A INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM POLÍTICAS PÚBLICAS NA HIPÓTESE DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA – ATIVISMO JUDICIAL OU ATIVISMO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10138232


Matheus Silva Bastos


Resumo

O presente artigo tem por finalidade examinar eventual respaldo constitucional a um ativismo judicial no que diz respeito ao controle de políticas públicas, sobretudo no que toca à população em situação de rua, vítima de graves violações de direitos humanos. Em tal possibilidade, pretende-se analisar a forma de solucionar tal fato, sobretudo na ótica da teoria do estado de coisas inconstitucional e do processo coletivo estrutural.

Palavras chave: procedimentalismo, substancialismo, ativismo judicial, estado de coisas inconstitucional, processo coletivo estrutural.

Abstract

The purpose of this article is to examine possible constitutional support for judicial activism with regard to the control of public policies, especially with regard to the homeless population, victims of serious human rights violations. In such a possibility, we intend to analyze how to resolve this fact, especially from the perspective of the theory of the unconstitutional state of affairs and the structural collective process.

Keywords: proceduralism, substantialism, judicial activism, unconstitutional state of affairs, structural collective process.

1. Introdução

Há grande embate entre procedimentalistas e substancialistas. Aqueles que advogam a tese de que ao Judiciário cabe apenas o controle das regras do jogo democrático, a fim de que os representantes eleitos pelo povo tomem determinadas decisões e aqueles que defendem a possibilidade de controle de políticas públicas por parte do Judiciário.

Ocorre que, a Constituição Federal de 1988 parece ter feito uma escolha, quando elege a dignidade humana como fundamento da República e traça rol extenso de direitos fundamentais individuais e sociais.

Além disso, constata-se grave omissão em alguns casos, afetando diretamente determinados grupos sociais em que se verifica acentuada vulnerabilidade. 

O presente trabalho examinou o caso da população em situação de rua no Brasil, em que a ausência de políticas públicas específica é notória, a despeito da previsão normativa constitucional, convencional e infraconstitucional.

Trata-se evidentemente de estado de coisas inconstitucional, que demanda medidas estruturantes para solucionar tal caso, ou reduzir danos, conforme decidido recentemente pelo Supremo Tribunal Federal. 

2. Do Procedimentalismo e do Substancialismo – Jurisprudência Nacional 

John Hart Ely em sua obra “Democracia e desconfiança” identifica a soberania dos parlamentos com o procedimentalismo e no polo oposto o substancialismo.  Sabedores de que constituições usualmente contêm termos vagos. A quem cabe o papel democrático de concretizar esses termos? O legislativo ou o judiciário? 

Se partirmos do exemplo estadounidense notaremos que a Constituição americana é sintética, repleta de termos vagos. O Bill of rights não estava no texto original, veio por uma emenda. A 5ª emenda trouxe o devido processo legal ao nível constitucional. A 14ª emenda estendeu o devido processo legal aos Estados. A cláusula do devido processo legal é aberta.  No lugar em que está escrito “devido processo” a Suprema Corte criou o conceito de devido processo legal substantivo (material). 

Neste diapasão, um procedimentalista entenderia que não compete aos juízes e aos tribunais dar concretude a cláusulas abertas, pois faltaria respaldo democrático. Explica o Professor Bernardo (2023, p. 138)

Portanto, afirma o ex-professor de Yale e Harvard que os Tribunais devem desempenhar a função similar a de árbitros em um jogo de futebol (que não dizem quem é o vencedor, apenas atuando no intuito de garantir que o jogo seja jogado de maneira limpa, justa e em igualdades de condição),11 de modo a deixar a democracia seguir seu curso, agindo apenas de modo a desobstruir os bloqueios que se formam no processo democrático.

Destarte, o Judiciário não pode contrariar a opção congressual, só cabendo garantir o procedimento, não podendo fazer análise material da lei. Já os substancialistas entendem que órgãos judiciários podem definir cláusulas genéricas, delas extraindo direitos fundamentais. 

