VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL CONTRA A MULHER VÍTIMA DE ESTUPRO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.6792803


Autores:
Andressa Campos Oliveira
Orientador:
Professor Marco Túlio Rodrigues Lopes


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo analisar a violência institucional contra a mulher vítima do crime de estupro no sistema penal brasileiro. Inicialmente, busca-se compreender os aspectos da violência contra a mulher ao longa de sua história. Pretende-se estudar, de acordo com a criminologia, os conceitos de vitimização primária e secundária, aprofundando pormenorizadamente a respeito desta última em casos em que a mulher é vítima do delito de estupro. Em seguida, serão analisados os enfoques violadores da dignidade humana da mulher revitimizada no âmbito jurídico criminal. Por fim, busca-se analisar o caso Mariana Borges Ferreira, que inspirou a criação da Lei nº 14.245/202, bem como a Lei nº 14.321/2022 que tipificou a violência institucional. Utiliza-se o método indutivo, através de pesquisa bibliográfica com enfoque no aprofundamento na doutrina, artigos científicos e as inovações legislativas que contribuíram para uma compreensão aprofundada do tema. Assim, conclui-se que a dignidade humana da mulher vítima de estupro é violada no âmbito jurídico brasileiro em várias áreas e em diferentes momentos da persecução penal na apuração do crime de estupro. Ademais, o sistema jurídico brasileiro deve estar ativo na proteção da mulher nessas circunstâncias delitivas, combatendo a violência institucional para que seja, de fato, efetivado o princípio da dignidade humana.

Palavras-chaves: Crimes Sexuais. Violência Institucional. Vitimização Primária. Vitimização Secundária.

ABSTRACT

This article aims to analyze institutional violence against women victims of rape in the Brazilian penal system. Initially, it seeks to understand the aspects of violence against women throughout its history. It is intended to study, according to criminology, the concepts of primary and secondary victimization, going deeper into the latter in cases where the woman is a victim of the crime of rape. Then, the approaches that violate the human dignity of the re-victimized woman in the criminal legal scope will be analyzed. Finally, we seek to analyze the Mariana Borges Ferreira case, which inspired the creation of Law nº 14.245/202, as well as Law nº 14.321/2022 that typified institutional violence. The inductive method is used, through bibliographic research with a focus on deepening the doctrine, scientific articles and legislative innovations that contributed to an in-depth understanding of the subject. Thus, it is concluded that the human dignity of the woman victim of rape is violated in the Brazilian legal framework in several areas and at different times of criminal prosecution in the investigation of the crime of rape. Furthermore, the Brazilian legal system must be active in protecting women in these criminal circumstances, fighting institutional violence so that the principle of human dignity is, in fact, put into effect..

Keywords: Institutional Violence. Primary Victimization. Secondary Victimization. Sex Crimes.

1 INTRODUÇÃO

Ao longo do caminho percorrido pela humanidade, a mulher foi posta em uma posição secundária em relação a figura masculina, essa relação acabou por propiciar uma sociedade sedimentada na desigualdade de gênero.

No contexto brasileiro, apesar da Constituição Federal de 1988 ser um marco democrático para a garantia dos direitos das mulheres no país, a realidade feminina ainda é marcada pela violência de gênero em vários âmbitos da sociedade. Ocorre que, na seara jurídica brasileira, também enraizada pela cultura patriarcal, em que há junção da desigualdade de gênero no país juntamente com a cultura da violência sexual contra as mulheres, acaba por resultar num fenômeno chamado de vitimização secundária em face da figura feminina vítima de violência sexual.

Trata-se de tema atual e de relevante discussão, sendo certo, portanto, que o estudo da violência institucional contra a mulher vítima de estupro é fundamental, pois não é possível que se promova a justiça sem a garantia da efetivação da dignidade da mulher. Assim, o tema conduz a seguinte indagação: quais são os enfoques violados da dignidade da pessoa humana decorrentes da violência institucional contra a mulher vítima do crime de estupro no âmbito jurídico brasileiro?

Neste panorama, será utilizado o método indutivo, através de pesquisa bibliográfica com enfoque no aprofundamento na doutrina e em artigos científicos, além disso, também terá enfoque no estudo e análise de uma decisão judicial, bem como nas inovações legislativas que contribuíram e contribuem para uma melhor compreensão do tema.

Visando o desenvolvimento de tal questão, o presente artigo iniciará contextualizando a violência de gênero através de seus aspectos históricos, demonstrando que ao longo dos séculos a mulher foi submetida a uma posição secundária na sociedade, fato que possibilitou a perpetuação da cultura de violência contra o sexo feminino de várias formas e em vários níveis dentro da sociedade.

Pretende-se também abordar, conforme a criminologia, a vitimização primária e secundária, aprofundando minuciosamente como se dá essa revitimização contra a mulher que sofreu o crime de estupro por parte do sistema penal brasileiro, processo que começa da apuração do crime na fase do inquérito policial indo até o seu julgamento final.

Objetiva-se, ainda, tecer considerações sobre o princípio da dignidade da pessoa humana como valor fundante da ordem constitucional brasileira, focando na compreensão desta violação a partir dos abusos violentos que as mulheres vítimas de estupro sofrem e que se perpetuam primária e secundariamente, seja no ato em si ou no processo de apuração do crime por parte do Estado.

Isto posto, vem à tona a necessidade de analisar o caso da jovem Mariana Borges Ferreira juntamente com toda a repercussão de seu julgamento a fim de corroborar na compreensão do fenômeno da violência institucional através de seu processo para apuração do suposto delito de estupro, bem como analisar a Lei nº 14.245 de 2021 que foi inspirada no caso de Mariana e ainda estudar a Lei nº 14.321 de 2022,que tipificou a violência institucional.

