LIVING IN ONE’S OWN BODY: REPORT OF AN INTERNSHIP AIMED AT PRODUCING EMANCIPATED SUBJECTIVITIES BASED ON BODILY EXPERIMENTATIONS
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202409251029
Taís Carvalho Soares¹;
Lívia de Brito Monteiro²;
Thiago Dornelas França³.
Resumo
Este artigo examina os resultados de um estágio profissional em Psicologia realizado na Universidade Federal de São João del-Rei. O projeto baseou-se fundamentalmente nos conceitos-ferramenta de Deleuze e Guattari, na técnica dos Grupos Operativos de Pichon-Rivière e em trabalhos de educação corporal para a realização das práticas estéticas propostas. As atividades incluíram experiências sensoriais, modelagem com argila, dança e discussões em grupo. Os resultados indicam que as atividades foram eficazes em desafiar padrões corporais rígidos e em fomentar novas formas de expressão e atenção ao corpo na clínica. A intervenção destacou a relevância da integração entre práticas psicológicas e abordagens artísticas para a produção de saúde coletiva, sugerindo potencial para novas interpretações na construção de conhecimentos sobre corpo e clínica.
Palavras-chave: Estágio Profissional. Psicologia Clínica. Saúde Coletiva. Corpo.
O presente artigo objetiva descrever, comentar e discutir os resultados de um processo de pesquisa e intervenção em saúde coletiva com ferramentas metodológicas da psicologia, das artes e filosofia. Este processo foi conduzido durante a realização de um estágio profissional supervisionado em Psicologia na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) ao longo de um semestre letivo, no ano de 2023. A pesquisa possui uma proposta interventiva que buscou explorar as potencialidades do corpo como um dispositivo de produção de subjetividade. Intitulada “Viver no Próprio Corpo”, essa iniciativa recebeu o apoio fundamental da Pró-Reitoria de Gestão e Desenvolvimento de Pessoas da UFSJ, que possibilitou a formação de grupos de trabalho nos três campi da universidade, envolvendo Técnicos Administrativos em Educação. A colaboração permitiu a integração teórica e prática de abordagens contemporâneas nas áreas de Psicologia, Educação e Artes. Além de descrever os procedimentos e práticas realizadas, procuramos expor os resultados do processo e seus possíveis encaminhamentos para a colaboração na construção de saberes interdisciplinares das áreas relacionadas à saúde, ao corpo e à clínica.
O exercício de escrita deste artigo, assim como as práticas realizadas, é entendido como um modo de fazer performativo ao produzir e registrar os conhecimentos e percepções acerca das práticas desenvolvidas e vividas nos deslocamentos espaço-temporais entre os corpos. A escrita foi realizada, portanto, de maneira a defender as nossas singularidades, enquanto autores, e para possivelmente agenciar com os leitores novos encontros e interpretações que sirvam de instrumento para elaboração de novos mundos (LYRA, 2020).
Entendemos que as ciências e saberes da Psicologia são formadas por uma diversidade de métodos e técnicas capazes de gerar múltiplos efeitos potencializadores nas vivências psíquicas, corporais e afetivas dos indivíduos. Efeitos, sobretudo, no agenciamento coletivo dos corpos. Isto porque, em nossa concepção orientada pela noção de saúde, expressa em Riviere (2005) e Guattari & Rolnik (2013), a saúde individual não pode nem poderia ser pensada de forma isolada aos modos e qualidades de vida grupais, comunitários e sociais.
As potencialidades das práticas em Psicologia são por nós ressaltadas a partir das criações de novos territórios de existência que possibilitam a geração e mobilização de subjetividades outras, a partir das experiências sensíveis do corpo e suas capacidades de agenciar afetos.
Consideramos impossível a separação das noções de saúde física e mental, sendo vista a saúde a partir de sua integralidade, vivida e experimentada em um corpo que produz singularidades (GUATTARI & DELEUZE, 1995). Dito isto, procuramos estabelecer espaços para a produção e elaboração de significados e sentidos que cooperassem com os envolvidos a compreender as experiências sensíveis do corpo e reapropriar-se delas como sujeitos centrais de sua própria sociabilidade. Visamos discutir, utilizando como base o arcabouço teórico e a exposição das práticas realizadas, o que foi gerado de potencialidade nas intervenções e em que elas poderiam colaborar para próximas produções, realizações e/ou composições.
Além disso, não desvinculamos a prática da Psicologia de uma atuação necessariamente social e politicamente interessada: é, justamente, na micropolítica dos corpos, dos desejos e agenciamentos que buscamos superar as dicotomias teoria/prática, sujeito/objeto e mente/corpo. Em convergência com os aspectos ético-estético-políticos, apresentamos o projeto de intervenção realizado na graduação em Psicologia na UFSJ que visou por atividades terapêuticas em grupo, voltado para os trabalhadores Técnicos Administrativos em Educação da Universidade.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Borges (2009) aproxima o sintoma histérico da ideia transmitida por Artaud, e recuperada por Deleuze e Guattari, de corpo sem órgãos (CsO). O CsO, segundo a autora, “é um conceito que sustenta uma provocação à ideia de organismo, objetivando uma crítica ao pensamento da verdade, das instituições, da permanência” (BORGES, 2009, p. 92). Para a autora, o CsO pretende “explodir com o organismo petrificado na sua formatação serializante onde um remete a um, incessantemente, produzindo o mesmo sem diferença” (BORGES, 2009, p. 92).