Nesse sentido, é a lição de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Neto Souza (2013, p. 221): 

“Os procedimentalistas defendem um papel mais modesto para a jurisdição constitucional, sustentando que ela deve adotar uma postura de autocontenção a não ser quando estiver em jogo a defesa dos pressupostos de funcionamento da própria democracia. Nesta hipótese, estaria justificada uma atuação mais agressiva da jurisdição constitucional, que não poderia ser tachada de antidemocrática por se voltar exatamente à garantia da própria democracia”

Hart é um procedimentalista por excelência e diz que instituir uma religião oficial, por exemplo, é uma opção válida desde que obedecido o procedimento (não se questiona a legitimidade dessa decisão). Para Ely, as decisões emblemáticas da sociedade devem ser tomadas por indivíduos eleitos pelo povo e não por membros do Poder Judiciário, já que, para o autor, estes não seriam dotados de legitimidade democrática. 

Sendo assim, o Judiciário não tem (e nem deve!) autoridade para alterar decisões fruto de deliberações democráticas (legislativas), não cabendo a eles a tarefa de uma pretensa interpretação valorativa da Constituição garantidora de direitos (já que esses direitos devem ser especificados em uma instância política, não sendo da alçada de uma instância jurídica), mas podem sim (os Tribunais) agir no intuito da defesa e da preservação de direito relativos à comunicação e à participação que constroem a vontade democrática nos processos políticos.

Dessa forma, Hart defende uma regra geral de autocontenção dos juízes no controle de constitucionalidade das leis, apenas atuando para conferir proteção a determinados direitos como o direito de associação e participação política, liberdade de expressão, dentre outros, ou invalidando as leis quando estas forem flagrantemente contrárias à Constituição. Afinal, atuando desta forma, a jurisdição constitucional colaboraria para o fortalecimento da democracia. Por fim, Ely entende que o Judiciário possui legitimidade para atuar de maneira mais ativa e enérgica em apenas duas situações, quais sejam: a) para proteger os direitos das minorias estigmatizadas; b) para manter os canais de participação política (v.g, garantir a lisura do processo eleitoral).

Já a visão também procedimentalista de Habermas vai em sentido diverso. Isso porque o procedimentalismo de Habermas não se baseia na tradicional concepção de democracia, qual seja, de que a democracia consiste no governo das maiorias. 

Na perspectiva de Habermas o modelo proposto por autores como Alexy não promove a democracia, mas um elevado subjetivismo do Judiciário.

Segundo Habermas, a democracia é deliberativa, ou seja, ela se materializa através do diálogo e na interação propostos pelos cidadãos no espaço público. O papel do Judiciário é permitir que no jogo democrático as decisões sejam construídas a partir do debate democrático, em que os atores se esforçam para promover o convencimento da parte oposta.

 Logo, para o filósofo alemão, a atuação da jurisdição constitucional deve se dar apenas para garantir os pressupostos de um processo legislativo democrático, e não como uma corte constitucional garantidora de valores substanciais (Peixoto, 2013, p. 220). 

(…)“Jurgen Habermas também é partidário da concepção procedimental de democracia, porém, diferentemente de John Hart Ely (foco exclusivo na Constituição americana), procurou tornar universal a legitimação do direito por meio de sua “teoria do discurso”. Nessa teoria, o direito só possui legitimidade quando surge da formação discursiva da opinião e da vontade dos cidadãos que possuem os mesmos direitos e as mesmas condições de exercício. Habermas alude que a Corte Constitucional deve “entender a si mesma como protetora de um processo legislativo democrático, isto é, como protetora de um processo de criação democrática do direito, e não como guardiã de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais. A função da Corte é velar para que se respeitem os procedimentos democráticos para uma formação da opinião e da vontade política de tipo inclusivo, ou seja, em que todos possam intervir, sem assumir a própria (sic) o papel de legislador político” (). 

