VIOLAÇÕES SOFRIDAS PELAS DETENTAS NO PERÍODO GESTACIONAL: UM ESTUDO SOBRE O SISTEMA PRISIONAL FEMININO NO PIAU͹

VIOLATIONS SUFFERED BY FEMALE INMATES DURING PREGNANCY: A STUDY ON THE FEMALE PRISON SYSTEM IN PIAUÍ

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8014336


Marilucia Castro da Silva2
 Samya Karine de Sousa Sá Carvalho3
Gustavo Luís Mendes Tupinambá Rodrigues4


RESUMO

O atual sistema prisional feminino é caracterizado por expressões de violações direitos femininos, cuja estrutura é inadequada, não oferece as mínimas condições de higiene e saúde, nem integridade física e moral, à proteção da dignidade humana, tanto das gestantes, quanto das parturientes e nascituras e até mesmo em relação à própria vida dessas mulheres que se encontram custodiadas pelo estado.  Nesse sentido os objetivos consistem em analisar as violações sofridas pelas detentas no período gestacional e puerperal durante o cárcere nas penitenciárias do Brasil, em especial no Piauí, durante o período de 2015 a 2022. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica. O levantamento bibliográfico foi realizado através dos artigos indexados nas bases de dados Scientific Eletronic Library Online (SCIELO), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no Google Acadêmico e nas revistas jurídicas, assim como nos sites do STF e do Juris.sp. As publicações selecionadas foram dos últimos anos compreendidos entre 2015 a 2022. Os resultados evidenciaram que a situação da mulher encarcerada no Piauí é marcada pela invisibilidade e pela ausência de direitos, constituindo, dupla violência, tanto para as detentas quanto para os filhos, não há acompanhamento do pré-natal, nem puerpério, também as instalações não oferecem berçários e nem creches. Conclui-se que a precarização do sistema prisional contribui para as violações sofridas pelas detentas no período gestacional e puerperal.

Palavras-chave: Detentas. Sistema Prisional. Violações.

ABSTRACT

The current female prison system is characterized by expressions of violations of female rights, whose structure is inadequate, does not offer the minimum conditions of hygiene and health, nor physical and moral integrity, the protection of human dignity, both of pregnant women, women in labor and unborn children. and even in relation to the very lives of these women who are in the custody of the state. In this sense, the objectives are to analyze the violations suffered by the detainees in the gestational and puerperal period during imprisonment in Brazilian penitentiaries, especially in Piauí, during the period from 2015 to 2022. The methodology used was bibliographical research. The bibliographic survey was carried out through articles indexed in the Scientific Electronic Library Online (SCIELO), Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel (CAPES), Google Scholar and legal journals, as well as on the websites of the STF and Juris .sp. The selected publications were from the last years between 2015 and 2022. The results showed that the situation of incarcerated women in Piauí is marked by invisibility and the absence of rights, constituting double violence, both for the inmates and for the children, there is no prenatal care, nor puerperium, also the facilities do not offer nurseries or daycare centers. It is concluded that the precariousness of the prison system contributes to the violations suffered by the inmates during the gestational and puerperal period.

Keywords: Female inmates. Prison system. Violations.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo delimita-se a análise temática do tratamento dispensado à mulher no sistema prisional do Piauí, principalmente em relação à sua invisibilidade, uma vez que se trata de um indicador complexo e preocupante do atual sistema penal brasileiro, ao não proporcionar tratamento digno, bem como não cumprir a função principal da pena que é de ressocialização.

De modo geral, há problemas estruturais, culturais, políticos e éticos relacionados ao cárcere feminino, que vão desde o conjunto arquitetônico inadequado às mulheres, passando pela superlotação, até à violência obstétrica que quando não fere fisicamente, se materializa em violência psicológica e emocional. Observa-se que o tratamento e assistência inadequados que o sistema prisional brasileiro oferece para às mulheres em estado gestacional e puerperal não atendem o que determina a Constituição Federal do Brasil e a Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210/84), sendo uma afronta aos Direitos Humanos, devido à ausência da tutela aos direitos básicos conferidos às mulheres que se encontram custodiadas pelo Estado.