Borges afirma que o funcionamento do organismo está garantido por sua “lógica obturante de reprodução, de mimeses onde o jogo é abortado, constantemente, pela imposição de um pensamento norteado por uma série identitária que desliza na mesma direção sem poder opor desvios” (BORGES, 2009, p. 92). Dessa forma, compreende-se a histeria não enquanto estrutura rígida, mas pelo contrário, sua intensidade na ausência da estruturação em série, o desvio do organismo tanto quanto o corpo sem órgãos proposto pelos filósofos Deleuze e Guattari.
Tal como o corpo que dança, o CsO cria um território liso, desliza no solo, em movimento sensual, sensorial e sensível. O corpo é alimentado por uma virtualidade infinita. Para pensar sobre as possibilidades de constituição do sujeito fora das ordenações representacionais lineares, Deleuze e Guattari, segundo Borges (2009), partem da descoberta artaudiana, do corpo sem órgãos, empenhados no posicionamento decorrente desta constatação.
O CsO não é um organismo, não se organiza, é um corpo intensivo efetivado em planos, em limiares, em zonas de indiferenciação, pelas ondas de sensação, pela vibração do corpo, um corpo inteiramente vivo: “o corpo sem órgãos é carne e nervos” (DELEUZE apud BORGES, 2009, p. 92).
Segundo Borges, Deleuze (2002) propõe o CsO para dar conta do universo das sensações, visto que, para ele, “a fenomenologia em sua perspectiva da intencionalidade no ato perceptivo não consegue apreender as constantes transmutações e ambiguidades características do corpo histérico” (BORGES, 2009, p. 92). Para a autora, “as constantes desconstruções oriundas da transitoriedade dos investimentos polivalentes nos órgãos revelam um corpo em deslocamento de forças, corpo intensivo, um coletivo, onde as formas se subjugam às forças” (BORGES, 2009, p. 92). Onde se criam formas móveis, movidas por forças virtuais.
Considerando que o corpo é o alvo dos dispositivos de poder contemporâneos, Sander reflete que, se para Deleuze e Guattari, o corpo-sem-órgãos é um meio pelo qual as intensidades circulam, o que temos em nossa contemporaneidade assemelha-se mais ao corpo-com-órgãos (SANDER, 2006, p. 82). O corpo-com-órgãos estaria menos apto a efetuar suas potências e multiplicidades. Sander constata que mais de quatro séculos “nos separam de Espinosa”, e defende que “na verdade, há algo de inquietante desde lá” (SANDER, 2006, p. 82).
Sander afirma que a pergunta espinosista volta transmutada: o que pede um corpo, quem pede um corpo? Sendo que “o quem não é uma simples ironia de ocasião, jogo de palavras” (SANDER, 2006, p. 82). O quem “responde por uma identificação: eu sou meu corpo”. Para Sander (2006) se trata de uma tentativa de apropriação de si através do corpo identificado, com seus índices de adequação: prazer, saúde, etc. “Todos os possessivos que costumamos usar (meu corpo, meu sexo, minha vida, etc.) não marcam supostos territórios que colonizamos e que nos pertencem, pois, o corpo-imagem só existe no ato de sua exteriorização visível” (SANDER, 2006, p. 83). O corpo imagem é a atualização de um campo indefinido de virtualidades que podem muito mais do que suposições tagarelas e invisíveis.
Borges irá pensar em uma produção autoerótica implicada na fabricação de um “corpo vibrátil” (ROLNIK apud BORGES, 2009, p. 79). A autora pensa a produção autoerótica para além do organismo, “nos espaços não-integrados, no plano intensivo das constituições subjetivas, nos ritmos, […] no excesso, no gasto de um movimento incandescente do corpo-pensamento” (BORGES, 2009, p. 79).
A estilística dos movimentos, tal como Borges (2009) sugere, no surgimento de outros planos de afetação, resgata as dimensões sensível, sensorial e frágil em relação às estruturas da língua. Potentes para os encontros, enquanto espaço de abertura, tais dimensões são possibilidades não aleatórias, mas arduamente conquistadas no exercício do corpo no espaço multidimensional e abstrato. Convocação para um combate, pelo movimento sensível, conduzido por um improviso.
Segundo Borges, Deleuze e Guattari insistem por uma prática clínica onde a crítica, como um compromisso estético-ético, nos aponte para o trabalho de desapego ao código, de descoberta das “realidades fabricadas” (BLIKSTEIN apudBORGES, 2009). Para a psicanalista, se trata da “importância de se atentar para o não-encobrimento das interferências recorrentes nas modelizações impostas ao eu” (BORGES, 2009, p. 89). Ou seja, faz-se necessário “explicitar, desde que possível, os meios e modos da constituição de subjetividades derivados das práticas histórico/sociais contemporâneas ao sujeito” (BORGES, 2009, p. 89).
Lima (2020) afirma que um gesto sutil, em conexão com outros corpos, encontra composições possíveis para uma estética do ato. Para o autor, “um gesto se aproxima do campo estético quando apreendido como a intensificação do sentimento imediato de vida” (LEITE apud LIMA, 2020, p. 14). Assim como os movimentos vão dando forma aos corpos, os conceitos vão dando contornos aos pensamentos. Palavras que afetam, movem e movimentos que fazem pensar e sentir.
A sutileza de um gesto na conexão sensível entre os corpos, dando os contornos de seus encontros e suas escritas, aponta em direção à produção do corpo-sem-órgãos em intensidades rigorosamente efetuadas nos entrecruzamentos. Para Lima, “atingir a dimensão estética de um gesto sutil tem a potência de pôr em evidência o que de criativo perpassa as tecnociências, filosofias e artes” (LIMA, 2020, p. 14). Ou ainda, de outra forma, “uma experiência que se produz no trânsito entre diversos campos de saber e fazer” (Lima, 2020, p. 14).