2 ASPECTOS HISTÓRICOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Ao longo da história humana, as mulheres viveram apartadas das decisões de comando ligadas aos processos econômicos, políticos e sociais da sociedade durante séculos, de tal modo que elas eram limitadas ao labor do lar, com pouca ou nenhuma proeminência nos espaços públicos de poder, de maneira que sua participação foi posta como algo secundário no aspecto das tomadas de decisão, ao mesmo tempo em que a superioridade masculina fora sacramentada.

A este respeito, ensinam Costa e Cavalcanti (2021) que, ao longo dos séculos, por preconceitos culturais, a mulher sempre foi diminuída pelo simples fato de ser mulher, levando não somente a um tratamento desigual em inúmeros âmbitos da sociedade, como também através de múltiplas formas de violência para que fosse perpetrada a superioridade masculina enraizada em um machismo de cunho patriarcal. Assim, a desigualdade de gênero e a violência sobre o sexo feminino são um dos principais e mais arcaicos problemas do mundo.

Desde as primeiras civilizações a mulher sempre fora preterida a um papel secundário na sociedade, em que o homem era posto como um sujeito enquanto a mulher era vista como uma coisa, de tal forma que recebia tratamento discriminatório em todas as áreas da sociedade e era sujeitada ao sexo masculino como se propriedade deste fosse.

No tocante a ideia do sexo único, salientam Costa e Cavalcanti (2021) que a mulher não era tida como cidadã, isto é, passível de obter direitos, uma vez que não só sempre foram vistas como mais fracas quanto indignas por vários aspectos preconceituosos – oportuno salientar que muitos dos preconceitos contra a mulher derivavam também da interpretação equivocada do cristianismo, pois, por tempos a figura feminina era considerada pecadora e culpada pelo homem ser expulso do paraíso e, naturalmente, aquelas encontravam-se subordinadas à satisfação das vontades do daquele.

Nesse sentido, a mulher era absolutamente dependente da figura de um sujeito do gênero masculino, tendo que acatar seus anseios e as suas ordens. É nesse contexto patriarcal que foi sedimentada a cultura machista em que as elas foram subordinadas a este processo histórico cercado de opressão e preconceito.

A respeito do papel secundário encarnado pelas mulheres dentro do processo histórico, ilustra Muniz (2021), retomando a ideia de negação da cidadania à mulher expressa mais acima, que até mesmo os direitos conquistados pelos homens foram negados à mulher, demonstrando como a ideia de “direitos universais” era voltada exclusivamente ao homem. Somente mediante profundas lutas foi possível estender os direitos mínimos para a real maioria da população, o que demonstra como a ideia de cidadania era algo extremamente pensada na ótica masculina.

Muito embora a Constituição Federal de 1988 seja um marco democrático brasileiro em que foram assegurados à mulher uma série de direitos e garantias fundamentais para que lhe fosse viabilizado o respeito à sua dignidade, a atual realidade feminina no Brasil ainda está distante da utopia consagrada na Lei Maior.

Além disso, na Magna Carta, em seu artigo 5º, caput, em que se estabelece que todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza, pelo contrário, o que ainda se pode observar é que a mulher continua sendo tratada de forma indigna, pelo único e exclusivo fato de ser do sexo feminino.

Ainda, cabe analisar os dados da 14ª Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2020),divulgado em 2020, o qual revela que no ano de 2019, foram contabilizados 66.123 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável registrados em delegacias policiais no Brasil, o que equivale a um estupro a cada 8 minutos no país, demonstrando números alarmantes violência contra a mulher em solo brasileiro.

Outrossim, consoante dados da 9ª Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2015), divulgado em outubro de 2015, anuário este que, em parceria com o instituto Datafolha, realizando uma pesquisa acerca do medo de sofrer violência sexual, acabou por apontar que no ano de 2014, de acordo com o levantamento realizado em 84 municípios brasileiros com mais de 100 mil pessoas, 67% da população tem medo de ser vítima de agressão sexual, percentual que é ainda mais alarmante entre mulheres, visto que 90% das delas disseram temer serem vítimas de agressão sexual.

Diante dos dados analisados mostra-se alarmante a situação da violência sexual no Brasil, apontando para o fato de que a cultura do estupro é uma realidade na vida das mulheres brasileiras e que os vestígios do patriarcalismo e da objetificação das mulheres perdura até os dias atuais.

3 A VITIMIZAÇÃO PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA DA MULHER VÍTIMA DE ESTUPRO NO ÂMBITO JURÍDICO BRASILEIRO

De acordo com o estudo de criminologia e a subclassificação do processo de vitimização, explica Nestor Sampaio que o processo de vitimização seria:

Vitimização primária: é normalmente entendida como aquela provocada pelo cometimento do crime, pela conduta violadora dos direitos da vítima – pode causar danos variados, materiais, físicos, psicológicos, de acordo com a natureza da infração, a personalidade da vítima, sua relação com o agente violador, a extensão do dano etc. Então, é aquela que corresponde aos danos à vítima decorrentes do crime

(PENTEADO FILHO, 2020, p. 119).

