A GLOBALIZAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO: A MIGRAÇÃO DE IDEIAS CONSTITUCIONAIS E O USO DE JULGADOS DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL 

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10123020


1Dr. José Eronides de Souza Pequeno Júnior; 
2Jullio Cesar Martins Moreira


RESUMO

Este artigo aborda a migração de ideias constitucionais, com ênfase na utilização de precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil. Esse fenômeno, relacionado à globalização do constitucionalismo e à desterritorialização do Direito Constitucional, é crucial para compreender a interação entre sistemas jurídicos internacionais. O objetivo geral é analisar como o STF incorpora ideias constitucionais da Suprema Corte dos Estados Unidos, promovendo o diálogo constitucional entre essas instituições. Para alcançar esse objetivo, os objetivos específicos incluem definir a migração de ideias constitucionais, identificar critérios para o uso de precedentes estrangeiros, destacar a relevância do diálogo entre as Cortes e examinar casos nacionais em que o STF se baseou em decisões da Suprema Corte dos EUA. A pesquisa segue uma abordagem dedutiva e utiliza métodos de pesquisa bibliográfica, recorrendo a livros, artigos acadêmicos e decisões judiciais nacionais e estrangeiras. Os resultados enfatizam a importância de estabelecer critérios claros para a incorporação de precedentes estrangeiros, respeitando as particularidades de cada nação. Embora a migração de ideias constitucionais promova o diálogo e fortaleça a fundamentação das decisões, é essencial equilibrar os benefícios com desafios, como a preservação da soberania nacional e a coesão da argumentação jurídica. Em última análise, o uso de precedentes estrangeiros pelo STF deve ser considerado como um recurso informativo em termos de cultura constitucional, não substituindo as fontes formais do Direito brasileiro. 

Palavras-chave: Ideias constitucionais. Globalização. Constitucionalismo. 

ABTRACT

This article addresses the migration of constitutional ideas, with an emphasis on the use of precedents from the Supreme Court of the United States by the Federal Supreme Court (STF) of Brazil. This phenomenon, related to the globalization of constitutionalism and the deterritorialization of Constitutional Law, is crucial to understanding the interaction between international legal systems. The general objective is to analyze how the STF incorporates constitutional ideas from the United States Supreme Court, promoting constitutional dialogue between these institutions. To achieve this goal, specific objectives include defining the migration of constitutional ideas, identifying criteria for the use of foreign precedents, highlighting the relevance of dialogue between the Courts, and examining national cases in which the STF relied on US Supreme Court decisions. . The research follows a deductive approach and uses bibliographic research methods, using books, academic articles and national and foreign court decisions. The results emphasize the importance of establishing clear criteria for incorporating foreign precedents, respecting the particularities of each nation. Although the migration of constitutional ideas promotes dialogue and strengthens the basis for decisions, it is essential to balance the benefits with challenges, such as the preservation of national sovereignty and the cohesion of legal argumentation. Ultimately, the use of foreign precedents by the STF must be considered as an informative resource in terms of constitutional culture, not replacing the formal sources of Brazilian Law. Therefore, its methodology must be carefully designed to guarantee the integrity and autonomy of national law. 

Keywords: Constitutional ideas. Globalization. Constitutionalism.

INTRODUÇÃO 

O presente artigo tem como objeto de estudo a análise da utilização de precedentes estrangeiros pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Brasil, com foco na identificação e avaliação dos critérios que respaldam essa prática. Dessa forma, a migração de ideias constitucionais se delimita na análise de julgados da Suprema Corte dos Estados Unidos pelo Supremo Tribunal Federal. 

Assim, a migração de ideias constitucionais é o deslocamento de conceitos e princípios constitucionais de uma fonte para outra, muitas vezes ultrapassando as fronteiras nacionais, e que tem impacto sobre a interpretação e a aplicação do direito constitucional em um país distinto. No contexto deste artigo, a migração de ideias constitucionais se concentra na análise do uso de precedentes estrangeiros, com ênfase nas decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos, como componentes fundamentais na base argumentativa das decisões do Supremo Tribunal Federal no Brasil, ou seja ela é a própria utilização dos precedentes estrangeiros pelo STF. 

A migração de ideias constitucionais é fruto de fenômenos referentes à globalização do constitucionalismo. Cada Estado desenvolve o seu próprio direito interno, e coloca em sua Constituição Federal os principais valores e direitos que devem ser protegidos pelo próprio Estado. Casos concretos podem alcançar uma solução por meio da observância de tais direitos, que são oponíveis contra o Estado e contra particulares. 

No entanto, em casos difíceis e específicos, tem-se observado que o Supremo Tribunal Federal tem recorrido a argumentos de precedentes constitucionais estrangeiros. Assim, nos votos dos Ministros, eles citam casosestrangeiros que se assemelham ao caso que está em julgamento, ou que possuam argumentos que podem ser invocados na resolução do caso nacional. A migração de ideias constitucionais proporciona o diálogo entre Cortes estrangeiras, bem como a integração constitucional entre países. O Brasil, por meio do Supremo Tribunal Federal já utilizou em suas decisões, ideias constitucionais da Alemanha, Espanha, Estados Unidos, dentre outros países. 

Trata-se de um fenômeno que, à primeira vista, se mostra benéfico para o Direito, pois permite o diálogo internacional, elevando a globalização do constitucionalismo em um nível especialmente importante. No entanto, existem muitas questões práticas que trazem dificuldades para a adoção da migração de ideias constitucionais, logo é importante analisar os pontos positivos e negativos que merecem uma análise cuidadosa e ponderada, uma vez que trará uma visão abrangente dos desafios e benefícios associados ao uso de precedentes estrangeiros. 

O objetivo geral deste estudo consiste na análise dos fundamentos que respaldam a utilização de precedentes estrangeiros, buscando identificar a presença de critérios para essa prática, bem como na avaliação dos impactos positivos e negativos decorrentes dessa abordagem. 

Os objetivos específicos consistem em compreender no que consiste o fenômeno da globalização do constitucionalismo; definir migração de ideias constitucionais; verificar se há critérios para a utilização dos precedentes estrangeiros no sistema jurídico nacional; apontar a importância do diálogo entre as Cortes e apontar julgados nacionais do Supremo Tribunal Federal em que os Ministros utilizaram, em seus votos, argumentos retirados de casos julgados pela Suprema Corte dos Estados Unidos. 