Frente a esse contexto que ultrapassa as celeumas sociais e jurídica, o estudo tem como problema de pesquisa o seguinte indagamento: Quais as dificuldades enfrentadas pelas presidiárias durante o período gestacional e puerpério no Piauí?

Esses questionamentos serão esclarecidos por uma pesquisa bibliográfica, do tipo estudo sistematizado ou pesquisa integrativa, com abordagem qualitativa e documental, que se construiu através de levantamento de dados encontrados na literatura já existente, por meio da consulta em livros e artigos originais, acerca do tema da pesquisa.

Na pesquisa bibliográfica, a fonte das informações está sempre na forma de documentos, escritos, podendo estar impressos ou eletrônicos. O levantamento bibliográfico foi realizado através dos artigos indexados nas bases de dados Scientific Eletronic Library Online (SCIELO), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no Google Acadêmico e nas revistas jurídicas, assim como nos sites do STF e do Juris.sp. As publicações selecionadas foram dos últimos anos compreendidos entre 2015 a 2022.

Para tanto, os objetivos desse estudo consistem analisar as violações sofridas pelas detentas no período gestacional e puerperal durante o cárcere nas penitenciárias do Brasil, em especial no Piauí, durante o período de 2015 a 2022. Assim como revisar a bibliografia sobre a trajetória histórica do encarceramento feminino e a influência do atual sistema prisional brasileiro, além de demonstrar por meio da literatura a invisibilidade da mulher em situação de cárcere no âmbito do tratamento dispensado à presa grávida e puérpera à luz da Lei de Execução

Penal e refletir sobre a violência obstétrica sentida por mulheres encarceradas, desde o período pré-natal até o puerpério.

Justifica-se o estudo pela necessidade em atualizar as evidências científicas sobre a situação carcerária em que vivem as mulheres, a fim de contribuir com ações e estratégias mais eficazes sobre esse tema. Assim, como apresentar a missão do estado em relação aos problemas estruturantes e a precariedade higiênica do sistema penitenciário feminino no Brasil, assim como a violência obstétrica sentida por mulheres encarceradas, desde o período pré-natal até o pós-parto e puerpério.

Para uma melhor compreensão do estudo dividiu-se em capítulos. No primeiro capítulo, será tratado sobre a trajetória do encarceramento feminino e a influência do atual sistema prisional brasileiro. No segundo capítulo, será analisado a invisibilidade da mulher em situação de cárcere no Âmbito do tratamento dispensado à presa grávida e puérpera à luz da Lei de Execução Penal. No terceiro capítulo serão apresentados os dados da violência obstétrica sentida por mulheres encarceradas no Piauí, desde o período pré-natal até o puerpério.

2 A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO ENCARCERAMENTO FEMININO E A INFLUÊNCIA DO      ATUAL SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

A mulher é historicamente submissa ao homem, nascida e criada para cumprir com os deveres e obrigações de casa aos quais estavam destinadas. Desse modo, qualquer outra atribuição que a mulher exercesse na sociedade era considerada secundária, sem relevância, devido a cultura do patriarcalismo e o machista estrutural, que permeou o Brasil, até a promulgação da Constituição de 1988. Assim, competia a mulher a responsabilidade por todo o serviço de casa, que incluía limpeza, cozinha, e a criação e educação de seus filhos, vista como o sexo frágil, não detinha direitos nem poderes, diferente do homem, o qual possuía o pátrio poder, conferido ao chefe da família, que tinha o dever de prover o sustento, a alimentação, a saúde, ou seja, era o provedor (ALVES; DA SILVA, 2022).

Essa divisão sexual do trabalho, assim como a trajetória do feminismo tem seu início teórico e ideológico a partir dos movimentos de luta por direitos civis, e por meio de pensadoras como Simone Beauvoir e Virgínia Wolf desencadearam-se intensos debates sobre os direitos das mulheres e a suas demandas sociais, com disseminação de textos reflexivos que situavam a mulher no seu meio, despertando a consciência de seus pares para a sua importância social.

Diante desse contexto, é notório que o sistema capitalista usa dos estigmas e padrões impostos pela sociedade para selecionar classes consideradas menos favorecidas para explorar exaustivamente sua mão de obra em favor do lucro e dessa maneira aumentar a exploração de uma classe sobre a outra, e isso não é diferente com as mulheres, pois, apesar do grande espaço conquistado pela mulher, a mesma ainda é vista como inferior. Dessa forma, esse fato acaba intensificando ainda mais a divisão sexual do trabalho.