Dessa forma, a vitimização primária se trata do sofrimento suportado pela vítima em decorrência do resultado direto da prática do fato delituoso. Considera-se como vítima primária aquele sujeito que é diretamente atingido pela conduta criminal. Destaque-se também que o processo de vitimização primária, se refere aos danos que um indivíduo sofre, que se diversificam de acordo com o bem jurídico lesado e podem ser de natureza material, física e psicológica, provocados de forma direta pela atuação delituosa.
Conforme entendimento de Gonzaga sobre o tema:

A primeira espécie de vitimização, chamada de primária, decorre dos efeitos do crime na vítima, ou seja, os danos que ele causa nela, como físicos, psíquicos e materiais. Quando se tem a prática de um crime, como um estupro, a vítima sofre uma gama de danos em decorrência desse único ato. Há o abalo psíquico, a violação ao seu próprio bem jurídico, consubstanciado na dignidade sexual, e até mesmo danos de ordem material, uma vez que a vítima, em muitas vezes, irá necessitar de um acompanhamento psicológico para afastar os fantasmas daquele dia fatídico em que ela foi violentada, tendo gastos com psicólogo

(GONZAGA, 2018, p. 194).

Desta feita, na legislação penal brasileira o delito de estupro está tipificado no Código Penal incorporado no título dos crimes contra a dignidade sexual, mais precisamente em seu artigo 213, em que se considera estupro o ato de constranger alguém, valendo-se do emprego de violência ou grave ameaça, a ter ou permitir ter conjunção carnal ou outro ato libidinoso.

Com base em uma análise puramente criminológica acerca do estudo da vitimização secundária, também chamada de sobrevitimização ou revitimização, entente Nestor Sampaio que:

Vitimização secundária ou sobrevitimização entende-se ser aquela causada pelas instâncias formais de controle social, no decorrer do processo de registro e apuração do crime, com o sofrimento adicional causado pela dinâmica do sistema de justiça criminal inquérito policial e processo penal.

(PENTEADO FILHO, 2020, p. 119)

Desse modo, o que se entende por vitimização secundária se concentra na ideia de sofrimento adicional suportado pela vítima em razão do tratamento a ela conferido pelas entidades formais de controle social, como polícia, ministério público e poder judiciário, o que ocorre perante as fases do inquérito e nas fases do processo penal.

A saber, evidencia Gonzaga que:

A vitimização secundária, notoriamente sentida pela atuação das instituições estatais diante de um crime, ocorre quando a vítima vai procurar ajuda estatal diante da prática da infração penal sofrida por ela. Ao chegar a uma Delegacia de Polícia em que os agentes públicos não possuem o necessário preparo para o seu acolhimento, ela é novamente vitimizada, o que é chamado também de sobrevitimização. Toma-se por exemplo o crime de estupro, em que a vítima que acabou de sofrer esse ataque brutal ao seu bem jurídico vai até uma Autoridade Policial pedir ajuda. Todavia, como se estivesse lidando com mais um crime qualquer, manda que ela vá até o Instituto Médico-Legal fazer o exame de corpo de delito para comprovar a prática do crime em tela. Muitas vezes são Delegados de Polícia que não entendem a natureza feminina que fora despedaçada e, em vez de fazer uma acolhida inicial, tratam a vítima como um pedaço de carne.

(GONZAGA, 2018, p. 195)

Diante disso, a vitimização secundária é resultante da ligação entre as vítimas primárias e o aparato estatal em face da burocratização do sistema repressivo brasileiro e na insensibilidade de algumas das autoridades responsáveis pela assistência da mulher violada sexualmente.

A violência adicional propiciada à vítima em virtude da indispensável intervenção das instituições repressivas estatais, compreende a forma de vitimização secundária, quando na estrutura criminal da justiça reverbera ideologia machista e patriarcal, utilizando preconcepções e rótulos contra as mulheres vítimas do estupro.

A nova vitimização, ocorre de múltiplas formas e em díspares momentos do processo penal, assim, desde o inquérito policial até o trânsito em julgado da sentença do delito de estupro, identifica-se lesões aos direitos humanos do sujeito passivo feminino do delito de estupro.

No âmbito das delegacias, consoante a pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2014), feita a partir de dados do ano de 2011 do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), estima-se que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e que, destes casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia.

Nessa perspectiva, no crime de estupro, como consequência da vitimização secundária, acaba por existir uma excruciante resistência por parte das mulheres ofendidas por este crime sexual para que recorram ao aparato repressivo penal, pois a ausência de confiabilidade nestas instâncias acarreta na ampliação desta cifra lastimável.

Conforme Cardoso (2021) a vítima é sujeitada a um momento desconfortável ao chegar na delegacia e relatar aos agentes públicos a violência sofrida, tendo que reviver a abominável violação. Ocorre que muitos destes agentes não receberam o devido preparo para o acolhimento e atendimento à vítima, o que pode acabar resultando em uma situação vexatória, além de fazer com que a vítima e possíveis vítimas desistam de recorrer a entidade policial.

Deste modo, no contexto dessa insegurança no repressivo criminal, muitas mulheres vítimas do delito de estupro acabam retardando a comunicação do crime às autoridades, o que pode acabar gerando uma ideia de que a notícia do crime seja falsa tendo em vista o lapso temporal decorrido entre o momento da infração sexual e a sua comunicação às autoridades.

Segundo os dados da 11ª Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2017),divulgada em 2017, apontam que no Brasil, no ano de 2016, existiam apenas 443 unidades de delegacias especializadas no atendimento às mulheres, número que representa menos de um décimo do total de 5.570 municípios existentes no país.

Além disso, existe a necessidade da ampliação dos recursos financeiros com fins de ampliar o investimento em segurança pública e no combate a esse hediondo crime, de modo a viabilizar o aumento do número de delegacias especializadas no atendimento as mulheres e na capacitação dos agentes públicos para um atendimento personalizado às mulheres vítimas de estupro.

