VIVÊNCIAS DA POPULAÇÃO NEGRA NO VALE GERMÂNICO/RS: RACISMO ESTRUTURAL E SUBJETIVIDADES PSICOSSOCIAIS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202511061344


Jailson Barbosa da Silva1
Eliana Perez Gonçalves de Moura2


RESUMO

Este artigo analisa os efeitos psicossociais do racismo estrutural nas subjetividades negras da região do Vale Germânico/RS, partindo do entendimento de que o racismo não se expressa apenas em práticas sociais visíveis, mas também como dispositivo simbólico e subjetivo que fere a constituição do eu e compromete o senso de pertencimento. Com abordagem qualitativa, descritiva e exploratória, a pesquisa foi realizada nos municípios de São Leopoldo e Novo Hamburgo, reconhecidos como centros da colonização alemã no Brasil e marcados por uma hegemonia branca historicamente construída. Participaram do estudo 52 pessoas negras adultas, residentes nos referidos municípios, que responderam a um formulário on-line contendo 23 questões sobre trajetórias de vida, percepções raciais e experiências de exclusão. A coleta utilizou amostragem em rede e foi analisada à luz da Análise Temática Crítica, articulada a referenciais da psicologia social crítica e dos estudos raciais. Os resultados indicam que o racismo estrutura não apenas as oportunidades sociais, mas também os modos de ser, sentir e habitar o mundo, afetando a autoestima, a autoimagem e a construção identitária. A pesquisa evidencia que o sofrimento psíquico causado pelo racismo é reiterado por mecanismos simbólicos que operam sob a lógica da branquitude como norma social. Ao mesmo tempo, emergem formas de resistência subjetiva, baseadas na afirmação identitária e na reapropriação de referências negras, que tensionam o pacto da branquitude e produzem reexistências. Este estudo contribui para o aprofundamento da crítica às desigualdades raciais a partir da escuta das experiências negras e da valorização de seus saberes, afetos e estratégias de enfrentamento.

Palavras-chave: Racismo estrutural. Subjetividade negra. Sofrimento psíquico. Psicologia social crítica. Vale Germânico.

ABSTRACT

This article analyzes the psychosocial effects of structural racism on the subjectivities of Black individuals in the Vale Germânico region of southern Brazil. It departs from the premise that racism is not limited to visible social practices but also operates as a symbolic and subjective mechanism that undermines the formation of the self and compromises one’s sense of belonging. Employing a qualitative, descriptive, and exploratory approach, the study was conducted in the municipalities of São Leopoldo and Novo Hamburgo, historically characterized by German colonization and a dominant white hegemony. A total of 52 Black adults residing in these cities participated by completing an online questionnaire composed of 23 questions addressing life trajectories, racial perceptions, and experiences of exclusion. Data collection followed a snowball sampling strategy and was analyzed through Critical Thematic Analysis, grounded in critical social psychology and racial studies. The findings reveal that racism not only structures access to material opportunities but also deeply affects modes of being, feeling, and inhabiting the world, generating impacts on self-esteem, self-image, and identity construction. The study shows that the psychological suffering caused by racism is perpetuated by symbolic mechanisms rooted in whiteness as a normative standard. Simultaneously, forms of subjective resistance emerge, grounded in identity affirmation and the reappropriation of Black cultural references, which challenge the racial order and produce modes of reexistence. This research contributes to a deeper understanding of racial inequalities by centering Black experiences and valuing their knowledge, affectivity, and strategies of resistance.

Keywords: Structural racism. Black subjectivity. Psychological suffering. Critical social psychology. Vale Germânico.

1. INTRODUÇÃO

A questão do racismo estrutural no Brasil, e em especial na região do Vale Germânico/RS, configura-se como um fenômeno histórico e persistente, que atravessa as instituições, os imaginários sociais e os vínculos intersubjetivos de forma complexa e multifacetada. Nessa região, marcada pela hegemonia branca e por um ideal civilizatório vinculado à colonização alemã, o racismo não opera apenas como discriminação pontual, mas como um sistema articulado de exclusão que incide sobre os modos de ser, sentir e existir da população negra. Essa incidência não se dá apenas nos espaços formais da vida social, mas adentra o campo das subjetividades — compreendidas aqui como os processos psíquicos, afetivos e simbólicos que moldam a identidade e o pertencimento dos sujeitos negros.

Ao longo da história brasileira, a racialização dos corpos negros foi acompanhada por mecanismos sistemáticos de desumanização e silenciamento, cujos efeitos não cessaram com o fim formal da escravidão. Conforme argumenta Silvio Almeida (2019), o racismo estrutural se institui como lógica organizadora das relações sociais, naturalizando desigualdades por meio de normas, práticas e instituições que perpetuam a marginalização da população negra. Nesse sentido, os efeitos do racismo não se limitam às esferas materiais da vida, como o acesso à educação, saúde ou trabalho, mas produzem marcas profundas na constituição subjetiva dos indivíduos, gerando sentimentos de inadequação, insegurança, hipervigilância e esvaziamento simbólico.

No Vale Germânico, a branquitude se expressa não apenas como privilégio social e econômico, mas como horizonte normativo que rege os modos legítimos de existir. Como analisa Maria Aparecida Bento (2002), a branquitude brasileira sustenta sua centralidade por meio da negação de sua própria racialidade, tornando-se invisível enquanto norma e reforçando, assim, a inferiorização do Outro racializado. Essa lógica opera de forma difusa, por meio de discursos meritocráticos, da estetização da cultura branca como universal e da patologização dos corpos e práticas negras. A subjetividade negra, nesse contexto, é constantemente tensionada por dispositivos que desautorizam sua presença, sua memória e sua voz.

Este artigo propõe o foco analítico para os efeitos psicossociais do racismo estrutural sobre a vida cotidiana e os processos identitários da população negra da região. A perspectiva psicossocial crítica adotada permite compreender como o racismo impacta não apenas as condições objetivas de existência, mas também a constituição simbólica dos sujeitos, suas emoções, afetos, valores e narrativas de si.

A partir dos referenciais de autoras como Neusa Santos Souza (1983), Sueli Carneiro (2011) e Frantz Fanon (2008), compreende-se que o racismo atravessa os sujeitos negros desde a infância, gerando processos de internalização de inferioridade, fragmentação do eu e estratégias psíquicas de sobrevivência frente à dor do não reconhecimento. Contudo, essas subjetividades não se constituem apenas a partir da dor e da exclusão, mas também da resistência e da criação de espaços de ressignificação. Como aponta Sueli Carneiro (2011), a afirmação da identidade negra é um gesto político e existencial que rompe com a lógica da submissão e inaugura novos modos de subjetivação.

Este artigo, portanto, tem como objetivo investigar como o racismo estrutural incide nas vivências subjetivas da população negra do Vale Germânico/RS, analisando os efeitos emocionais, simbólicos e relacionais desse processo. Busca-se compreender como os sujeitos negros elaboram, resistem e (re)constroem suas identidades em um contexto marcado pela negação e invisibilização de suas existências. Serão abordados os principais conceitos que fundamentam a análise, bem como as estratégias individuais e coletivas de enfrentamento ao racismo — como a valorização das raízes culturais, a autoidentificação racial positiva e a formação de redes afetivas e políticas de solidariedade.

Ao centralizar a dimensão subjetiva e psicossocial do racismo estrutural, este estudo visa contribuir para o aprofundamento da crítica às desigualdades raciais, ampliando o debate acadêmico sobre os impactos do racismo para além das esferas institucionais e propondo uma reflexão sobre a reparação simbólica, epistêmica e afetiva como parte do processo de justiça racial.

1.1 BRANQUITUDE E O RACISMO ESTRUTURAL COMO MATRIZ ORGANIZADORA DA VIDA SOCIAL E SUBJETIVA

A compreensão do racismo no Brasil exige o reconhecimento de sua dimensão estrutural e de sua íntima articulação com a branquitude enquanto eixo normativo que organiza as relações sociais, institucionais e subjetivas. A branquitude não se configura apenas como identidade racial dos sujeitos brancos, mas como um regime de poder que opera por meio de sua aparente neutralidade. Ela se apresenta como universal, legítima e desejável, ao mesmo tempo em que racializa o outro, atribuindo à negritude os estigmas da diferença, da marginalidade e da desumanização (Schucman, 2012; Bento, 2002). 

Trata-se de uma posição de privilégio não declarada, mas performada cotidianamente como norma — que define o que é belo, racional, aceitável e civilizado — ao passo que relega aos sujeitos negros a negação desses atributos. Essa lógica normativa é particularmente intensificada no contexto do Vale Germânico/RS, região em que a predominância demográfica, simbólica e institucional da população branca — herdeira dos processos de imigração europeia — reforça o ideal de uma identidade regional branca, eurocentrada e homogênea. 