Segundo Lima, trata-se de “um processo que implica produzir um sentido, a partir da brecha daquilo que vem abalar nossas estruturas estabilizadas” (LIMA, 2020, p. 14). Fica evidenciado pelo autor a constituição de diferentes campos disciplinares que perpassam tal experiência estética desde uma perspectiva sensível e também política, claramente, quando menciona o aspecto de abalo provocado nas estruturas para ir além dos seus limites. E ele então reconhece o quanto tal prática “aumenta nosso grau de comunicação e expressividade” (LIMA, 2020, p. 14). Para Lima, “uma vez evidenciadas nos espaços de convivência, as experiências estéticas podem anunciar uma transformação irreversível em nossos modos de produzir subjetividades” (GUATTARI apud LIMA, 2020, p. 14).
O estágio realizado é fruto de um projeto maior apresentado anteriormente ao Departamento de Psicologia, cujo título é “Psicologia, Educação e Artes: Produções Subjetivas Emancipadoras”. Depois de apresentado à Pró-Reitoria de Gestão e Desenvolvimento de Pessoas e a partir do apoio recebido, possibilitou a invenção de uma proposta interventiva terapêutica, grupal, que se denominou “Viver no Próprio Corpo”. A divulgação e a realização ocorreram nos três campus da Universidade em São João del-Rei, MG: Campus Dom Bosco (CDB); Campus Tancredo de Almeida Neves (CTAN) e Campus Santo Antônio (CSA).
O projeto com os Técnicos Administrativos em Educação foi chancelado pela Pró-Reitoria de Gestão e Desenvolvimento de Pessoas e pela Divisão de Desenvolvimento de Pessoas da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). A Pró-Reitoria autorizou o estágio referenciado como prática profissional em Psicologia e definiu os dias e os lugares onde as atividades poderiam acontecer. Os técnicos foram convidados a participar, dando origem a três grupos de participantes, cada um em um dos três campus da UFSJ. A elaboração do presente artigo refere-se aos trabalhos realizados no campus Dom Bosco.
Os encontros foram conduzidos sob a inspiração de conceitos-ferramenta de Deleuze e Guattari, bem como, da técnica dos Grupos Operativos de Pichon-Rivière (2005). Esta última, a partir da inauguração do projeto interventivo, investigativo e participativo em saúde que ficou intitulado como a “Experiência do Rosário”. Tal projeto foi realizado em 1958 na Argentina, arquitetado no Instituto Argentino de Estudos Sociais (FERNANDES, 2003). Os grupos operativos são “grupos de discussão e tarefa, nos quais se estruturam mecanismos de auto-regulação” (RIVIÈRE, 2005, p. 127), a partir da interação grupal centrada na realização de uma atividade, que por sua vez possibilita a criação comunitária de outros modos de agir, pensar e conviver em comunidade.
Em uma composição com as técnicas de trabalho, articulamos a compreensão de rizoma e corpo-sem-órgãos de Deleuze e Guattari, discutidos principalmente na obra “Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia”, volumes 1 (DELEUZE & GUATTARI, 1995) e 3 (DELEUZE & GUATTARI, 1996). Nesta obra, os filósofos vão pensar e associar a atividade humana enquanto processo em devir que não é pré-determinado, mas que, ao contrário, faz-se a partir dos direcionamentos gerados pelos e nos acontecimentos interativos e singulares (DELEUZE & GUATTARI,1995). A concepção de corpo-sem-órgãos remete não à ideia de literalmente um corpo desprovido de órgãos, ou de seus aspectos orgânicos, mas à confrontação de filosofias organicistas que produziram na cultura do ocidente representações estáticas, normativas e universais do corpo, que nos impedem de percebê-lo enquanto pura potência em ato. Ou seja, um corpo que vive em plena imanência, máquina produtora de desejos igualmente imanentes, em devires. (GUATTARI & DELEUZE, 1995)
Junto com os dispositivos teórico-práticos, tivemos como inspiração o trabalho realizado por Márcia Strazzacappa em sua obra intitulada “Educação Somática e Artes Cênicas: Princípios e Aplicações” (2013), na qual a autora descreve e explica algumas técnicas corporais enquanto as analisa em um processo histórico-cultural das visões sociais no Brasil. A respeito do que é e o que pode um corpo, para entender a importância da performatividade do corpo no caminho de uma vida ativa, autônoma e singular dos indivíduos (STRAZZACAPPA, 2013).
Foram elaborados, a partir dos encontros e atividades, escritos na forma de diário de bordo e registros feitos com os participantes durante os encontros, incluindo registro fotográfico. Em seguida, apresentamos estes escritos que foram, neste trabalho, o principal dispositivo metodológico para registro e posterior análise. Foram cinco dias de intervenção no total, distribuídos semanalmente. Em cada um dos dias foram desenvolvidas diferentes atividades clínicas, envolvendo o corpo, das quais surgiram diversas inquietações e fluxos afetivos.
4 DIÁRIO DE BORDO
Encontro 1 – Experiência dos Sentidos: Chegamos na sala de aula que já tinha sido reservada e colocamos a maioria das cadeiras nos cantos do ambiente, para deixar o centro para livre circulação. Colocamos uma música no ambiente e escrevemos o nome do projeto no quadro. Os participantes foram chegando aos poucos, e depois de se apresentarem, falavam de suas motivações para essas oficinas, que eram variadas: desde a curiosidade causada pelo título do projeto, desejos de participar de atividades diferentes dentro da Universidade até a vontade impulsionada pela necessidade de horas complementares que o projeto daria.