No contexto processual penal, muitas vezes as vítimas do crime sexual sofrem lesão de natureza psicológica na conjuntura de sua inquirição, na medida em que a vítima terá que reencontrar o sujeito que a estuprou e, em sua presença, reviver o fato criminoso sendo constrangida a descrever a violência sexual minuciosamente.

Com relação a violência institucional nas sentenças do crime de estupro, conforme Cardoso (2021), quando se trata de crime sexual as provas são escassas, sendo a palavra da vítima muitas vezes a prova de mais valia no processo ou a única prova. Logo, ao lume do princípio do livre convencimento motivado, acaba-se por gerar uma lacuna considerável para o juiz decidir com descrença na palavra da vítima, legitimando nova violência no campo institucional.

Registra-se que adicionalmente, uma nova violência se sucede quando se exige durante o processo penal um acervo probatório profundo, amplo e completo, demonstrando como, aparentemente, o testemunho da vítima não possui nenhum valor. Este que deveria ser incentivado é muitas vezes encarado como desprezível.

4 ENFOQUES VIOLADORES DA DIGNIDADE HUMANA DA MULHER VÍTIMA DE ESTUPRO NO ÂMBITO JURÍDICO BRASILEIRO

Em primeiro lugar, cumpre destacar que o princípio da dignidade humana é um dos fundamentos do estado democrático de direito. Conforme artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, trata-se de valor que fundamenta a aplicação de todos os direitos fundamentais. Dessa forma, se encontram vinculados à sua observância todos os poderes estatais, que devem primar pelo seu estrito cumprimento em respeito a esse postulado.

Embora o princípio da dignidade humana sirva como parâmetro moral para controlar a validade dos atos do poder público, quando se analisa no âmbito jurídico brasileiro a vitimização secundária de uma mulher que já fora anteriormente vitimada sexualmente, verifica-se, de pronto, uma situação que ultraja diretamente a ordem constitucional, pois existe clara ofensa a esta dignidade que se almeja observar.

Ademais, a respeito desse princípio, assevera Sarmento (2016, p. 79) que “[..] o princípio da dignidade: as pessoas têm de ser respeitadas como iguais e tratadas como sujeitos e não como objetos”. Todavia, no âmbito da justiça criminal brasileira, quando mulheres vitimadas pelo delito de estupro buscam proteção e promoção dos seus direitos por parte dos órgãos estatais responsáveis por garantir tais cumprimentos, não só não recebem essas garantias legais como são submetidas a um segundo constrangimento, demonstrando na prática como estas elas acabam sendo relegadas a verdadeiros objetos sem direitos.

Outrossim, entendem Ferraz e Baptista (2016) que o princípio da dignidade da pessoa humana é o respeito a qualquer pessoa pelo simples fato de ser pessoa, independente de sua conjuntura em termos de gênero, condições sociais e físicas, abrangendo, para além da asseguração dos direitos iguais para todos, também o tratamento especial a grupos minoritários que são desamparados e excluídos.

Dessa forma, apesar do princípio da dignidade humana ser valor fundante da ordem democrática brasileira e se verificada sua eficácia plena, todas as pessoas devem ser tratadas com absoluto respeito a seus direitos fundamentais. O que se observa, diante da realidade brasileira, é que este princípio é demasiadamente violado no âmbito jurídico pátrio, um modelo dessa violação é a violência institucional em face da mulher vítima de estupro.

Em relação à violação ao princípio da dignidade humana da mulher vítima de estupro por parte do aparato jurídico nacional, um dos exemplos claros é o fenômeno da culpabilização da vítima. A esse respeito Frota (2020) afirma que averígua-se que ainda repercute no sistema judicial criminal um ideário masculino tradicionalista, de cunho patriarcal, em que o discurso judicial e o debate processual indevidamente se desviam para a exibição da vida pregressa da vítima, da conduta moral e da intimidade sexual e familiar da mulher vitimizada, vinculado ao discurso retórico de consentimento tácito desta.

Em vista disso, perante esse modelo utópico de sexualidade (em que a vítima deve passar a imagem de honrada, pudica e imaculada, pois ao contrário disso seria ela totalmente merecedora de ser violada sexualmente), durante a instrução probatória penal, a discussão que deveria ser restrita a prática delituosa de um crime sexual, passa a ser um ambiente auspicioso à humilhação, vexação e desrespeito da mulher vitimizada.

Viana (2018, p. 166) afirma que “A marginalização – e até, em alguns casos, ridicularização – da vítima ainda cria obstáculo ao reconhecimento de seus direitos”. Nesse diapasão, o que se verifica nos debates processuais penais de crimes contra a liberdade sexual feminina é que são embasados na asseveração de que a vítima deu causa ao fato,suavizando o juízo de desaprovação da conduta criminal do suposto estuprador.

Ou seja, durante o processo criminal do crime de estupro contra uma mulher seria idôneo que o julgamento se pautasse na apuração da violência cometida por um homem contra a dignidade sexual feminina, no entanto, caminha-se a instrução probatória à exibição da vida pregressa da vítima, ao invés de se analisar a conduta do criminoso e posteriormente punição por seu delito.

Acerca desse tema, bem explica Frota que:

Tal mentalidade fragiliza a centralidade que deveriam ter com a análise acerca do juízo de reprovação penal da conduta do alegado autor do fato, com a tônica na apuração da circunstância fática em si mesma considerada, e não na avaliação da personalidade, do histórico existencial e do grau de virtuose moral dos possíveis agressor e vítima, apuração essa que deve ser conjugada com o imprescindível exame da presença, ou não, de elementos probatórios a comprovarem ou a afastarem o consentimento sexual expresso, e não implícito, da eventual vítima.