Para além disso, conforme observa Catoni (2004, p. 524):

Essa compreensão procedimentalista do Direito, apresentada por Jürgen Habermas, pretende reinterpretar a relação entre autonomia pública e autonomia privada, entre direitos humanos e soberania popular, como equiprimordiais e co-originárias, enquanto ‘justificação pós-metafísica’ de legitimidade do Estado Democrático de Direito. Para Habermas ‘A conexão interna entre democracia e Estado de Direito consiste em que, por um lado, os cidadãos só podem fazer um adequado uso de sua autonomia píublica se graças a uma autonomia privada simetricamente assegurada são suficientemente independentes e, por outro, em que só podem alcançar um equilibrado desfrute de sua autonomia privada se, como cidadãos, fazem um adequado uso de sua autonomia política. Por isso os direitos fundamentais de liberdade e os direitos políticos são indivisíveis. A imagem de um núcleo induz a erro, como se existisse um núcleo de liberdades fundamentais que pretendessem ter prioridades frente aos direitos de comunicação e participação (…) os direitos privados e os direitos de cidadania  são em origem igualmente essenciais’ (HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid; Trotta, 1998, p. 169)

Esse entendimento no Brasil deve ser temperado com a existência das cláusulas pétreas, que são limites materiais ao poder constituinte reformador. Mas numa Constituição em que não existem limites materiais ao poder reformador, como a dos EUA, a discussão procedimentalismo x substancialismo faz mais sentido. No Brasil a própria matéria é um limite procedimental (é como se as cláusulas pétreas estivessem no limite de procedimento).

Ainda, conforme entendeu o Superior Tribunal de Justiça:

7. No Brasil, ao contrário de outros países, o juiz não cria obrigações de proteção do meio ambiente. Elas jorram da lei, após terem passado pelo crivo do Poder Legislativo. Daí não precisarmos de juízes ativistas, pois o ativismo é da lei e do texto constitucional. Felizmente nosso Judiciário não é assombrado por um oceano de lacunas ou um festival de meias-palavras legislativas. Se lacuna existe, não é por falta de lei, nem mesmo por defeito na lei; é por ausência ou deficiência de implementação administrativa e judicial dos inequívocos deveres ambientais estabelecidos pelo legislador. (REsp n. 650.728/SC, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 23/10/2007, DJe de 2/12/2009.)

A Constituição Brasileira de 1988 potencializou ao máximo o papel do Judiciário e do Direito, fundando um novo paradigma: o do Estado Democrático de Direito. 

Os substancialistas, em contrapartida, entendem que o Judiciário pode concretizar as cláusulas abertas previstas na lei. Para os adeptos do substancialismo, o papel da jurisdição constitucional deve ser enérgico, mesmo em casos em que não se busque garantir os pressupostos da democracia. Nesta linha, o substancialismo defende que a jurisdição constitucional possui legitimidade para fundamentar suas decisões em argumentos de origem ética ou moral, e deve incluir na sua pauta de julgamentos temas sociais e de grande relevância para a sociedade. A postura substancialista da jurisdição constitucional é geralmente adotada por países que possuem uma Constituição dirigente e com um amplo rol de direitos fundamentais, já que estas características facilitam a chegada de demandas sociais até determinada corte constitucional.

Neste sentido observa Barroso (2009)

“O Estado constitucional de direito gravita em torno da dignidade da pessoa humana e da centralidade dos direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana é o centro de irradiação dos direitos fundamentais, sendo freqüentemente identificada como o núcleo essencial de tais direitos. Os direitos fundamentais incluem: a) a liberdade, isto é, a autonomia da vontade, o direito de cada um eleger seus projetos existenciais; b) a igualdade, que é o direito de ser tratado com a mesma dignidade que todas as pessoas, sem discriminações arbitrárias e exclusões evitáveis; c) o mínimo existencial, que corresponde às condições elementares de educação, saúde e renda que permitam, em uma determinada sociedade, o acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida no processo político e no debate público. Os três Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – têm o dever de realizar os direitos fundamentais, na maior extensão possível, tendo como limite mínimo o núcleo essencial desses direitos.”

Em sede de repercussão geral o Supremo Tribunal Federal concluiu

 “1. A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes. 2. A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado.”

(RE 684612, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 03-07-2023, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-s/n  DIVULG 04-08-2023  PUBLIC 07-08-2023)

Sendo assim, nota-se que os tribunais de superposição têm entendido pela possibilidade de intervenção do Judiciário em políticas públicas, inclinando-se para uma visão substancialista.

Entende-se que a própria Constituição em alguns casos faz tal opção, quando consagra o princípio da dignidade humana como fundamento da República e consagra extenso rol de direitos fundamentais de caráter individual e social.