A recente renomeação toponímica da região, de “Vale dos Sinos” para “Vale Germânico”, evidencia a atuação simbólica da branquitude enquanto dispositivo de apagamento histórico das populações negras e indígenas locais, deslegitimando suas presenças e memórias enquanto componentes legítimos da narrativa regional. Nesse cenário, o racismo estrutural revela-se como engrenagem que sustenta e perpetua desigualdades, não apenas por meio de práticas institucionais discriminatórias, mas sobretudo pela produção de subjetividades racializadas.

Silvio Almeida (2019) define o racismo estrutural como um regime sistêmico de organização social, operando pelas estruturas do Estado, do mercado, da linguagem, do direito e da cultura. Ele não se limita a restringir acessos materiais ou direitos formais, mas molda afetos, percepções e identidades — instaurando o que Fanon (2008, 2020) chamou de “epidermização da inferioridade”: a introjeção do olhar branco como lente pela qual o sujeito negro aprende a ver a si mesmo, muitas vezes como defeituoso, inadequado ou inferior.

Essa pedagogia da inferiorização, sustentada pela hegemonia da branquitude, não se restringe ao campo externo, institucional ou relacional. Ela infiltra-se nas estruturas psíquicas, constituindo um modo de existência atravessado por sentimentos de inadequação, ambivalência e sofrimento. Neusa Santos Souza (1983, 2021), ao analisar o processo de subjetivação de pessoas negras em uma sociedade racista, aponta para a presença de um “complexo de inferioridade” que desestabiliza a autoimagem e compromete o sentimento de pertencimento racial. Nesse processo, muitos sujeitos negros interiorizam os valores do branqueamento como horizonte de realização pessoal, ainda que inatingível — vivenciando, assim, uma realização impossível, geradora de culpa, ansiedade, introspecção, ataques de raiva e sintomas psicossomáticos (Silva, 2005).

Adicionalmente, a branquitude estabelece uma hierarquia intrarracial por meio do colorismo — uma forma específica de discriminação baseada na tonalidade da pele. Negros de pele mais clara tendem a acessar mais oportunidades e reconhecimento social, enquanto negros retintos são mais expostos à marginalização e à violência (Maia & Zamora, 2018; Silva, 2017). Essa lógica reforça o ideal do branqueamento como critério de valoração subjetiva, corroendo os vínculos de solidariedade racial e dificultando a construção de uma identidade negra coletiva e positiva.

Essas formas de exclusão se complexificam quando articuladas a outros marcadores sociais de diferença — como gênero, classe, geração e território. A teoria da interseccionalidade, proposta por Crenshaw (2002), evidencia que as opressões não operam de forma isolada, mas como sistemas interligados de dominação. Mulheres negras, por exemplo, são simultaneamente alvos do racismo e do sexismo, sendo hipersexualizadas, objetificadas e desumanizadas em práticas e discursos que reafirmam a ordem colonial, como apontam Gonzalez (2020) e Collins (1986).

A culminância extrema desse sistema é o que Achille Mbembe (2018) denomina de necropolítica: o gerenciamento da morte enquanto política de Estado. No Brasil, a juventude negra, sobretudo os homens, é o principal alvo da violência letal — um genocídio naturalizado, que se justifica por narrativas racistas construídas sob o domínio da branquitude, que transforma vítimas em suspeitos e criminaliza a existência negra (IBGE, 2019; UNICEF, 2021).

O racismo estrutural, assim, não apenas organiza a vida social, mas produz formas específicas de sofrimento psíquico. A política pública voltada à equidade racial, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (Brasil, 2010b), encontra sérios obstáculos para sua efetivação, diante da ausência de formação antirracista nas áreas da saúde, da subnotificação do quesito raça/cor e da baixa adesão institucional às diretrizes de equidade (Goes & Nascimento, 2013; Leal et al., 2004, 2017; Silva & Lima, 2021). A branquitude, neste campo, manifesta-se como negligência, indiferença e desresponsabilização com o sofrimento da população negra.

Contudo, ainda que a branquitude atue como estrutura normativa de dominação, ela não é totalizante. As subjetividades negras resistem, reelaboram sentidos e constroem contra-narrativas que desafiam o modelo hegemônico de humanidade. Fanon (2008) aponta que o processo de descolonização da subjetividade passa pela recusa da inferioridade imposta e pela afirmação de uma história, de uma estética e de uma ética própria. Assim, a crítica ao racismo estrutural e à branquitude não se limita à denúncia, mas propõe a reconstrução de modos de existência enraizados na valorização da vida negra, no reconhecimento das epistemologias dissidentes e na ruptura com os pactos de silêncio que sustentam a hegemonia racial no Brasil contemporâneo.

1.2 SUBJETIVIDADES NEGRAS, SOFRIMENTO PSÍQUICO E A NEGAÇÃO DO PERTENCIMENTO EM TERRITÓRIOS DA BRANQUITUDE

A constituição das subjetividades negras no Brasil é marcada por um processo histórico persistente de desumanização, negação e exclusão. Desde o período colonial, passando pela escravidão e seus desdobramentos no pós-abolição, até as formas contemporâneas de racialização e marginalização, a experiência negra se desenvolve sob o signo da inferiorização, cuja expressão mais aguda se manifesta no plano subjetivo. Como apontam Souza (1983) e Fanon (2008), o sujeito negro é construído na tensão entre a imposição de uma identidade estigmatizada — reduzida à cor e à diferença — e o desejo de reconhecimento e pertencimento em um mundo social hegemonicamente estruturado pela branquitude.

Essa experiência de constituição do eu é atravessada por uma série de dispositivos de apagamento e exclusão simbólica que incidem sobre o cotidiano, o corpo e os afetos. A subjetividade negra, nesse contexto, é constantemente interpelada por um ideal de humanidade racializado, que coloca o branco como norma universal de beleza, inteligência, civilidade e legitimidade (Schucman, 2012; Bento, 2002). Frente a esse horizonte normativo, a população negra é desautorizada a narrar-se em seus próprios termos, sendo frequentemente empurrada para estratégias de embranquecimento simbólico e de autoapagamento identitário (Souza, 1983; Carneiro, 2005).

Como consequência, o sofrimento psíquico da população negra emerge não como um evento pontual, mas como um processo histórico-estrutural, que se inscreve na constituição subjetiva por meio de uma pedagogia da exclusão. Essa dor, que é social e coletiva, costuma ser desconsiderada pelos modelos clínicos convencionais — estruturados sob paradigmas eurocentrados que despolitizam a subjetividade e desracializam o sofrimento. Como argumenta Carneiro (2005), essa negligência epistêmica não é neutra: ela participa da lógica do pacto narcísico da branquitude, que silencia e deslegitima a dor racializada enquanto fundamento da ordem social vigente.

Essa lógica de sofrimento se agrava em contextos marcados pela hegemonia branca territorial e institucional, como é o caso do Vale Germânico/RS. Nessa região, a identidade branca-europeia é promovida como narrativa oficial e legítima, apagando sistematicamente a presença negra e indígena. A recente renomeação toponímica da região opera como símbolo dessa exclusão: ao consolidar o imaginário germânico como identidade regional hegemônica, reitera-se o pertencimento branco como norma e se reafirma a exclusão simbólica dos corpos racializados (Silva Júnior, 2021). Esse processo atua diretamente sobre a subjetivação de jovens negros, que, ao serem socializados em territórios da branquitude, experimentam a exclusão não apenas nos espaços físicos e institucionais, mas também nos registros afetivos e identitários.

A essa experiência de não-pertencimento, Kehl (2009) atribui a noção de sofrimento ético-político: um sofrimento que não deriva de fatores intrapsíquicos isolados, mas da interdição sistemática do sujeito de se reconhecer como legítimo diante do Outro social. Para a população negra do Vale Germânico, essa dor se manifesta na vivência cotidiana da solidão racial, da vergonha de si, da baixa autoestima e da ausência de modelos identificatórios positivos. Como descreve Nascimento (2019), trata-se de um tipo de mutilação simbólica, que impede a inscrição plena no campo do reconhecimento e compromete a constituição de uma identidade racial afirmativa.

Além disso, o sofrimento psíquico atravessado pelo racismo se expressa em múltiplos sintomas: depressão, ansiedade, insônia, introspecção excessiva, sensação de inadequação, hipertensão, explosões de raiva, entre outros (Silva, 2005). Esses efeitos não são desvios patológicos individuais, mas respostas legítimas a uma estrutura social violentamente racializada, que naturaliza a exclusão e normaliza o silenciamento. Como aponta Kabengele Munanga (2005), o racismo não se limita a ações explícitas de discriminação, mas atua de forma difusa e persistente, inclusive nas sutilezas das relações sociais e institucionais.