(FROTA, 2020, p. 330)

Dessa maneira, as teses de defesa de autores do delito de estupro tendem à descredibilizar a mulher violada sexualmente, levando em consideração um padrão medíocre de moralidade sexual. Neste momento, a figura feminina tem o seu direito à intimidade violado, na medida em que é exposta a vida sexual predecessora desta como uma espécie de inquisição, pondo em questionamento a sua narrativa com base numa suposta conduta moral desvirtuada, o que equivale a julgar a vítima pelo seu comportamento, ao invés de julgar o agressor pela violação.

Segundo Cardoso (2021) é traçado um perfil do homem e um da mulher, em que se cria um estereótipo social para ambos e, nesse cenário, caso o sexo masculino se enquadre neste padrão não será considerado culpado, pois se amoldaria no modelo paradigma para a sociedade – o que também equivale para a mulher, que deve ser considerada de boa criação e honesta. Estes traços influenciariam na veracidade dos fatos contados por esta mulher.

A par disso, para que a palavra da mulher violada pelo crime de estupro tenha valor para a justiça deve obedecer a alguns parâmetros, sem os quais não será digna de ser considerada crível. Esta deve imprescindivelmente se apresentar com lesões físicas expostas e choro, em que ao contrário disso, sua palavra é posta à objeção.1

Segundo entende Cardoso (2021) não raro é desencadeado uma percepção na maioria das pessoas de que o crime de estupro não é um delito contra a dignidade sexual, mas seria uma consequência do comportamento da vítima. Destarte, nessa espécie de delito, em que não há a existência de vestígios da conduta criminosa, o embate processual se volta à vida moral da vítima e não à conduta do estuprador. Busca-se desprestigiar as palavras da ofendida, surgindo, assim, as teses de defesa associando-a a uma vida sexual desonrosa e a uma mulher que quer apenas se vingar do acusado.2

De acordo com o 15° Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2021), divulgado em julho de 2021, no ano de 2020, 60.460 casos de violência sexual foram registrados, isso equivale a 165 estupros por dia. Acresce que 86,9% das vítimas eram do sexo feminino e em 85,2% dos casos o autor era conhecido da vítima.

Além disto, observa-se que existe consolidado na cultura brasileira o ideário de autorização tácita para que a mulher seja estuprada, em que o fato da vítima não se opor de forma física ao ato sexual não afasta a ocorrência do crime de estupro.

Transparece que o desígnio do processo criminal desse crime, por vezes, se limita deploravelmente em verificar a presença de elementos probatórios que comprovem ou afastem o consentimento tácito da mulher vitimizada em ser violada, de acordo com o seu estado comportamental, desprezando a conduta do autor. Segundo Ardaillon e Debert:

A lógica que preside os discursos contidos nas peças dos processos de estupro é outra, trata-se de negar a ocorrência do crime, pois, uma vez comprovado o ato, não há circunstâncias atenuantes, mas a exigência de uma punição severa. Comprovar a ocorrência não é fácil e por isso mesmo a personalidade dos envolvidos será constantemente referida no decorrer do julgamento. É o perfil de cada um que vai decidir se houve ou não estupro3

(ARDAILLON; DEBERT, 1987, p. 20).

Conforme entendimento de Cardoso (2021) ainda é influente no âmbito jurídico o patriarcalismo, conduzindo o âmbito criminal no sentido de que a vítima do crime de estupro é indefesa e considerada de família, o que leva a julgamentos injustos, na medida em que a conduta da ofendida passa a justificar o comportamento do criminoso, embora a maneira como a mulher vítima se veste e a sua vida sexual não devesse ser pauta do julgamento.

A presunção de consentimento tácito para o delito de estupro é realmente insustentável, deve se romper este paradigma da justiça criminal, em que o fato de uma mulher específica contrapor-se ao estupro de forma física e ficar emotiva em relação ao ato violento, não quer dizer que existe um padrão inequívoco, visto que cada pessoa como ser humano subjetivo possui suas próprias particularidades.4

Cardoso (2021) entende que a ausência de encorajamento por parte do Estado no combate a esse crime resulta no desencorajamento da vítima mulher a denunciar tais delitos, a mulher sente medo de ser julgada e exposta pelo seu próprio estupro, reação da cultura machista e patriarcal que culpabiliza a vítima conforme seu comportamento social.

Por conseguinte, o fato de que em lapso temporal anterior a mulher se relacionou de alguma forma com o agressor, uma vez que aquela aceitou uma carona, um namoro ou até mesmo um casamento5, por exemplo, não dá o direito de um homem praticar conjunção carnal ou atos libidinosos contra ela, sem o seu aceite consciente e contemporâneo.

Consoante pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2014), divulgada em 2014, aponta que no ano de 2013, 26% dos entrevistados concordam total ou parcialmente com a afirmação de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” e 58,5% concordam total ou parcialmente com a afirmação de que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.

Nesse sentido, observando os dados acima citados, pode-se afirmar que reverbera numa parcela expressiva da população que usar roupas ditas como “provocativas” facilitam às mulheres a serem atacadas.6 Porém, cabe sempre lembrar que o vestuário de uma mulher não dá direito a terceiro de estuprá-la, violá-la ou desrespeitá-la de qualquer forma. Assim sendo, fica evidente que roupas não previnem estupro, uma roupa não influencia na conduta do estuprador, o único responsável pelo estupro é o próprio criminoso.

