REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11177185
Rafael Lima Bicalho1
1. RESUMO
Este trabalho tem como escopo a discussão acerca da abstrativização do controle difuso de constitucionalidade, que consiste na aproximação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso àqueles que são próprios do controle concentrado. Atualmente, a Suprema Corte vem atribuindo efeito vinculante e eficácia erga omnes às decisões proferidas em sede de controle difuso de constitucionalidade, tornando-o mais abstrato. Todavia, é certo que o controle difuso possui como característica o efeito inter partes, com a necessidade de participação do Senado Federal, conforme preceitua o artigo 52, inciso X, da Constituição Federal, para a extensão dos efeitos da decisão para além das partes envolvidas no litígio. Desta forma, longe da pretensão de esgotar o tema, tem-se como objetivo principal realizar um breve estudo acerca do controle de constitucionalidade, suas espécies e modalidades, com ênfase no controle difuso/concreto e concentrado/abstrato, para que, ao final, possa ser analisado o instituto da abstrativização do controle difuso, demonstrando a repercussão do tema.
Palavras-chave: Controle de constitucionalidade. Controle difuso. Controle abstrato. Súmula vinculante. Supremo Tribunal Federal.
ABSTRACT
This work is scoped to the discussion about the abstrativização diffuse control of constitutionality, which is the approximation of the effects of the declaration of unconstitutionality in diffuse control those who are themselves the concentrated control. Currently, the Supreme Court is giving binding effect erga omnes and effective decisions in the seat of diffuse control of constitutionality, making it more abstract. However, it is certain that the fuzzy control is characterized as the effect inter partes, the need for the participation of the Senate, as provided in Article 52 , section X of the Federal Constitution, to the extent of the effects of the decision beyond the parties involved in the dispute. Thus, far from intending to exhaust the subject, has as main objective to make a brief study on the control of constitutionality, its species and methods, with emphasis on diffuse / concentrated and concrete / abstract control, so that in the end the Office of the diffuse abstrativização control can be analyzed, demonstrating the impact of the subject.
Keywords: Control of constitutionality. Fuzzy control. Abstract control. Binding precedent. Federal Supreme Court.
2. CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA
A Constituição Federal é a lei suprema do Estado. Para José Afonso da Silva (2005, p. 37), “em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado”.1
Canotilho (1993, p. 62) complementa o entendimento:
Com o triunfo do movimento constitucional, impôs-se também, nos primórdios do século XIX, o chamado conceito ideal de constituição (C. SCHMITT). Este conceito ideal identifica-se fundamentalmente com os postulados político-liberais, considerando-se como elementos materiais caracterizadores e distintivos os seguintes: (a) a constituição deve consagrar um sistema de garantias da liberdade (está essencialmente concebida no sentido de reconhecimento de direitos individuais e da participação dos cidadãos nos atos do poder legislativo através dos parlamentos); (b) a constituição contém o princípio da divisão de poderes, no sentido de garantia orgânica contra os abusos dos poderes estaduais; (c) a constituição deve ser escrita.2
Assim, tem-se que a Constituição opera força normativa, vinculando os Poderes Públicos e tratando de assuntos relacionados à forma de governo, distribuição de competência, além de direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.
Hans Kelsen (2001, p. 216) classificou as normas segundo sua importância, sendo a Constituição Federal classificada no mais alto patamar da pirâmide:
A ordem jurídica de um Estado é, assim, um sistema hierárquico de normas legais. Em forma bastante simplificada, apresenta o seguinte retrato: o nível mais baixo é composto de normas individuais criadas pelos órgãos aplicadores do direito, especialmente os tribunais. Essas normas individuais são dependentes dos estatutos, que são normas gerais criadas pelo legislador, e das regras do Direito consuetudinário, que formam o nível superior seguinte da ordem jurídica. Esses estatutos e regras de direito consuetudinário, por sua vez, dependem da Constituição, que forma o nível mais elevado da ordem jurídica considerada como sistema de normas positivas.3
E por ser a Constituição Federal a lei suprema, todo e qualquer ato normativo deve ser compatível com suas normas, sob pena de ser declarado inconstitucional, razão pela qual, é necessário um instrumento hábil para preservá-la.