Nesse cenário, torna-se imperativo o desenvolvimento de uma escuta clínica e psicossocial comprometida com os marcadores raciais e com a interseccionalidade. Como propõe Crenshaw (2002), raça, classe, gênero e território não atuam de forma isolada, mas se entrelaçam na constituição de um campo de opressões interdependentes. Mulheres negras, por exemplo, acumulam múltiplas camadas de exclusão e são alvos de hipersexualização, precarização do trabalho e negligência institucional (Gonzalez, 2020; Collins, 1986). Em todos os casos, o sofrimento não se limita ao corpo individual: ele carrega as marcas de um processo coletivo de negação de existência.

Assim, compreender as subjetividades negras em contextos de hegemonia branca como o Vale Germânico é reconhecer que a dor vivida por esses sujeitos não decorre de falhas individuais, mas de um sistema racial que organiza a vida, o espaço e os afetos. Trata-se de um sofrimento ético-político que exige, como propõe Carneiro (2003), a construção de contranarrativas que desestabilizem a branquitude como norma e reabilitem a história, a dignidade e a potência da população negra. A crítica ao sofrimento negro, nesse sentido, é também uma crítica às epistemologias que silenciam o racismo, e uma aposta na reexistência como ato político, epistêmico e subjetivo.

1.3 RACISMO COMO FATOR DE RISCO PSICOSSOCIAL: INTERSEÇÕES ENTRE SUBJETIVIDADE, ESTRUTURA INSTITUCIONAL E TERRITÓRIO

O reconhecimento do racismo como um fator de risco psicossocial representa uma inflexão crítica no campo da psicologia social, sobretudo quando se considera o modo como a violência racial se infiltra nas camadas mais íntimas da vida psíquica e nos dispositivos estruturais que organizam a experiência coletiva. No caso da população negra residente no Vale Germânico/RS, essa articulação entre estrutura, subjetividade e território evidencia um processo contínuo de vulnerabilização psicossocial, cuja origem não reside em fatores individuais ou acidentais, mas na inscrição histórica e material do racismo como princípio organizador das relações sociais, das políticas públicas e da produção de sentidos.

Autores como Silvio Almeida (2019) e Sueli Carneiro (2003) defendem que o racismo opera em múltiplas dimensões – individual, institucional e estrutural –, constituindo um sistema complexo que naturaliza a exclusão, a desigualdade e o sofrimento de pessoas negras. A essas categorias soma-se, cada vez mais, a dimensão ambiental, conforme discutida por Bullard (1993), Nixon (2011) e Ribeiro (2019), que evidencia como o espaço urbano e os territórios são racializados, resultando em uma cartografia de vulnerabilidades que atinge, de forma desproporcional, corpos negros. Nesse sentido, o racismo não deve ser compreendido como um evento pontual, mas como um campo de forças que produz subjetividades marcadas pela dor, pela ausência de reconhecimento e pela negação do direito ao bem viver (CARNEIRO, 2003; SANTOS, 2021).

A concepção de risco psicossocial, no campo da saúde coletiva e da psicologia, refere-se a fatores contextuais e estruturais que expõem determinados grupos a condições adversas que comprometem sua saúde mental, sua integridade e suas possibilidades de desenvolvimento (GUIMARÃES, 2009; GONZALEZ, 2022). No caso da população negra, o racismo figura como um desses fatores, operando tanto na esfera das experiências subjetivas — por meio da epidermização da inferioridade, conforme Fanon (2008) — quanto na esfera dos dispositivos institucionais que reiteram o não pertencimento e o silenciamento.

A dimensão individual do racismo manifesta-se por meio da introjeção de sentimentos de inferioridade, vergonha e desvalia, amplamente documentados por autoras como Neusa Santos Souza (2021), que identifica na clínica com sujeitos negros a presença de um sofrimento ético-político, fundado na impossibilidade de reconhecimento simbólico nos espaços sociais. Essa forma de sofrimento é agravada em contextos como o do Vale Germânico, onde o imaginário regional, profundamente eurocentrado, reforça a deslegitimação das histórias, saberes e corpos negros. A escassez de representações positivas, aliada à presença constante de discursos e práticas que exaltam uma identidade branca hegemônica, produz, na subjetividade negra, um campo de tensão entre o desejo de pertencimento e a experiência reiterada de exclusão.

No plano institucional, o racismo se manifesta por meio de rotinas, normas e políticas aparentemente neutras que, na prática, desresponsabilizam o Estado e suas instituições pelo cuidado, proteção e reconhecimento da população negra. Essa lógica de negligência racializada pode ser observada nos dados empíricos da pesquisa, nos quais emergem denúncias de omissão, silenciamento e falta de acolhimento por parte de escolas, serviços de saúde e equipamentos públicos. Como observam Lélia Gonzalez (1984) e Schucman (2014), o pacto narcísico da branquitude opera não apenas pela exclusão direta, mas também pela ausência de nomeação do racismo como problema público, transferindo ao indivíduo negro a responsabilidade por um sofrimento que é estruturalmente produzido.

Essa violência institucional, ao incidir sobre sujeitos historicamente vulnerabilizados, intensifica o risco psicossocial, pois compromete o acesso a políticas públicas adequadas, a redes de proteção e a espaços de cuidado culturalmente sensíveis. A escola, nesse sentido, torna-se um espaço paradigmático: nela, o currículo eurocentrado, a ausência de representatividade negra no corpo docente e as práticas disciplinares racializadas contribuem para a produção de um ambiente hostil à identidade negra, afetando diretamente a autoestima, o rendimento e o bem-estar subjetivo dos estudantes negros (CAVALLEIRO, 2003; ROCHA-CARNEIRO, 2020).

A dimensão ambiental do racismo, por sua vez, revela como o espaço urbano se estrutura em torno de um projeto racializado de cidade. A concentração da população negra do Vale Germânico em territórios com menor infraestrutura, sujeitos a riscos ambientais e marcados pelo estigma territorial, não decorre apenas de desigualdades econômicas, mas de uma historicidade excludente que articulou posse de terra, mobilidade urbana e pertencimento racial. Como argumenta Ribeiro (2019), o Brasil produz uma segregação urbana racializada, na qual as periferias não são apenas espaços geográficos, mas dispositivos de desumanização. A vivência cotidiana em territórios ambientalmente precarizados compromete o bem-estar coletivo, ao mesmo tempo em que reforça, simbolicamente, a mensagem de que certas vidas e corpos valem menos — uma mensagem que, internalizada, impacta diretamente a constituição da subjetividade e a construção de projetos de vida.

Portanto, a análise do racismo como fator de risco psicossocial no Vale Germânico exige uma abordagem interseccional e territorializada, que compreenda a articulação entre o sofrimento subjetivo, a exclusão institucional e a violência territorial como dimensões co-constitutivas da experiência negra. Essa perspectiva impõe à psicologia social um duplo compromisso: epistemológico, no sentido de deslocar os paradigmas universalistas e eurocentrados que invisibilizam o sofrimento racializado; e político, ao assumir a luta antirracista como dimensão ética indissociável da produção de cuidado, de escuta e de políticas de reconhecimento.

Como destaca Santos (2021), não é possível falar em saúde mental negra sem enfrentar o racismo como determinante social. O desafio contemporâneo da psicologia, nesse contexto, é reorientar suas práticas e teorias a partir das epistemologias do Sul, das experiências vividas da população negra e dos territórios de resistência, forjando práticas de cuidado que reconheçam o sofrimento racial como legítimo, e que contribuam para a construção de um mundo no qual a população negra possa não apenas sobreviver, mas viver com dignidade, memória e pertencimento.

1.4 OS RISCOS PSICOSSOCIAIS DO RACISMO NAS ESFERAS DO TRABALHO, DA VIDA COMUNITÁRIA E DAS RELAÇÕES SOCIAIS NO VALE GERMÂNICO/RS

A configuração dos riscos psicossociais vivenciados pela população negra no contexto do Vale Germânico/RS não pode ser compreendida à margem dos processos históricos, culturais e institucionais que conformam a região como um território racialmente hierarquizado. Se, por um lado, o racismo se inscreve como um fator estruturante das desigualdades sociais, por outro, ele opera silenciosamente na produção de sofrimentos cotidianos que impactam de forma direta a saúde mental e o bem-estar psicossocial da população negra. Esse impacto se manifesta com especial intensidade em ambientes de trabalho, na vida comunitária e nas dinâmicas interpessoais, produzindo um campo de vulnerabilidade marcado pela violência simbólica, pelo silenciamento e pela negação do pertencimento.