Conforme entendimento de Cardoso (2021) pelo fato de serem mulheres, o sistema penal brasileiro filtra o que é tido como padrão de acordo com o molde patriarcal, dessa forma o crime vai ser julgado de maneira mais rigorosa ou menos rigorosa, o que irá definir esse julgamento será o enquadramento ou não no padrão tido pela sociedade, em que a prostituta7, por exemplo, será abandonada e não raro poderá ficar sem proteção estatal, ao contrário da vítima considerada ‘para casar’.

Analisando os dados do (IPEA, 2014), verifica-se que exigem da mulher um modelo de comportamento tido como respeitável de acordo com padrões da compreensão machista, quando 58% concordam total ou parcial de que se as mulheres se comportassem de acordo com moldes compreendidos como idôneos correriam menos risco em serem atacadas, isto quer dizer que, dentro desta lógica, se a mulher se comportar de forma “provocante” ela mereceria ser estuprada ou de que de alguma maneira ela seria responsável pelo seu próprio estupro.

5 ANÁLISE DO CASO MARIANA FERRER E DA LEI 14.245/2021 (LEI MARIANA FERRER)

De acordo com a 3ªVara Criminal de Florianópolis, em sentença nos autos n° 0004733-33.2019.8.24.0023 – Santa Catarina, proferida pelo juiz Rudson Marcos, ação julgada em 09 de setembro de 2020, conforme o Ministério Público do Estado de Santa Catarina narrou na peça acusatória, no dia 15 de dezembro de 2018, no estabelecimento comercial Café de La Musique, situado em Jurerê Internacional, na cidade de Florianópolis – Santa Catarina, num dos bangalôs, durante o evento Music Sunset, André de Camargo Aranha conheceu Mariana Borges Ferreira, a qual prestava serviço de embaixadora para a referida festa.

Assim foi que, às 22h25min, André de Camargo ciente que Mariana era incapaz de ofertar resistência, com objetivo de satisfazer sua concupiscência, conduziu Mariana ao camarote número 403, situado no segundo piso do estabelecimento, cujo acesso era restrito ao público comum, local em que manteve com a ofendida relação sexual não consentida, da qual resultou em ruptura himenal.

Por volta das 22h31min, Mariana deixou o camarote, retornando à festa à procura das pessoas que a acompanhavam, as quais já não se encontravam no local, enquanto André de Camargo deixou o camarote logo após, indo ao encontro de seus amigos e. com estes, deslocou-se a um restaurante.

Segundo depoimento da ofendida, diante do seu estado de incapacidade, não compreendeu a violência a qual foi submetida, esta apenas se conscientizou do ato sexual em sua residência, onde verificou a presença de sêmen e sangue em sua roupa íntima.

Entretanto, ainda conforme descrito na sentença, o Ministério Público pleiteou pela absolvição de André Camargo com argumento de que as provas eram demasiadamente frágeis para embasar a condenação. E, de acordo com o Ministério Público, o magistrado Rudson Marcos decidiu pela absolvição de André, dada a ausência de provas contundentes para condenação. Diante da dúvida, foi decidido com base no princípio in dubio pro reo.

A audiência de instrução de Mariana Ferreira Borges foi divulgada pelo The Intercept Brasil, que publicou um trecho da audiência, ocasionando indignação do público e repercutindo em milhares de manifestações em redes sociais, como o Instagram e Twitter, levando usuários a levantar a hashtag #justiçapormariferrer que tomou proporção no país inteiro (ALVES, 2020).

Conforme ainda Alves (2020) na referida audiência, o advogado de defesa de André de Camargo expõe cópias de fotos sensuais de Mariana, estas produzidas pela jovem como modelo profissional e antes do fato. Isso então supostamente constrangeu Mariana durante a sua oitiva e, após a divulgação da audiência na internet, as imagens rapidamente geraram revolta nacional com a conduta do advogado de defesa.

De acordo com o The Intercept Brasil, ao contar o caso de Mariana Ferrer, no interrogatório a influenciadora digital pediu ao magistrado respeito, pois nem mesmo os acusados eram tratados daquela maneira. Alves abordou ainda que, da análise do advogado de defesa sobre as fotos da influenciadora mostradas por ele na audiência, este teria definido as imagens como ginecológicas (ALVES, 2020).

Diante de toda a repercussão jurídica sobre o caso, houve um importante avanço legislativo com a entrada em vigor da lei 14.245/2021, que ficou conhecida como lei Mariana Ferrer, pois seu projeto foi inspirado no caso da jovem que supostamente sofreu violência institucional durante a audiência de instrução, em virtude do advogado de defesa mostrar imagens sensuais da jovem durante o ato judicial, terminando por constrangê-la.

No dia 22 de novembro de 2021, entrou em vigor a lei nº 14.245. Após ser sancionada pelo presidente Jair Messias Bolsonaro, esta normativa alterou os Decretos-Leis nos 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo (Lei Mariana Ferrer).

Esta lei define, em seu artigo 2º, que o Código Penal definirá como crime usar de violência ou grave ameaça, com a finalidade de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral. Passa a lei penal a vigorar acrescido do parágrafo único, em que a pena aumenta-se de 1/3 (um terço) até a metade se o processo envolver crime contra a dignidade sexual.

Ademais, em seu artigo 3º, estabelece que o Código de Processo Penal, passa a vigorar acrescido dos arts. 400-A e 474-A. Logo, o art. 400-A estabelece que na audiência de instrução e julgamento e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, incumbindo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, sendo vedados: a) manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; b) utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Além disso, o artigo 474-A determina que durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo. O disposto ainda prevê as mesmas vedações anteriormente citadas no parágrafo anterior.

No artigo 4º da referida lei em análise, determina-se que o art. 81 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, passa a vigorar acrescido do § 1º-A, o qual define que as partes e demais sujeitos processuais, durante a audiência, presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo. Outra vez, restam consignadas no norma alterada as mesmas vedações aludidas acima.

