UMA REFLEXÃO DO MOVIMENTO CULTURAL RENASCENTISTA E SUAS VARIÁVEIS EM REGIÕES DISTINTAS DA EUROPA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202504211648


Larínia Carolina Nogueira Martins¹
Lágila Cristina Nogueira Martins²


RESUMO

Visto que a renascença foi marcada por um grande desenvolvimento em todas as áreas da sociedade, surgindo como o contraponto do pensamento medieval e teocêntrico que vigorava até então, o presente artigo visa pontuar a importância do movimento artístico e cultural do Renascimento e suas variações e influências pela Europa, em um período de transição da Idade Média para a Idade Moderna. Caracteriza-se brevemente os aspectos culturais renascentistas, destacando a concepção do humanismo. Além de analisar as variáveis do movimento artístico e intelectual de acordo com a localização na Europa, com distinções das influências presentes em Florença e em outras regiões europeias. O individualismo, o antropocentrismo eo humanismo são considerados pilares do movimento em questão, corroborando com a valorização da burguesia enquanto classe social e que por sua vez, também impulsionava e financiava o movimento renascentista.

Palavras-chave: Renascimento, Idade Média, Florença, Antropocentrismo, Burguesia.

ABSTRACT

Since the Renaissance was marked by great development in all areas of society, emerging as a counterpoint to the medieval and theocentric thought that prevailed until then, this article aims to highlight the importance of the artistic and cultural movement of the Renaissance and its variations and influences throughout Europe, in a period of transition from the Middle Ages to the Modern Age. The cultural aspects of the Renaissance are briefly characterized, highlighting the concept of humanism. In addition, the variables of the artistic and intellectual movement are analyzed according to its location in Europe, with distinctions between the influences present in Florence and other European regions. Individualism, anthropocentrism and humanism are considered pillars of the movement in question, corroborating the valorization of the bourgeoisie as a social class, which in turn also drove and financed the Renaissance movement.

Keywords: Renaissance, Middle Ages, Florence, Anthropocentrism, Bourgeoisie.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa visa investigar a relação entre as características do Renascimento europeu, observando suas representações e modificações culturais, políticas, sociais e econômicas, visto que a renascença foi marcada por um grande desenvolvimento em todas as áreas da sociedade, sendo um período moldado por grandes personalidades históricas desta época, como os conhecidos, Leonardo Da Vinci, Maquiavel, Shakespeare e Michelangelo, marcando a transição da Idade média para a Idade Moderna. Surgiu como o contraponto do pensamento medieval e teocêntrico que vigorava até então, em vez de apenas crenças e misticismos, a filosofia e a ciência iluminaram o poder da razão na sociedade.

A Idade Média é assim chamada porque se situou entre dois picos de glória artística: o período clássico e o Renascimento. Posto que a arte ainda vivia na Idade Média, o que renasceu no Renascimento – e se estendeu pelo período barroco – foi a arte parecida com a vida. A passagem do interesse pelo sobrenatural para o natural provocou essa mudança. A redescoberta da tradição greco-romana ajudou os artistas a reproduzirem apuradamente as imagens visuais. As expansões do conhecimento científico, com maior a compreensão da anatomia e da perspectiva, possibilitou aos pintores dos séculos XV e XVI superarem as técnicas da Grécia e da Roma. (STRICKLAND, 2002, p. 30-31)

A relevância desta pesquisa reside na possibilidade de contribuir para abordagens relacionadas às ciências humanas e na compreensão dos percursos de desenvolvimentos sociais históricos. Espera-se que o estudo possa trazer insights importantes para áreas principalmente relacionadas à história e à arte, ao contribuir para uma compreensão mais aprofundada do comportamento cultural do recorte temporal em análise.