A literatura crítica sobre os determinantes sociais da saúde tem apontado que os riscos psicossociais são fruto de interações entre condições estruturais, subjetividades e práticas sociais que se reproduzem de forma sistemática em contextos marcados por desigualdades (WHO, 2008; MINAYO, 2006). No caso da população negra, o racismo atua como um determinante específico e transversal, operando tanto na configuração das oportunidades materiais quanto na conformação simbólica dos lugares sociais ocupados pelos sujeitos racializados. Como destaca Almeida (2019), a experiência da população negra é marcada por uma constante sensação de vigilância, exclusão e inadequação, especialmente em espaços hegemonicamente brancos, como ocorre nas cidades do Vale Germânico.

Nos ambientes de trabalho, esses riscos psicossociais se expressam por meio de diferentes mecanismos de exclusão, entre eles: a dificuldade de acesso a empregos formais de qualidade, a sub-representação em cargos de liderança, o racismo recreativo e institucional, e a desqualificação das competências profissionais. Tais práticas não apenas comprometem a inserção laboral da população negra, como produzem sofrimento psíquico contínuo, minando a autoestima, a confiança e a capacidade de projetar o futuro. Conforme aponta Neusa Santos Souza (2021), a interiorização da inferioridade racial compromete a possibilidade de o sujeito negro se reconhecer como legítimo ocupante dos espaços sociais e profissionais.

Além disso, o racismo institucionalizado no mundo do trabalho contribui para o fenômeno da “hipervisibilidade negativa”, no qual sujeitos negros são, ao mesmo tempo, invisibilizados em processos de reconhecimento profissional e hipervisibilizados como alvo de vigilância, controle e punição (AKOTIRENE, 2019; SCHUCMAN, 2014). Essa ambiguidade psíquica gera um estado permanente de alerta e tensão que afeta diretamente a saúde mental, sendo agravada pela ausência de políticas organizacionais de equidade racial ou de espaços de escuta e acolhimento nos locais de trabalho.

Na vida comunitária, os riscos psicossociais se expressam também pela vivência de isolamento, apagamento cultural e ausência de redes institucionais de suporte. A conformação do Vale Germânico como uma região de forte identidade branca-eurocêntrica, reforçada pela recente renomeação simbólica da região, aprofunda a deslegitimação das experiências negras e compromete o senso de pertencimento comunitário. Como observa Fanon (2008), a desumanização do outro racializado é uma violência que se exerce não apenas na linguagem ou na política, mas nos gestos cotidianos que regulam o acesso à dignidade e à existência plena.

O sentimento de não pertencimento, que emerge das narrativas de sujeitos negros residentes na região, está diretamente relacionado a experiências de exclusão em espaços públicos, como comércios, serviços, escolas e instituições culturais. Essas microagressões, embora muitas vezes banalizadas, produzem efeitos acumulativos sobre a subjetividade, levando a quadros de ansiedade, depressão e retraimento social (GONZALEZ, 1984; SANTOS, 2021). Trata-se de um processo contínuo de corrosão simbólica da cidadania negra, que se traduz em um estado de exaustão psíquica e emocional, muitas vezes silenciado por não encontrar ressonância nos discursos institucionais vigentes.

Por fim, as relações sociais no cotidiano — tanto interpessoais quanto institucionais — também se configuram como espaços de produção de risco psicossocial, na medida em que reforçam padrões de branquitude como norma e universalidade. A branquitude, enquanto pacto simbólico de manutenção de privilégios raciais (SCHUCMAN, 2014; ALMEIDA, 2019), opera silenciosamente na exclusão de corpos negros dos espaços de decisão, lazer, sociabilidade e afeto. A ausência de representações positivas e a naturalização de um modelo estético, linguístico e comportamental branco reforçam o sentimento de inadequação e o retraimento identitário entre pessoas negras — especialmente as mais jovens, cujas subjetividades ainda estão em processo de construção.

Portanto, os riscos psicossociais decorrentes do racismo no Vale Germânico devem ser compreendidos em sua complexidade interseccional e multidimensional. O sofrimento psíquico da população negra não é efeito de fragilidades individuais, mas de um conjunto de práticas e dispositivos estruturais que operam cotidianamente para negar reconhecimento, voz e dignidade. Tais riscos não se restringem à esfera clínica, mas atravessam o mundo do trabalho, a vida comunitária, as redes de sociabilidade e os processos identitários, exigindo da psicologia social e das políticas públicas uma abordagem crítica, territorializada e racialmente situada.

Como enfatiza Santos (2021), é urgente que a psicologia, ao se comprometer com a saúde mental da população negra, reconheça que o sofrimento é político e que o cuidado só será efetivo se estiver articulado à luta por justiça racial, reparação histórica e inclusão substantiva. No contexto do Vale Germânico, esse desafio implica não apenas a escuta sensível às vozes negras, mas a ressignificação de estruturas simbólicas e institucionais que ainda operam sob o pacto do silêncio racial.

1.5 RESISTÊNCIA, IDENTIDADE NEGRA E ESTRATÉGIAS DE REINVENÇÃO PSICOSSOCIAL NO VALE GERMÂNICO/RS: O CASO DO CLUBE SOCIAL NEGRO CRUZEIRO DO SUL

Diante de um sistema que nega a plena humanidade dos sujeitos negros, o ato de resistir se constitui como gesto radical de afirmação ontológica e de reconstrução simbólica da existência. Trata-se de um movimento que transborda os limites das práticas político-institucionais tradicionais, e se realiza cotidianamente nas formas de viver, de amar, de criar e de narrar a própria trajetória em uma sociedade racialmente hierarquizada. Conforme destaca bell hooks (1995), a resistência negra é uma prática de liberdade: ela cria fissuras na hegemonia da branquitude, deslocando os marcadores de centralidade e instaurando epistemologias de margem como forma de reencantar o mundo a partir da experiência negra.

Nesse sentido, a construção da identidade negra se configura como um processo psicossocial de profundo alcance, não apenas porque recupera e reinscreve uma história sistematicamente negada, mas porque opera como ruptura ativa do pacto narcísico da branquitude (CARNEIRO, 2005; SANTOS, 2021). A autoidentificação racial, nesse contexto, representa não um simples pertencimento nominal, mas a assunção crítica de um lugar de memória, luta e dignidade. Ela implica enfrentar os efeitos subjetivos do racismo internalizado, desconstruir imaginários coloniais e engendrar novas narrativas sobre o corpo, a estética, o valor e a competência.

As estratégias de resistência empreendidas pela população negra do Vale Germânico/RS se dão, portanto, em múltiplas frentes: na estética (com a valorização de traços afrocentrados e do cabelo natural), na cultura (com a produção de eventos e espaços de memória negra), na espiritualidade (com o resgate de saberes ancestrais), e, de forma decisiva, na sociabilidade comunitária. Essas estratégias não apenas sustentam a saúde mental coletiva diante das violências simbólicas do racismo, mas funcionam como práticas micropolíticas de reinvenção da vida. Como afirmam Collins (2009) e hooks (1992), essas “epistemologias da margem” são saberes que emergem da exclusão, mas que possuem potência crítica e transformadora.

Nesse panorama, destaca-se com relevância histórica e simbólica o Clube Social Negro Cruzeiro do Sul, fundado em 1922 em Novo Hamburgo, como um dos mais emblemáticos espaços de resistência negra na região. Criado em um período de forte exclusão social e segregação racial institucionalizada, o clube foi concebido como lugar de encontro, celebração, afirmação e acolhimento da população negra da cidade e do entorno — constituindo-se como espaço autônomo de sociabilidade, pertencimento e construção identitária. Em uma região marcada pelo predomínio de estruturas brancas-eurocentradas e por um imaginário público que nega a contribuição negra à história local, o Cruzeiro do Sul representa uma contranarrativa viva, um quilombo urbano de continuidade histórica.

O clube permanece ativo até os dias atuais, sendo palco de ações socioculturais que dialogam diretamente com a valorização da memória, da ancestralidade e da cultura negra. Promove bailes, encontros, oficinas, homenagens, rodas de conversa e celebrações que, para além do entretenimento, operam como dispositivos de cura, reconhecimento e fortalecimento comunitário. A sua existência centenária é, por si só, um ato de resistência em um território onde a branquitude foi erigida como norma estética, moral e institucional. Como observa Angela Davis (2016), resistir é um ato de esperança coletiva, que vincula passado, presente e futuro em um projeto de libertação. O Clube Cruzeiro do Sul materializa esse projeto em sua forma mais concreta, cotidiana e intergeracional.