A problemática que se pretende responder é se há um método e/ou critérios para adoção da migração de ideias constitucionais no Brasil? 

A justificativa para a escolha do tema reside na necessidade de aprofundamento teórico na utilização de precedentes estrangeiros pelo STF, para entender se há um método e/ou critério para esse uso, e, não havendo, verificar a necessidade de estabelecer tais critérios. Conforme apontado por Signoretti (2013), o método proposto envolve três etapas: demonstração do elemento de conexão, que exige a identificação de vínculos entre o caso brasileiro e o precedente estrangeiro; contextualização, que requer a análise do contexto histórico, cultural, político e jurídico do precedente; e, por fim, a avaliação da pertinência, que considera a compatibilidade do precedente com o ordenamento jurídico brasileiro e sua relevância na solução do caso concreto. Contudo, trata-se apenas de sugestão de obra científica que, na prática, não foi adotada pelo STF. 

Esse fenômeno encontra-se em voga, notadamente porque se refere a globalização do constitucionalismo, assunto relevante dentro do próprio Direito Constitucional. O tema se relaciona com a modernidade, e com a possibilidade de unificação de entendimentos a nível global. 

Quanto à metodologia, o artigo utilizou-se do método dedutivo e da pesquisa bibliográfica, sendo que toda a fundamentação retirada de livros e artigos sobre o tema, bem como de julgados nacionais e estrangeiros. 

Com o fim de cumprir os objetivos inicialmente apontados, o artigo é dividido em dois tópicos principais, com seus devidos subtópicos. No primeiro, a discussão é focada nos aspectos conceituais da migração de ideias constitucionais, se valendo do entendimento de globalização do constitucionalismo e dos critérios necessários para a utilização dos precedentes estrangeiros nas decisões nacionais. No segundo tópico, o estudo vai se delimitando, com foco na integração entre Estados Unidos e Brasil, partindo da compreensão sobre o diálogo entre as Cortes, possíveis dificuldades e questões práticas e, por fim, análise de casos que chegaram ao Supremo Tribunal Federal, em que os Ministros se utilizaram de argumentos/ideias da Suprema Corte dos Estados Unidos, e de que forma esses precedentes constitucionais estrangeiro foram selecionados, como também os pontos positivos e negativos da utilização desses precedentes estrangeiros. 

1. A MIGRAÇÃO DE IDEIAS CONSTITUCIONAIS 

1.1. A GLOBALIZAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO 

A globalização do constitucionalismo é responsável por gerar forte impacto nos estudos acadêmicos, revitalizando o Direito Constitucional Comparado, notadamente nas últimas décadas. 

A partir das transições democráticas em países da Europa, a democracia passou a se difundir no cenário político mundial, assim, passou-se a exigir uma maior proteção de valores como a liberdade e a igualdade. Essa nova realidade proporcionou a formação de uma rede de valores e direitos que, em decorrência dos influxos da globalização, deram origem ao surgimento de questões parecidas nos mais diversos países (SOARES, et. al., 2020). 

Na concepção do positivismo legalista, a exclusividade da produção jurídica é conferida ao Estado, que proclama o monopólio de todo o direito, e confere à lei a categoria de fonte do direito por excelência, com força absoluta sobre qualquer outra normatividade (CAMPUZANO; MORAIS, 2021). 

Cunha (2010, p. 246) explica que a ideia de neoconstitucionalismo pode se interligar com a ideia de globalização do constitucionalismo, isso porque além das novas perspectivas hermenêuticas extraídas e da constitucionalização de todo o Direito, há uma universalização do projeto constitucional. Nesse vértice, “o Estado de Direito, o Estado de Direito democrático […] são sucessivos adquiridos da civilização euro-americana em notória e aparentemente imparável expansão para a totalidade do globo” . 

Nas palavras de Freire (2014, p. 99), o crescimento da globalização do constitucionalismo se deve “à constatação da ocorrência de alguns fenômenos em âmbito global cujos efeitos não se limitam à esfera do Direito”. Tratam-se de fenômenos relativamente novos, representando novos desafios ao estudo do Direito Constitucional. 

Assim, o constitucionalismo em contexto global se funda em valores e princípios constitucionais gerais, que também são globalizados. Exemplo dessa universalização é a busca da felicidade, do inglês pursuit of happiness, encontrado na declaração de independência dos EUA (CUNHA, 2010). 

Dentro da compreensão da globalização constitucional surge diversas novas temáticas passíveis de compreensão, como é o caso da migração de ideias constitucionais, objeto de estudo do presente artigo. 

Nesse diapasão, nas palavras de Setti (2021, p. 231), a globalização do conhecimento e “o fácil acesso a conteúdo jurídico de outros países também tornam cada vez mais difícil para Cortes se isolarem de influências externas. Assim, é cada vez mais comum que haja referências a decisões e conceitos estrangeiros nos tribunais nacionais”. O autor afirma, então, que as Cortes não conseguem se isolar de influências externas em decorrência do fácil acesso de decisões de outros países, notadamente as que mais repercutem nacional e mundialmente. 

Essa globalização provoca, nas palavras de Freire (2014, p. 99) uma “desterritorialização do Direito”, reduzindo os obstáculos existentes na interação entre jurisdições nacionais e internacionais. Por isso se utiliza da expressão “globalização” na explicação desse fenômeno constitucional. 

1.2. DELIMITAÇÃO CONCEITUAL DO FENÔMENO 

Como explicado no tópico anterior, as transições democráticas na política mundial possibilitaram a construção de uma rede de valores e direitos, e a globalização potencializou o compartilhamento de informações e modelos jurídicos entre os países. 

Assim, acaba se tornando natural no Direito a existência de “algum intercâmbio de ideias entre as Cortes Constitucionais desses países que, não obstante as diferenças culturais, históricas ou mesmo entre sistemas jurídicos, compartilham a ampla aceitação da igualdade, da liberdade e da democracia”. (SOARES, et. al., 2020, p. 62) 

No mesmo sentido é o entendimento de Freire (2014), que explica que o direito se tornou um bem intercambiável, conclusão essa que é alcançada a partir de uma constatação inegável: a comunicação entre tribunais/Cortes se intensificou, e as fronteiras políticas não limitam mais a circulação do Direito entre as mais diferentes jurisdições. 