3. Do estado de coisas inconstitucional e do litígio estrutural 

O termo estado de coisas inconstitucional foi cunhado pela Corte Constitucional Colombiana e no Brasil foi expressamente utilizado pelo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da ADPF 347, que tratava do sistema penitenciário nacional (Novelino, 2018, p. 168). 

São apontados três pressupostos para que o fenômeno se configure: 1. pressuposto fático: violação generalizada e sistêmica de direitos humanos; 2. pressuposto político: condutas comissivas e omissivas das autoridades públicas, essa última podendo ser compreendida como a ausência de políticas públicas específicas; e 3. pressuposto jurídico: a busca da solução de tais violações de direitos humanos exige a atuação conjunta das instituições políticas, tendo o guardião da Constituição o papel de mediador do diálogo institucional. 

A apreciação do estado de coisas inconstitucional se dá no bojo do chamado processo coletivo estrutural, uma vez que se trata de violações de direitos fundamentais causadas por estruturas burocráticas, públicas ou privadas, exigindo do Poder Judiciário decisões tomadas após profícuo diálogo entre as autoridades e as instituições responsáveis, com medidas executivas amplas e graduais tendentes a promover um rearranjo dessas estruturas, tanto públicas quanto privadas, evitando-se soluções superficiais e efêmeras. 

Podemos citar o exemplo de Edilson Vitorelli no tocante à falta de medicamentos essenciais, para o jurista seria mais efetivo buscar soluções estruturais quanto a tal fato violador de direitos fundamentais, do que a mera propositura de um sem-número de ações individuais, as quais, no final das contas, seria apenas insistir em algo inútil.  (Vitoreli, 2018. p. 1260-1269).

Acerca do processo coletivo estrutural calha ressaltar que tal modelo processual teve origem no caso Brown (meninda Linda Brown) vs. Board of Education of Topeka (1954). Trata-se de caso que chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos em contexto de segregação racial, em que havia escolas para negros e brancos. A postulante desejava estudar no colégio de brancos porque era mais perto de sua casa.

No caso em exame, entendeu-se que a segregação violava a Constituição e que era preciso implementar uma reestruturação no próprio sistema de ensino americano, ou seja, uma solução que não dissesse respeito apenas ao caso Linda Brown. O sistema revelava uma necessidade de reestruturação. 

O problema estrutural se define pela existência de um estado de desconformidade estruturada – uma situação de ilicitude contínua e permanente ou uma situação de desconformidade, ainda que não propriamente ilícita, no sentido de ser uma situação que não corresponde ao estado de coisas considerado ideal. Como quer que seja, o problema estrutural se configura a partir de um estado de coisas que necessita de reorganização (ou de reestruturação). (Didier, 2020)

Os litígios de natureza estrutural, de que é exemplo a ação civil pública que versa sobre acolhimento institucional de menor por período acima do teto previsto em lei, ordinariamente revelam conflitos de natureza complexa, plurifatorial e policêntrica, insuscetíveis de solução adequada pelo processo civil clássico e tradicional, de índole essencialmente adversarial e individual. (STJ, REsp 1.854.842/2020). É aqui que entra o processo estrutural. Parte-se dos problemas estruturais e se reconhece a incapacidade do processo civil clássico e tradicional de resolver. Então entra o processo estrutural para alterar esse estado de conformidade, buscando alcançar o estado ideal de coisas.

Em síntese, um processo estrutural é aquele que busca resolver, por intermédio da atuação da jurisdição, um litígio estrutural, pela reformulação de uma estrutura burocrática que é a causadora ou, de alguma forma, a responsável pela existência da violação que origina o litígio. Essa reestruturação se dará por intermédio da elaboração de um plano aprovado pelo juiz e sua posterior implementação um considerável período de tempo. (VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferença. Revista de Processo, vol. 284/2018, p. 333/369)

Ainda (Marinoni, Arenhart, Mitidiero, 2023, p.489):

“Os processos estruturais tem sua gênese nas chamadas structural injunctions, concebidos pela doutrina norte-americana. Percebeu-se que muitas decisões sobre questões coletivas exigem soluções que vão além de decisões simples a respeito de relações lineares entre as partes. Exigem respostas difusas, com várias imposições ou medidas que se imponham gradativamente. São decisões que se orientam para uma perspectiva futura, tendo em conta a mais perfeita resolução da controvérsia como um todo, evitando que a decisão judicial se converta em problema maior do que o litígio que foi examinado”.