Portanto, reconhecer o papel de instituições como o Clube Social Negro Cruzeiro do Sul é essencial para compreender as estratégias psicossociais de resistência no Vale Germânico. Tais espaços não apenas preservam memórias e fortalecem identidades, mas tensionam diretamente as estruturas que buscam apagar a presença negra do imaginário social. Eles operam como territórios afetivos e políticos de construção de dignidade, elaborando formas de estar no mundo que desafiam o silenciamento histórico e apontam para um horizonte de justiça racial e subjetiva.

Assim, compreender a resistência negra na região exige abandonar concepções patologizantes da subjetividade negra e reconhecer os modos de viver, criar e transformar que emergem da luta cotidiana contra o racismo. Implica, sobretudo, um compromisso ético com as vozes que, mesmo silenciadas por séculos, continuam a reverberar nos corpos, nas ruas e nos terreiros — fazendo da memória um campo fértil de reinvenção coletiva.

2. MÉTODO

A presente pesquisa adota uma abordagem qualitativa de caráter descritivo e interpretativo, alinhada ao campo da Psicologia Social crítica e fundamentada em pressupostos epistemológicos decoloniais. Parte-se da compreensão de que o racismo estrutural não é apenas um fenômeno objetivo e institucional, mas também um processo subjetivo, intersubjetivo e simbólico, que opera sobre os modos de ser, sentir, existir e resistir dos sujeitos negros. Nesse sentido, opta-se por um percurso metodológico que valorize as experiências vividas, os sentidos atribuídos e as estratégias de elaboração psicossocial produzidas a partir das margens do sistema racial hegemônico.

A dissertação está estruturada no formato multipaper, composta por três artigos científicos interligados. Cada artigo explora uma dimensão específica do fenômeno investigado: (1) os fundamentos históricos do racismo estrutural e seus desdobramentos no contexto do Vale Germânico/RS; (2) os impactos psicossociais da branquitude como pacto normativo nas instituições e sociabilidades locais; e (3) os efeitos do racismo estrutural nas trajetórias laborais da população negra da região. Apesar das especificidades de cada recorte, os artigos compartilham a mesma matriz teórico-metodológica e se articulam a partir de um corpus empírico comum.

O instrumento de coleta foi elaborado a partir de um roteiro previamente construído, de modo a garantir a comparabilidade entre os relatos, ao mesmo tempo em que possibilitou a emergência de narrativas singulares. A coleta de dados incluiu uma dimensão quantitativa e qualitativa: a primeira, referente ao levantamento sociodemográfico e estatístico, e a segunda, relacionada à análise discursiva e interpretativa das falas dos participantes. Assim, buscou-se articular a objetividade dos dados numéricos com a densidade subjetiva dos relatos, oferecendo uma visão integrada sobre os efeitos do racismo estrutural e das dinâmicas étnico-raciais na região estudada.

3. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A partir das respostas coletadas sobre experiências e opiniões acerca do racismo estrutural e das desigualdades enfrentadas pela população negra no Vale dos Sinos, emergem com clareza as múltiplas camadas de exclusão que atravessam não apenas o espaço social, mas também o histórico-cultural da região. A reflexão crítica dos participantes evidencia que o racismo no Vale dos Sinos não é um fenômeno isolado ou superficial, mas uma estrutura enraizada, que se manifesta tanto nas práticas cotidianas quanto nas políticas simbólicas da região.

A análise dos dados empíricos, coletados por meio de um formulário online com 52 participantes, permitiu a emergência de três grandes eixos temáticos, organizados segundo os blocos previamente estabelecidos: (1) Racismo estrutural e apagamento histórico no Vale Germânico, (2) Branquitude e invisibilidade como norma social, e (3) Racismo no trabalho e estratégias de enfrentamento. Esta seção apresenta a discussão analítica dos dados, em articulação com os referenciais teóricos da Psicologia Social crítica e dos estudos decoloniais, especialmente no que tange às relações raciais.

3.1 SUBJETIVIDADES MARCADAS PELA EXCLUSÃO E PELO NÃO PERTENCIMENTO 

Os relatos dos participantes da pesquisa revelam um padrão persistente de exclusão racial cotidiana, vivenciado não apenas em grandes eventos de discriminação explícita, mas, sobretudo, em microagressões constantes que moldam a forma como os sujeitos negros se percebem e são percebidos socialmente. A vivência de estar sempre sob suspeita, de ter a própria capacidade questionada, ou de ser alvo de insultos disfarçados de brincadeira, representa o modo como a branquitude se institui enquanto norma de convivência social e modelo de humanidade.

Um ponto fundamental que se destaca nas respostas é a compreensão do racismo como uma herança histórica direta das condições pós-abolição, marcada por processos sistemáticos de marginalização. Um dos respondentes expressa de forma contundente:

“Os preconceitos são herança da falta de planejamento para agregar o negro na civilização brasileira. Somos a maior população carcerária porque após a abolição foram criadas leis para nos criminalizar, após abolição o único acesso era da rua, por isso as mulheres se submeteram a trabalhar como domésticas em situação escravagista, sem acesso a trabalho e moradia como pode se dedicar aos estudos? Por isso a maioria dos pobres hoje são negros que vivem em periferias.”

Este excerto revela a interligação entre racismo institucional e exclusão social, demonstrando que as desigualdades atuais não são resultado de falhas individuais, mas de políticas estruturais e do abandono estatal que perpetua a pobreza e a exclusão social da população negra. Os episódios citados — como a vigilância racial em espaços de consumo, os questionamentos sobre posições profissionais de autoridade ocupadas por pessoas negras e os insultos dirigidos a traços físicos — não são ocorrências isoladas, mas sim expressões daquilo que Fanon (2008) denominou como a “experiência corporal racializada”: um estado de constante alerta e desconforto por habitar um corpo que, aos olhos da sociedade, é considerado inadequado, deslocado, suspeito ou desautorizado.

Essa vigilância do outro se torna autovigilância do eu, forjando um tipo de subjetividade marcada por defesas psíquicas crônicas, como o retraimento, a hipersensibilidade, a tentativa de embranquecimento simbólico e, em muitos casos, a introjeção de sentimentos de inferioridade. Como afirma Neusa Santos Souza (1983), o sujeito negro é compelido a desenvolver uma identidade que muitas vezes não lhe pertence, operando em uma lógica de cisão entre o que se é e o que se espera ser para ser aceito.

Esse processo está no cerne daquilo que Grada Kilomba (2019) conceitua como racismo como experiência epistemológica e afetiva: o negro não apenas sofre com o preconceito do outro, mas é levado a questionar o seu próprio valor, sua dignidade e seu direito de existir plenamente. O não pertencimento, neste sentido, não é apenas territorial ou social — é ontológico, pois afeta a constituição mesma do sujeito.

A exclusão sistemática experimentada nas escolas, nos espaços de lazer, nas relações profissionais e nos serviços públicos se transforma em marcas afetivas duradouras, como a vergonha do próprio corpo, o desejo de desaparecer, a sensação de não ser visto, ou de ser visto apenas como ameaça. A repetição desses episódios ao longo da vida — desde a infância até a vida adulta — cristaliza uma forma de ser no mundo que é constantemente atravessada por estratégias de sobrevivência emocional, entre o silêncio, a negação, o humor defensivo e a raiva reprimida.

Como relataram alguns participantes:“Quando entrei na loja, o segurança veio direto em mim. Nem disfarça mais. A gente aprende a andar com cuidado, a sorrir mais, a falar baixo, só pra não parecer perigoso.”“Já fui gerente de loja, e os clientes sempre pediam pra falar com ‘alguém responsável’, como se eu não fosse.”

Esses relatos não apenas evidenciam o caráter persistente do racismo estrutural, mas mostram como ele se infiltra nas emoções, no comportamento e na autoimagem, exigindo dos sujeitos negros uma performance constante de correção e adequação. A subjetividade negra, nesse contexto, não é vivida em liberdade, mas sob a coação do olhar branco que julga, enquadra e sanciona.

Conforme destaca Sueli Carneiro (2011), esse processo de negação social impõe ao sujeito negro uma “luta por reconhecimento” que não se resolve apenas por inclusão formal ou mobilidade social, pois os dispositivos de exclusão operam também nas camadas mais sutis da vida simbólica e afetiva. A branquitude, ao se estabelecer como norma e como ausência de marca racial, produz o negro como diferença estigmatizada, tornando sua presença visível apenas como dissonância, como ruído, como excesso.

A invisibilidade cultural da população negra, por sua vez, aparece de forma incisiva nas narrativas que denunciam a hegemonia da cultura germânica na região, promovendo um apagamento simbólico das contribuições e da história negra local. Como ressaltado por um participante: “A importância que Novo Hamburgo dá para a imigração alemã é infinitamente maior do que qualquer outra atividade cultural da região. Isso apaga a história de outros povos. O reconhecimento dessa discrepância deveria ser corrigido.”