Em seguida, foi realizada uma breve apresentação do projeto, detalhando como planejamos distribuí-lo ao longo de cinco dias de atividades em grupo. A proposta, fundamentada na aplicação da Psicologia em contextos coletivos e centrada na corporeidade, consistia em explorar os cinco sentidos corporais, introduzindo um novo estímulo a cada momento. O objetivo era sobretudo se atentar para cada um desses sentidos, ouvindo e sentindo, por exemplo, o corpo no ambiente. Os processos de percepção corporal, em toda a extensão do corpo, serviram como o “material de análise” para o próprio sujeito analisador que participava. Ao longo de todo o projeto, especialmente neste primeiro momento, questionávamos constantemente se os participantes se entregariam às atividades e como se sentiriam ao realizá-las.
Para começar a primeira atividade, havíamos deixado no centro da sala um espaço para estender no chão lençóis, para que ficássemos em posição mais confortável no chão. Mas, antes de começar, a maioria dos participantes pediram para que ficássemos nas cadeiras, já que é uma posição que já estão habituados em ficar, principalmente no trabalho. Este pedido foi para nós bastante curioso, já que o motivo para tal não foi por exemplo estar sob conforto na cadeira, mas sim por uma questão de costume, hábito. Já era um primeiro sinal do que mais tarde tanto seria explicitado em seus discursos: o enrijecimento dos corpos pelo trabalho endurecido, inflexível, que inflexibiliza e torna impotente portanto o corpo e suas possibilidades de posições, movimentos, etc. Em um trecho retirado desta atividade do diário de bordo, por exemplo, percebe-se que apesar dos participantes se apresentarem receptivos com a proposta do projeto, atividades que suscitaram movimentações diferentes foram recebidas com relutância: “Em uma posição em pé, percebeu-se um certo desconforto”.
Começamos com uma música ambiente (audição) e logo acendemos um incenso (olfato); depois distribuímos para cada uma bala saborosa (paladar). Enquanto todos saborearam a bala, escutando a música e sentindo o cheiro do incenso pela sala, solicitamos que observassem os detalhes que chamassem atenção (visão): de seus corpos, da sala, das outras pessoas, da sala, para além da sala… Posteriormente, instruímos os participantes a sentirem as diferentes texturas e temperaturas da própria pele e as formas de cada parte do corpo (tato). Depois, fizemos alongamentos e relaxamentos físicos, que geraram muitos bocejos e fizeram vir à tona expressões faciais e corporais de certa apatia, certo desânimo.
Participamos de todas as atividades, ainda que nosso foco como organizadores fosse a mediação, a observação e a incitação provocadora. Por fim, já na finalização deste primeiro dia de encontro, todos juntaram-se em roda para falar sobre as experiências corporais, o que sentiram e como se sentiram ao se dedicarem à atividade. Falaram majoritariamente sobre o cansaço do trabalho, sintomas como exaustão e desestimulação, queixas que nos deixaram ainda mais pensativos sobre como aquele espaço de atividades proporcionado pelo projeto poderia ser um espaço diferenciado de prática de liberdade, de experimentação, em meio a esses desafios.
Encontro 2 – Autoimagem, Autoconceito e Autoestima: Antes que os participantes chegassem à sala, preparamos na sala ao lado um ambiente introspectivo para uma prática surpresa. Nesta outra sala, fizemos uma “passarela” de imagens de monstruosidades/animosidades no caminho até o espelho, o qual estava encoberto por um pano e era portanto o objeto-surpresa daquele lugar. Colocamos uma música ambiente e perfumamos a sala, no intuito de juntar a noção do encontro passado (dos sentidos corporais) com o atual. Havia bastante ânimo de nossa parte principalmente porque sabíamos que tal experiência poderia ser potencialmente intensiva, que poderia dialogar com os conteúdos abordados no encontro passado.
Neste dia contamos com a chegada de dois novos integrantes, além do grupo que havia começado. Explicamos para os participantes que havia uma surpresa para eles na sala ao lado e pedimos para que um de cada vez se dirigisse para essa sala para se encontrar com o objeto surpresa, descobri-lo por debaixo do pano e se relacionar com ele de maneira espontânea, corporal e sensorial, para depois colocá-lo de volta do mesmo jeito que estava antes da interferência. Enquanto os participantes iam individualmente à sala para terem seus momentos com o objeto escondido, colocamos várias outras figuras desse conjunto de imagens no chão no meio da roda que formamos: algumas imagens de animais, de humanos transformando em animais ou desfigurados, que poderiam remeter a sensações e emoções de vários tipos. Depois que olhassem com calma as gravuras e imagens, pedimos para que cada um escolhesse alguma figura que se identificou e posteriormente falar o motivo de sua escolha. Quando todos os participantes voltaram da sala do espelho, distribuímos folhas e canetas para que eles escrevessem como se sentiram ao entrar em contato com o objeto misterioso.
Este encontro foi marcantemente profundo e sensível para nós que o organizamos. Enquanto íamos conversando sobre todas aquelas figuras, num tom de estranhamento e certo desconforto em meio a elas os participantes continuavam falando sobre as sensações de impotência, desânimo, estresse e aprisionamento. Este último termo foi ressaltado por uma participante ao escolher a imagem de uma marionete mortificada, que segundo ela a representava muito bem nessas sensações que vinham de sua queixa. Outra participante escolheu uma imagem que continha cores como que saindo e entrando nos olhos de uma mulher, e que para ela, é como se essas cores fossem fios de esperança. A questão da esperança (colorida) e do aprisionamento (mortificado) conduziram a discussão do grupo para os problemas de captura da esperança e da potência pelo regime de rotina do trabalho. Pensamos inclusive sobre os trabalhadores de outros setores, os terceirizados, que têm todos um uniforme cinza, e pensando nisso usamos a cor e o uniforme para metáfora da roupagem “sem cor e sem vida” daqueles que são muitas vezes os trabalhadores que vivenciam maior invisibilidade e descaso na instituição.