Colaborando com esse posicionamento e com a reflexão da divisão sexual do trabalho os pensadores e percursores do socialismo no mundo vem explicar a posição da mulher na sociedade e no mercado de trabalho, entendendo que, a divisão do trabalho, provoca contradições, e repousa por sua vez na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em famílias isoladas e opostas umas às outras. Assim, a divisão do trabalho significa a repartição do trabalho e de seus produtos, distribuição desigual, na verdade, tanto em quantidade quanto em qualidade (MARX; ENGELS, 1988).

Nesse estudo, os autores deixam clara a posição que a mulher é vista na sociedade, principalmente em relação aos homens. Os próprios escritores destacam a relação de escravidão sofrida, principalmente em função do homem. Ademais, no mesmo trecho, ainda se fala sobre a distribuição desigual, tanto na qualidade de emprego, quanto na quantidade dos mesmos.

Entretanto, esse machismo secular ainda reverbera n sociedade e a luta pela igualdade de gênero, só recentemente tem obtido resultados satisfatório, haja vista que as mulheres veem paulatinamente conquistando direitos sociais e políticos como foi o direito ao voto, ao trabalho, mas ainda lutam para serem reconhecidas, para receberem o mesmo valor do salário pago aos homens que executam a mesma função, assim como para serem respeitadas, entre tantas outras coisas, e grande parte da luta está em discutir e divulgar as diferenças de tratamento e as consequências desta situação (PESTANA et al., 2018).

Essa busca por igualdade é refletida também no sistema prisional brasileiro, que foi construído basicamente para o sexo masculino, no início ainda no século XVII as mulheres por serem minorias eram colocadas em presídios masculinos junto com os homens, pois o Estado não sentia a necessidade de se preocupar com a construção de presídios para as mulheres.

Nesse período, a pena de prisão nem sempre foi a única ou principal forma de resposta diante de um ato considerado como desrespeitoso às leis vigentes. Até a idade moderna, nos séculos XVII e XVIII, a prisão existia apenas com a função de custodiar temporariamente aqueles que seriam submetidos a castigos corporais e/ou à pena de morte (SILVA; BORBA; BARALDI, 2021).

Contudo, reforça-se que no século XX, mais precisamente na década de 1930, foi realizada diversas reformas relacionadas ao modo de organização e regulamentação dos sistemas prisionais do Brasil, nesse período foram regularizados o Regimento das Correições com a pretensão de reorganizar o regime carcerário, além da criação do Fundo e do Selo Penitenciário em 1934, para arrecadar fundos para melhorar os estabelecimentos prisionais. Já em 1935, o Governo Federal editou o Código Penitenciário da República e em 1941, instaurou o novo Código Penal (SILVA, 2014).

Ressalta-se que foi após a promulgação do Código Penitenciário da República, que as mulheres presas eram separadas dos homens, de acordo com os desígnios das autoridades responsáveis no ato da prisão e de acordo com as condições físicas para tal. Assim, o 2º parágrafo, do Art. 29, do Código Penal de 1940, determinou-se que o cumprimento da pena para as mulheres seria em estabelecimento especial, não disponível no município ou no estado, em secção adequada de penitenciária ou prisão comum, ficando sujeitas a trabalho interno (SILVA; BORBA; BARALDI, 2021).

Entretanto, em uma análise no estudo de Andrade (2015) foi possível observar que a criminologia do final do século XIX e início do século XX, diferenciavam a tipologia de crimes cometidos por mulheres e meninas em comparação com os homens e meninos. Assim, os crimes femininos apresentados naquele período eram identificados como prostituição, à promiscuidade sexual e o furto.

A Penitenciária de Mulheres de Bangu foi o primeiro presídio feminino no Brasil, foi idealizado pelo Presidente Getúlio Vargas construído para atender questões intrínsecas ao aprisionamento feminino, com a perspectiva de aplicação humanizada da pena. Trata-se de um estabelecimento referência, o marco da modernidade, havia a separação das detentas por escalonamento de periculosidade, como bem determina o Código Penal e as leis posteriores que tratam desse tema (MARTINS, 2019).