Esses problemas estruturais são marcados por características centrais: 

A. Discute um problema estrutural: problemas complexos e multifatoriais, exigindo do atuante o reconhecimento de policentrismo e gama de interesses em jogo; 

B. Travessia: Busca a implementação de um estado ideal de coisas: reorganização da estrutura burocrática;

C. Multipolaridade: assim como problemas estruturais são multipolares, os processos estruturais também, contando com diversos núcleos de posições e opiniões, muitas delas antagônicas. Para que ele tenha ares de legitimação democrática, é importante que se dê voz para todos os atores. Ou seja, sempre há necessidade de ampliar a participação nesses processos (amicus curiae, audiências públicas, etc.)

6- Os litígios de natureza estrutural, de que é exemplo a ação civil pública que versa sobre acolhimento institucional de menor por período acima do teto previsto em lei, ordinariamente revelam conflitos de natureza complexa, plurifatorial e policêntrica, insuscetíveis de solução adequada pelo processo civil clássico e tradicional, de índole essencialmente adversarial e individual.

7- Para a adequada resolução dos litígios estruturais, é preciso que a decisão de mérito seja construída em ambiente colaborativo e democrático, mediante a efetiva compreensão, participação e consideração dos fatos, argumentos, possibilidades e limitações do Estado em relação aos anseios da sociedade civil adequadamente representada no processo, por exemplo, pelos amici curiae e pela Defensoria Pública na função de custos vulnerabilis, permitindo-se que processos judiciais dessa natureza, que revelam as mais profundas mazelas sociais e as mais sombrias faces dos excluídos, sejam utilizados para a construção de caminhos, pontes e soluções que tencionem a resolução definitiva do conflito estrutural em sentido amplo.

8- Na hipótese, conquanto não haja, no Brasil, a cultura e o arcabouço jurídico adequado para lidar corretamente com as ações que demandam providências estruturantes e concertadas, não se pode negar a tutela jurisdicional minimamente adequada ao litígio de natureza estrutural, sendo inviável, em regra, que conflitos dessa magnitude social, política, jurídica e cultural, sejam resolvidos de modo liminar ou antecipado, sem exauriente instrução e sem participação coletiva, ao simples fundamento de que o Estado não reuniria as condições necessárias para a implementação de políticas públicas e ações destinadas a resolução, ou ao menos à minimização, dos danos decorrentes do acolhimento institucional de menores por período superior àquele estipulado pelo ECA.

(REsp n. 1.854.842/CE, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 2/6/2020, DJe de 4/6/2020.)

D. Coletividade: processo estrutural discute situação jurídica coletiva, com alcance coletivo, embora possa ter origem individual (Didier, 2020). 

Embora normalmente o processo estrutural seja coletivo, por discutir uma situação jurídica coletiva, é possível que um processo que veicule demanda individual esteja pautado num problema estrutural e tenha que, por isso, ser tratado como processo estrutural. […] Imagine que um sujeito, portador de deficiência ou com mobilidade reduzida, ingresse com ação individual para, com base nos direitos que lhe são assegurados pela Lei nº 10.098/2000, exigir que determinados edifícios públicos ou privados, de uso coletivo, aos quais precisa ele recorrentemente ter acesso (como sua faculdade, o hospital do seu bairro, o banco no qual possui conta corrente etc.), sejam obrigados a promover reformas para garantir a acessibilidade prevista em lei. Essa é tipicamente uma ação individual, mas que tem inequívoca natureza estruturante. 

E. Complexidade: solução do problema estrutural pode se dar por inúmeras formas, o que está ligado a noção de multipolaridade. Há inúmeros meios para implementar o estado ideal de coisas, podendo passar por inúmeras formas. 