De acordo com Soares et. al., (2020, p. 64), a migração de ideias constitucionais surge como “um elemento persuasivo da argumentação jurídica que é exigida pela própria integração do Direito à moralidade política dominante, compartilhada pela maior parte dos países democráticos ocidentais”, e por esse motivo é legitimamente democrática. 

Barroso (2020, p. 487) explica que “vive-se, porém, um momento de migração de ideias constitucionais, de cosmopolitanismo, de um discurso transnacional”. Há um patrimônio comum que é compartilhado entre os países democráticos, e que se expressa em uma semântica que aproxima tais países em valores e propósitos, essa é a ideia da migração de ideias constitucionais. 

A migração de ideias constitucionais é, portanto, o ato de importar ou exportar, para além da norma positivada no ordenamento jurídico nacional, ideias e teorias constitucionais. 

Nas palavras de Teixeira e Fonseca Júnior (2019, p. 41), a migração de ideias constitucionais surge da ideia de transplante legal: 

Ele se traduz quase que em sua totalidade na figura do transplante legal (Watson, 1974), o qual em seu sentido estrito, diz respeito ao transplante de, tão somente, regras escritas ou positivadas nos ordenamentos transplantados sem qualquer alteração, modificação ou adaptação do texto transplantado. Em outra perspectiva, sentido amplo, o transplante ocorre por meios de jurisprudência e teorias Constitucionais, fora do texto juspositivo, daí porque os Empréstimos 
Constitucionais ganham tal relevância, visto que fogem do ideal iniciam de meras acepções de texto constitucionais de outros sistemas mas sim traz consigo todo o arcabouço jurisprudencial do texto em si. 

Por outro lado, Signoretti (2013) explica que, embora semelhantes, a migração de ideias constitucionais não deve se confundir com a ideia de transplante legal. É evidente que ambas as teorias possuem o mesmo objeto: a transferibilidade de normas e institutos jurídicos, no entanto, em uma perspectiva relacionada às premissas assumidas, essas teorias são opostas, pois a transferência de normas não é possível sem que haja a perda do seu significado nesse processo de transferência. As Cortes se valem da migração de ideias de constituição com o fim de buscar melhores argumentos ou auferir um possível consenso mundial, sem se ater a base da transferência integral de um sistema/normal, mas sim da migração de um entendimento quando passível de ser adotado pela outra Corte. 

Muito importante ressaltar que o uso dos direitos estrangeiros e internacionais na interpretação constitucional realizada por tribunais é somente uma das formas de migração de ideias constitucionais, mas uma das mais conhecidas. Mas também é possível a migração por meio de utilização de normas internacionais e de Constituições estrangeiras como modelos no processo de elaboração de uma nova Constituição, principalmente em momento de transição constitucional, por exemplo (FREIRE, 2014). 

Freire (2014) também destaca que a migração de ideias constitucionais tem sido observada em diversos países, como Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Argentina, México, Rússia, Suíça, Itália, Espanha, Austrália, dentre outros, o que evidencia que o fenômeno tem se tornado global. 

Teixeira e Fonseca Júnior (2019) apontam que esse fenômeno é observado, especialmente, em países de produção constitucionalista recente, tendo em vista a dificuldade existente em consolidar as suas próprias instituições nacionais. Assim, há a busca por uma integração constitucional de ideias de outros Estados. 

Logo, a migração de ideias constitucionais é visualizada em muitos países, e representa a globalização do constitucionalismo, permitindo a adoção de argumentos de uma Corte nas decisões de outra Corte, de outro Estado. 

1.3. CRITÉRIOS PARA A UTILIZAÇÃO DOS PRECEDENTES ESTRANGEIROS NO SISTEMA JURÍDICO NACIONAL 

Em casos difíceis, onde o direito interno, considerando a doutrina e os precedentes judiciais, não conseguem resolver o litígio, Tomazoni (2019) aponta que a utilização de referências estrangeiras de natureza constitucional vem se tornando uma prática comum. Mas questiona-se se existem critérios a serem adotados nesse contexto. 

Posto isso, tendo em vista que a problemática em comento é considerada recente, a doutrina, quanto aos critérios ou elementos de conexão, está indubitavelmente em construção, o que se evidencia na falta de metodologia veraz para o uso de precedentes estrangeiros nas decisões do Supremo Tribunal Federal. Contudo, para fins deste trabalho, será discorrido brevemente alguns dos principais critérios sugeridos pela doutrina. 

O autor Signoretti (2013), apresenta um método contido em três etapas para a utilização de precedentes estrangeiros. A primeira etapa, que envolve a demonstração do elemento de conexão, é fundamental para estabelecer uma base sólida para a adoção de precedentes estrangeiros. Essa abordagem baseia-se na identificação de critérios, como a relação histórica entre os países, influências no processo constitucional e outros fatores que estabelecem a relevância do precedente estrangeiro para o contexto brasileiro. 

A segunda etapa, a contextualização, destaca a importância de entender o cenário em que o precedente estrangeiro foi estabelecido. Isso envolve a análise de fatores históricos, culturais, políticos e jurídicos que moldaram a decisão estrangeira. Essa compreensão aprofundada permite ao STF avaliar se o precedente é aplicável ao contexto brasileiro e se as razões subjacentes à sua criação têm relevância para os casos nacionais. 

Por fim, a terceira etapa, que se concentra na pertinência do precedente estrangeiro, é crucial para determinar a sua utilidade na resolução de casos concretos no Brasil. A avaliação da coerência do precedente com o ordenamento jurídico nacional, sua capacidade de enriquecer a argumentação e sua relevância para a solução de casos específicos garantem que a adoção de precedentes estrangeiros seja uma prática fundamentada e benéfica para a jurisprudência do STF. Esse método promove um uso responsável e criterioso de precedentes estrangeiros no sistema jurídico brasileiro, alinhando-se com a busca por decisões justas e fundamentadas. 

O autor Signoretti (2013), também apresenta critérios para esta utilização, sendo um deles a relação histórica entre os países envolvidos. Quando se observa uma conexão histórica significativa entre o Brasil e o país de origem do precedente estrangeiro, isso pode adicionar peso à sua relevância. Especialmente em casos que envolvem questões históricas ou culturais, essa relação histórica pode fornecer um argumento sólido para a utilização de precedentes estrangeiros, uma vez que a jurisprudência estrangeira pode trazer uma perspectiva enriquecedora e contextualizada. 