Atualmente, a detenção feminina ainda obedece a padrões de criminalidade diferenciados do público masculino. Enquanto 57% dos crimes relacionados ao tráfico são praticados por mulheres, os homens respondem apenas a 23%. “Por outro lado, o número de crimes de roubo registrados para homem é três vezes maior do que para mulheres” (SANTOS; VITTO, 2017, p.30).

Ademais, a violência, a superlotação dos presídios, rebeliões, mortes, entre outras situações são vividas por homens e mulheres que estão custodiados pelo Estado, sendo que, o      atual sistema prisional brasileiro tem materializado o abandono das instituições, deixando de cumprir a ressocialização e recuperação dos presos, assim como a cura dos internados dos manicômios judiciários, sendo esses indícios de crise generalizada no sistema criminal brasileiro (FERREIRA, 2020).

Frente a esse contexto negativo que são submetidos à população carcerária brasileira, as mulheres em situação de cárcere ainda precisam conviver com a invisibilidade que o sistema impõe em relação ao tratamento dispensado à presa grávida e puérpera à luz da Lei de Execução Penal, que omitem direitos e reverbera problemas sociais, e tantos outros que serão evidenciados no tópico a seguir.

3 A INVISIBILIDADE DA MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE NO ÂMBITO DO TRATAMENTO DISPENSADO À PRESA GRÁVIDA E PUÉRPERA À LUZ DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL

À medida que ocorrem os avanços nos direitos fundamentais das mulheres encarceradas, nota-se um excesso de moderação no reconhecimento do mérito e sua aplicabilidade, que resulta na mora e eventual inefetividade das garantias do Estado, que não cumpre o seu papel para com essa população marginalizada (MARTINS, 2019).

A prisão é por si só nas sociedades democráticas, o instrumento de veto do poder, que observa que a ideologia estadista incrimina. As mulheres são biologicamente diferentes dos homens com necessidades e anatomia particular. Por esta perspectiva é que a figura feminina na sociedade é única, individual. Assim, a exclusão das mulheres no mundo público se converte em um elemento fundamental, o qual legitimará as novas explicações científicas e as amoldam ao âmbito penal (FOUCAULT, 2019).

Frente a essa perspectiva, observa-se que há violação de direitos em relação à condição da mulher encarcerada, que vai além da liberdade, contemplando direitos e perspectiva de melhorias nas condições sociais, que é estigmatizada pelos preconceitos e elementos que permitem a diferenciação de valores pela determinação de gênero.

 O sistema penitenciário no Brasil é regido pelas leis penais e constitucionais do país e regulamentações posteriores, tratando-se de um sistema caracterizado pela presença de usuários que são prioritariamente pessoas que pertencem às classes de poder aquisitivo baixo, com um mínimo de instrução educacional e profissional, que estão às margens da sociedade. São instituições com estruturas falhas, que não possuem capacidade para custodiar as mulheres, sem suporte necessário, falta desde materiais higiênicos, produtos de limpeza, até mesmo estrutura física, tornando as mulheres invisíveis, sem representatividade (FERREIRA, 2020).

Contudo, vale pontuar, que a Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210/84) não contemplava de forma especial as mulheres que estavam sobre custodia do Estado, haja vista que a criminalidade feminina não tinha tanta visibilidade, embora em seu artigo 82, § 1º da LEP expressa que as mulheres deverão ser recolhidas a estabelecimento prisional próprio, adequado à sua condição pessoal. Nesse sentido Mirabete (2012) explica que a expressão “condição pessoal”, é uma forma pejorativa de tratar a mulher, como se o sistema penitenciário não fosse projetado para as mulheres, materializando ainda mais a sua invisibilidade social.

A invisibilidade e problemas estruturantes das mulheres em cárcere são evidenciados em dados divulgados pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), os tipos de estabelecimentos penais, a maioria está voltada para os presos do sexo masculino, totalizando 74% dos estabelecimentos penais. Apenas 7% é destinado ao público feminino e 17% são estabelecimentos penais mistos, restando 2% dos quais não há informação. Os dados coleados observaram ainda que, no país há 49% de estabelecimentos penais femininos com local específico para visitação, considerando os ambientes destinados exclusivamente para as visitas e para atividades sociais, que são diferentes dos ambientes de pátio de sol e celas. Nos estabelecimentos penais mistos este número cai para 33% (INFOPEN, 2017, p. 25).