F. Procedimento bifásico (Marinoni, Arenhart, Mitidiero, 2023, p.495).

… é muito frequente no emprego de medidas estruturais a necessidade de se recorrer a provimentos em cascata, de modo que os problemas devam ser resolvidos à medida que apareçam. Assim, por exemplo, é típico das medidas estruturais a prolação de uma primeira decisão, que se limitará a fixar em linhas gerais as diretrizes para a proteção do direito a ser tutelado, criando o núcleo da posição jurisdicional sobre o problema a ele levado. Após essa primeira decisão – normalmente, mais genérica, abrangente e quase “principiológica”, no sentido de que terá como principal função estabelecer a “primeira impressão” sobre as necessidades da tutela jurisdicional – outras decisões serão exigidas, para a solução de problemas e questões pontuais, surgidas na implementação da “decisão-núcleo”, ou para a especificação de alguma prática devida. Possivelmente, isso se sucederá em uma ampla cadeia de decisões, que implicarão avanços e retrocessos no âmbito de proteção inicialmente afirmado, de forma a adequar, da melhor forma viável, a tutela judicial àquilo que seja efetivamente possível de se lograr no caso concreto. Não raras vezes, esses provimentos implicarão técnicas semelhantes à negociação e à mediação.

Como afirma Owen Fiss, essa gradual implementação da decisão judicial é própria dos litígios estruturais.

G. Flexibilidade do procedimento: como problemas estruturais são altamente variáveis, não podemos ter rigidez procedimentais. Assim, a flexibilidade, adequação do procedimento às especificidades do conflito é necessária. Menciona-se a necessidade da atenuação de regras de congruência objetiva (sentenças extra e ultra petita) e das regras de estabilização objetiva da demanda (aquelas regras do art. 329 do CPC, de alteração do pedido e causa de pedir), atipicidade dos meios de prova, fracionamento das resoluções de mérito. Atipicidade dos meios de cooperação institucional ou extrainstitucional. Atipicidade das medidas executivas (apreensão de CNH…). Possibilidade do trânsito de técnicas do procedimento especial para comum ou entre especiais. 

Sem dúvida, essa flexibilização é essencial para a adequada proteção de certos interesses. Com efeito, a especialização de certos órgãos da Administração Pública podem torná-los, em relação ao órgão jurisdicional, um ambiente muito mais apropriado para a especificação das prestações específicas a serem realizadas ou mesmo para a avaliação da suficiência das medidas adotadas para a proteção do direito tutelado. Por outro lado, a descentralização na fiscalização do cumprimento das diretrizes judiciais permite que o Judiciário concentre seu foco naquilo que é mais importante, que é a visão geral do problema, deixando aspectos pontuais e ocasionais à atividade de outros órgãos também comprometidos com o direito tutelado. (Marinoni, Arenhart, Mitidiero, 2023, p.496).

H. Consensualidade: consensualidade que envolve abertura para técnicas de negociação, tanto em relação ao objeto do processo em si, quanto à adaptação do próprio procedimento (convenções processuais).

4. Das pessoas em situação de rua

A população em situação de rua é um grupo social heterogêneo, despojada de local para moradia convencional regular, com vínculos familiares rompidos, em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade social. Desemprego e desestruturação familiar, associado a uso de drogas, são as principais razões para as pessoas estarem nesta situação. 

Calha ressaltar que o Decreto 7.053/2009 instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua, e define:

Art. 1o  

Parágrafo único.  Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.

De acordo com o último censo realizado em São Paulo há mais de 15 mil pessoas em situação de rua. Cerca de 30% desta população trabalha com catação de material reciclável (pela política nacional de resíduos sólidos há imposição ao poder público de promoção das cooperativas de apoio aos catadores de materiais recicláveis). 

No Plano Nacional de Direitos Humanos é previsto o dever de o Estado integrar políticas sociais e de geração de emprego e renda para o combate à pobreza urbana, em especial de catadores de materiais recicláveis e população em situação de rua.

Não assegurar adequadamente os direitos fundamentais das pessoas com deficiência revela grave violação aos objetivos fundamentais da República de  construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, nos termos do art. 3o , I, III e IV da Constituição Federal.