Outro critério importante é a análise das influências estrangeiras na feitura e reforma da Constituição brasileira e na importação de legislação. A consideração das influências internacionais no desenvolvimento do sistema legal brasileiro pode oferecer justificativas convincentes para a adoção de precedentes estrangeiros. A integração de conceitos e princípios legais de outras jurisdições pode enriquecer a compreensão das questões jurídicas nacionais e fortalecer o embasamento de decisões judiciais. 

Analisar as questões empíricas é outro critério relevante a ser considerado. Em casos que envolvem questões técnicas ou científicas, a análise de como outros países abordam desafios semelhantes pode ser fundamental. A utilização de precedentes estrangeiros para fins de análise empírica ou factual pode fornecer orientação valiosa para o STF na resolução de casos complexos que envolvem dados, estatísticas e evidências científicas. 

Além disso, a existência de valores comuns entre o sistema jurídico brasileiro e o sistema do país de origem do precedente estrangeiro é um critério que destaca a importância da coerência entre as jurisdições. Quando há valores e princípios compartilhados, a aplicação de precedentes estrangeiros se torna mais justificável, uma vez que eles podem se alinhar de maneira eficaz com o contexto brasileiro. 

Por fim, o uso negativo de precedentes estrangeiros é uma abordagem válida e flexível. Essa prática permite que o STF utilize jurisprudência estrangeira para demonstrar que uma determinada solução não é adequada para o caso concreto, oferecendo uma visão crítica e comparativa que pode ser altamente informativa na tomada de decisões judiciais. No conjunto, esses critérios fornecem um arcabouço sólido para a utilização criteriosa de precedentes estrangeiros no sistema jurídico brasileiro, assegurando que sua aplicação seja embasada e coerente com os princípios nacionais. 

Ademais, a migração de ideias constitucionais não demanda qualquer arcabouço legal ou formal para a sua ocorrência, exige somente “que haja uma integralidade do discurso adotado pelo Sistema que dialoga, tornando possível uma integração plena e superando o caráter vinculativo ou são de instâncias formais” (TEIXEIRA; FONSECA JÚNIOR, 2019, p. 43). 

Nesse vértice, não é necessária a autorização expressa no texto constitucional, tendo em vista que a utilização de precedentes estrangeiros, como bem salienta Signoretti (2013) não se baseia na noção de submissão, mas sim na ideia de diálogo de Cortes. 

A análise do texto constitucional é imperiosa, visto que é a partir desse exercício de interpretação que, em um primeiro momento, será possível verificar a real possibilidade de utilização de material alienígena, e em qual extensão se dará essa utilização (SIGNORETTI, 2013). 

2. DIREITO COMPARADO: INTEGRAÇÃO ENTRE ESTADOS UNIDOS E BRASIL 

2.1. A INTEGRAÇÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO ESTRANGEIRO: O DIÁLOGO ENTRE AS CORTES 

A integração constitucional entre diferentes sistemas é observada a partir de uma visão holística. Essa possibilidade de diálogo só é possível no plano palpável, isto é, em nível constitucional (TEIXEIRA; FONSECA JÚNIOR, 2019). 

No que se refere ao direito comparado, Setti (2021) explica que a comparação constitucional é importante na medida em que proporciona a promoção de uma determinada ideologia ou visão de mundo, com a sua possível adoção por parte de outrem. Nesse contexto, a globalização do conhecimento permite a adoção de conceitos estrangeiros como referência para as decisões nacionais, trazendo para o país, entendimentos de juristas de outros países.

Nesse diapasão, “sustenta-se que um discurso transnacional e a promoção da confluência entre o direito doméstico e o direito internacional são boas formas de se garantir o Estado de Direito e os direitos humanos” (FREIRE, 2014, p. 102). 

O diálogo entre as Cortes possibilita a adoção de decisões mais assertivas sobre temas importantes, como direitos humanos, por exemplo. Logo, o diálogo permite a troca de conhecimento e experiências locais, unindo diferentes Estados por meio de objetivos comuns. 

Tomazoni (2019, p. 60) também afirma: 

Essa prática permite uma perspectiva mais ampla e menos provinciana das questões discutidas, o que possibilita diagnosticar fragilidades e inconsistências dos pontos de vista aplicados no direito nacional; fornecendo auxílio nos casos de aplicação de instrumentos internacionais para questões muito teóricas, convidando ao monitoramento externo à luz do Direito Internacional. 

A migração de ideias constitucionais possibilita esse diálogo, isso é explicado por Freire (2014, p. 102) “ela serve para reforçar o diálogo transnacional e um Estado global de direito por meio de uma jurisprudência também global”. Por outro lado, conforme as palavras de Teixeira e Júnior (2019, p. 44), “a migração de ideias constitucionais permite uma integração sem vinculação formal das decisões supranacionais”. 

Como será visto posteriormente, o Brasil, por meio do STF, faz uso da migração de ideias constitucionais, citando em suas decisões julgados de vários países, como a Alemanha, a Espanha e os Estados Unidos. No caso desse último país, a recíproca não é verdadeira, pois o debate sobre esse fenômeno é muito intenso no país, tomando uma dimensão não apenas jurídica, mas também política. Um grupo respeitável de juízes norte-americanos da composição atual da Suprema Corte resistem a utilização da migração de ideias constitucional, se manifestando contra a ideia. 

2.2. DIFICULDADES E QUESTÕES PRÁTICAS 

Freire (2014) sustenta que a invocação judicial de normas, teses e precedentes estrangeiros tem sido vista como um instrumento argumentativo bastante forte, assim, existem vários argumentos a favor dessa prática. Entende-se que essa prática é valiosa para o preenchimento de lacunas, resolução de ambiguidades, bem como para a modernização do sistema nacional.

Dentro dessa perspectiva, os defensores ainda sustentam que na prática, a migração de ideias constitucionais diminuir os riscos de decisões erradas, tendo em vista que os tribunais já teriam soluções que foram aplicadas em outros países, e deram certo. 