Entretanto, essa realidade é ainda mais alarmante quando se observa que apenas 14% dos presídios brasileiros possuem berçário ou centro de referência materno-infantil e 3% possuem creches, com o total de 72 unidades prisionais com creches no país distribuídas apenas nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina (INFOPEN, 2017).

Frente a falta de efetividade do Estado em garantir o mínimo de dignidade a mãe e ao filho, acordo em Assembleia Geral das Nações Unidas as Regras de Bangkok, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a incapacidade do Estado (como fez com a ADPF-347) e concedeu ordem ao Habeas Corpus coletivo (143.641/SP). A seguir a ementa:

Ementa: HABEAS CORPUS COLETIVO. ADMISSIBILIDADE. DOUTRINA BRASILEIRA DO HABEAS CORPUS. MÁXIMA EFETIVIDADE DO WRIT. MÃES E GESTANTES PRESAS. RELAÇÕES SOCIAIS MASSIFICADAS E BUROCRATIZADAS. GRUPOS SOCIAIS VULNERÁVEIS. ACESSO À JUSTIÇA. FACILITAÇÃO. EMPREGO DE REMÉDIOS PROCESSUAIS ADEQUADOS. LEGITIMIDADE ATIVA. APLICAÇÃO ANALÓGICA DA LEI 13.300/2016. MULHERES GRÁVIDAS OU COM CRIANÇAS SOB SUA GUARDA. PRISÕES PREVENTIVAS CUMPRIDAS EM CONDIÇÕES DEGRADANTES. INADMISSIBILIDADE. PRIVAÇÃO DE CUIDADOS MÉDICOS PRÉ-NATAL E PÓS-PARTO. FALTA DE BERÇARIOS E CRECHES. ADPF 347 MC/DF. SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO. ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL. CULTURA DO ENCARCERAMENTO. NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO. DETENÇÕES CAUTELARES DECRETADAS DE FORMA ABUSIVA E IRRAZOÁVEL. INCAPACIDADE DO ESTADO DE ASSEGURAR DIREITOS FUNDAMENTAIS ÀS ENCARCERADAS. OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO E DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. REGRAS DE BANGKOK. ESTATUTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA. APLICAÇÃO À ESPÉCIE. ORDEM CONCEDIDA. EXTENSÃO DE OFÍCIO. […] (HC 143641, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 20/02/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-215 DIVULG 08-10-2018 PUBLIC 09-10-2018) (BRASIL, 2018).

Diante desse contexto, o sistema prisional brasileiro não proporciona um tratamento que atenda às demandas femininas e auxilie na reabilitação das presas, há uma estrutura prisional totalmente voltada aos presos do sexo masculino, que repercute diretamente na reincidência aos crimes, pois há inversão da função reintegradora da pena privativa de liberdade para a função exclusiva de castigar e punir, que reverbera no meio social e faz coro como sendo uma estratégia para que as infratoras pagarem pelo mal que causaram à vida comum dos cidadãos, permanecendo seus direitos invisíveis (CRUVINEL, 2018).

Nesse sentido, os juristas e aplicadores do Direito reconhecem a dificuldade que há em garantir a efetividade da legislação vigente em relação à infraestrutura mínima para a saúde das mães, dos bebês, e crianças dentro dos presídios brasileiros. Assim, como em estabelecer o que determina a lei em relação às sanções de isolamento ou segregação disciplinar às mulheres gestantes, lactantes ou com filhos (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2016, p.25).

A mulher que está encarcerada não tem apenas a penalidade da restrição da liberdade imposta pelo Poder Judiciário pelo delito cometido, mas, vai além, pois são privados do direito de viver com a mínima dignidade, sem a higiene adequada, sem amor e o carinho de familiares e sem poder formar o vínculo familiar com seu filho recém-nascido. Isto tudo, decorrente de uma omissão da sociedade e do Estado, que prejudica a ressocialização dessas mulheres, aumentando o risco de sua reincidência no mundo do crime (SILVA; BORBA; BARALDI, 2021).