O direito social de moradia (art. 6o da Constituição Federal) e todas as normativas internacionais de Direitos Humanos para a população em situação de rua, em especial o art. 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 reconhecem a habitação como integrante dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Além disso, a Constituição da República preconiza que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos do art. 5o e seus incisos, da Constituição da República Federativa do Brasil

O art. 11 do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, consolida o direito à habitação como um dos meios de superação da situação de miséria, gerando para os Estados-parte a obrigação de promover e proteger esse direito.

Por fim, consta nos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU, em especial o ODS 11, tornar as cidades e os assentamentos humanos acessíveis, inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. Outrossim, em tal documento, verifica-se ainda os seguintes objetivos no ODS 1, a erradicação da pobreza e no ODS 10, a redução da desigualdade.

É evidente que se está diante de grave caso de violação de direitos humanos e diante de estado de coisas inconstitucional.

Por esta razão, conforme apontado na ADPF 976MC pelo Ministro Alexandre de Moraes para início de solução do caso apresentado (ou mitigação das graves violações de direitos humanos) imprescindível começar com uma tutela provisória estrutural, que embora precária, não se mostra incompatível com a dimensão das medidas pleiteadas, que almejam, em certa medida, operar uma reestruturação institucional diante de um quadro grave e urgente de desrespeito a Direitos Humanos Fundamentais, conforme já decidido por esta SUPREMA CORTE ao acolher medidas cautelares de igual natureza em outras oportunidades. 

Diante das particularidades próprias ao desenvolvimento de um processo estrutural como o que se tem sob análise, entendo presentes, ao menos em sede de cognição sumária, fundada em mero juízo e probabilidade, os necessários fumus boni juris e periculum in mora para o DEFERIMENTO PARCIAL dos pedidos cautelares formulados, entendeu o Ministro:

(I) DA NECESSIDADE DE IMPLEMENTAÇÃO EFETIVA DE UM PLANO NACIONAL PARA A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA. A) PANORAMA FÁTICO A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 976 colocou em pauta a discussão acerca das condições precárias de vida da população em situação de rua no Brasil, crise social crônica multifacetada pois acompanha a história brasileira e tem como causa fatores e agentes diversos. A despeito desse comando (Decreto 7.053/2009) e passados mais de treze anos desde a edição do Decreto que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua, os objetivos ainda não foram alcançados. Esse grupo social permanece ignorado pelo Estado, pelas políticas públicas e pelas ações de assistência social. Em consequência, a existência de milhares de brasileiros está para além da marginalização, beirando a invisibilidade. O Marco Civil do Saneamento, Lei 14.026/2020, determinou importantes alterações nos princípios basilares para a prestação dos serviços públicos de saneamento básico, presentes na Lei 11.445/2007, norma responsável por estabelecer diretrizes nacionais para esse serviço. O art. 2° desta lei determina como princípios a universalidade e a integralidade dos serviços públicos de saneamento básico, no sentido prestá-los com a finalidade de atender à população como um todo e conforme suas necessidades. b) A QUESTÃO DA APOROFOBIA. A aporofobia, título de livro lançado em 2017 pela filosofa espanhola Adela Cortina, surge como conceito associado aos fluxos migratórios intensos que a Europa presenciava e sobretudo ao tratamento desses migrantes em específico. De maneira geral, o neologismo pode ser definido pelo medo, rejeição ou aversão aos pobres, indivíduos sem vínculos na sociedade de trocas em que vivemos. Art. 3°, IV, da CFRB. C) O DIREITO FUNDAMENTAL À IDENTIDADE Em se tratando de direito à identidade da população em situação de rua, entende-se que este vai muito além da mera identificação. Assim, é considerada a questão de como exercer cidadania sem acesso ao registro civil e a consequente invisibilidade diante de um rol de serviços básicos, como a utilização do SUS, retirada de auxílio etc. Dessa forma, em paralelo ao reconhecimento do direito à identidade não é viável limitar-se aos aspectos rígidos da identificação pessoal e da posse de registros e sim englobar toda a compreensão do indivíduo que está em situação de rua. D) DIREITOS SOCIAIS À EDUCAÇÃO E AO TRABALHO. Os desafios do retorno à educação escolar, no entanto, vão além da falta de acesso a programas. ALMEIDA elenca diversos obstáculos percebidos pela população em situação de rua para seu retorno escolar, entre eles a falta de documentação civil, o preconceito contra a situação de rua, a não valorização da diversidade pelas escolas, a dependência química e falta de oportunidade para tratar a drogadição, além da falta de motivação e incentivo para continuar a escolarização (“População em situação de rua e o retorno à educação escolar: entre dificuldades e possibilidades”. In: Congresso Internacional de Pedagogia Social, p. 14; 2012, São Paulo. Proceedings online. Associação Brasileira de Educadores Sociais 2012)  É, justamente, sob essas perspectivas que são encontradas oportunidades para o crescimento de parcerias público privadas associadas à concessão de incentivos fiscais para a contratação de pessoas em situação de rua, tais como projetos similares, voltados a outros grupos minoritários e específicos. Esses incentivos atuam de forma a constituir esforço direcionado para a concretização dos objetivos finais dessas políticas: a contratação e a saída das ruas. e) ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA. O CNMP orienta os abrigos institucionais e as casas de passagem, destinados a adultos e famílias, a disponibilizarem espaços destinados a animais de estimação e a carrinhos de coleta de material reciclável. Ainda, devem proporcionar condições de conforto, higiene e privacidade às pessoas acolhidas. Diante desse cenário, o Housing First é apresentado como uma possibilidade de programa de incentivo para saída das ruas dessa população, com a proposta de viabilizar o oferecimento de um moradia permanente, como primeira etapa para a conquista dos demais direitos fundamentais e base para o alcance da autonomia plena. Sam Tsemberis, idealizador do modelo, destaca como princípios do Housing First, entre outros, a moradia como direito humano básico; o comprometimento com o trabalho realizado com os acolhidos pelo tempo que necessitarem; o fornecimento de moradia descentralizada e de apartamentos independentes; e o respeito às escolhas e autodeterminação dos acolhidos. No Brasil, o projeto Moradia Primeiro, programa inspirado no Housing First, tem o objetivo de garantir o acesso imediato de pessoas em situação crônica de rua a uma moradia. Seu público-alvo são indivíduos com mais de cinco anos de rua, que fazem uso abusivo de substâncias químicas e apresentam transtorno mental. CONCLUSÕES Nesses casos, os direitos fundamentais dessas pessoas permanecem, na maior parte do tempo, abaixo do radar das discussões da opinião pública. Ademais, os casos de graves violações de direitos fundamentais por vezes não envolvem grandes divergências acerca da existência, definição ou conteúdo do direito em disputa já que, em inúmeras situações, as violações aos direitos fundamentais são flagrantes e evidentes. Nessas situações, o foco da questão não é sobre a existência ou delimitação de um direito fundamental, mas sim sobre como concretizar ou garantir minimamente direitos básicos já definidos pelos poderes democráticos a todos os cidadãos, mesmo diante de uma situação de prolongada inércia e omissão do poder público na efetivação dessas garantias básicas a determinados grupos. Em situações como essa, na qual já há, por vezes, até mesmo a definição de determinada prestação material por parte do poder público, que só não é cumprida em virtude das falhas burocráticas do Estado, NÃO HÁ DE SE FALAR SEQUER EM ATIVISMO JUDICIAL. (ADPF 635-MC, Rel. Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, DJe de 2/6/2022)

É imprescindível que estas e outras medidas sejam adotadas de forma conjunta entre todos os poderes e a sociedade civil, a fim de que os direitos humanos fundamentais da população em situação de rua sejam reparados com a devida urgência, e medidas de redução de danos sejam praticadas, a fim de se resguardar o princípio da dignidade humana de tal população.

5. Conclusão

O trabalho analisou as correntes procedimentalistas e substancialistas que tratam da possibilidade de controle de políticas públicas por parte do Poder Judiciário.

Verificou-se que a própria Constituição em razão da escolha da dignidade humana como fundamento da República e um delineamento extenso de rol de direitos fundamentais individuais e sociais optou por certo ativismo judicial.

A população em situação de rua contempla grupo de pessoas em situação de extrema miséria, vítima de graves violações de direitos humanos.

Trata-se evidentemente de situação de estado de coisas inconstitucional, em que se faz necessária medidas estruturantes para solução de tal cenário.

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