No entanto, assim como há defensores da migração de ideias constitucionais, há aqueles que possuem argumentos contrários, visualizando possíveis dificuldades. Freire (2014) traz um dos pontos negativos que devem ser considerados: o risco da subordinação do direito constitucional nacional à projetos e ideias particulares de outros sistemas jurídicos, ocasionando um possível comprometimento da soberania nacional e da própria soberania da Constituição, uma vez que o tribunal estaria se submetendo a padrões internacionais que não são necessariamente adequados à realidade brasileira. Isso pode ser visto como uma forma de submissão do STF a outros países ou organizações internacionais, o que pode ser considerado prejudicial à soberania nacional. 

O autor ainda alerta a respeito da utilização de precedentes judiciais de sistemas jurídicos descentralizados: 

A prática de invocação de precedentes judiciais estrangeiros, sobretudo na resolução de questões que envolvem temas controversos, precisa ser ainda mais cuidadosa quando essas fontes são oriundas de sistemas jurídicos descentralizados, nos quais se permite desacordos razoáveis entre legislativos estaduais e federais e entre níveis distintos de jurisdição, pois, como se tem alertado, quando os empréstimos são feitos desses sistemas, a possibilidade 
de erro e de compreensão equivocada está longe de ser meramente 
hipotética (FREIRE, 2014, p. 113). 

Muitos estudiosos apontam a necessidade de se estabelecer uma metodologia para a migração de ideias constitucionais, bem como diretrizes normativas que possibilitem o uso seguro dos precedentes estrangeiros. 

2.3. O USO DOS JULGADOS DA SUPREMA CORTE AMERICANA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL 

Como estudado, a migração de ideias constitucionais é entendida como o movimento de um entendimento jurídico de um país para outro, ou seja, de um povo para outro. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal já utilizou julgados da Suprema Corte Americana, e é isso que deve ser analisado nesse momento. 

Sobre essa questão, Freire (2014) aponta que o Supremo Tribunal Federal tem decidido, como nunca, inúmeras questões constitucionais relevantes e difíceis, com grande repercussão social, como as relacionadas ao racismo, sobre a possibilidade de aborto de fetos anencéfalos, dentre outros. Por isso a migração de ideias constitucionais, a princípio, pode ser encarada como um movimento constitucional benéfico. 

O caso Ellwanger é o primeiro a ser citado, e trata-se do Habeas Corpus 82.424. O HC em questão foi julgado no ano de 2003, e se tornou um dos principais marcos sobre o racismo no Brasil, pois se relaciona com questões jurídicas, antropológicas. Biológicas e sociológicas. O paciente do processo foi Siegfried Ellwanger Castan, acusado de racismo após negar, por meio de obras literárias publicadas, a amplitude e a existência do holocausto, incentivando a discriminação racial, e imputando aos judeus todos os males do mundo, o que, segundo Ellwanger, justificaria a doutrina nazista. 

Na decisão, os então ministros Maurício Correia, Moreira Alves, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello citaram precedentes estrangeiros em sua fundamentação. 

Maurício Correia citou dois casos americanos, quais sejam: United States v. Lemrick Nelson3 e Shaare Tefila Congregation v. Cobb (481 U.S. 615 – 1987)4, concluindo que: 

Mostra-se, assim, que no direito comparado o problema da segregação racial é enfrentado atribuindo-se ao termo raça uma conotação mais complexa, sempre com o objetivo de assegurar o efetivo respeito aos postulados universais da igualdade e dignidade da pessoa humana. 

Assim, o Ministro, em seu voto, pugnou pelo indeferimento do Habeas Corpus. Já o Ministro Moreira Alves, em seu voto, citou também o Shaare Tefila Congregation v. Cobb (481 U.S. 615 – 1987), e o RAV v. City of Saint Paul (05 U.S. 377 – 1992)5, explicando que nesse último caso, o acusado RAV, menor de idade, foi absolvido em decorrência da prevalência da liberdade de expressão. 

Gilmar Mendes cita diversos casos estrangeiros, dentre eles o Shaare Tefila Congregation v. Cobb (481 U.S. 615 – 1987) e Schenck v. United States6 da Suprema Corte Americana. 

Marco Aurélio, em seu voto, cita vários precedentes americanos: Miller v. California7, Falwell v. Hustker Magazine Inc8, dentre outros casos da Suprema Corte Americana, e de outros países. Celso de Mello, por fim, fundamenta seu voto no caso Schenck v. United States, já citado anteriormente. 

Nota-se, portanto, que os Ministros trazem vários casos julgados pela Suprema Corte dos EUA, mas em detida análise de todo o documento, que possui 488 páginas, é possível notar que não há um critério na invocação desses casos, os Ministros simplesmente os citam, trazendo seus argumentos, visando estruturar seus próprios votos. 

Realizando uma crítica sobre esse caso, Signoretti (2013, p. 130) expõe: “Não se entende, por exemplo, porque os ministros Moreira Alves e Marco Aurélio recorreram à jurisprudência estrangeira, pois os julgados citados em nada interferiram com o resultado de suas opiniões”. 

Signoretti (2013) explica que o uso dos precedentes pelo Supremo Tribunal Federal é feito de forma injustificada, sem qualquer esclarecimento ou padrão. Assim, é importante que a Corte utilize elementos de conexão, contextualização, pertinência etc., visando trazer um padrão coerente para essa utilização, além de fixar critérios necessários. 

Analisa-se que o caso citado não seguiu adequadamente os critérios de utilização, pois não houve uma demonstração clara do elemento de conexão entre o caso brasileiro e os precedentes estrangeiros, nem uma contextualização adequada desses precedentes. Além disso, a utilização desses precedentes estrangeiros pode ter comprometido a coerência do ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que a jurisprudência do STF já havia consolidado entendimento contrário à imprescritibilidade do crime de racismo. 

O segundo caso que deve ser analisado é o da Lei de Imprensa, julgado na ADPF 130. Trata-se da análise referente a recepção ou não da Lei de Imprensa pela Constituição Federal, tendo em vista que ela foi elaborada à época da ditadura militar, período histórico em que havia a regulação dos meios de comunicação. Os Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello se valeram de precedentes estrangeiros na fundamentação de seus votos. 

Gilmar Mendes menciona a 1° Emenda Americana9 que tata da liberdade de imprensa. O Ministro menciona, ainda, os casos Abrams v. United States10 e Whitney v. California11, dentre outros precedentes americanos e de outros países. 

