrepõem às intervenções terapêuticas, limitando o acesso apenas às consultas individuais, são questões que marcam acentuadamente o acompanhamento em saúde mental, restringindo o acesso e negando direitos.

Como fazer e pensar um cuidado em saúde mental pautado pelos princípios da liberdade com adolescentes que chegam para participar nos grupos algemados com alegações das equipes de que são adolescentes perigosos? Como produzir cuidado em saúde mental quando os adolescentes não podem ir ao banheiro ou beber água, porque, segundo a equipe que os acompanha, eles devem aguardar retornar para a Unidade? Que direito à saúde e qualidade de vida para adolescentes em sofrimento psíquico estamos garantindo quando esses jovens devem sentar no chão conforme os procedimentos padrão de segurança? Quando não podem sentar nas cadeiras, ou beber água ou até mesmo ir ao banheiro sob justificativas de segurança?

e) E quais as potencialidades existentes?    

 […] é bom estar aqui e quando eu saio da unidade a brisa no meu rosto é o remédio que eu preciso (Entrevista n. 01).

Dentre as potencialidades percebidas nesse estudo, destacamos, principalmente, a articulação e comunicação entre as equipes do socioeducativo com as equipes de saúde, em especial as equipes dos CAPS. Ao longo das entrevistas com os profissionais foi reforçado que uma das principais potências hoje é justamente o diálogo e a articulação em rede que tem sido construídos ao longo dos anos entre Unidades Socioeducativas e a Rede de Atenção Psicossocial, o que tem qualificado o atendimento em saúde mental que é garantido aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa.

Eu acho que dentro do serviços da Saúde, tirando as UBS que são de referência das unidades de internação, o CAPS é com quem a gente mais tem diálogo para qualquer coisa, qualquer possibilidade. Se a gente precisar de qualquer coisa a gente consegue conversar com o CAPS. Eu acho que é o serviço que a gente mais consegue dialogar. […] Porque, hoje em dia, não tem um CAPS que não sabe o que que é o sistema socioeducativo, todos sabem o que que é (Entrevista n.02).

Outro aspecto levantado como uma potencialidade no socioeducativo que contribuiu para uma atenção em saúde mental mais qualificada é a presença dos especialistas socioeducativos nas Gerências de Saúde atuando na atenção em saúde mental dos adolescentes acautelados.

O fato de termos um profissional de saúde mental na GESAU também é uma ajuda assim gigantesca. Ela conseguiu sensibilizar a equipe dos CAPS em relação ao trabalho socioeducativo, as dificuldades que nós temos e o público que nós atendemos, porque são adolescentes que já vem muito fragilizados, né? Que quando recebem a sentença de uma medida estrita isso bagunça completamente ali a cabeça deles, eles ficam mais ansiosos (Entrevista n. 03).

A aproximação entre as equipes de saúde e as equipes socioeducativas qualifica o atendimento no sentido de que possibilita um conhecimento melhor sobre o que é o SSE, suas demandas e particularidades. Também proporciona espaços para que as equipes socioeducativas compreendam o que é o serviço dos CAPS, proporcionando espaços de reflexão sobre direito à saúde e cuidado em saúde mental para esses adolescentes que estão em privação de liberdade.

No encontro entre as equipes socioeducativas e as equipes de saúde está a potência para pensar nesse cuidado em saúde mental de forma ampliada, para além do tratamento farmacológico e do atendimento psiquiátrico, e sim como um cuidado que se aproxime cada vez mais do que preconiza a Reforma psiquiátrica, afastando-se desse modelo centrado no controle farmacológico dos corpos, que prioriza o conhecimento médico-psiquiátrico do fazer cuidar em saúde mental.

CONCLUSÕES

Garantir um cuidado nos moldes preconizados pela reforma psiquiátrica, de uma clínica aberta e territorializada, do cuidado em liberdade e amplo, na clínica do encontro, ainda é um grande desafio quando observamos o contexto da privação de liberdade dos adolescentes em conflito com a lei.

No contexto das unidades socioeducativas de internação do Distrito Federal os aspectos de segurança e o modelo punitivista e de controle ainda se sobrepõem ao direito à saúde. Os aparatos, normas e procedimentos de segurança ainda falam mais alto na organização e estrutura dessas instituições e impactam profundamente na forma como se organiza o cuidado e atenção em saúde mental para os adolescentes acautelados nesses espaços.

Observa-se, portanto, um cuidado que tem sido centralizado no saber médico psiquiátrico e no tratamento farmacológico, reforçando uma concepção de controle desses adolescentes. O medicamento pode trazer conforto diante de um contexto tão estressor e ansiogênico como é o da privação de liberdade, mas também é utilizado para controlar aqueles adolescentes “problema”, que questionam, que muitas vezes gritam e “batem lata” para se fazer ouvidos, e que apontam o dedo para as falhas de um SSE que ainda se faz nas amarras da punição.

O fato de estarem em privação de liberdade se torna justificativa para limitar o acesso amplo às terapêuticas ofertadas na clínica psicossocial do CAPS, reforçando um modelo de cuidado que se afasta do novo paradigma psicossocial da clínica territorializada e do cuidado em liberdade

A condição de privação de liberdade não pode ser justificativa para não acessar o cuidado e ações terapêuticas em saúde mental. Não se pode reforçar um modelo de “cuidado” que mais viole direitos e que se paute pelo controle desses corpos, seja pelo uso de medicações seja pelos procedimentos de segurança. É urgente entender que a saúde precisa vir em primeiro lugar e não o ato infracional e o diagnóstico desses adolescentes.

         Manicômio nunca mais.

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1Mestre em Política Social – Universidade de Brasília
Estudante de especialização em Saúde mental e atenção psicossocial – ESCS/FEPECS helena-brito@escs.edu.br
https://orcid.org/0009-0009-7512-4335
2Doutora em Psicologia Clínica e Cultura – Universidade de Brasília iararaflor@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-9230-9018