Desse modo, o próximo tópico vem discorrer sobre a violência que as mulheres encarceradas vivenciam desde a gestação até o pós-parto, a violência obstétrica que torna ainda mais vulnerável as mulheres encarceradas que tem direitos suprimidos, por quem deveria constitucionalmente garantir o mínimo de dignidade e direitos sociais.

4 OS DADOS DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA SENTIDA POR MULHERES ENCARCERADAS NO PIAUÍ, DESDE O PERÍODO PRÉ-NATAL ATÉ O PUERPÉRIO

A violência obstétrica é compreendida como grave fenômeno social decorrente de toda e qualquer ação ou omissão com relação à mulher, seja durante o pré-natal, o parto ou pós-parto, não só por parte dos médicos, como também de todos profissionais da saúde que prestem atendimento a gestante/puérpera, de forma direta ou indireta (SANTOS, 2017).

A violência obstétrica se materializa por meio do tratamento desumanizado, abuso de medicamentos e patologização dos processos naturais, contribuindo para a perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres gestantes (BRASIL, 2019).

Entretanto, a violência obstétrica também pode ser manifestada pela privação de alimentos, a cesariana eletiva sem indicação médica, o uso da ocitocina sintética, hormônio utilizado para acelerar as contrações, a tricotomia[1], o enema, a proibição da movimentação da gestante, a manobra de Kristeller[2], humilhações, ofensas, omissão de informações, informações prestadas à gestante usando apenas a linguagem técnica, a episiotomia, que consiste no corte feito no períneo para a passagem do bebê em partos normais, o desrespeito à cultura e religião da gestante, os exames de toque invasivos, a posição ginecológica que dificulta a passagem do bebê, entre outros procedimentos que violam a gestante (ROCKEMBACK; VAILATTI, 2020).

A violência obstétrica sofrida por mulheres encarceradas também pode ser observada pela proibição do acompanhante durante e após o parto, comumente acompanhada exclusivamente pelas agentes prisionais e a equipe médica. Após o nascimento, as parturientes ficam isoladas das demais mães da maternidade, acompanhadas novamente apenas das agentes prisionais e com reforço policial nas portas, tratadas como se fossem presas de alta periculosidade (VIDEOSAÚDE DISTRIBUIDORA DA FIOCRUZ, 2017).

De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen Mulheres de 2022, são 42.694 mulheres encarceradas no Brasil, sendo que no Estado do Piauí essa população é de apenas 161 mulheres. Sendo 31 em regime fechado, 41 em regime semiaberto e 89 em prisão provisória. Embora seja a terceira menor população de mulheres encarceradas, a taxa de ocupação feminina nos presídios do Piauí é de 96,99%, uma vez que só disponibiliza 166 vagas (CNMP, 2022).

De acordo com Barbosa et al., (2021) o perfil sociodemográfico feminino em sistema carcerário do Piauí é mulheres na faixa etária entre 26-40 anos (63,0%), cor da pele preta/parda (85,2%), com filhos (81,5%), baixa escolaridade (74,1%) e renda familiar até dois salários mínimos (94,4%).

Esses dados colaboram com os dados fornecidos pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen Mulheres de 2022 e com o relatório realizado pelo Ministério Público do Piauí, que verificou que há um percentual significativo de mulheres com Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), observando que 44,4% com sífilis e 11,1% infecção pelo HIV. Chama a atenção que pouco mais da metade das mulheres (57,4%) eram fumantes ativas, com predomínio de fumar menos de uma carteira de cigarro/dia (77,4%).

Observa-se que mesmo essa população tendo essas comorbidades o estado só recentemente, em 2015 havia aderido ao Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, de modo que essa população quando necessita de serviços da saúde com consultas especializadas e cirurgias da população carcerária é obrigada utilizar a rede regular de saúde, ofertada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), não dispõem de planejamento familiar, nem realização do Pré-natal (BARBOSA et al, 2021).