5.1 Análise da Lei nº 14.321/2022 que tornou crime a violência institucional

No dia 31 de março de 2022, após a sanção do presidente Jair Messias Bolsonaro, entrou em vigor a lei nº 14.321, que alterou a Lei de Abuso de Autoridade nº 13.869, de 5 de setembro de 2019, para tipificar o crime de violência institucional.

Esta inovação legislativa adveio como uma resposta ao caso de Mariana Borges Ferreira que supostamente sofreu vitimização secundária. Acerca dessa violência, entende Paula (2018) que a vitimização secundária é percebida em momento posterior à agressão, em que há a busca pelas instâncias formais para que seja tutelado o bem jurídico violado e ocorre quando a mulher ao buscar o poder estatal para punir o seu agressor não lhe é fornecido o devido tratamento e esta é considerada como um mero objeto de investigação.

Logo, esta nova lei tornou crime a violência institucional para coibir abusos por parte do poder público e evitar procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos de modo a obstar nova violação às vítimas de crimes violentos no âmbito jurídico brasileiro.

Ainda de acordo com Paula (2018) na vitimização secundária, seja no momento do inquérito policial, seja na fase judicial, a mulher é exposta a uma série de constrangimentos e condutas inadequadas, a exemplo de interrogatórios invasivos, o que afeta o psicológico da vítima que terá que contar a dor sofrida a terceiros e lembrar do ato criminoso sofrido várias vezes.

Em vista disso, o novo dispositivo penal foi elaborado com o fim de evitar a revitimização por parte dos agentes públicos contra o sujeito passivo de crimes violentos, corroborando para que a ofendida desses crimes não seja novamente exposta à violência durante a apuração do delito em que foi vítima.

A lei 14.321/2022 em seu artigo 1º tipifica a violência institucional e, em seu artigo 2º, define que a lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019, passa a vigorar acrescida do art. 15-A, que, por sua vez, define o que configura violência institucional, consistindo então no ato de submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade à situação de violência ou outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização. A pena para este crime é de detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa.

Ademais, em seus §§ 1º e 2º, existem causas de aumento de pena. A primeira delas se dá quando o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, em que se aplica a pena aumentada de 2/3 (dois terços). A segunda causa de aumento de pena ocorre se o próprio agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, em que se aplica a pena em dobro.

Conforme entendimento de Tavares (2022), o legislador criou esse novo tipo penal para culpabilizar os agentes públicos que pratiquem revitimização, especialmente contra vítimas de crimes sexuais, tendo em vista que estas muitas vezes são pessoas vulneráveis ou adultos que sofreram a agressão de maneira covarde.

Nesse contexto, merecem o total amparo por parte dessa inovação penal às mulheres vítimas do delito de estupro, tendo em mente que, não raro, estas são expostas a procedimentos vexatórios, exames invasivos e a reinquirições desnecessárias, de tal sorte que revivam por diversas vezes a dor do momento do ato criminoso.

Segundo Tavares (2022), ainda acerca da lei nº 14.321/2022, nos crimes contra a dignidade sexual, na ausência de testemunhas ou imagens do momento do delito, em que a única fonte de prova para convencer a autoridade judicial é a palavra da vítima, esta deve possuir destacado valor e ser encarada com total respeito, sendo consideradas todas as circunstâncias narradas pela pessoa ofendida.

Logo, esta nova lei representa um progresso no sentido de proteger a mulher que foi vítima do delito de estupro, ao passo que proíbe a submissão desta a um processo que a leve a reviver a situação de violência ou outras situações geradoras de sofrimento ou estigmatização, refletindo claro e potencial dispositivo de combate à revitimização.

A entrada em vigor desta lei representa um avanço à proteção da dignidade da vítima de crimes violentos, como é o caso do delito de estupro. Portanto, esta inovação legislativa se consubstancia como uma garantia de que a vítima primária não poderá sofrer violência institucional, garantido que o princípio fundante do ordenamento jurídico brasileiro da dignidade da pessoa humana seja efetivado.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após essa análise é possível compreender que a violência de gênero existe desde as primeiras civilizações até os dias atuais. Na medida em que a sociedade foi se desenvolvendo a mulher foi sendo colocada em uma posição secundária em relação ao homem, que figura em uma posição dominante.

Neste cenário, e em razão da cultura patriarcal, a figura feminina foi exposta a todos os tipos de violência, em especial a violência sexual que corrobora a ideia de que existe na sociedade o consentimento tácito para o estupro, o que tem ligação com a história das mulheres, porquanto estas eram consideradas propriedade dos homens e tratadas como se objeto fossem.

Assim, a cultura do estupro e da violência de gênero são vestígios de séculos de subordinação e discriminação da figura feminina. Dessa forma, é preciso educar as presentes e futuras gerações de maneira conscientizá-las da luta feminina pela igualdade de gênero. Somente diante dessa sensibilização a mulher não será mais tratada de maneira objetificante.

Foi possível averiguar, de acordo com o estudo da vitimologia, que vitimização primária consiste nos danos que o indivíduo sofre em razão do resultado direto do fato criminoso, os quais variam de acordo com o bem jurídico lesado; ao passo que vitimização secundária diz respeito ao sofrimento adicional suportado pela vítima primária no momento em que esta busca o aparato estatal para apuração da violência que contra ela anteriormente foi cometida.

