UMA CRÍTICA À TOLERÂNCIA MÚTUA PROPOSTA POR STEVEN LEVITSKY E DANIEL ZIBLATT EM SITUAÇÕES DE CRISES DEMOCRÁTICAS 

A CRITICISM OF MUTUAL TOLERANCE PROPOSED BY STEVEN LEVITSKY  AND DANIEL ZIBLATT IN SITUATIONS OF DEMOCRATIC CRISIS 

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch102024220740


Igor Vieira Pinheiro1 


Resumo 

O presente artigo científico tem como objetivo fazer uma reflexão crítica acerca da  tolerância mútua, defendida por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, como uma das  medidas necessárias para se contornar crises democráticas, geralmente advindas  da demonização do pluralismo político e da perseguição aos que pensam diferente,  tratados como inimigos da Nação. Reflexão que não busca diminuir ou afrontar de  forma direta a obra celebre “Como as Democracias Morrem” dos referidos autores,  mas apenas aprofundar o campo da tolerância na colisão direta da autopreservação  da democracia. Como metodologia, a pesquisa foi realizada por meio da abordagem  qualitativa de cunho descritivo, envolvendo a pesquisa bibliográfica de obras relacionadas ao tema, bem como de trabalhos científicos relacionados à tolerância.  Resta, como resultado da pesquisa, o encontro, nos livros e trabalhos analisados,  clara necessidade de não se tolerar tudo. Em nome da tolerância e de seu  desdobramento – liberdade de expressão – grupos xenófobos, homofóbicos,  racistas, machistas, e até mesmo com viés fascista, se organizam e encontram  legitimação política para exercer e fomentar o seu ódio, pondo em risco a  democracia e seus valores de diversidade e convivência comum das diferenças. 

Palavras-chave: Tolerância. Liberdade de Expressão. Discursos de Ódio. Democracia. Valores de Diversidade e Convivência. 

Abstract 

This scientific article aims to critically reflect on mutual tolerance, advocated by  Steven Levitsky and Daniel Ziblatt, as one of the necessary measures to overcome  democratic crises, generally arising from the demonization of political pluralism and  the persecution of those who think differently, who are treated as enemies of the  Nation. This reflection does not seek to diminish or directly confront the famous work  “How Democracies Die” by the aforementioned authors, but only to delve deeper into  the field of tolerance in direct collision with the self-preservation of democracy. As a  methodology, the research was conducted through a qualitative approach of a  descriptive nature, involving bibliographic research of works related to the subject, as  well as scientific works related to tolerance. As a result of the research, the finding, in  the books and works analyzed, of a clear need not to tolerate everything. In the name  of tolerance and its outcome – freedom of expression – xenophobic, homophobic,  racist, sexist and even fascist groups organize themselves and find political  legitimacy to exercise and foment their hatred, putting democracy and its values of  diversity and coexistence of differences at risk. 

Keywords: Tolerance. Freedom of Expression. Hate Speech. Democracy. Values of  Diversity and Coexistence. 

1 INTRODUÇÃO 

O debate atual sobre tolerância é totalmente diverso do desenvolvido na  modernidade. E é justamente esse engessamento conceitual, ou até mesmo prático,  que torna tão difícil entender a ideia de tolher a tolerância, um preceito que foi tão  caro de se consolidar, principalmente no período da Reforma Religiosa em 1517,  onde Estado e Religião viviam uma espécie de mutualismo, ou até mesmo no início da idade contemporânea com as guerras mundiais, em especial a segunda,  marcada pelo fascismo e nazismo que tinham como preceito básico a intolerância. 

Talvez o primeiro debate da modernidade sobre tolerância – aqui religiosa – tenha sido a Carta sobre a Tolerância (1689) de John Locke (1632-1704). Locke  conceituou de maneira simples a tolerância: “é a abstenção do uso da força”2. O  endereçamento deste conceito destinava-se ao Estado, que não poderia usar de sua  força e poder para impor crenças e cultos aos indivíduos, que, reflexamente,  deveriam se abster de impor seus valores e crenças aos demais. Um verdadeiro  tratado sobre laicidade do Estado. 