Contudo essa realidade não é apenas do estado do Piauí ao fazer um levantamento da situação carcerária brasileira verifica-se que a Saúde materno-infantil nas prisões, se caracterizam por inúmeras situações de violências, vivenciadas por mães de crianças menores de 01 ano nascidas durante o cárcere. O não acesso ao pré-natal adequado, o uso de algemas, xingamentos, ausência de um acompanhante, alimentação não adequada, demora no atendimento e instalações insalubres e precárias, foram alguns das violações observadas por Mordolo (2022) entre as mulheres que exercem a maternidade intramuros.

Vale ressaltar que as políticas públicas de oferta de saúde dentro do sistema prisional, não atendem aos requisitos legais, assim, tem sido cada vez mais comum a judicialização de ações para que a gestante cumpra sua pena em prisão domiciliar, para que fora do sistema prisional, ela possa ter uma rede de apoio institucional, sendo uma oportunidade de maior qualidade de vida para o desenvolvimento gestacional (DI PIETRO; ROCHA, 2017).

Desse modo o Infopen (2021) evidencia que no Brasil existem apenas 59 estabelecimentos prisionais femininos que possuem celas ou dormitórios específicos para as gestantes e apenas 49 unidades contam com berçários e espaços materno-infantis destinados aos cuidados das crianças de até 2 anos. No tocante às creches, responsáveis por abrigar os filhos das detentas maiores de 2 anos, apenas 10 das unidades prisionais femininas e mistas contam com tais instalações, recebendo até 168 crianças.  Dentre essas instituições está a de Corumbá no estado do Mato Grosso do Sul é uma das dez instituições prisionais referência, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) (INFOPEN, 2021).

Nesse sentido, a gravidez intramuro no Brasil é considerada como dupla violência: para a mulher encarcerada, haja vista que não terá atendimento médico adequado, e para a criança que, na maioria dos casos, é impedida de ser amamentada, de ter vínculo com a mãe. Contudo, a mulher que se encontra custodiada pelo Estado tem direitos a amamentação, a realizar exames ginecológicos e a separação, quanto ao delito cometido (MORDOLO, 2022).

5 CONCLUSÃO

Como direito humano fundamental à promoção da cidadania, a saúde deve ser ofertada aos cidadãos, sobretudo, aos que se encontram no sistema prisional. Dessa forma, as políticas públicas voltadas para essa população precisam ser implementadas com a finalidade de garantir a visibilidade a essas mulheres que já são privados do convívio familiar e social, estigmatizadas e duplamente punidas, uma vez que estão condicionadas a verem seus filhos crescerem sem o vínculo materno.

Assim, é possível identificar que o cárcere viola direitos básicos como a saúde, a dignidade humana, pois considera a pessoa privada de sua liberdade como não merecedora de um tratamento digno e assim, o direito à maternidade conferido a elas não pode ser exercido, por falta de infraestrutura, ausência de médicos e unidades básicas de saúde, falta de acompanhamento do pré-natal e puerpério.

É, portanto, uma invisibilidade absoluta, que viola diversos direitos garantidos constitucionalmente, como a maternidade, configurando-se como uma violência emocional e psicológica. Desse modo, as detentas são vítimas violência obstétrica, pois não podem exercer sua maternidade conforme as orientações e recomendações do Ministério da Saúde e das organizações internacionais como a ONU. Sendo extenso rol de direitos das parturientes que são negligenciados, há também a violência obstétrica, pois muitas detentas são estigmatizadas na hora do parto pela equipe.

Contudo, vale ressaltar que há diversos instrumentos que resguardam os direitos das parturientes que estão no sistema prisional como a Lei de Execução Penal (Lei nº 7210/84), as s Regras de Bangkok, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e tantas outras normativas que se colocadas em prática resguardam a mulher encarcerada dessas situações de violência obstétrica.

REFERÊNCIAS

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[1] Raspagem dos pelos pubianos.

[2] Manobra em que o profissional da saúde empurra a barriga da parturiente;


1Trabalho de Conclusão de Curso apresentado no Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA, Teresina-PI, 22 de junho de 2023.
2Acadêmica do curso de bacharelado em Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. E-mail: marilucia89@hotmail.com
3Acadêmica do curso de bacharelado em Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. E-mail: samyasa840@gmail.com
4Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do sul-PURS, Professor do curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. E-mail: gustavotupi@unifsa.com.br