O controle de constitucionalidade é este instrumento hábil a preservar a supremacia da Constituição, e possui o propósito de averiguar a validade e a conformidade das leis com os preceitos constitucionais.
Zeno Veloso (2003, p. 18) define o controle de constitucionalidade como sendo o “principal mecanismo, o meio de reação mais eficiente, nos países de Constituição rígida, para garantir a unidade intra-sistemática, eliminando os fatores de desagregação e ruptura, que são as leis e atos normativos que se opõem ao Texto Fundamental, conflitando com os seus princípios e comandos”.4
A Constituição Brasileira de 1824 não regulou o controle jurisdicional de constitucionalidade, até mesmo porque a existência de um poder moderador impedia o controle de constitucionalidade judicial, uma vez que cabia ao Imperador a solução dos conflitos entre os Poderes.
Todavia, necessário era o surgimento de um controle de constitucionalidade. E segundo afirma Luis Roberto Barroso (2006, p. 2) “para que possa figurar como parâmetro, como paradigma de validade de outros atos normativos, a norma constitucional precisa ter um processo de elaboração diverso e mais complexo do que aquele apto a gerar normas infraconstitucionais”.5
Assim, o mesmo autor explica os dois fundamentos básicos para a existência desse controle de constitucionalidade:
Duas premissas são normalmente identificadas como necessárias à existência do controle de constitucionalidade: a supremacia e a rigidez constitucionais. A supremacia da Constituição revela sua posição hierárquica mais elevada dentro do sistema, que se estrutura de forma escalonada, em diferentes níveis. É ela o fundamento de validade de todas as demais normas (…). A rigidez constitucional é igualmente pressuposto do controle. Para que possa figurar como parâmetro, como paradigma de validade de outros atos normativos, a norma constitucional precisa ter um processo de elaboração diverso mais complexo do que aquele apto a gerar normas infraconstitucionais (…). Se as leis infraconstitucionais fossem criadas da mesma maneira que as normas constitucionais, em caso de contrariedade ocorreria a revogação do ato anterior e não a inconstitucionalidade.6
E conclui-se nas palavras de Calil Simão ( , p 1-2)
A Constituição representa a base de todo ordenamento jurídico. É norma orientadora dos poderes constituídos. Para garantir essa função basilar e orientadora, ou seja, para assegurar que essa norma seja respeitada, surge o Sistema de Controle de Constitucionalidade.7
Assim, o controle de constitucionalidade foi previsto pela primeira vez na Constituição de 1891, tendo sido disciplinado apenas a respeito do controle difuso de constitucionalidade, bem como sobre a incompetência da justiça estadual para decidir sobre a constitucionalidade das leis federais.
Somente mais tarde, com a edição da Lei 221/94, o sistema de controle de constitucionalidade ganhou força, instituindo a supremacia do Poder Judiciário para realizar o controle.
A Constituição de 1934 manteve o controle de constitucionalidade difuso, mas inovou quando determinou que caberia ao Senado Federal suspender a execução de qualquer norma declarada inconstitucional pelo Poder Judiciário, por meio de resoluções, bem como exigiu o quórum da maioria absoluta dos membros dos tribunais para as decisões de inconstitucionalidade.
Já a Constituição de 1937, caracterizada pelo período de autoritarismo, apesar de prever a possibilidade de controle difuso de constitucionalidade, possuía restrições como aprovação do Presidente da República, que poderia submeter a apreciação da lei novamente ao exame do Parlamento.
Com a redemocratização do Brasil, as Constituições de 1946 e 1967 mantiveram as inovações trazidas pela Constituição de 1934 e a Emenda Constitucional nº 16/65 deu nova redação ao artigo 101, I, letra K, ampliando a competência do Supremo Tribunal Federal (STF), que poderia agora processar e julgar a representação de inconstitucionalidade da lei encaminhada pelo Procurador Geral da República, instituindo, assim, o controle concentrado de constitucionalidade no Brasil.