Outro filósofo que merece igual atenção é Voltaire, que escreveu Tratado  sobre Tolerância (1763)3, também evidenciando a intolerância religiosa da época. O  celebre autor fundamenta seu livro na trágica morte de Jean Calas, protestante,  acusado sem provas de ter matado seu filho, por supostamente querer se converter  ao catolicismo. Morto em 9 de março de 1762, teve sua inocência reconhecida de  forma póstuma em 1765. Voltaire, a partir deste caso, faz duras críticas à cegueira  religiosa e passou a defender a liberdade de expressão como preceito basilar de  uma sociedade, que deve substituir o fanatismo pelo império da razão. 

Assim, sedimentou-se um dever negativo do Estado: tolerar a liberdade de  expressão dos indivíduos. Foi justamente a perseguição empreendida pelo Estado  religioso da era moderna que tornou tão almejável e insuscetível de negociação à liberdade de expressão sem freios e contrapesos. Sendo esta liberdade que permitiu  a chegada no poder de figuras como Hitler e Benedito Mussolini, que, em momento  nenhum, tiveram seu direito, de se organizar civil e politicamente, negado pelo  Estado. 

Ao chegarem ao poder com discursos de ódio perverteram o sistema, que  passou a legitimar suas ideias e visões de mundo. Muito embora o regime nazista  tenha se destacado por ter sido mais radical e violento, o regime fascista italiano  também buscou legitimar suas ações. Esse período da história deixou marcas  profundas, devido aos horrores do holocausto e fez a sociedade mais uma vez  refletir sobre a liberdade de expressão. Agora, não podendo mais atingir a dignidade  do outro. 

Positivado no movimento constitucionalista que tomou o período pós-guerra, a  liberdade de expressão ainda pontua como preceito basilar das nações, embora  tenha encontrado agora certos limites legais a serem respeitados. A própria  Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) resolveu prestigiar em seu estatuto – alínea 1.1 do art. 1º – a tolerância, trazendo-a  para o polo ativo como um dever de ordem ética: 

A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da  diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de  expressão e das maneiras de exprimir nossa qualidade de seres  humanos. É fomentado pelo conhecimento, a abertura de espírito, a  comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de  crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não é só um dever  de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica4

Talvez possa parecer simplória esta breve história da mutação da tolerância  ao longo do tempo, mas, além de não ser o objeto central da presente pesquisa,  teve mero intuito de descrever a construção da tolerância como preceito inegociável  das sociedades contemporâneas. 

Atualmente, a tolerância ganhou novos níveis de debate. Pois, diferente das  crises democráticas do passado, marcadas por abruptas e violentas mudanças de  regime em nome de uma intolerância para com determinados grupos e segmentos  sociais, agora, as crises se apresentam de forma institucional, causada por  outsiders, com discursos de ódio, apolíticos e contra o sistema, que chegam ao  poder, sem uso da força, mas legitimados pelo voto popular. 

É justamente esse tipo de crise democrática que o trabalho dos professores  Steven Levitsky e Daniel Ziblatt se propôs a estudar. O fenômeno populista desses  novos outsiders, intolerantes, antiestablishment e apolíticos que cada vez mais tem  chegado ao poder de forma democrática. A radiografia feita pelos autores é  impecável e leva a uma reflexão inevitável: as democracias estão morrendo?  Aparentemente sim. Isso ocorre, na visão dos autores, por desleixo da sociedade  civil organizada e pelo próprio Estado, e suas entidades que não logram êxito em  sufocar os movimentos populistas que se avizinham cada vez mais. 

Para os autores, que fazem um recorte do seu estudo com base na ascensão  de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos, o partido republicano, bem como o  sistema eleitoral, falhou em impedir a viabilização de Trump como candidato. Numa  democracia sólida há o que se denomina guardiões – partidos, ministros da suprema  corte, sistema eleitoral – que devem velar pela manutenção do regime. O  fortalecimento dessas instituições é uma das grades de proteção das democracias – reserva institucional. O antagonismo de tal reserva seria o que Mark Tushnet  denominou de “jogo duro constitucional”, em outras palavras, o uso das regras do  jogo contra seus adversários. 