Uma outra participante escolheu uma imagem que remeteu a ela boas lembranças, de atividades outras que costuma praticar, com a qual sente alegria. Percebemos neste momento, da discussão daquelas figuras, que as imagens foram interessantes ferramentas clínicas, capazes de evocar sensações, sentimentos, lembranças, imaginações, percepções diferentes e disruptivas a partir do desconforto, da identificação, da diferenciação, do horror, da tristeza, do contentamento, da alegria, do prazer. Estávamos em plena presença de um momento coletivo de liberação das expressividades criativas e intuitivas que iam surgindo e produzindo seus próprios processos de territorialização e desterritorialização a partir das imagens, das falas, dos gestos, das emoções de cada um dos participantes e de nós, que ali também estávamos mobilizados e contagiados pelas afetações diversas.
Em relação ao espelho, a partir da pergunta direcionadora “como vocês se sentiram ao ver o objeto misterioso?”, duas participantes relataram a observação de rugas como materialidade da passagem do tempo. Entretanto, ambas comentaram que, apesar de ficarem tristes com o envelhecimento, eram gratas pela experiência de vida que o tempo proporcionou e a sabedoria adquirida nesse processo. A partir dessa discussão, foi possível compreender como os participantes lidam com as “marcas do tempo” e que elas contam uma história muito pessoal de cada um. Finalizamos toda a discussão com impactos múltiplos: o de cada participante com a “descoberta da imagem de si mesmo”, ao descobrir o objeto misterioso; de cada um, nós inclusive: com as afetações proporcionadas pelas figuras e com as falas desencadeadas sobre a percepção das corporeidades em fluxo, a partir de reflexões afetivas capazes de elaborar, em mesmos pensamentos, o passado, o presente e o futuro das vivências corporais em movimento.
Encontro 3 – Automassagem e Modelagem: Arrumamos a sala com carteiras em roda e esperamos os participantes. Quando chegaram, perguntamos primeiramente o que estavam achando do projeto, das atividades, e recebemos um mesmo comentário de mais de um participante: Eu ainda não entendi o propósito dessas atividades. Esta mesma observação foi feita não só neste dia mas nos outros dois que se seguiram no desenvolvimento e término do programa. Reiteramos nestes momentos que o propósito é a experimentação dos sentidos em relação com as percepções – corporais – estimuladas, que nos movem aos sentidos do viver e experienciar o mundo. Paralelamente comentávamos, em nossas reuniões de preparação e elaboração do estágio, o quão desafiador estava sendo propor atividades que não apresentam em si uma finalidade pronta e acabada, e tal desafio se mostrou evidente a partir desses comentários que expunham esse desconforto, por parte dos trabalhadores, de praticar atividades experimentais que não continham em seu processo um objetivo específico e estruturado. Porém, percebíamos ao mesmo tempo cada vez mais a participação entusiasmada, animada e afirmativa deles nas propostas e realizações produzidas pelo coletivo.
Feita essa primeira parte de comentários e exposições sobre o andamento do trabalho, foi coordenada uma prática da automassagem: a experimentação tátil na cabeça, descendo ao rosto, orelhas, pescoço, indo até os ombros, com intensidade, explorando as diferentes partes do corpo com as próprias mãos. Depois da automassagem, passamos para o momento da modelagem com argila. Incentivamos um espaço de criação, produção, sem exigências técnicas artísticas, para que fosse projetado na argila algo que se relacionasse com algum pensamento, sentimento que, se fosse possível, relacionasse com a autoimagem corporal.
Propusemos que eles sentissem a argila ao modelar; para que observassem como se estabeleciam os contatos entre as partes do corpo e a argila. No final, cada um apresentou a sua obra e tentamos estabelecer algum diálogo entre as imaginações e criações que foram surgindo no processo. As imagens a seguir ilustram a produção com a argila feita pelos participantes.
Antes de fazer essa proposta para os participantes, pensamos que talvez alguns ali presentes não iriam gostar de sujar as mãos. Entretanto, nos surpreendemos com a diversão dos integrantes de se envolver com a argila, um material que ou nunca haviam pegado em mãos ou não manipulavam há muito tempo. Um participante representou Adão e Eva na argila (Anexo) pois, segundo ele, a terra está relacionada com a origem dos humanos, e é “para a terra que retornaremos”. Outra participante explicou que sua modelagem era a representação de “uma pessoa encostada em um momento de relaxamento e descanso” (Anexo), e que gostaria de estar descansando também tal como a sua representação. Percebemos, naquela comunicação final, que as criações artísticas produziram não apenas figuras materiais mas elaborações mentais de queixas, desejos, afirmações das existências em meio às capturas da vida cotidiana.
Encontro 4 – A Criação de uma Personagem: No quarto dia de atividades, preparamos o ambiente com sons, produzidos pelo áudio do computador, de diversas atmosferas do meio ambiente: de uma floresta, do fundo do mar, de ventos que remetiam altas altitudes, etc. Na chegada dos participantes, orientamos a fecharem seus olhos e imaginarem algum animal qualquer. Foi sugerido também, que o animal poderia ser diferente, poderia ter características humanas, ou misturas de animais. A partir da imaginação inicial desse animal, fomos adicionando uma série de perguntas para que a imagem produzida fosse cada vez mais detalhada, mais vívida e mais móvel. Algumas das perguntas foram: Como é a pele deste animal? Onde ele está? Como é esse ambiente e como o corpo dele está situado no espaço desse ambiente? O que está fazendo neste momento o animal imaginado? Como está se movimentando? Como respira? Existem outros animais ao redor? Existe alguma relação, comunicação, interação entre eles? Etc. Depois do processo de imaginação, pedimos para cada um escrever o que imaginaram na folha de papel e posteriormente compartilhar em grupo as cenas projetadas.