Objetiva-se, dessa forma, caracterizar ainda que brevemente os aspectos culturais renascentistas, destacando a concepção do humanismo. Pontuar as variáveis do movimento artístico e intelectual de acordo com a localização na Europa, com distinções das influências presentes em Florença com os aspectos das tradições de outras regiões européias, e, identificar os principais fatores que contribuíram para o desenvolver e discorrer do renascimento europeu, como o individualismo e antropocentrismo que ideologicamente corroboraram com a valorização da burguesia enquanto classe social e por sua vez, dialeticamente impulsionava o movimento renascentista a se fortalecer e florescer.

Ao analisar a literatura foi possível identificar derivações do movimento renascentista onde se há pouca pesquisa, abrindo espaço para novas investigações, como por exemplo, o comparativo entre o Renascimento florentino e as influências diversas de elementos das culturas situadas nas regiões mais nórdicas e distantes de Florença.

A metodologia empregada foi a revisão bibliográfica, a fim de contextualizar o estudo e alicerçar o referencial teórico, baseando-se em estudos de autores como A. N. Hodge, Nicholas Mann, Jacob Burckhardte principalmente Johan Huizinga em sua obra “O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos”.  Procura-se situar o presente estudo dentro do contexto existente de conhecimento e contribuir para as áreas afins.

A INFLUÊNCIA RENASCENTISTA

Considerando a simbologia do que representou o período renascentista e seus expoentes, bem como o “rompimento” de um momento tido como “idade das trevas”³, “atrasado”, para o esplendor da retomada das civilizações antigas, em meio a um período histórico onde a Europa, continente berço do movimento, desenvolvia cada vez mais saberes e tecnologias, valorizando a racionalização humana, em detrimento das imposições teocêntricas. Fundamentando o antropocentrismo, base do Humanismo, o movimento que seria de grande importância às bases do Renascimento.

Além da valorização das capacidades humanas, outro fator que é relevante ao Renascimento será o fortalecimento de uma classe social específica, a burguesia, que irá fomentar e muitas vezes patrocinar as iniciativas e ideias do Renascimento. Aproveitando-se do individualismo antropocêntrico que começava a imperar, de modo a primar valores desta classe emergente, possibilitando sua inserção cada vez maior no berço da sociedade europeia. Um individualismo que, conforme Delumeau, é possível perceber no “discurso literário apoiado pela iconografia (retratos em pé, estátuas equestres, gestos e drapejados gloriosos) exaltou  a  valentia  —  individual  —  dos  heróis  que governaram a sociedade” (2009, p. 17)

Durante o século XV a cultura cívica do norte de Itália foi transformada numa cultura principesca. Os Médicis de Florença, os Sforza de Milão (os sucessores da família Visconti), os Gonzagas de Mântuas, os Este de Ferrara e os papas Bórgia em Roma tornaram-se os mecenas que guiavam as artes. As obras que encomendaram tentavam glorificar as suas próprias dinastias e a autoridade que possuíam. Os temas artísticos preferidos eram o heroísmo e a coragem militar; as suas encomendas consistiam em ostensivos palácios e templos. Esta transformação na arte do período, perfeitamente clara nas pinturas de armaduras e de arcos triunfais de Mantegna (1431-1506) e na arquitetura monumental de Alberti, demonstrou ter uma importância fundamental para contribuir para a difusão do Renascimento. (MANN, 2006, p. 24)

Levando-se em consideração que o movimento Renascentista não ocorreu de maneira igualitária em todo o território europeu, a crença de que a arte renascentista promoveu os mesmos valores, ideais, características e visões em suas obras deve ser questionada, tendo em vista a não existência de uma cultura uniforme neste período. Para tanto, observar-se-á o movimento renascentista na Itália, considerado o “berço do Renascimento”, em comparação com os territórios mais ao norte do continente.