Esta exclusão simbólica, em que a memória da população negra é suprimida e relegada a um segundo plano, agrava o sentimento de alienação e dificulta a afirmação da identidade negra no território. A cultura germânica dominante não apenas delimita quem é visto como pertencente, mas impõe um padrão racial e cultural de pertencimento que exclui negros e outros grupos não brancos. O racismo estrutural, assim, não se manifesta apenas em práticas discriminatórias explícitas, mas também na construção social da identidade regional, que se mantém baseada em uma visão eurocêntrica e excludente.

No campo da educação, os relatos apontam para a insuficiência do ensino formal em abordar a história e cultura afro-brasileira de forma consistente, limitando o reconhecimento e o empoderamento da população negra desde a infância: “Meu filho de 9 anos já sofreu racismo na escola, já fui várias vezes conversar com a direção sobre racismo, sobre a lei 10639, mas infelizmente ainda acham que esse assunto só é importante em novembro.”

Essa referência direta à Lei 10.639/03, que obriga o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, destaca a falta de efetividade da política pública no combate ao racismo estrutural na educação, onde o racismo é tratado como tema episódico, sem continuidade ou profundidade. Isso fortalece o ciclo de invisibilidade e sub-representação negra no ambiente educacional e social, impactando na autoestima e no reconhecimento social das crianças e jovens negros.

O peso emocional dessa experiência cotidiana é expressado por outros respondentes que compartilham o desgaste psíquico provocado pela exposição constante ao racismo: “São muitas dores, não quero mais mexer nisso.” “Confesso que deleto esses acontecimentos de minha mente, me dão asco.”

O cansaço emocional revela a dimensão subjetiva do racismo estrutural — uma opressão que não afeta apenas as condições materiais e simbólicas, mas também a saúde mental e o bem-estar dos sujeitos negros. Tal sofrimento pode ser interpretado à luz dos estudos que discutem os impactos psicossociais do racismo, na medida em que o racismo deixa marcas profundas na construção da subjetividade dos negros, muitas vezes manifestadas em sentimentos de exaustão, exclusão e alienação.

Entretanto, mesmo diante desse cenário de opressão e dor, emergem sinais de resistência e protagonismo, evidenciados na responsabilidade assumida por alguns respondentes em contribuir com a luta antirracista e o fortalecimento da comunidade negra:

“Me sinto na responsabilidade de poder contribuir com ela. Sempre mantendo o respeito e o compromisso social sobre a temática. Sinto a necessidade de alguma forma estar na luta e caminhada na melhoria da comunidade e população negra.”

“Somos uma pequena referência para muitas pessoas, como no meu caso para crianças e adolescentes.”

Essa afirmação do protagonismo negro e do compromisso social sinaliza um movimento de resiliência coletiva, na qual o reconhecimento da história e das dificuldades enfrentadas se traduz em ações de empoderamento e transformação social. A luta antirracista, nesse sentido, é apresentada não apenas como uma demanda por justiça social, mas como um projeto de reconstrução identitária e de afirmação da dignidade negra no Vale dos Sinos.

Por fim, destaca-se a percepção dos participantes quanto à importância das políticas afirmativas e da educação antirracista como instrumentos essenciais para enfrentar as desigualdades estruturais: 

“Se efetivarmos as políticas sociais e afirmativas que temos na prática já é uma caminhada importante. Estamos cansados de fazer de conta que a gente quer efetividade em políticas que se concretizaram pela luta dos nossos ancestrais.”

“Acredito que todas as respostas acima poderiam ser adotadas para fortalecer a luta antirracista. As ações afirmativas são fundamentais para melhorar a qualidade de vida da população negra, mas somente a educação pode combater o racismo na base.”

Essa demanda por efetivação de políticas públicas reflete a crítica ao distanciamento entre legislação e prática, bem como a necessidade urgente de ações concretas e continuadas que assegurem a inclusão, o reconhecimento e a reparação histórica da população negra.

Assim, a exclusão vivida pela população negra no Vale Germânico/RS é mais do que um problema social ou político — é um processo de deslegitimação ontológica, que compromete a possibilidade de existir com plenitude. Como apontam as falas, o sentimento de não pertencimento não decorre apenas da ausência de representatividade ou de oportunidades, mas de uma pedagogia do silenciamento e da desautorização que opera desde os primeiros anos de vida.

Todavia, é também nesse terreno ferido da subjetividade que surgem germes de resistência, como será abordado nos próximos itens: a recusa a esse lugar imposto, a busca por referências negras positivas, a formação de coletivos e redes de pertencimento, e a revalorização de saberes e práticas ancestrais são algumas das formas encontradas pelos sujeitos negros para reescrever sua história, reafirmar sua humanidade e romper com o ciclo de apagamento e exclusão.

3.2 A DOR RACIAL COMO COMPONENTE PSICOSSOCIAL CRÔNICO

Os dados da pesquisa revelam que o racismo, ao se constituir como um sistema contínuo de desumanização e exclusão, gera efeitos psíquicos duradouros, que ultrapassam o momento do ato discriminatório em si e se alojam no corpo, na memória e na subjetividade dos sujeitos negros. As vivências relatadas não são apenas experiências pontuais de dor, mas compõem um campo emocional marcado pela ansiedade, pela tristeza crônica, pela hipervigilância e pela insegurança ontológica.

As respostas coletadas a partir da questão aberta sobre experiências e opiniões acerca do racismo e da desigualdade racial no Vale dos Sinos revelam, em sua densidade, a persistência de um fenômeno estrutural que não pode ser reduzido a meros atos individuais de preconceito ou discriminação. Trata-se, antes, de uma engrenagem complexa e sistêmica que se inscreve historicamente nas relações sociais, culturais e institucionais da região, configurando um regime de exclusão e silenciamento da população negra que se perpetua até os dias atuais.

Em consonância com os aportes teóricos de Silvio Almeida (2018) e Sueli Carneiro (2003), podemos compreender o racismo estrutural como um modo de operação que, ao longo do tempo, naturaliza as desigualdades raciais, convertendo-as em práticas legitimadas socialmente, embora profundamente injustas e excludentes. Nesse sentido, os relatos coletados destacam que a marginalização da população negra no Vale dos Sinos é uma continuidade histórica da violência colonial e escravista, cujo legado permanece em diversas esferas da vida social.

Um dos participantes sintetiza essa compreensão ao destacar que:

“Os preconceitos são herança da falta de planejamento para agregar o negro na civilização brasileira. Somos a maior população carcerária porque após a abolição foram criadas leis para nos criminalizar, após a abolição o único acesso era da rua, por isso as mulheres se submeteram a trabalhar como domésticas em situação escravagista, sem acesso a trabalho e moradia como pode se dedicar aos estudos? Por isso a maioria dos pobres hoje são negros que vivem em periferias.”

Este trecho denota o entrelaçamento entre racismo estrutural e políticas públicas historicamente excludentes, revelando a necropolítica latente no ordenamento social brasileiro, conforme discutido por Achille Mbembe (2019). A criminalização dos corpos negros e a negação de acesso aos bens sociais básicos, como educação, emprego e moradia digna, configuram um regime de necropolítica racial que sustenta a desigualdade estrutural no território analisado.

Outra das participantes, ao relatar uma experiência de injúria racial, afirmou: “Até hoje me dói não ter respondido à ofensa. Eu congelei. Depois me senti fraca, com raiva de mim mesma. É como se eu tivesse falhado.”Essa fala evidencia o efeito paralisante e internalizado da violência racial, que frequentemente é revivido e repensado com culpa e autocobrança. O trauma não reside apenas no evento em si, mas na sensação de impotência que o acompanha. Conforme argumenta Sueli Carneiro (2003), o racismo atua como um dispositivo de exclusão simbólica e epistêmica, que priva os sujeitos negros do direito à resposta, à afirmação e à reparação emocional.

Outro relato revela o impacto da violência racial sobre a parentalidade negra: “Fico triste de ter deixado de levar meu filho à praça por medo do que ele podia sofrer. Já vi criança negra ser tratada diferente. Meu filho não merece isso.” Aqui, o medo se instala como barreira ao exercício pleno da vida social. A dimensão protetiva, inerente ao cuidado parental, é atravessada por uma racionalidade defensiva, onde o espaço público é percebido como campo de ameaça e exposição ao preconceito. A dor racial, nesse contexto, assume um caráter intergeracional e preventivo, limitando a experiência da liberdade e da espontaneidade.