Outra grade de proteção das democracias seria o que os autores  denominaram de tolerância mútua – respeito à existência do outro. Ressaltam Levitsky e Ziblatt5

Diz respeito à ideia de que, enquanto nossos rivais jogarem pelas  regras institucionais, nós aceitaremos que eles tenham direito  igual de existir, competir pelo poder e governar. Podemos  divergir, e mesmo não gostar deles nem um pouco, mas os  aceitamos como legítimos. Isso significa reconhecermos que nossos  rivais políticos são cidadãos decentes, patrióticos, cumpridores da lei  – que amam nosso país e respeitam a Constituição assim como nós.  O que quer dizer que, mesmo se acreditarmos que suas ideias  sejam idiotas, nós não as vemos como uma ameaça existencial.  Tampouco os tratamos como traidores, subversivos ou  desqualificados. Podemos derramar lágrimas na noite da eleição  quando o outro lado vence, mas não consideramos isso um  acontecimento apocalíptico. Dito de outra forma, tolerância mútua é  a disposição dos políticos de concordarem em discordar. (grifos  nossos). 

Defendem assim, os autores, que o respeito mútuo às ideias contrárias deve  prevalecer, permitindo que todos possam participar da política, mesmo aqueles que  se apresentam como apolíticos, com a esperança de que irão respeitar as regras do  jogo ao assumirem o poder, porque seus adversários assim o fizeram. É neste  entendimento, a meu ver, equivocado, que o presente artigo se debruça. É  justamente pela tolerância aos discursos de ódio, pela permissão que movimentos  antidemocráticos se organizem civilmente, que as democracias atuais vêm  enfrentando problemas em sua autopreservação. 

Bolsonaro foi parlamentar durante vinte e oito anos, em seus sete mandatos  como deputado federal, seus discursos homofóbicos, racistas e misóginos foram  tolerados. Não houve cassação por quebra de decoro parlamentar, ou decretação de  inelegibilidade, muito pelo contrário, tornou-se o trigésimo oitavo presidente da  República Federativa do Brasil. Seu governo foi marcado por um período de grave  crise democrática e ataque às instituições. O temor de um golpe parecia um  passado presente e a transição de poder foi a mais conturbada desde a  redemocratização. Trump e Milei não esconderam sua xenofobia, demonização dos  adversários e ataques as instituições durante suas campanhas, mesmo assim suas candidaturas e eleições foram viabilizadas. Tolerar discursos de ódio é salvaguardar  a democracia de crises institucionais e prováveis rupturas? 

Buscou-se, dessa forma, desenvolver um estudo com o desiderato de  aprimorar os conhecimentos acerca da problemática exposta, com o fito de  evidenciar os problemas enfrentados por uma democracia que tolera o ódio, que  permite líderes com discursos de ódio se organizarem civil e politicamente. Tentou se ressaltar que a liberdade de expressão e a tolerância encontram limites bem mais  sólidos quando o que se está em jogo é a Democracia.

2 RESULTADOS E DISCUSSÃO  

Em “Como as Democracias Morrem”, os autores Levitsky e Ziblatt6lembram  de dois preceitos básicos que permitiram a longevidade da estabilidade democrática  estadunidense7

[…] Duas normas básicas preservaram os freios e contrapesos dos  Estados Unidos, a ponto de as tomarmos como naturais: a tolerância  útua, ou o entendimento de que partes concorrentes se aceitem  umas às outras como rivais legítimas, e a contenção, ou a ideia de  que os políticos devem ser comedidos ao fazerem uso de suas  prerrogativas institucionais. Essas duas normas sustentaram a  democracia dos Estados Unidos durante a maior parte do século XX. 

Para os professores, essas normas democráticas transcendentais sofreram  grave distorção pelo processo da polarização política que o país vem passando nos  últimos anos: 

[…] O enfraquecimento de nossas normas democráticas está  enraizado na polarização sectária extrema – uma polarização que se  estende além das diferenças políticas e adentra conflitos de raça e  cultura. […] E, se uma coisa é clara ao estudarmos colapsos ao longo  da história, é que a polarização extrema é capaz de matar  democracias8

A polarização introduz a política do nós e eles, como bem explora Jason  Stanley no livro “Como funciona o Fascismo”9. Um antagonismo que torna  adversários políticos em oponentes a serem confrontados e que corrompe o sistema  político em um sistema de hostilidades. Essa intensificação tem gerado crises  políticas e humanitárias ao longo dos tempos e tem minado progressivamente as  democracias. Um período que foi cunhado de recessão democrática pelo professor Larry Diamond10, para destacar o fim da expansão das democracias.  