No norte, as mudanças se realizaram contra um pano de fundo de reforma religiosa e revolta contra a igreja. Os aspectos revolucionários do movimento italiano, tais como as descobertas científicas da perspectiva e anatomia, interessavam os artistas do norte menos do que uma aspiração para reproduzir o mundo natural em toda sua beleza. Os artistas do Renascimento Nórdico fizeram avanços extraordinários no naturalismo; suas pinturas eram um espelho do mundo com cada folha, cacho de cabelo e pedaço de tecido aveludado reproduzido em detalhes requintados. (HODGE, 2009, p. 28)

Países nórdicos estes que demonstravam, mediante as características de suas obras renascentistas, a independência e rivalidade existente entre os países europeus à época em questão. A distinção, com os territórios onde hoje se situa a Itália no que se referia às tendências artísticas e culturais, influenciadas não apenas pela mentalidade, mas também pelos fatos que ali ocorriam, afligindo seus povos mediante guerras e fomes, ascensão de uma doutrina protestante, fatores estes que influiriam na espiritualidade dos homens nórdicos e que, desta maneira, influenciariam diretamente nas obras artísticas.

No entanto, é necessário ressaltar que não houve uma ruptura “completa” entre as duas regiões. Conforme dispõe Mann:

É inegável que o Renascimento do norte deveu sua principal inspiração à Itália, sendo construído sobre alicerces cavados pelos humanistas e pelos artistas italianos. […] Os Países Baixos e a Alemanha tinham tradições de erudição e de conhecimento que tornaram a região muito receptiva às idéias que se difundiam a partir da Itália. A fusão do novo saber com estas tradições deu ao Renascimento do norte o seu caráter distinto como movimento cultural. Assim, o Renascimento do norte estava mais preocupado com a crítica textual do que o seu equivalente italiano, e bastante mais ocupado com temas de religião pessoal e de ética.” (MANN, 2006, p. 136)

Todo um simbolismo artístico que se revelaria inquietante nas pinturas nórdicas, relacionadas à contextos religiosos e críticos. Algo que iria confrontar paradigmas e demonstrar uma concepção de mundo diferente mediante atividades de novos intelectuais e artistas.

Tido como um marco na história da arte para a humanidade, o Renascimento significou complexas modificações culturais diante de um período que representava a passagem de uma época medieval para a moderna, aproximadamente no século XIV ao XVI. Sua terminologia se deu devido à sua preferência pela antiguidade tida como clássica, ou seja, fora inspiradaartística e culturalmente nas culturas advindas da civilização greco-romana.A palavra, “renascimento”, designando o referido contexto histórico, obteve tal concepção mediante Jacob Burckhardt, em sua obra “A cultura do Renascimento na Itália” de 1867, no qual ele conceituava o período como sendo uma era de “descoberta do mundo e do homem”.

Desta maneira, tentou-se romper com a mentalidade medieval, designada como sendo estagnada, submetida a um controle religioso no qual a vida humana deveria se centrar em Deus mediante uma teoria fundamentada no teocentrismo. Teoria esta que daria lugar ao antropocentrismo, no qual o homem passaria a ser o centro de tudo, valorizando sua inteligência, a razão ao contrário da fé, o que influiria nas manifestações artísticas da época. Propagava-se, assim, o chamado “humanismo” no território europeu, especialmente na Itália.

Visto isso, pode-se conferir ao Humanismo pregado neste período características referentes à crença do homem como um ser racional, possuidor de um livre-arbítrio e um espírito crítico o qual deveria, por sua vez, rejeitar os valores e as formas culturais da Idade Média.  Assim, valorizando os ideais e as formas de expressão literária e artística da AntiguidadeGreco-Romana, tratava-se de uma nova interpretação da visão natural vigente, onde o homem passa a ser autor e destinatário do saber e do conhecimento.

Tais modificações culturais e artísticas são frutos de uma ascensão da burguesia, a qual iria transfigurar a rígida sistemática social e econômica defendida pela ordem medieval pautada na religiosidade. O homem, tido como racional, individualista, pragmático e positivo, ganharia estes valores mediante a promoção de uma mentalidade burguesa emergente, que não só corroborava como também muitas vezes patrocinava os ideários do renascimento.