O sentimento de inadequação, por sua vez, aparece em diversos relatos vinculados ao espaço profissional e acadêmico: “Sempre tenho que provar que sou boa o suficiente. Que mereço estar ali. E mesmo assim, duvidam.”“É cansativo demais ter que trabalhar o triplo e ainda ser tratada como se tivesse conseguido as coisas por sorte.” Essas falas traduzem o que Kilomba (2019) denomina como relação desigual de reconhecimento, em que o sujeito negro é constantemente chamado a justificar sua presença em espaços que, por norma tácita, foram construídos como brancos. A necessidade de “provar valor” opera como uma forma permanente de desgaste emocional, gerando síndromes de impostor racializado, com impactos diretos sobre a autoestima, a produtividade e o bem-estar subjetivo.

Além da dor explícita, a pesquisa identificou também uma normalização da violência racial, expressa por frases como: “Já estou acostumada.” “Isso é todo dia.” “A gente aprende a engolir.” Esse discurso resignado revela um processo de dessensibilização social, no qual a repetição da exclusão leva à sua banalização, tornando o enfrentamento ainda mais difícil. O sujeito negro, nesses casos, internaliza a dor como parte constitutiva de sua trajetória, o que reforça o caráter estrutural e cumulativo do racismo enquanto sofrimento crônico, silenciado e solitário.

Fanon (2008), ao refletir sobre os efeitos da racialização no psiquismo negro, afirma que o sujeito colonizado é compelido a viver em um estado permanente de tensão e fratura. Essa fratura, visível nas falas dos participantes, se expressa como dor que não passa, que não se encerra com o tempo, pois é constantemente reativada pela vivência cotidiana da exclusão.

No campo da cultura e da memória, há uma denúncia clara do apagamento simbólico da população negra e indígena em favor da narrativa hegemônica eurocêntrica, especialmente a valorização exacerbada da imigração alemã na região. Essa exclusão simbólica, discutida por Aníbal Quijano (2000) na sua teoria da colonialidade do poder, reforça a construção de uma identidade regional marcada pela branquitude hegemônica, que delimita quem pertence e quem é silenciado socialmente. Como explicitado por um respondente:

“A importância que Novo Hamburgo dá para a imigração alemã é infinitamente maior do que qualquer outra atividade cultural da região. Isso apaga a história de outros povos. O reconhecimento dessa discrepância deveria ser corrigido.”

Tal percepção evidencia o funcionamento do pacto da branquitude (Kilomba, 2019), onde a cultura branca europeia é não apenas privilegiada, mas também imposta como norma, subordinando e invisibilizando outras identidades e epistemologias. Essa lógica colonizadora cultural se reflete nas políticas públicas e nas práticas sociais que mantêm o status quo da exclusão racial.

A dimensão educacional emerge como um dos principais territórios onde o racismo estrutural se manifesta e se reproduz, agravando as desigualdades. A Lei 10.639/03, que deveria garantir o ensino da história e cultura afro-brasileira, encontra resistência e superficialidade em sua implementação, como constatado em relatos sobre o racismo escolar e a invisibilidade curricular: “Meu filho de 9 anos já sofreu racismo na escola, já fui várias vezes conversar com a direção sobre racismo, sobre a lei 10639, mas infelizmente ainda acham que esse assunto só é importante em novembro.”

Essa limitação no acesso a uma educação antirracista e decolonial compromete não só o desenvolvimento da autoestima e identidade negra, mas também a construção de um ambiente social menos preconceituoso, perpetuando a reprodução das desigualdades raciais intergeracionais (Bourdieu, 1989). O racismo educacional, portanto, é uma dimensão estruturante que interfere diretamente na mobilidade social da população negra.

Além da dimensão estrutural, a análise evidencia a experiência subjetiva do racismo, marcada pelo sofrimento emocional, desgaste psíquico e estratégias de resistência. O relato de exaustão e rejeição dos episódios de racismo cotidiano – “São muitas dores, não quero mais mexer nisso.” – revela o impacto psicossocial da discriminação, corroborando os estudos de Fanon (1952) sobre a construção identitária sob o racismo e a violência simbólica. A necessidade de silenciar essas experiências traumáticas demonstra a profunda crise existencial imposta pelo racismo.

Entretanto, a coletividade negra no Vale dos Sinos também manifesta protagonismo e resistência, não apenas como reação, mas como estratégia política e cultural para afirmar sua existência e direitos. A responsabilidade assumida por alguns participantes em promover mudanças e servir de referência para as novas gerações indica a emergência de um processo de empoderamento e reapropriação identitária, em consonância com os princípios do movimento negro e das epistemologias do Sul (Santos, 2009). Como colocado: “Me sinto na responsabilidade de poder contribuir com ela. Sempre mantendo o respeito e o compromisso social sobre a temática. Sinto a necessidade de alguma forma estar na luta e caminhada na melhoria da comunidade e população negra.”

Finalmente, a demanda pela efetivação de políticas afirmativas e educação antirracista é apontada como elemento chave para a superação das barreiras estruturais: “Se efetivarmos as políticas sociais e afirmativas que temos na prática já é uma caminhada importante. Estamos cansados de fazer de conta que a gente quer efetividade em políticas que se concretizaram pela luta dos nossos ancestrais.”

Essa reivindicação dialoga com a necessidade de transformações institucionais e culturais profundas para romper o pacto da branquitude e promover a igualdade racial efetiva, como defendido por Almeida (2019) e Carneiro (2003). A combinação entre luta política, conscientização social e mudanças concretas nas estruturas educacionais e de trabalho representa o caminho para desnaturalizar o racismo e construir um espaço sociocultural inclusivo e pluriversal no Vale dos Sinos.

Essa dor, no entanto, também mobiliza resistências, mesmo quando não verbalizadas como tal. O simples ato de continuar, de falar, de ocupar espaços, de criar redes e de proteger os filhos são formas de resistência subjetiva que desafiam a lógica da desumanização. Como será analisado na seção seguinte, essas resistências não anulam a dor, mas produzem sentidos que ressignificam a própria trajetória e possibilitam a reconstrução da identidade negra em chave afirmativa.

3.3 ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA E REAFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA

Apesar da dor persistente provocada pelas vivências de exclusão, os relatos da população negra do Vale Germânico/RS também revelam estratégias de resistência subjetiva e coletiva, que atuam como contranarrativas ao processo de desumanização imposto pela branquitude estrutural. Estas estratégias emergem como formas de “reexistência” – conceito trabalhado por bell hooks (1995) e Patricia Hill Collins (2016) para nomear os espaços simbólicos, afetivos e políticos onde sujeitos negros se reconhecem, se fortalecem e produzem novos sentidos para si e para o mundo.

Ao avançarmos na análise dos dados, evidencia-se que o racismo estrutural, embora calcado em processos históricos e culturais amplos, se manifesta cotidianamente nas microrelações interpessoais e institucionais, atravessando o campo das experiências vividas pela população negra. Esta seção busca aprofundar a compreensão das repercussões psicossociais desse fenômeno, bem como as respostas coletivas e individuais mobilizadas para sua superação.

Os relatos de exclusão, silenciamento e desvalorização no ambiente de trabalho e social apontam para uma dinâmica constante de deslegitimação da existência negra, que ultrapassa a esfera da discriminação explícita, incorporando formas sutis e invisibilizadas, mas não menos violentas, de racismo. Como uma participante descreve:

“Quando em uma reunião eu e outra colega que também é negra não tivemos oportunidade de falar nossas opiniões referente ao assunto que estava sendo tratado. Nos trouxe algumas reflexões e nos fez perceber que a nossa voz para eles não era relevante, pois todos os colegas brancos conseguiram falar, isso nos abalou e percebemos que éramos apenas um número no quadro para a empresa…”

Este episódio exemplifica a lógica da sub-representação simbólica que, segundo Grada Kilomba (2019), configura uma violência epistêmica, na qual o saber, as falas e a existência negra são desconsiderados como legítimos. O impacto emocional dessas experiências é marcado por sentimentos de tristeza, indignação e exaustão, como expressado por diversos respondentes, que relatam um desgaste constante em afirmar sua dignidade e competência diante de expectativas racistas.

Frantz Fanon (1952), em sua análise seminal sobre a subjetividade negra, ressalta que o racismo não apenas exclui socialmente, mas produz um processo de alienação e fragmentação identitária, na qual o sujeito negro é compelido a internalizar o olhar do opressor, gerando sofrimento psíquico profundo. Essa condição é refletida nos relatos que evidenciam uma dupla demanda: ser invisibilizado e, ao mesmo tempo, submetido a uma vigilância constante para não “falhar” ou “confirmar” estereótipos negativos.

Além do desgaste individual, a discriminação racial no cotidiano cria um ambiente de hostilidade e desconfiança, que compromete o rendimento profissional e a saúde mental, reforçando o ciclo da exclusão. O racismo institucional, portanto, deve ser compreendido não apenas como um conjunto de práticas, mas como um mecanismo de produção de sofrimento social que tem efeitos coletivos e históricos.