A utilização do caso acima seguiu adequadamente os critérios de utilização, pois houve uma demonstração clara do elemento de conexão entre o caso brasileiro e os precedentes estrangeiros, bem como uma contextualização adequada desses precedentes. Destaca-se que a utilização desse precedente foi pertinente para a solução do caso concreto brasileiro, uma vez que a Lei de Imprensa brasileira era uma norma ultrapassada e incompatível com os valores constitucionais brasileiros. Além disso, contribuiu para a coerência do ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que a decisão do STF foi coerente com a jurisprudência internacional sobre liberdade de expressão. 

Celso de Mello, por sua vez, se utilizou da citação de ementas estrangeiras, por meio de passagens transcritas. Nota-se, portanto, que por não haver um critério específico na migração das ideias constitucionais, não fica claro qual a intenção dos ministros na sua utilização. 

A respeito disso cita Signoretti (2013, p. 142): 

 

Não se depreende exatamente qual a relação delas (decisões) com o caso sob análise, ou seja, não se sabe até que ponto os dispositivos da lei de imprensa eram comparáveis com os litígios que deram origem aos precedentes estrangeiros citados. Não bastasse isso, não houve qualquer justificativa para o fato de se recorrer à jurisprudência dos Estados Unidos, país com forte tradição liberal, 
onde a liberdade de expressão é bastante protegida. 

Por fim, cabe mencionar o caso das cotas para as universidades públicas, julgadas na ADPF 186, com foco no voto do Ministro Ricardo Lewandowski. Ele menciona três casos da Suprema Corte dos EUA, quais sejam: Bakke v. Regents the University of California (1978)12, Gratz c. Bollinger (2003)13 e Grutter v. Bollinger (2003)14

Em seu voto o Ministro explicou os casos mencionados, afirmando que no caso Bakke, a decisão foi mantida, sendo compreendido que a raça pode ser considerada um elemento na política de admissão da universidade. E no caso Grutter, que afirmou ter sofrido discriminação por ser branca, em primeira instância a seleção da Universidade foi considerada inconstitucional já na apelação, a decisão foi reformada. Após recurso, a Corte Americana confirmou a constitucionalidade das ações afirmativas. 

Signoretti (2013) aponta que a decisão americana sobre o tema se funda na noção de diversidade cultural ou étnica na Universidade, e não na ideia de igualdade material que foi utilizada pelo Ministro brasileiro. A intenção do Ministro era demonstrar que nos Estados Unidos a política de cotas era aceita. 

Assim, verifica-se que o caso não seguiu adequadamente os critérios de utilização, pois não houve uma demonstração clara do elemento de conexão entre o caso brasileiro e os precedentes estrangeiros, nem uma contextualização adequada desses precedentes. Além disso, não foi pertinente a solução do caso concreto brasileiro, uma vez que a Constituição brasileira já previa a possibilidade de cotas para concursos públicos. 

Outras decisões brasileiras também se utilizam de argumentos da Suprema Corte Americana, como o sacrifício de animais em rituais religiosos (RE 494.601/RS), A federação como laboratório da democracia (RE 1.188.352/DF) e a gênese da liberdade de expressão acadêmica (HC 40.910/PE). 

É notório, portanto, que precedentes do direito estrangeiro, por meio da migração de ideias constitucionais, são comumente utilizados em temas importantes. O grande problema, como ressaltado por alguns autores, é a falta de critério na sua utilização. 

Nesse diapasão, Tomazoni (2019) aponta que essa ausência de critério deve ser encarada como um problema, mas isso não significa que a não adoção de um critério torne a prática nociva, o uso pode ocorrer, mas deve atender as particularidades de cada sociedade. Nem toda nação pode fornecer material adequado para o uso comparativo. 

Freire (2014) aponta que não é coerente recorrer indiscriminadamente às normas estrangeiras e às decisões proferidas por outras Cortes constitucionais e internacionais, sob pena de haver a perda de vista de questões importantes relacionadas à realidade brasileira. 

Por outro lado, Signoretti (2013) destaca os benefícios potenciais da utilização de precedentes estrangeiros. Ele aponta que essa abordagem pode enriquecer a argumentação legal, especialmente em casos que envolvem questões normativo-morais complexas e contramajoritárias, fortalecendo, assim, a base das decisões judiciais. Além disso, a análise de precedentes estrangeiros pode contribuir para decisões mais sólidas e bem fundamentadas. No entanto, ele também reconhece preocupações relacionadas à seleção arbitrária de fontes de argumentação, o que pode sobrecarregar os juízes e prejudicar a coesão da argumentação, bem como a consistência das decisões judiciais. 

Tomazoni (2019), por sua vez, discute preocupações relacionadas à subordinação do Direito Constitucional nacional a projetos particulares de outros sistemas, o que poderia comprometer a soberania nacional. Além disso, há críticas sobre a possibilidade de mitigar a discricionariedade judicial ao interpretar a constituição à luz do direito transnacional, visando a aumentar a racionalidade das decisões e fomentar a discussão sobre a eficácia das diferentes soluções para questões semelhantes. Argumentos normativos respaldam o uso voluntário do direito estrangeiro em casos que envolvem direitos fundamentais, sendo um deles pragmático, pois permite aprender com jurisdições que enfrentaram situações semelhantes, enquanto o segundo argumento se baseia no princípio de tratar casos semelhantes de forma igual. 

Neves (2014) complementa a discussão, argumentando que no âmbito positivo, destaca-se a capacidade de enriquecer o debate e a argumentação jurídica, especialmente em casos relacionados a direitos fundamentais, promovendo a convergência entre as ordens jurídicas. Porém, surgem preocupações, como a possível percepção de “colonialismo” jurídico, a tendência retórica e inconsistente na referência à jurisprudência estrangeira, que pode prolongar os julgamentos, e o risco de aplicação de doutrinas e teorias estrangeiras inadequadas ao contexto brasileiro. 

Mello e Graça (2020) exploram como o uso de precedentes estrangeiros pode influenciar a transferência de ideias constitucionais de várias maneiras distintas. Por um lado, ao referenciar precedentes estrangeiros, os tribunais podem sinalizar abertura e engajamento com outras jurisdições, potencialmente estimulando a adoção de novas ideias e práticas jurídicas. Além disso, essa prática pode contribuir para a harmonização do direito internacional dos direitos humanos e fortalecer a colaboração entre cortes nacionais e internacionais. 