Originado a princípio no território italiano, o movimento teve como núcleos os centros urbanos de Florença e Siena, tendo em vista a riqueza de vestígios da antiguidade clássica, como monumentos, obras de arte, livros, dentre outros, somado aos incentivos da classe burguesa bastante consolidada nesta região. Ainda, tem-se que a vida urbana e o comércio, à época, possuía maior intensidade na Itália, especialmente em Gênova e Veneza, duas cidades portuárias, lar de mercadores burgueses.

Mediante a ascensão desta classe elitista e burguesa, obras de arte tornavam-se encomendas para estes senhores que ordenavam a produção de obras glorificadoras de suas dinastias e autoridades. Desta maneira, tornavam-se preferíveis os temas artísticos que representassem o “heroísmo e a coragem militar; as suas encomendas consistiam em ostensivos palácios e templos”, conforme pode-se observar nas pinturas de armaduras e dos arcos triunfais de Mantegna, ou na arquitetura de Alberti (MANN, 2006, p. 24).

Desta maneira, sustentado pela elite burguesa e mercantil, com o auxílio da imprensa criada por Johannes Gutenberg, o aparecimento e divulgação da arte da impressãoaos poucos, substituiu a produção manual dos livros, assim o movimento renascentista conseguiria se difundir para outras partes da Europa Ocidental. Proporcionou-se, desta maneira, um grande progresso no movimento cultural renascentista, permitindo que as ideias e os saberes fossem divulgados com mais rapidez, rompendo barreiras geográficas de distanciamento, constituindo uma conexão mais segura e fortalecida entre os europeus e seus ideais artísticos.

A invenção da prensa foi outro enorme avanço no Norte. Albrecht Durer, uma figura de destaque, desenvolveu habilidades como xilógrafo e gravador e combinou estas habilidades técnicas com uma dedicação ao detalhe para produzir obras sensíveis, intensamente bonitas. As impressões de Dürer foram mais amplamente disponíveis como ilustrações em panfletos e livros; assim, não eram apenas os aristocratas que podiam apreciar as pinturas. (HODGE, 2009, p.29)

Dentre os movimentos culturais, pode-se observar a questão filosófica, a qual também se atrelava à ciência da época. Pautado na razão, a filosofia de Platão,4 seria retomada pelos chamados neoplatônicos de maneira a considerar a “arte, a arquitetura, a literatura e a música” como formas artísticas que deveriam se pautar na perfeição e harmonia que “orientavam o trabalho de criação de Deus” (MANN, 2006, p. 19). Relacionava-se a questão religiosa a um movimento intelectualizado, racional, o qual diferia da concepção medieval e, portanto, caracterizava o movimento renascentista. Um exemplo disto é a pintura de “Primavera”, por Botticelli, na qual havia uma simbolização de harmonia entre natureza e civilização, aderindo à concepção neoplatônica.

Insistindo em que o homem possuía o poder de transformar a natureza, o neoplatonismo contribuiu para o estudo da alquimia e da astrologia, e desse modo preparou indiretamente o caminho para a revolução científica do século XVII. O neoplatonismo contribuiu tambéma para a moda da magia, que, assim, abandonou o reduto da bruxaria. No século XVI, o erudito do Renascimento era um magus(mago) absorto na aquisição de poderes mágicos tão frequentemente como um homem de letras dedicado à mais humilde procura do conhecimento. A tradução de textos ocultos da cabala durante os séculos XV e XVI incentivou também a procura de símbolos mágicos e de códigos, e foram em grande parte responsáveis pelo novo interesse por obras clássicas hebraicas. (MANN, 2006, p. 19)

As características artísticas do momento eram orientadas, em sua maioria, por “ideais de perfeição, harmonia, equilíbrio e graça”, mediante aspectos simétricos e bem proporcionais, conforme demandavam os parâmetros da Antiguidade Clássica que se buscava reproduzir:

Algumas obras de Michelangelo Buonarroti (1475-1564) exemplificam a realização do modelo clássico, seja nos estudos de anatomia para composições maiores (Estudo para uma das Sibiliasno teto da capela Sistina), seja em esculturas, como o célebre Davi (1501/1504). As imagens de Rafael (1483-1520), por sua vez, dão plena expressão aos valores da arte renascentista, destacando-se pela beleza projetada segundo os padrões idealizados do universo clássico (A Ninfa Galatéia). (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2005).