Finalmente, a atual Carta Magna manteve o sistema misto de controle de constitucionalidade, trazendo algumas inovações, como, por exemplo, ampliou o número dos legitimados ativos para ingressar com a ação direta de inconstitucionalidade (art. 103), extinguindo o monopólio do Procurador Geral da República; introduziu a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, §2º), o mandado de injunção (art. 102, I, q) e a arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição (art. 102, § 1º, antigo parágrafo único); previu a instituição, nos Estados-membros, de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual (art. 125). A Emenda Constitucional 3, de 1993, dando nova redação ao art. 102, I, a, introduziu a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal (ZENO VELOSO, 2003, p. 34).8
Desta forma, nota-se que a Constituição Federal atual é híbrida, uma vez que embora reserve ao Supremo Tribunal Federal a função de julgar a constitucionalidade das leis, via sistema concentrado, permite também que os tribunais inferiores julguem casos via sistema difuso, quando houver a necessidade de afastar a incidência de lei inconstitucional nas demandas judiciais que lhe são submetidas.
3. CONTROLE DIFUSO
O controle difuso (ou concreto) permite que, de forma incidental, qualquer juiz ou tribunal reconheça a inconstitucionalidade de determinada norma.
Evidente, portanto, que este tipo de controle não visa efetivamente apenas a declaração de inconstitucionalidade de uma norma, mas visa afastar, de forma excepcional, a aplicação de uma lei no caso concreto, declarando-a inconstitucional.
Nas palavras de Luis Roberto Barroso (2006, p.77):
O controle incidental de constitucionalidade é exercido no desempenho normal da função judicial que consiste na interpretação e aplicação do Direito para a solução de litígios. Pressupõe, assim, a existência de um processo, uma ação judicial, um conflito de interesses no âmbito do qual tenha sido suscitada a inconstitucionalidade da lei que deveria reger a disputa. Se o juiz ou tribunal, apreciando a questão que lhe cabe decidir, reconhecer que de fato existe incompatibilidade entre a norma invocada e a Constituição, deverá declarar sua inconstitucionalidade, negando-lhe aplicação ao caso concreto.9
Em regra, reconhecida a inconstitucionalidade de uma norma no caso concreto, a eficácia da decisão será retroativa (ex tunc), produzirá efeitos apenas entre as partes da relação processual (inter partes) e não fará coisa julgada.
Entretanto, o Supremo Tribunal Federal já entendeu que, mesmo em sede de controle difuso, a decisão poderá produzir efeitos futuros (ex nunc).
Além disso, a Constituição Federal, em seu artigo 52, X, permite que os efeitos de uma decisão seja estendida para além das partes envolvidas na lide:
Art. 52 – Compete privativamente ao Senado Federal:
X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.10
Esta suspensão, todavia, é uma faculdade do Senado, que analisará o caso concreto, a conveniência e oportunidade da suspensão, e, embora tenha eficácia erga omnes, somente produzirá efeitos a partir da publicação da resolução que a determinou, ou seja, terá efeito ex nunc.
4. CONTROLE CONCENTRADO
O controle concentrado (ou abstrato) de constitucionalidade é o controle feito apenas por um órgão, que tem como único objetivo declarar a norma constitucional ou inconstitucional, garantindo a harmonia do ordenamento jurídico.
Não depende, portanto, de um litígio, uma vez que é feito sobre a própria norma.
No Brasil, o controle abstrato existe desde o ano de 1965, quando a Emenda Constitucional nº 16 estabeleceu poderes ao Procurador Geral da República para questionar matérias inconstitucionais diretamente em última instância.
Isto significa que esta modalidade de controle é de competência do Supremo Tribunal Federal, conforme disposto no artigo 102, I, da Carta Magna.
A decisão no controle concentrado, em regra, produz efeito erga omnes e ex tunc ou retroativo.
Todavia, no tocante ao efeito retroativo, o Supremo Tribunal Federal poderá prever data diversa para que a decisão produza efeitos, o que se denomina “modulação dos efeitos temporais”, expressamente previsto no artigo 27 da Lei 9.868/99 e no artigo 11 da Lei 9.882/99, in verbis:
Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.11
O controle abstrato de constitucionalidade possui cinco variantes: ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI por omissão – Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, ADC ou ADECON – Ação Declaratória de Constitucionalidade, ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental e ADI Interventiva – Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva.
5. EFEITOS DA DECISÃO
Ao se reconhecer a inconstitucionalidade de um ato normativo, a eficácia da decisão será, via de regra, retroativa (ex tunc).