Por fim, os autores abordam que, por outro lado, a referência a precedentes estrangeiros pode ser vista como uma mera ornamentação, refletindo uma valorização superficial do que é estrangeiro, sem uma análise aprofundada do conteúdo e da aplicabilidade desses precedentes. Nesse contexto, o uso de precedentes estrangeiros pode não ter um impacto substancial na transferência de ideias constitucionais. Assim, os precedentes são utilizados meramente como base argumentativa. 

CONCLUSÃO 

Como estudado no desenvolvimento do presente artigo, a migração de ideias constitucionais surge da globalização do constitucionalismo, que se funda em valores e princípios constitucionais gerais, compartilhados pelos Estados. Essa globalização faz surgir a chamada “desterritorialização do Direito”, possibilitando a integração entre diversos sistemas jurídicos mundiais. 

Assim, a migração de ideias constitucionais não é um fenômeno recente, mas vem se difundindo aos poucos. Trata-se de ideias e argumentos compartilhados entre os países em diferentes situações, há a importação e exportação de argumentos por meio da globalização do constitucionalismo. 

Esse fenômeno pode ocorrer de diversas formas, sendo que a mais comum é o uso do direito estrangeiro na interpretação constitucional. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal se utiliza desse fenômeno há anos, se valendo de fundamentações de decisões de países europeus e norte-americanos, como é o caso dos Estados Unidos. 

No desenvolvimento, que focou exclusivamente na migração de ideias constitucionais da Corte dos estados Unidos, pelo Supremo Tribunal Federal, foram citados três casos específicos: O caso Ellwanger (HC 82.424), o caso da Lei de Imprensa (ADPF 130) e o caso das cotas em universidades públicas (ADPF 186), em todos esses casos, e outros que não foram abordados na pesquisa, os Ministros se utilizam de argumentos de casos da Corte americana. 

Indubitavelmente, a migração de ideias constitucionais apresenta benefícios evidentes ao promover um diálogo dinâmico entre as Cortes de diferentes nações. No entanto, ressalta-se que, no âmbito desse contexto, emerge uma necessidade premente: a implementação de uma metodologia para a escolha e aplicação criteriosa de decisões estrangeiras. Essa abordagem metodológica é essencial para considerar as particularidades de cada país, reconhecendo que nem todo argumento estrangeiro se adequa à realidade brasileira. 

Nesse sentido, o uso de precedentes estrangeiros pelo STF é uma questão complexa que suscita diversas perspectivas e preocupações legítimas. Enquanto essa prática pode efetivamente enriquecer o debate jurídico, fortalecer a fundamentação das decisões e contribuir para uma jurisprudência mais alinhada com os princípios constitucionais, é inegável que também traz à tona questões sensíveis relacionadas à soberania nacional, à coesão da argumentação jurídica e à previsibilidade das decisões proferidas. 

Assim, é imperativo compreender que a incorporação responsável de precedentes estrangeiros demanda um equilíbrio cuidadoso entre os benefícios e desafios inerentes a essa prática. Os tribunais, e em particular o STF, devem considerar os potenciais benefícios da migração de ideias constitucionais, uma vez que o foco é a base argumentativa desses precedentes.  

No que concerne ao valor normativo desses precedentes, é importante destacar que eles desempenham um papel de fundamentação, não se equiparando a nenhuma das fontes do Direito brasileiro. Devem ser invocados com a finalidade de reforçar o entendimento do julgador, trazendo, sempre que aplicável, os argumentos utilizados em decisões da Suprema Corte estrangeira. É fundamental perceber que esse fenômeno deve ser visto primordialmente como um elemento informativo que enriquece a cultura constitucional nacional, sem comprometer sua integridade e autonomia. 

Portanto, a migração de ideias constitucionais é uma prática que, quando realizada de maneira consciente e criteriosa, pode aprimorar o sistema jurídico ao promover uma maior interação entre as jurisdições e ampliar o repertório de argumentos disponíveis. 