A busca pela perfeição e realismo dos artistas, valorizavam concepções como o Trivium e o Quadriviun,provenientes das culturas clássicas e que foram incorporados no decorrer da medievalidade. Uma vez que a comunicação envolve o exercício simultâneo da lógica, da gramática e da retórica, estas artes são as artes fundamentais da educação: de ensinar e de ser ensinado. (Joseph, 2002, p.25) e as artes dos números, composto por Aritmética e geometria como conhecimento universal. Música sendo a confecção de ondas sonoras a partir da concepção de fórmulas ordenadas. E a Astronomia, importante para o entendimento do universo e para a ordenação do espaço.

As artes liberais denotam os sete ramos do conhecimento que iniciam o jovem numa vida de aprendizagem. O conceito é do período clássico, mas a expressão e a divisão das artes em trivium e quadrivium datam da Idade Média. O trivium inclui aqueles aspectos das artes liberais pertinentes à mente, e o quadrivium, aqueles aspectos das artes liberais pertinentes à matéria. Lógica, gramática e retórica constituem o quadrivium. A lógica é a arte do pensamento, a gramática, a arte de inventar símbolos e combiná-los para expressar pensamento, e a retórica, a arte de comunicar pensamento de uma mente a outra, ou a adaptação da linguagem à circunstância. A aritmética, ou a teoria do número, e a música, uma aplicação da teoria do número (a quantidade discreta ou número. A geometria, ou a teoria do espaço, e a astronomia, uma aplicação da teoria do espaço, são as artes da quantidade continua ou extensão. (Joseph, 2002, p.21)

No entanto, o período do Renascimento não foi homogêneo em toda a Europa, ou seja, não houve uma uniformidade cultural, mas sim diversos movimentos nacionais separados. Desta maneira, a difusão do movimento renascentista ao “norte dos Alpes reforçou a divisão da Europa em estados nacionais independentes e rivais”, tornando-se marcante característica da história européia no século XVI (MANN, 2006, p. 24).

Enquanto a tendência renascentista na Itália se inspirava no humanismo e na antiguidade greco-romana, os artistas situados no Norte da Europa não visavam a harmonia e a beleza idealizada pelos italianos (HODGE, 2009, p. 28).

Ocorria também que durante o século XV, os Países Baixos eram afligidos por sucessões de guerras, fomes e pestes, de maneira que a religião havia cedido espaço aos temores da população. Com o fortalecimento do Protestantismo nestas regiões, imagens que idolatravam o papa, representante católico, tornaram-se proibidas (HODGE, 2009, p. 29). Mediante estes fatores, presenciou-se misturas culturais entre o Renascimento Italiano e as tendências artísticas nestas regiões. O humanismo tanto na região onde hoje situa-se a Alemanha quanto nos Países Baixos tiveram influência da espiritualidade e ancestralidade nortista, a qual era diferente da italiana, manifestando-se nas pinturas intrigantes e inquietantes de artistas como Bosch e Grünewald, ao mesmo tempo em que eram aplicadas técnicas da crítica literária renascentista em textos religiosos (MANN, 2006, p. 24).

O pano de fundo do movimento renascentista no norte europeu, portanto, era fundamentado nas reformas religiosas que eclodiam em desfavor do poderio da Igreja5. Mesmo as questões filosóficas e científicas que faziam parte do Renascimento italiano não representavam atrativos aos artistas nórdicos quanto uma aspiração para reproduzir o mundo natural em toda sua beleza.O naturalismo foi, assim, temática aprofundada pelos artistas do Renascimento do Norte da Europa, produzindo pinturas como se estas fossem um “espelho do mundo com cada folha, cacho de cabelo e pedaço de tecido aveludado reproduzido em detalhes requintados” (HODGE, 2009, p. 28).