Entretanto, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, mesmo em sede de controle difuso, a decisão poderá algumas vezes produzir efeitos futuros (ex nunc), como explica Ramon Tacio de Oliveira (2000, p. 64):
Ora, existem relações jurídicas consolidadas na vigência da norma inconstitucional, cujo desfazimento, pelos efeitos ex tunc da decisão judicial, poderia repercutir negativamente sobre a certeza dessas relações jurídicas e da paz social. Exemplo é o caso de um servidor nomeado para o cargo em comissão, portanto, sem concurso, sendo depois a lei criadora do cargo declarada inconstitucional. Pois bem, nessa situação o servidor prestou serviços, praticou atos em nome da administração, recebeu salário. Impossível, assim, voltar à situação de antes, pois não se pode retirar o serviço que se prestou e nem o servidor é obrigado a devolver o que recebeu. Destarte, embora o efeito do ato declarado inconstitucional seja nulo, é preciso notar que não existe como reverter certas situações, até mesmo para homenagear os terceiros de boa-fé.12
A declaração de inconstitucionalidade incidental também desfaz, desde sua origem, o ato inconstitucional, juntamente com todas as consequências dele advindas. No entanto, diversamente do controle concentrado, os efeitos retroativos dessa decisão somente têm aplicação para as partes e no processo em que houve a citada declaração13 (ALEXANDRE DE MORAES, 2008), uma vez que possui a única finalidade de afastar a aplicação da norma no caso concreto.
Assim, a decisão no controle difuso de constitucionalidade, em regra, produz efeitos entre as partes (inter partes), ou seja, só produz efeitos no âmbito interno da relação processual, bem como não faz coisa julgada em relação à inconstitucionalidade, mas tão somente em relação ao objeto da ação.
Todavia, em alguns casos estas decisões poderão produzir efeitos para todos, como é o caso do artigo 52, X, da Constituição Federal, que permite que os efeitos de uma decisão seja estendida para além das partes envolvidas na lide:
Art. 52 – Compete privativamente ao Senado Federal:
X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.
Esta suspensão, todavia, é uma faculdade do Senado, que analisará o caso concreto, a conveniência e oportunidade da suspensão, e, embora tenha eficácia erga omnes, somente produzirá efeitos a partir da publicação da resolução que a determinou, ou seja, terá efeito ex nunc.
Vale ressaltar que esta comunicação ao Senado somente é obrigatória no controle difuso, uma vez que, no controle concentrado, a declaração de inconstitucionalidade já é bastante para surtir efeitos erga omnes.
Por sua vez, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, a ação direta de inconstitucionalidade (ADI), bem como na ação declaratória de constitucionalidade (ADC), as decisões proferidas terão, em regra, eficácia ex tunc, erga omnes, bem como efeito vinculante para todo o Poder Judiciário e órgãos da Administração Pública. Isso não exclui a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão, observando-se o quorum de 2/3 dos membros do STF.
6. ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE
Como visto, no Brasil tem-se um controle misto de constitucionalidade, podendo tanto ser difuso, quando acontece de forma incidental em um processo, ou abstrato quando há um processo tratando especificamente sobre a constitucionalidade de uma norma, sendo, neste caso, de competência do Supremo Tribunal Federal analisar e julgar o embate apresentado.
Todavia, atualmente, é cada vez mais evidente a aproximação dos efeitos do controle difuso àqueles do controle concentrado, dadas as inúmeras e sucessivas alterações legislativas e constitucionais, as quais tendem a tornar o controle de constitucionalidade mais abstrato.
No âmbito legislativo e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem se verificado uma gradativa tendência de “abstrativização” do controle concreto. A interpretação dada pelo STF possui especial relevância, por ser o “guardião da Constituição” (art. 102, caput), cabendo-lhe dar a última palavra na descoberta do conteúdo e na fixação do alcance das normas constitucionais. Interpretações divergentes acabam por enfraquecer a força normativa da Constituição (NOVELINO, 2008, p. 110).14
Em outras palavras, a abstrativização do controle difuso nada mais é do que a equiparação dos seus efeitos àqueles próprios do controle abstrato, concedendo-lhe, portanto, eficácia erga omnes e efeito vinculante.
Desta forma, o efeito da decisão que declara a inconstitucionalidade de uma norma não ficará restrito ao caso em concreto, mas valerá para todos, tornando-se uma decisão com efeito vinculante.