Contudo, a análise não se restringe ao sofrimento: emergem também narrativas de resistência, solidariedade e construção de identidades afirmativas que funcionam como antídotos para o racismo. O processo de reconhecimento da opressão racial, conforme apontado por uma participante, é fundamental para que se desenvolva a consciência crítica necessária para a luta coletiva: “Quando não entendemos o racismo estrutural, nos culpamos achando que somos incapazes, mas quando enxergamos o racismo estrutural entendemos que somos oprimidos.”

Este processo de desalienação é central para o fortalecimento do sujeito negro enquanto agente político e social, em consonância com as epistemologias do Sul (Santos, 2009) que valorizam as experiências e saberes locais como fontes de resistência contra os saberes coloniais. A importância da sororidade e da liderança negra, principalmente feminina, também se destaca como elemento catalisador para o acolhimento e cura das feridas do racismo: “Foi uma experiência maravilhosa, uma mulher negra potente. Onde tive muito acolhimento e compartilhamento de dores, mas pra nós fortalecer pra luta.” Essa valorização das relações comunitárias e de cuidado mútuo é apontada como uma estratégia imprescindível para superar o isolamento e o silenciamento impostos pelo pacto da branquitude (Kilomba, 2019).

Paralelamente, os relatos indicam a necessidade urgente de políticas públicas que promovam educação antirracista, ações afirmativas e o protagonismo negro nas esferas de poder, como forma de transformar as condições objetivas de desigualdade. A resistência, portanto, está indissociavelmente ligada à disputa por representatividade e reconhecimento institucional, o que confirma a dimensão político-institucional do racismo estrutural.

Em síntese, esta seção evidencia que o racismo, longe de ser um fenômeno isolado e conjuntural, configura um modo de opressão que atravessa o corpo, a mente e o social, impactando a subjetividade dos indivíduos e as relações sociais. Sua superação demanda ações multidimensionais, que envolvam transformação estrutural, educação crítica e fortalecimento comunitário.

Muitas dessas experiências estão enraizadas no cotidiano e revelam a agência dos sujeitos negros na (re)construção de uma identidade racial afirmativa. Um dos caminhos apontados foi o afroempreendedorismo consciente, entendido não apenas como sobrevivência econômica, mas como afirmação cultural e política: “Eu montei meu negócio porque estava cansada de me submeter. Hoje vendo meus produtos, conto minha história e ajudo outras mulheres negras a se enxergarem de forma diferente.”

Esse relato expressa a dimensão transformadora do fazer econômico enquanto prática de emancipação racial. O espaço do trabalho, tradicionalmente marcado pela subalternidade e pela vigilância racial, é ressignificado como território de liberdade e protagonismo negro. O trabalho deixa de ser apenas um lugar de dor e passa a ser também um instrumento de autorrepresentação e autonomia.

Outro núcleo de resistência identificado foi a ocupação de cargos de liderança e espaços institucionais por mulheres negras, o que representa uma fissura nos estereótipos coloniais de inferiorização. Uma participante destacou: “Sou a única mulher negra no conselho, e me orgulho disso. Não é fácil, mas estou lá. Porque sei que minha presença incomoda e abre caminho.”

Essa presença insurgente desestabiliza as normas tácitas da branquitude institucional, funcionando como gesto de enfrentamento e pedagogia coletiva. Conforme Collins (2016), mulheres negras que ocupam espaços de poder operam como intelectuais orgânicas, capazes de articular vivências individuais e lutas coletivas no enfrentamento às opressões interseccionais.

A participação em feiras, conselhos municipais e coletivos negros também foi recorrente nos relatos como forma de resistência ativa: “No coletivo a gente aprende, compartilha dores, mas também constrói soluções. É ali que me fortaleço.”Tais espaços funcionam como territórios de enunciação negra, onde é possível romper o silêncio imposto pela branquitude e produzir saberes baseados na experiência racializada. Eles também cumprem uma função psicopolítica, ao permitirem que os sujeitos saiam da solidão imposta pela exclusão e encontrem pertencimento e legitimidade em sua trajetória.

A resistência, nesse campo, aparece ainda como intersubjetiva, isto é, construída no encontro entre pessoas negras que se reconhecem mutuamente e se tornam fonte de inspiração, cura e fortalecimento. Como compartilhou uma participante: “Foi com uma chefe negra que me curei de cicatrizes deixadas por um líder abusivo. Me senti acolhida, potente, viva.”

Esse tipo de vivência demonstra que a resistência não se expressa apenas na militância explícita, mas também nos laços cotidianos de cuidado e reconhecimento entre pares, que operam como antídotos emocionais contra a deslegitimação estrutural. A experiência da alteridade racial positiva gera um deslocamento no eixo de referência, permitindo ao sujeito negro reconhecer-se não a partir da falta, mas da potência. Na perspectiva de Bell Hooks (1995), esses espaços de reexistência não negam a dor, mas a transformam em força criadora. Eles são campos onde se reescreve a narrativa da negritude em chave afirmativa, onde se celebra a ancestralidade, se constrói solidariedade e se afirma a vida negra como digna, bela e complexa.

Em síntese, os dados indicam que, mesmo em um território hegemonicamente branco e marcado por exclusões estruturais, a população negra encontra brechas para construir subjetividades insurgentes, sustentadas por redes afetivas, saberes ancestrais, práticas coletivas e trajetórias de afirmação racial. Essas reexistências não apenas enfrentam o racismo, mas projetam futuros possíveis para além da dor — futuros negros, autônomos, plurais e vivos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa evidenciou, de forma contundente, a persistência e a complexidade do racismo estrutural na região do Vale Germânico/RS, manifestado em múltiplas dimensões que impactam direta e indiretamente a vida da população negra local. Ao longo do estudo, foi possível observar como o racismo não se limita a episódios isolados de discriminação, mas se configura como um fenômeno estrutural e histórico que atravessa as instituições, os territórios e as subjetividades negras, produzindo riscos psicossociais significativos e limitando o pleno exercício da cidadania.

A análise dos dados empíricos demonstrou que o pacto da branquitude, enquanto dispositivo simbólico e político, opera de maneira silenciosa e eficaz na exclusão da população negra dos espaços de pertencimento, reconhecimento e poder no Vale Germânico. Esse pacto é alimentado por uma lógica que ressignifica a história regional a partir de uma perspectiva eurocêntrica e embranquecida, promovendo o apagamento da presença negra e a naturalização da desigualdade racial. Tal contexto reforça processos de invisibilização, silenciamento e desqualificação que atravessam as relações sociais e impactam a saúde mental coletiva.

No âmbito psicossocial, o racismo estrutural manifesta-se como um fator de risco que produz sofrimento psíquico, exclusão social e precarização das redes de apoio. Essa dinâmica é agravada pelas expressões do racismo institucional e ambiental, que materializam e legitimam as desigualdades em diferentes esferas da vida, desde a educação e o mercado de trabalho até o acesso a serviços públicos essenciais e a qualidade do ambiente urbano. A compreensão dessa articulação entre dimensões simbólicas, materiais e subjetivas é fundamental para apreender a profundidade dos desafios enfrentados pela população negra no Vale Germânico.

Entretanto, a pesquisa também apontou para a presença vital das estratégias de resistência e reinvenção negra, destacando o papel crucial de espaços de sociabilidade como o Clube Social Negro Cruzeiro do Sul, que desde sua fundação em 1922 até os dias atuais, representa um importante locus de afirmação identitária, cultural e política para a comunidade negra de Novo Hamburgo e do Vale Germânico. Essas práticas coletivas configuram-se como dispositivos de saúde mental e de reparação simbólica, capazes de tensionar a ordem racial vigente e promover processos de cura e pertencimento.

Diante desse quadro, reafirma-se a necessidade de políticas públicas intersetoriais que incorporem o recorte racial de forma explícita, reconhecendo o racismo estrutural como determinante social central para a saúde mental e o bem-estar da população negra. Ademais, urge a implementação de ações afirmativas, formação antirracista e ampliação de espaços institucionais de escuta e acolhimento que promovam a justiça racial e a reparação histórica.

Em suma, esta pesquisa contribui para o avanço do conhecimento crítico sobre o racismo estrutural na região do Vale Germânico/RS, destacando sua dimensão psicossocial e os efeitos profundos nas vivências da população negra. Mais que um diagnóstico, apresenta um convite à transformação, pautado na valorização das vozes negras, na descolonização dos saberes e na construção de um futuro onde a dignidade, a igualdade e o pertencimento sejam efetivamente garantidos.

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