Fatores assim demandariam novas perspectivas a respeito da preocupação com o bem-estar espiritual da humanidade, de modo que o homem se sentisse cada vez mais insatisfeito com a doutrina dogmática do catolicismo, os luxos dos padres e papas, e a corrupção que a instituição da Igreja representava. A reforma protestante ganhava forma e força, mediante esta nova mentalidade, aderindo a um movimento renascentista que aliava a arte à simbolismos medievais de medo e religiosidade.

Pintado no início do século XV, a visão pessimista e surreal de Hieronymus Bosch parece notavelmente presciente. Seus painéis cheios pululam com simbolismo medieval, refletindo as incertezas de uma época e revelando um terror do inferno no seu âmago. As cenas de pesadelos de Bosch influenciaram PiterBruegel (o Velho), cujo gênero de pinturas de camponeses realizando suas tarefas diárias levou a arte para uma nova direção, para longe das obras excessivamente religiosas que tinham dominado a pintura até este ponto. (HODGE, 2009, p. 29)

Vê-se assim, que as pinturas nórdicas se distanciavam no tradicional gótico, não mais representando em suas obras os palácios suntuosos e obras com bastantes decorações, como até então eram preferidas. Há assim, a demonstração de um conflito de interesses representado pela linguagem artística, entre as classes de artistas nórdicos e italianos. Confrontos ideológicos nas quais eram representadas “necessidades expressivas de uma categoria social particular em uma situação histórica particular”, sendo que “o que ocorre de fato é que a arte, servindo em todas as épocas como meio de expressão e de propaganda, é um dos veículos da ideologia de seu tempo” (FRANCASTEL, 1993, p. 48).

Um simbolismo que refletia na arte a realidade vivida em um contexto histórico de transformações na mentalidade, na economia, na religiosidade. Transformações estas que não eram homogêneas na Europa e que, portanto, exibiam isto nas representações artísticas durante o Renascimento. A arte, neste período, era permeada por símbolos, ou seja, representações do imaginário no real, a configuração do universo, a realidade sagrada que deveria ser desvendada a fim de expor o sentido oculto que comportava (STROHER, KREMER, 2011, p. 57). 

Em uma cosmologia onde as coisas possuem outros significados além do que se parecem à primeira vista é bastante natural. No período em análise, tudo que existia no universo poderia ser interpretado simbolicamente, se buscarmos a raiz da palavra símbolo ou sinal encontraremos origem no grego “sumbolon” – cada uma das metades de um objeto que fora dividido, para que sua junção funcionasse como uma senha, daí o sentido literal de “sinal que faz reconhecer”, portanto sua importância e presença constante nas religiões na tentativa de ligar o mundo humano ao mundo divino. O símbolo pretende estabelecer uma relação secreta com a real intencionalidade da representação. Em suma, o simbolismo era a maior forma de expressão do homem à época, era assim que exteriorizava seus sentimentos mais profundos.

Do ponto de vista do pensamento causal, o simbolismo é considerado um curto-circuito intelectual. O pensamento procura a conexão entre duas coisas não ao longo das sinuosidades ocultas de seus vínculos causais, mas sim saltando subitamente por cima das conexões de causa. A conexão não é um elo entre causa e efeito, mas entre significado e objetivo. A convicção de que tal elo existe pode surgir sempre que duas coisas possuam uma característica essencial em comum que se refira a alguma coisa de valor geral. Em outras palavras, qualquer associação com base em qualquer semelhança pode se transformar diretamente na idéia de uma conexão essencial e mística (HUIZINGA, 2010, p. 338)

Assim, mediante uma representatividade do que é real, cria-se esta conexão entre aquilo que o artista renascentista busca expor, o significado do imaginário visando o objetivo de desnudar o mundo natural.