O intuito primordial desta abstrativização, na verdade, é restringir a atuação do Supremo Tribunal Federal à sua primordial competência, que é a guarda da Constituição Federal, garantindo sua máxima efetividade e respeito a seus princípios.
Assim, as decisões proferidas em sede de controle difuso, que, via de regra, só concedia eficácia erga omnes e efeito vinculante com a manifestação do Senado Federal, tornou-se ultrapassada, tendo em vista a atual importância do Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição Federal.
7. O RECURSO EXTRAORDINÁRIO E O PAPEL DO SENADO FEDERAL
O recurso extraordinário trata-se de uma espécie de recurso de caráter excepcional, direcionado ao Supremo Tribunal Federal, contra decisões de outros Tribunais, seja em única ou última instância.
É restrito e admissível apenas em algumas hipóteses, conforme preceitua o artigo 102, III da Constituição Federal:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
a) Contrariar dispositivo desta Constituição;
b) Declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;
c) Julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição;
d) Julgar válida lei local contestada em face de lei federal.
Ademais, para a interposição de recurso extraordinário, a Súmula 282 do Supremo Tribunal Federal exige o questionamento da matéria constitucional que será discutida.
Ainda, para ser admitido, deverá ser demonstrada a repercussão geral das questões constitucionais envolvidas, conforme determinou a Emenda Constitucional nº 45/2004.
Nota-se, desde já, que o recurso extraordinário está deixando de garantir a defesa de interesses individuais, transformando-se em mecanismo de controle abstrato de constitucionalidade, uma vez que a repercussão geral e a súmula vinculante ganharam efeitos anteriormente praticados apenas em sede de controle abstrato.
No controle difuso, a parte sucumbente poderá, através de recurso, levar aos Tribunais Superiores a norma que entende inconstitucional, e então, por meio de recurso extraordinário, o Supremo Tribunal Federal realizará o controle difuso de constitucionalidade da norma atacada por via incidental, todavia, dando eficácia erga omnes e efeito vinculante a estas decisões.
Nota-se, nesta esteira, que a participação do Senado Federal é cada vez menor, uma vez que diante da eficácia erga omnes e efeito vinculante das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, o Senado passaria apenas e tão somente a dar publicidade às decisões, e não teria a competência de suspender a execução, o que ainda é motivo de muita discussão.
A este respeito, Pedro Lenza (2010, p. 230) esclarece sobre o artigo 52, X, da CF:
No todo ou em parte deve ser interpretada como sendo impossível o Senado ampliar, interpretar ou restringir a extensão da decisão do STF. Assim, se a lei for declarada inconstitucional pelo STF, em controle difuso, de modo incidental, se entender o Senado Federal pela conveniência de suspensão da lei, deverá fazê-lo no todo, vale dizer, em relação a toda a lei que já havia sido declarada inconstitucional, não podendo suspender menos do que o decidido pela Excelsa Corte.15
Todavia, atualmente não se faz mais necessária esta atuação do Senado Federal de forma efetiva na declaração de inconstitucionalidade de uma norma, uma vez que o Supremo Tribunal Federal possui agora a prerrogativa de guardião da Carta Magna, possuindo, consequentemente, o poder da última palavra na interpretação das leis constitucionais.
Zeno Veloso (2003, p.58) embora coadune com este entendimento, acredita na necessidade de reforma, nos seguintes termos:
Devemos convir, entretanto, que não há razão para manter em nosso Direito Constitucional legislado a norma do art. 52, X da Constituição Federal, originária da Carta de 1934, quando só havia o controle incidental, e o princípio da separação dos poderes se baseava em critérios e valores absolutamente ultrapassados, ancorados numa velha e rígida concepção oitocentista. Uma reforma é necessária, para que se estabeleça, de uma vez por todas, que as decisões do Supremo Tribunal Federal, no controle de constitucionalidade, tenham eficácia erga omnes e efeito vinculante.16
8. CRÍTICAS À ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE
Esta tendência de abstrativização do controle difuso passou a ser agasalhada pelo STF desde 2017 (STF. Plenário. ADI 3406/RJ e ADI 3470/RJ, Rel. Min. Rosa Weber, julgados em 29/11/2017), mas ainda encontra resistência por parte de vários juristas brasileiros.