Uma das participantes relatou que se lembrou de um cachorro de sua casa: grande de aparência, parece ser bravo, mas na verdade é um doce, assim como ela, segundo seu relato. Outra mencionou um gavião, atraída por seu topete bonito e pela liberdade de voar, tanto na terra quanto no ar. Quando perguntamos se se via flexível como o gavião, respondeu que o escolheu por suas características de liberdade e beleza. Uma terceira pessoa citou um gatinho, destacando sua sensibilidade e a capacidade de perceber momentos de tristeza. Por fim, um participante falou sobre vários animais, mas focou em um pica-pau de um desenho animado: “É sagaz, ninguém passa a perna nele, é muito esperto, vive sua vida”.
Havia sido pensado por nós um último momento para este dia: da incorporação dessas imaginações pelos integrantes. A ideia era que produzissem em seus movimentos corporais, os movimentos dos animais imaginados-inventados. Porém, o processo anterior de construção do animal junto a seu ambiente de vida tomou todo o tempo restante que tínhamos para o encontro, devido a tantos detalhes que os participantes iam falando, desenvolvendo e projetando. Inserimos portanto a ideia da incorporação junto a outra sugestão que foi elaborada para o último encontro: da dança dessa “personagem”.
Encontro 5 – A Dança da Personagem: No quinto e último encontro, propusemos a incorporação e a dança final dos animais-personagens criados no encontro passado. Preparamos a sala de modo a não ter cadeiras disponíveis para sentar. Além disso, fizemos um mural no quadro negro com as imagens dos encontros passados. Deixamos as mesas isoladas e com o espaço da sala colocamos lençóis no chão para os participantes se acomodarem. Também colocamos lençóis nas janelas, para contribuir com a privacidade do ambiente. Quando os participantes chegaram, pedimos para que eles retirassem os sapatos e se acomodarem pela sala. A partir da nossa proposta, percebemos que havia empolgação, mas bastante timidez. Com isso, resolvemos colocar vídeos dos animais que eles haviam descrito no último encontro, usando de um computador e projetando as imagens para o quadro principal utilizando um projetor instalado que havia na sala.
Depois de observarem um pouco os movimentos dos animais naquelas imagens, solicitamos que fizessem movimentações inspiradas naqueles personagens animais que criaram no último encontro, tal como uma cena teatral, juntamente com a inspiração daquelas cenas do vídeo. Após alguns minutos, estavam todos movimentando pela sala, com gestos diferentes, exploratórios, inspirados, divertidos: explorando alturas, posições, tensionamentos, sonoridades, fisionomias, semblantes, expressões de variadas formas. Haviam personagens participando da cena de outros personagens, estabelecendo comunicações corporais; alguns mais retraídos, observando aos outros, enquanto uns estavam em plena performatividade.
Esperamos mais alguns minutos e colocamos músicas pelo computador e sugerimos para que continuassem a tornar vivos os animais por meio do movimento de seus corpos, mas agora a partir da dança dessas personagens. Uma dança livre, de modo que pudessem criar algo novo: não o sujeito somente e nem somente a projeção do animal no corpo, mas uma personagem que fosse algo indiferenciado entre esses dois. Como um falcão dançaria essa música tendo o meu corpo, e sendo eu um falcão no meu corpo? O que apresentamos para nós mesmos e um ao outro foi uma dança performática do devir, do entre, da espreita: que se mistura, se realiza em plena indeterminação de identidades ou representações; uma dança divertida, intensiva, alegre. Uma performance, portanto, da experimentação a partir das potências corporais-afetivas.
Terminada a atividade – ou diversão – foi feito um lanche coletivo e refletimos os encontros pelo quadro enfeitado com fotos e palavras das atividades anteriores. Os participantes neste momento comentavam sobre estarem se sentindo mais leves e menos tensos; terem pensado sobre muita coisa diferente em meio a tantos exercícios diferentes, durante a realização deles mas principalmente depois de seus efeitos; sobre a importância de se ter um espaço de criação, voltado para a liberdade da criação, em ambientes que podem ser tão enrijecidos e padronizados. Comentamos em coletivo que, a partir dos exercícios de movimentos e elaborações corporais que surgiram nestes encontros e durante todas essas experimentações de nós mesmos, procuramos sair de velhas formas endurecidas e mortificadas que o corpo assume para enxergarmos outras maneiras de se estar em movimento, de produzir a nós mesmos.
Procuramos instigar novos olhares e modos de se permitir; formas de se posicionar; de perceber; de atentar-se às percepções corporais e usar delas para a elaboração de algo para o agora; a atenção em certos detalhes do ambiente ou na presença dos outros e de si mesmos que normalmente costumam passar por despercebidos; para a produção de modos de existir autênticos; a produção tal como uma obra artística, mas em constante transfiguração e reanimação. Terminados os últimos comentários do grupo, nos agradecemos e nos despedimos. Ouvimos ainda, na despedida, um pedido de uma participante: de que esse tipo de projeto não tenha sido o único: pois foi para ela, e para outros integrantes que com ela concordaram, “necessário”.