Refletindo sobre o simbolismo presente neste contexto é possível apreender, conforme afirma Huizinga (2010, p. 339) que o pensamento simbólico proporciona certa “intoxicação”, uma “confusão pré-intelectual dos limites da identidade das coisas”, abrandando o pensamento racionalista que “leva a intensidade do sentimento pela vida a seu auge” de modo a ser possível “tanto honrar como desfrutar o mundo, que por si é abominável, e também enobrecedor”.

Ainda em acordo com o referido autor:

O desvanecer da Idade Média apresenta todo esse mundo de pensamento em sua última floração. O mundo era perfeitamente representado pelo simbolismo que tudo abrangia, e os símbolos individuais se transformaram em flores petrificadas. Desde sempre, aliás, o simbolismo possuíra a tendência a se tornar puramente mecânico. Uma vez estabelecido como fonte de pensamento, ele não só brota da fantasia e entusiasmo poéticos, mas se acopla as funções intelectuais como uma planta parasita e degenera até virar mero habito e uma doença do pensamento. Surgem perspectivas completas de contato simbólico, em especial quando este brota de uma simples correspondência entre números. São meros exercícios aritméticos. Os doze meses devem significar os doze apóstolos, as quatro estacoes, os evangelistas, e o ano inteiro, então, só pode ser Cristo. (HUIZINGA, 2010, p. 340)

A expressividade do simbolismo na arte tornou-se algo inerente a toda percepção de mundo que os artistas almejavam representar. A fim de exteriorizar a subjetividade do homem, criaram-se signos passíveis de serem compreendidos tendo em vista que representavam figuras comumente conhecidas pela sociedade à época desta transfiguração, do homem medieval ao homem renascentista.

CONCLUSÃO

Ao se buscar perceber as características e a importância do movimento renascentista como um movimento artístico que transformou culturalmente a Europa na transição entre períodos históricos, promovendo o “renascimento” da antiguidade clássica, antiguidade greco-romana, por intermédio de tendências artísticas e filosóficas principalmente. Notou-se que se tratou também de um “redescobrimento” da sociedade, de como esta encararia o mundo e o homem após um período medieval e que foi tido como Idade das Trevas. Momento este que se pautava principalmente na força estabelecida pela Igreja católica, impondo suas ideologias e suas visões teocêntricas a respeito do Universo. Uma predominância religiosa que, em meio ao Renascimento, foi taxado de atraso à filosofia, um momento de estagnação do homem.

Ao fim da “era medieval”, o antropocentrismo se tornou a teoria que substituiria o teocentrismo, estabelecendo o homem como sujeito central do mundo, de maneira a valorizá-lo em detrimento aos ditames religiosos. Um humanismo que percorreria a Europa, tendo como berço, a região da Itália e se adaptando as influências e demandas locais por todo o continente.

Como foi possível ressaltar neste trabalho, o movimento renascentista não se desenvolveu de maneira homogênea em toda a Europa durante estes séculos (XIV a XVI), havendo diferenças expressivas entre o Renascimento italiano e aquele que foi difundido ao norte da região dos Alpes, de modo a realçar os conflitos existentes entre os estados nacionais europeus que se viam como rivais.

Desta forma, o humanismo e o reflexo da cultura que se baseava na antiguidade greco-romana preponderantes na região italiana, os quais detinham concepções de harmonia e ideais de beleza e conhecimentos sobre proporção. Não sendo estes, por sua vez, os pilares para a produção artística dos indivíduos que viviam o Renascimento no norte do continente europeu. Tais diferenciações eram realçadas pelo contexto político e econômico que viviam os chamados Países Baixos, os quais viviam sob pestes, fomes e guerras, construindo, mediante estas, perspectivas do mundo que muitas vezes pareciam conflitantes com as tendências e estilos vigorantes.

Fortalecia-se, ainda neste contexto o Protestantismo, o qual iria vivenciar a mescla do movimento cultural que possuía o Renascimento da Itália com as visões dos artistas nas regiões do norte europeu.