A maior crítica reside exatamente no fato de que, ao se conceder eficácia erga omnes em sede de controle difuso, o Supremo Tribunal Federal estaria excluindo o papel do Senado Federal.
O artigo 52, inciso X, da Constituição Federal confere ao Senado a competência privativa de editar resolução para suspender a execução, no todo ou em parte, da norma declarada inconstitucional pelo STF.
Dessa forma o Senado Federal participa do controle concreto de constitucionalidade, estendendo para todos os efeitos da decisão do STF, no controle de constitucionalidade difuso, que declarou a norma inconstitucional. Assim, a decisão que antes tinha efeito somente entre as partes envolvidas na lide, passa a vincular a todos, retirando do ordenamento jurídico a norma inconstitucional.
Os defensores desta nova tendência acreditam na reinterpretação do artigo 52, inciso X, da Carta Magna, dando ao Senado Federal o papel de dar publicidade à decisão proferida pelo Supremo.
Acredita-se, ainda, na preservação de princípios constitucionais como a segurança jurídica, uma vez que proporciona celeridade processual e igualdade perante a lei.
Muitos doutrinadores, embora acreditem que a abstrativização do controle difuso trará celeridade processual e efetividade ao processo, rebatem estas mudanças por não encontrarem regras e dispositivos capazes de organizar sua implementação, devendo, neste ponto, haver a imposição de regras e limites.
Os opositores da abstrativização argumentam a possibilidade de se proporcionar um governo totalitário, caso fosse totalmente retirado do Senado Federal a prerrogativa de suspender a execução da norma tida como inconstitucional em sede de controle incidental.
Trata-se de uma afronta não somente à própria Constituição Federal que passa a ser interpretada de acordo com a necessidade da situação, defendendo interesses incompatíveis e fora de seu contexto original, como também a separação dos Poderes, já que cabe ao legislativo, na figura do Senado, a função de editar resoluções que suspendam a eficácia de norma declarada inconstitucional.
O texto constitucional é claro ao dizer que para o efeito da decisão de inconstitucionalidade no controle difuso alcançar a todos, o Senado deve editar resolução suspendendo a eficácia da norma. Caso contrário, a decisão só produzirá efeito entre as partes.
Justamente por esse motivo, os opositores da abstrativização defendem que o STF não tem competência para invadir a função do legislativo, devendo ser mantido o modelo que era adotado até então.
O mesmo desiderato almejado pelo STF poderia ser alcançado com outro instrumento já regulamentado e de sua competência, que seria a Súmula Vinculante.
Sobre esta possibilidade Juliana Helena Almeida Medeiros (2013) escreve:
Esse instrumento é a Súmula Vinculante, que pode ser editada pelo Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, mediante decisão de 2/3 de seus membros, depois de reiteradas decisões sobre matéria constitucional controvertida. Tal súmula terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública, direta e indireta, conforme previsto no artigo 103-A, da Constituição Federal.
A súmula vinculante é um meio mais seguro de produzir efeitos vinculantes em caráter geral, salvo para o Poder Legislativo, devido a sua previsão constitucional e ao seu quorum qualificado, já que a tese da abstrativização do controle difuso, além de ser uma teoria desenvolvida pelo STF e não pelo constituinte originário ou o Poder Legislativo, exige apenas a maioria absoluta para produzir efeitos erga omnes.17
Assim, ao conceder efeito vinculante às decisões proferidas em sede de controle difuso, pelo voto da maioria absoluta, estaria desrespeitando o artigo 103-A da Constituição Federal, que determina o quórum de dois terços de votos para aprovação de súmula vinculante.
9. CONCLUSÃO
O ordenamento jurídico brasileiro para realizar o controle de constitucionalidade adota o sistema jurisdicional misto, sendo realizado pelo Judiciário de forma concentrada ou difusa.
O controle de constitucionalidade concentrado ou abstrato é aquele realizado por um único tribunal, através de uma ação direta onde se irá discutir a constitucionalidade de determinada norma, tendo como principal finalidade invalidar uma lei contrária à Constituição Federal, garantindo, dessa forma, a segurança jurídica nas relações que devem ser baseadas em normas constitucionais.
O controle concentrado independe de caso concreto e seus efeitos são erga omnes (para todos) e também ex tunc.