5 DISCUSSÃO
Conforme Ribeiro (2019), os corpos disciplinados permanecem alienados de si, dos corpos desejantes e da própria força vital criativa, reproduzindo uma forma que mortifica o próprio desejo. Sobre isso, o grupo participante das dinâmicas relataram diversas vezes a natureza restrita dos seus trabalhos, enrijecimento corporal e funções repetitivas. Foi perceptível que a pequena pausa do trabalho que o projeto proporcionou ficou relacionada a um estabelecimento de discursos de pertencimento de grupo para alguns dos integrantes, visto que os encontros proporcionaram interações sociais aprofundadas desencadeadas pelas propostas das atividades. Além disso, o aprisionamento dos corpos que os participantes relataram diversas vezes durante o encontro foi relacionado novamente com as imagens expostas no segundo encontro.
Na dinâmica do objeto misterioso sendo o espelho, os comentários predominaram sobre as rugas, os significados das marcas do corpo e a passagem do tempo, que abarca o envelhecimento. Macêdo et al (2012. p.27) argumenta que a autoimagem está em constante transformação com o passar do tempo, e isso permite a constante mudança de perspectivas sobre si mesmo. As “rugas” permitiram o debate sobre a história de vida de cada um, relacionada com a imagem construída de si mesmo a partir das marcas, para que pudessem ser imaginados outros modos de relação com essas histórias. Marcas, para além da estética: o corpo como algo político, histórico, potente, diverso, singular, ativo e não reativo. (ROLNIK, 2019)
No terceiro encontro (modelagem), um participante fez a representação de Adão e Eva, relacionando o barro com a origem do ser humano por Deus. Outra participante fez a obra de uma pessoa com braços pesados encostada em um momento de relaxamento e descanso: uma projeção de si mesma, de como gostaria de estar, por estar se sentindo constantemente cansada. O peso dos braços remete ao peso do corpo, ao cansaço que a participante relatou. É a partir do corpo que é possível expressar, perceber, existir e criar de maneira inédita. Essas criações foram realizadas a partir de uma perspectiva corporal, de uma história de vida, de movimentos singulares de cada participante e, dessa forma, das subjetividades. As gravuras por sua vez foram pensadas para disparar o impacto e discussões sobre ideias de beleza/feiura, capacidade/incapacidade, humanidade/animosidade.
No quarto encontro, o pensar no corpo em um diferente contexto, em uma diferente materialidade permitiu a reflexão de partes e movimentos sutis da própria existência, mesmo a temperatura da própria pele em diferença ao personagem escolhido. O trabalho realizado pelos técnicos, como eles mesmos costumavam relatar durante os encontros, perdurava o movimento enrijecido e repetitivo e, a participação nas atividades semanais do estágio permitiram a possibilidade de formas outras de pensar o corpo, de imaginação e criação; Além disso, de invenção de estratégias para o enfrentamento à paralisia, à desistência, ao negativismo, ao padronizado.
Macêdo et al (2012, p. 38) afirmam que as partes do corpo em que predominam a consciência são aquelas que servem à pessoa diariamente, enquanto as outras partes que exercem apenas um papel indireto na vida são mais fáceis de passarem despercebidas pela autoimagem consciente. Tentamos fazer com que a percepção dos participantes se voltasse para as singularidades, em convivência com a diferença dos múltiplos modos de existir: para o sentir/experimentar daquilo que acaba sendo ignorado, no presente, a partir da e na relação com outros corpos e nas instituições (GUATTARI & ROLNIK, 2013).
Os participantes desde o início preferiram estar sentados nas cadeiras, em roda, “sentados do mesmo jeito que ficam no trabalho”: esta foi a justificativa da preferência pelas cadeiras. No quinto e último encontro, com a mudança do espaço da sala, começar com os movimentos foi difícil, visto que estavam tímidos. Com o passar do tempo e o estímulo dos coordenadores, os participantes foram se soltando, fazendo movimentos mais autênticos, deitando nos lençois, andando pela sala.
As experiências também proporcionam interações entre os personagens, como um gato que se conectava em uma dança com um pinguim, por exemplo. Os sujeitos, por vezes tão assujeitados às realidades normatizantes e enrijecedoras, puderam naquele acontecimento brincar-performar tal como outros animais, colocando em prática uma postura filosófica-corporal que vai de encontro à política animal, desenvolvida por Brian Massumi (2017), de valorização das subjetividades enquanto séries em transição que não possuem identidades acabadas, mas que estão sempre em processo de (re)criar-se sob a “natureza do fazer” (MASSUMI, 2017).
Pode-se perceber de forma notória que a maioria dos participantes procuravam formas familiares ao tipo de movimento que já estava acostumado a realizar, de alguma forma, se regrando em referência a um modelo transcendental de regular/bom/adequado/normal. O corpo humano tem infinitas capacidades de movimentar-se, de estar e ser no mundo, mas não utiliza todas essas possibilidades, os movimentos corporais são também condicionados por fatores socioculturais. Quando se normatiza um corpo, a falta de liberdade de criação contribui com questões de sofrimento, angústia, novos problemas físicos e motores, por exemplo (RIBEIRO, 2021).
Procuramos estabelecer o corpo como um campo de possibilidades, recuperar o que se atrofiou com os inúmeros movimentos repetitivos, mecanizados do dia a dia, instigar outros modos de sentir, outras qualidades. Han (2015) destaca a necessidade do tédio para a possibilidade de contemplação e aprofundamento nos assuntos. A própria capacidade de dançar representa um movimento totalmente distinto, que foge da lógica do “andar linear” e da procura incessante pelo desempenho utilitarista.
Dessa forma, a dança livre se distingue do perambular inquieto, das múltiplas funções, dos dispositivos eletrônicos que se conectam a absolutamente qualquer hora e não permitem exercer a capacidade do tédio contemplativo e de produzir novas formas de pensar a própria vida, o próprio pensamento e o próprio corpo, pois sugere o contrário da noção de eficiência, mas sim do desejo, do prazer e do singular.