É possível enxergar que esta violência institucional, não raro, ocorre contra as mulheres vítimas do crime de estupro. Esta revitimização pode ocorrer no âmbito das delegacias no momento em que se dá a investigação do crime de estupro em sede de inquérito policial quando as vítimas mulheres sofrem discriminações por terem reportado o crime muitos dias após serem estupradas, fazendo com que elas se sintam intimidadas de comunicar o fato delituoso.

De mais a mais, deve-se estabelecer uma relação de confiabilidade nas instâncias penais, para que a mulher vítima de estupro não se sinta constrangida ao ponto de não comunicar o ocorrido às autoridades.

Cabe ainda ressaltar que, durante a instrução criminal, a violência institucional ocorre quando a palavra da vítima é desprezada, quando esta é obrigada durante seu interrogatório a descrever minuciosamente a violência sexual ou até mesmo reencontrar o sujeito que a estuprou, o que lhe acarreta um segundo sofrimento psicológico. Destarte, durante o processo para apuração do delito de estupro a palavra da vítima deve ser a prova mais importante.

Constata-se ainda que a dignidade humana da mulher vítima de estupro é violada no âmbito jurídico brasileiro em várias áreas e diferentes momentos da persecução penal na apuração do crime de estupro, como no momento em que a vítima é desacreditada, eis que sua palavra é tida como desprezível; no momento em que sua vida pregressa é exposta durante a inquirição; ou mesmo quando são expostas suas fotos íntimas durante o processo para demonstrar que ela deu causa ao estupro. Em todos esses momentos a dignidade da mulher vítima do estupro é violada.

Desta feita, para que a mulher vítima de estupro tenha sua dignidade resguardada, deve receber do sistema criminal assistência de modo a concretizar todos os seus direitos constitucionalmente garantidos. Para que isto ocorra é necessário que o poder público invista financeiramente em infraestrutura de delegacias especializadas no atendimento à mulher, em curso de capacitação dos agentes públicos para que possam ser preparados para atender a vítima com todo respeito e sensibilidade necessários, dada a natureza do crime.

Observou-se, ao analisar as leis nº 14.321 de 2022 (que tipificou o crime de violência institucional) e nº 14.245 de 2021 (que foi criada para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima de crimes sexuais), que, apesar de serem grandes avanços no sentido de proteger a vítima do crime de estupro, ainda resta necessário que tais normativas sejam, de fato, concretamente efetivadas – identificando-se um cenário onde o despreparo do aparato criminal não se sobressaia em face da nova legislação.

Por fim, conclui-se que é um dever do Estado brasileiro e da sociedade fazer valer a Carta Magna de 1988 e materializar o princípio basilar do nosso sistema jurídico, isto é, o princípio da dignidade da pessoa humana. Vale dizer, o sistema jurídico pátrio deve focar na ação ativa da proteção e amparo à mulher vítima de estupro e ao combate à violência institucional, para que assim a finalidade da justiça seja consagrada.

REFERÊNCIAS

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1 Ver: FROTA, Hidemberg Alves da. A vitimização secundária pela justiça criminal: os casos R V Wagar e Bárbara. Revista de Doutrina Jurídica, Brasília, v. 55, n. 2, p. 317-334, jan-jun. 2020.

2 Cuida-se do fenômeno, lembrado por Rauali Kind Mascarenhas, de se forjar a presunção de consentimento, “quando a vítima (antes da agressão sexual) pede uma carona ao agressor ou aceita um primeiro encontro em um bar”, fruto de uma visão de mundo a ressoar crenças “que justificam a violência sexual contra a mulher”, “resultando na naturalização da violência e de certos conceitos sexistas, bem como no silenciamento das vítimas e todos considerados vulneráveis socialmente” (MASCARENHAS, 2019, p. 122 e 134). Esse processo também pode ser encarado como um tipo de “criminalização da vítima”. Ver: nota 1 P. 321.

3 Ver: CARDOSO, Heloísa de Oliveira. O processo de vitimização secundária da mulher no crime de estupro. 2021. 63f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Centro Universitário Antonio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente, 2021.

4 Pensamento similar esposam Gabriela Perissinotto de Almeida e Sérgio Nojiri, conforme os quais “cada indivíduo reage à sua maneira a situações traumáticas”, é dizer, não é porque determinadas vítimas de agressão sexual “ficam emotivas após sofrerem uma agressão” que todas se comportarão da mesma maneira (ALMEIDA; NOJIRI, 2018, p. 847). Ver: nota 1, P. 321-322.

5 Para uma análise especificamente acerca do estupro marital ver: AGUIAR, Irailton Rodrigues de et al. Violência contra a mulher: estupro marital sobre a análise jurídica Violence against womem: marital rape on legal analysis. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v. 7, n. 11, p. 102590-102609, nov. 2021.

6 Aqui existe o mais claro culto a “Cultura do Estupro” onde “[…] no qual uma sociedade opera formalmente e informalmente, com base em atitudes, crenças, costumes e rituais que seus membros sancionam como aceitável e normal” (2005 apud FLETCHER, 2010, p. 1, tradução nossa). Ver: SOMMACAL, Clariana Leal; TAGLIARI, Priscila de Azambuja. A cultura de estupro: o arcabouço da desigualdade, da tolerância à violência, da objetificação da mulher e da culpabilização da vítima. Revista da ESMESC, Florianópolis, v. 24, n. 30, p. 245-268, dez. 2017.

7 Ver: BARBOSA, Marcela Dias; BORGES, Paulo César Corrêa. Trabalho sexual, estupro e sistema de justiça criminal: uma análise crítica a partir do feminismo de terceiro mundo. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, v. 12, n. 2, p. 387-407, ago. 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/23610/pdf. Acesso em: 7 jun. 2022.

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