Já o controle difuso ou concreto é aquele realizado por qualquer juiz ou tribunal, que diante de um caso concreto vai analisar a compatibilidade da norma com a Constituição Federal.
A decisão vai gerar efeitos apenas entre as partes que estão litigando.
No entanto, os efeitos da decisão no controle constitucional difuso poderão atingir terceiros estranhos à lide, desde que o Senado edite resolução suspendendo em todo, ou em parte, a lei levada a controle constitucional.
A suspensão da norma atingirá a todos assim que for publicada pela imprensa oficial conforme dispõe o artigo 52, x, da CF.
Nesse contexto, a vinculação se torna a principal característica do controle de constitucionalidade e vem se tornando base para uma nova interpretação por parte do STF que surge para aproximar as decisões que apreciam a inconstitucionalidade da norma, tanto no controle concentrado, quanto no difuso.
A abstrativização do controle difuso defende uma ampliação dos efeitos das decisões do controle difuso, passando a valer não só para as partes litigantes, mas vinculando todos (efeito erga omnes).
No entanto, o STF não tem levado em consideração o artigo 52, inciso X, que destaca que nesses casos o Senado deve editar resolução suspendendo em todo, ou em parte, a lei levada a controle constitucional, reduzindo a função do Senado a um mero ato de publicidade.
Dessa forma conclui-se que a nova interpretação adotada pelo STF, que reduz o papel do Senado e o deixa de fora das decisões de suspender ou não o uso de determinada norma, se mostra arbitrário.
Apesar de esse novo modelo aproximar os controles de constitucionalidade concentrado e difuso, o que se percebe é uma tendência dos Ministros do STF em estender os efeitos de suas decisões para além das partes envolvidas no processo, fazendo com que eles atuem como verdadeiros legisladores, o que é proibido pelo ordenamento jurídico pátrio.
Ademais, deve ser respeitado o princípio da separação de Poderes.
Não é admissível a exclusão do Senado Federal de procedimento expresso na própria Constituição. O STF ao invés de atuar como guardião da Lei Maior, tem se mostrado alheio ao que o seu próprio texto diz.
Apesar dos esforços do STF em buscar uma justiça mais célere, com uma prestação jurisdicional eficiente, a adoção da abstrativização do controle difuso se mostra infundada, uma vez que, a aplicação de tal teoria, mesmo sendo ela contrária ao que diz o texto da Lei Maior, abriria um precedente para que outros preceitos constitucionais sejam violados pelo bel prazer dos operadores do direito.
A adoção da abstrativização do controle difuso, nada mais é do que um reflexo da evolução do nosso ordenamento jurídico e de uma mudança na maneira de interpretação do texto constitucional, que continua o mesmo. No entanto, deve-se defender o principio da supremacia da Constituição, garantindo dessa forma sua aplicação isenta, imune a entendimentos efêmeros, sob pena, inclusive, de sufocamento de minorias em detrimento do interesse da maioria de momento.
1SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 37.
2CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. Ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 62.
3KELSEN, Hans. O que é justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 216.
4VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 3. Ed. São Paulo: Del Rey, 2003. p.18.
5BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 2.
6BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p.1.
7SIMÃO, Calil. Elementos do sistema de controle de constitucionalidade. São Paulo: SRS. p.1-2.
8VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 3. Ed. São Paulo: Del Rey, 2003. p. 34.
9BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 77.
10BRASIL. Constituição Federal. Disponível em <http://www.dji.com.br/constituicao_federal/cf052.htm>. Acesso em 05 set. 2014.
11BRASIL. Lei nº 9.882, de 3 de Dezembro de 1999. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9882.htm>. Acesso em 05 set. 2014.
12OLIVEIRA, Ramon Tacio de. Manual de Direito Constitucional. 6. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 64.
13MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 23. Ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 645.
14NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2. Ed. São Paulo: Método, 2008. p. 110.
15LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 230.
16VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade. 3. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. P. 58.
17MEDEIROS, Juliana Helena Almeida. Críticas à abstrativização do controle difuso de constitucionalidade. E-gov. Disponível em <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/cr%C3%ADticas-%C3%A0-abstrativiza%C3%A7%C3%A3o-do-controle-difuso-de-constitucionalidade>. Acesso em 05 set. 2014.
10. REFERÊNCIAS
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