Além disso, Han (2015) cita o aforismo de Nietzsche em “a principal carência do homem ativo”, e coloca que, a partir de perceber e conceber o desejo enquanto uma falta, e por isso sempre carente, sempre cobiçoso, a essas pessoas cabe apenas a reprodução mecânica, o rolar das pedras, sem autenticidade, sem vida. A procura por produtividade e os resultados rápidos colocam os indivíduos em uma atividade constante, no andar linear, exclui-se a dança, o movimento livre, a criatividade e as novas formas de pensar e combater pelo exercício da liberdade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O espaço clínico, artístico, criativo e reflexivo que propomos aos participantes teve grande potencial para criar não apenas um espaço de socialização e pertencimento de grupo, mas para incentivar novas formas de interpretar o próprio corpo e os ambientes em que estão inseridos.
Destaca-se que nas experimentações do corpo e no corpo, bem como, em seu processo de variação temporal na velocidade acelerada versus lentidão do movimento, o ritmo é o aspecto estruturante do corpo que em ação, mantendo a variação e compondo o território insurgente, intensivo, presente e se atualizando infinitamente. Como não reconhecer a dança como um dispositivo de potência para produzir diferença se nada a define tão bem quanto o movimento do corpo?
Ao se mover o corpo acessa sua amplitude, percebe sua extensão, reconhece sensações, escolhe direções, compreende, pensa de outro modo enquanto experimenta outras formas e assim constitui forças próprias, comuns capazes de romper os limites e agressões vindas de invasões indesejadas. O corpo que se move deseja! O corpo é potência.
Entendemos que a nossa intervenção suscitou, ainda que de modo bastante discreto, pequenas mudanças no olhar dos sujeitos sobre si mesmos, enquanto indivíduos dentro e fora daquele coletivo de trabalhadores da Universidade. Foi possível acolher alguns dos sofrimentos que emergiram no processo grupal, enquanto proporcionamos estímulos para que essas angústias se fizessem presentes também enquanto material de criação para produções artísticas, cujas possibilidades são, dentro de diversas outras, ressignificar as vivências passadas e presentes e torná-las úteis para a reinvenção de si nos acontecimentos por vir.
Foi um desafio e tanto tentar durante algum tempo um movimento que não tinha nada a ver com o que normalmente os integrantes realizavam no trabalho ou na vida diária. “O fato de trabalhar com qualidades de movimentos que não são as nossas ajuda-nos a ampliar nosso repertório de movimento e a desenvolver nossa criatividade.” (FELDENKRAIS, 1977, p. 35). Portanto, estar disposto a ser diferente pode desenvolver a criatividade, outras formas de se enxergar e sentir o mundo.
Nesse sentido, segundo Borges (2013), é importante retirar os movimentos corporais das suas amarras e entendê-los em um contexto coletivo, para levá-lo a expandir-se de maneira mais singular. Em todos os encontros a cadeira foi um objeto marcante, visto que os integrantes preferiram ficar sentados como normalmente ficavam no trabalho e, a retirada das cadeiras foi uma outra forma de realizar o encontro, de instigar os participantes a saírem do que já estavam acostumados.
Além disso, as tarefas agenciadas em grupo nos fizeram perceber o quanto pode não só um corpo, mas vários corpos em movimento dentro de um coletivo: a educação somática nos possibilitou que os processos grupais seguissem enquanto um devir operativo, no qual não só a Saúde individual de cada participante foi central na nossa observação e sobretudo na deles mesmos, mas como também e principalmente a Saúde daquele coletivo, dentro de uma instituição que produz as subjetividades enquanto transcursos de instituintes e instituídos a todo instante. (GUATTARI & ROLNIK, 2013)
Apesar das potencialidades, entendemos que a quantidade de encontros para elaboração das atividades artísticas estabeleceram uma realidade de limitação, já que os vínculos tiveram um tempo curto de duração, e os procedimentos que foram realizados não contaram com uma conexão que poderia ser mais estimulada entre nós autores e os participantes envolvidos.
Em vista disso, sugerimos para aqueles leitores interessados a promover um tipo de prática psicossomática, que de alguma forma tenha diálogo com a que foi exposta neste trabalho, o planejamento de estratégias para que os vínculos dos corpos presentes sejam estabelecidos, pois os afetos são as máquinas de guerra capazes de produção destes espaços emancipadores e disruptivos.
BORGES, H. Sobre o movimento. O corpo e a clínica. Tese de Doutorado em Saúde Coletiva. Instituto de Medicina Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2009.
BORGES, H. A Poética do Corpo: uma leitura do trabalho de Angel Vianna. Performatus, v. 2, 2013.
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GUATTARI, F.; DELEUZE, G. Mil platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. v. 3. Rio de Janeiro: 34. 1996.
GUATTARI, F; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 12ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2013.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
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MACÊDO, C. DE; ANDRADE, R. Imagem de si e autoestima: a construção da subjetividade no grupo operativo. Revista Psicologia em Pesquisa, v. 6, n. 1, 2012.
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STRAZZACAPPA, M. Educação Somática e Artes Cênicas: Princípios e Aplicações. Papirus Editora, 2013.
¹Doutora em Psicologia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Psicóloga e Pós-doutoranda em Psicologia pela mesma Universidade. Docente do Curso Superior de Psicologia da Faculdade de São Lourenço (Unisepe – União das Instituições de Serviços, Ensino e Pesquisa Ltda). E-mail: taiscarvalhosoares@gmail.com.
²Discente do Curso Superior de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Campus São João del-Rei, MG. E-mail: liviabritom@gmail.com
³Discente do Curso Superior de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Campus São João del-Rei, MG. E-mail: dornelas.1998@outlook.com