Aliada a estas transformações culturais, intelectuais, artísticas e religiosas, os principais fatores que contribuíram para o desenvolvimento do renascimento europeu foram as modificações sociais que passavam a ocorrer. Tendo em vista que as elites dominantes como a aristocracia e o clero eram quem regiam tais fatores na Idade Média, com o advento do Renascimento e surgimento da chamada Idade Moderna, uma elite burguesa e mercantil conseguiu cada vez mais espaço, expandindo seus ideais e influências, mediante a propagação de novas tecnologias. Dentre estas, uma das mais importantes, a imprensa de Gutenberg que fortaleceria a expansão do movimento renascentista por toda região europeia neste momento.

Rompendo fronteiras, evoluía-se e modificava-se constantemente, de maneira que o Renascimento conseguia reunir artistas de diversos cantos da Europa em uma “troca” de saberes e ideologias, técnicas e conhecimentos a respeito das artes e da influência filosófica que estas abrangiam.


³A Idade das Trevas é um termo que se refere a um período da história européia marcado por declínio, estagnação e obscuridade. O termo é frequentemente usado para se referir à Idade Média. 
4Platão foi um dos mais importantes pensadores do período antropológico da filosofia grega. Ele fundou um pensamento metafísico próprio, relegando à questão do “ser” e das “essências” o princípio e a chave para se ter qualquer tipo de conhecimento acerca do mundo. Inspirado pelas teorias de Parmênides acerca do imobilismo, Platão elaborou uma teoria metafísica dualista, que divide o mundo em duas categorias: o Mundo das Idéias e das Formas e o mundo sensível.
5Referência a instituição, Igreja Católica.

REFERÊNCIAS

Veja mais sobre “Platão” em: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/platao.htm

BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Tradicional. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. São Paulo : Companhia das Letras, 2009.

ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura. Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br

FRANCASTEL, Pierre. (1993). A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva/EDUSP.

HODGE, A. N. A História da Arte. Da pintura de Giotto aos dias de hoje. Editora Cedic – Centro Difusor de Cultura LTDA. Catalogação da Biblioteca Britânica, 2009.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Media:Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos seculos XIV e XV na Franca e nos PaisesBaixos.. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

JOSEPH, Miriam. O trivium: as artes liberais da lógica, gramática e retórica. São Paulo. 2002.

MANN, Nicholas. Renascimento. Grandes civilizações do passado. Editora Folio, S.A. Barcelona, 2006.

STRICKLAND, Carol. Arte Comentada. Da Pré-História ao Pós-Moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

STRÖHER, Carlos Eduardo; KREMER, Cássia Simone. Os pecados e os prazeres terrenos no Jardim das Delícias de Bosch. Revista do corpo discente do PPG-História da UFRGS. AEDOS. Rio Grande do Sul, 2011.


¹Formada em Licenciatura Plena no curso de História (2014), pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), no qual foi bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), pós-graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional e Neuropedágogia. Com Qualificação Profissional de Técnica de Nível Médio de Auxiliar de Farmácia pela Escola Técnica Estadual Professor Alcídio de Souza Prado (2008) .Formada em Licenciatura em Pedagogia (2021), pelo Centro Universitário Faveni. Atualmente atuo como vice-diretora da Escola Municipal Gastão Mesquita Filho. Atualmente, mestranda do programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica do IFTM – Campus Uberaba.
²Formada em Licenciatura e Bacharelado em Enfermagem pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em 2017. Especialista em Saúde do Adulto pelo Programa de Pós-Graduação de Residência Integrada Multiprofissional e em Área Profissional da Saúde (PRIMAPS), pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), concluída em março de 2019. Ministrei aulas para o curso técnico de Enfermagem do SENAC – Uberaba, até tomar posse no Concurso da Prefeitura Municipal de Pedregulho, em julho de 2019, exercendo a função de Enfermeira Responsável Técnica, onde atuo até o presente momento.