3 Em 1991, uma caminhonete atingiu duas crianças na área de Crown Heights, no Brooklyn, Nova York. O motorista do carro era judeu e as duas crianças eram afro-americanas. Algumas pessoas socorreram as crianças (sendo que uma faleceu), outras agrediram o motorista. Uma grande multidão passou a perseguir e agredir judeus, como vingança, e Lemrick Nelson era um desses perseguidores e agressores. Nelson foi julgado no Tribunal do Estado de Nova York por várias acusações, incluindo assassinato em segundo grau. Em outubro de 1992, um júri estadual absolveu Nelson de todas as acusações. Em 14 de maio de 2003, um júri federal condenou novamente Nelson sob a acusação de violar 18 USC §245(b)(2)(B). Nelson foi condenado a 10 anos de prisão seguidos de três anos de liberdade condicional. Caso na íntegra disponível em: https://www.justice.gov/crt/criminal-section-selected-case-summaries#interferencereligion. Acesso em 14 nov. 2022.
4 Após a sinagoga ser pintada com slogans, frases e símbolos anti-semitas, os peticionários entraram com uma ação no Tribunal Distrital Federal, alegando que a profanação pelos réus violou 42 USC § 1982. O Tribunal Distrital indeferiu as reivindicações dos peticionários e o Tribunal de Apelações afirmou, sustentando que a discriminação contra os judeus não é discriminação racial nos termos do § 1982. A Suprema Corte Americana reformou a decisão, entendendo que, apesar de serem judeus, estavam eles tutelados pela legislação de 1982, que tinha o objetivo de proteger certos grupos de discriminações. Caso na íntegra disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/481/615/. Acesso em 14 nov. 2022.
5 Depois de queimar uma cruz no gramado de uma família negra, o peticionário RAV foi acusado, inter alia, pela Portaria de Crime Motivado por Preconceito de St. Paul, Minnesota, que proíbe a exibição de um símbolo que alguém sabe ou tem motivos para saber que “desperta raiva, alarme ou ressentimento em outros com base em raça, cor, credo, religião ou gênero”. O tribunal de primeira instância rejeitou essa acusação alegando que a portaria era substancialmente exagerada e inadmissivelmente baseada em conteúdo, mas a Suprema Corte do Estado reverteu rejeitando a alegação exagerada do peticionário. O peticionário recorreu e a Suprema Corte dos Estados Unidos. Assim, a Suprema Corte derrubou o decreto municipal. A decisão da Suprema Corte, citando a violação da Primeira Emenda, anulou uma condenação em chamas. Caso na íntegra disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/505/377/. Acesso em 14 nov. 2022.
6 Durante a Primeira Guerra Mundial, o Congresso aprovou a Lei de Espionagem de 1917, que tornou crime transmitir informações destinadas a interferir no esforço de guerra. A lei tornou crime transmitir informações destinadas a interferir no esforço de guerra. Em Schenck v. Estados Unidos , Charles Schenck foi acusado sob a Lei de Espionagem por enviar circulares impressas criticando o alistamento militar. Escrevendo para um tribunal unânime, o juiz Oliver Wendell Holmes manteve a condenação de Schenck e decidiu que a Lei de Espionagem não entrava em conflito com a Primeira Emenda. Logo, em Schenck v. Estados Unidos foi o caso legal em que a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, em 3 de março de 1919, que a proteção da liberdade de expressão prevista na Constituição dos Estados Unidos, A Primeira Emenda, poderia ser restringida se as palavras faladas ou impressas representassem para a sociedade um “perigo claro e presente”. Caso na íntegra disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/249/47/. Acesso em 14 nov. 2022. 
7 O apelante foi condenado por enviar material sexualmente explícito não solicitado em violação a um estatuto da Califórnia que incorporava aproximadamente o teste de obscenidade formulado em Memoirs v. Massachusetts, 383 US 413 , 383 US 418 (opinião de pluralidade). O tribunal de primeira instância instruiu o júri a avaliar os materiais de acordo com os padrões da comunidade contemporânea da Califórnia. A condenação do apelante foi confirmada em recurso. Caso na íntegra disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/413/15/. Acesso em 14 nov. 2022. 
8 Uma história principal na edição de novembro de 1983 da Hustler Magazine apresentava uma “paródia” de um anúncio, modelado após uma campanha publicitária real, alegando que Falwell, um ministro fundamentalista e líder político, teve um relacionamento incestuoso bêbado com sua mãe em um banheiro externo. Falwell processou para recuperar danos por difamação, invasão de privacidade e imposição intencional de sofrimento emocional. Falwell ganhou um veredicto do júri sobre a alegação de sofrimento emocional e recebeu um total de US $ 150.000 em danos. A revista Hustler recorreu. Caso na íntegra disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/485/46/. Acesso em 14 nov. 2022. 
9 O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas.
10 Em 1918, os Estados Unidos participaram de uma operação militar em solo russo contra a Alemanha depois que a Revolução Russa derrubou o regime czarista. Imigrantes russos nos EUA circularam literatura pedindo uma greve geral nas fábricas de munição para minar o esforço de guerra dos EUA. Os réus foram condenados por dois panfletos jogados de uma janela da cidade de Nova York. Um denunciou o envio de tropas americanas para a Rússia, e o segundo denunciou a guerra e defendeu a cessação da produção de armas para serem usadas contra os “soviéticos operários da Rússia”. Eles foram condenados a 20 anos de prisão. Caso na íntegra disponível em: https://www.oyez.org/cases/1900-1940/250us616. Acesso em 14 nov. 2022. 
11 Charlotte Anita Whitney, membro fundadora do Partido Trabalhista Comunista da Califórnia, foi processada sob a Lei de Sindicalismo Criminal da Califórnia por ajudar a organizar um grupo que buscava efetuar mudanças econômicas e políticas por meio do uso ilegal da violência. Whitney argumentou que não pretendia que a organização agisse dessa maneira e não planejava ajudá-la nesses objetivos. Ela alegou que a lei da Califórnia violou a Primeira Emenda. Caso disponível na íntegra em: https://www.oyez.org/cases/1900-1940/274us357. Acesso em 14 nov. 2022.
12 Bakke era um homem branco que se candidatou à faculdade de medicina da Universidade da Califórnia em Davis. Embora sua pontuação de admissão estivesse bem acima da média dos admitidos e a escola tivesse vagas abertas quando ele se inscreveu, sua inscrição foi rejeitada por causa do sistema de cotas raciais da escola. Assim, o Tribunal decidiu que um sistema de cotas que exclui candidatos apenas por causa de sua raça é discriminação racial e que a Universidade não tinha uma razão convincente com meios razoavelmente adaptados para superar o padrão constitucional de escrutínio estrito. Caso na íntegra disponível em: https://www.law.cornell.edu/wex/regents_of_the_university_of_california_v_bakke_(1978)#:~:text=Primary%20tabs-,Regents%20of%20the%20University%20of%20California%20v.,Civil%20Rights%20Act %20of%201964.. Acesso em 14 nov. 2022.
13 Em 1995, Jennifer Gratz e Patrick Hamacher solicitaram admissão na Faculdade de Literatura, Ciências e Artes (LSA) da Universidade de Michigan como residentes do estado de Michigan. Ambos são descendentes de caucasianos. Ambos tiveram a admissão negada e disseram que, embora fossem qualificados, não eram candidatos competitivos o suficiente para serem admitidos na primeira avaliação; Caso na íntegra disponível em: https://www.oyez.org/cases/2002/02-516. Acesso em 14 nov, 2022. 
14 Em 1997, Barbara Grutter, uma residente branca de Michigan, solicitou admissão na Faculdade de Direito da Universidade de Michigan. Grutter se inscreveu com um GPA de graduação de 3,8 e uma pontuação LSAT de 161. Ela foi negada a admissão. A Faculdade de Direito admite que usa a raça como um fator na tomada de decisões de admissão porque atende a um “interesse convincente em alcançar a diversidade entre seu corpo discente”. O Tribunal Distrital concluiu que o interesse declarado da Faculdade de Direito em alcançar a diversidade no corpo discente não era convincente e proibiu o uso da raça no processo de admissão. Caso na íntegra disponível em: https://www.oyez.org/cases/2002/02-241. Acesso em 14 nov. 2022. 


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1Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (2018). Vasta experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Teoria Política, atuando principalmente nos seguintes temas: democracia; ética; teoria política clássica; judiciário; comportamento político; governança eleitoral.
2Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Tocantins. Servidor Público estadual do Tocantins, atuando como Assessor I na Defensoria Pública do Tocantins, lotado no Núcleo Especializado de Conciliação e Mediação – NUMECON. Membro do Grupo de Extensão Humanizando o Direito.