Atualmente, outsiders populista, antiestablishment e apolíticos tem cada vez  mais chegado ao poder, por exemplo, Donald Trump, nos Estados Unidos;  Bolsonaro, no Brasil; e Milei, na Argentina. É preciso ressaltar que, nos três  exemplos o modus operandi de agir possuía verossimilhança: para Trump, o partido  democrata era o responsável pelas principais crises bélicas em que os Estados  Unidos estavam envolvidos; para Bolsonaro, o Partido dos Trabalhadores significava  a volta da miséria e a instauração do comunismo; para Milei, o Peronismo e o  Kirchnerismo eram os responsáveis pela grave crise que a Argentina vem  atravessando. 

Todos eles empregaram uma verdadeira guerra do “bem contra o mal”, que  perpassou pela inevitável eleição de seus adversários a inimigos da Nação. Ademais, ambos questionaram a validade do sistema eleitoral ao qual foram  submetidos. Mas o que mais chama a atenção é que a sociedade civil, os órgãos e  as entidades estatais, bem como o sistema político e eleitoral não foram capazes de  frear tais movimentos. Muito pelo contrário, permitiram que políticos com discursos  de ódio, que prometeram acabar com seus adversários, ficassem livres para disputar  as eleições. 

É justamente esta tolerância para com o intolerante que tem colocado a  democracia em risco, e para melhor estudo do tema analisar-se-á quatro autores  contemporâneos que trataram direta ou indiretamente a tolerância e seus efeitos, a  fim de fazer um contraponto à tolerância mútua defendida por Levitsky e Ziblatt. 

O primeiro desses autores é a filósofa Hannah Arendt, que se debruçou em  estudar o que ela chamou de banalidade do mal, que seria uma espécie de  desdobramento do mal radical, primeiramente trabalhado por Kant – que pensou o  mal sem contributo religioso, sem dimensão ontológica – em sua obra “A Religião  nos Limites da Simples Razão”, de 179311. Para Kant, o mal não é algo natural, mas  é fruto de escolhas e ações egoístas empregadas pelo indivíduo. Aqui ter-se-ia o  mal absoluto. Já a banalidade do mal, trabalhado por Arendt, difere-se desse mal  deliberado e empregado com fim de causar dor e sofrimento. Para a filósofa, o mal  também se demonstra na ignorância, no tolerar e no deixar de refletir, e usa como  exemplo o julgamento de Eichmann no Tribunal de Nuremberg. 

Eichmann era responsável pelo departamento de deportação e outros  assuntos referentes aos judeus do regime nazista. Basicamente foi responsável pela  deportação de cerca de 1,5 milhão de judeus de toda a Europa para centros de  extermínio na Polônia e na União Soviética. Ao ser questionado sobre sua  participação nas atrocidades do regime nazista, Eichmann esquivou-se dizendo que  não tinha culpa, que era mero burocrata mantendo o sistema funcionando, um  cidadão comum e respeitador das leis. Foi justamente essa incapacidade de refletir  sobre as consequências devastadoras de seus atos e sua tolerância com regime  que Arendt conclui pelo surgimento de um novo contorno para o mal, que pode ser  praticado por pessoas terrivelmente normais. Assim pontuou Arendt12:  

Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais  de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que  todas as atrocidades juntas, pois implicava que – como foi dito  insistentemente em Nuremberg pelos seus advogados – esse era um  tipo novo de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que  comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente  impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado. 

Arendt13 reflete que os alemães foram tentados a não ponderar sobre o mal  que se avizinhava, e, ao tolerarem o que o nazismo se propunha, tratando de forma  banal o ódio para com o povo judeu, permitiu-se a produção da maior barbárie da  humanidade. Com efeito: 

No Terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte  das pessoas o reconhece – a qualidade da tentação. Muitos alemães  e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve  ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus  vizinhos partirem para a destruição […], e a não se tornarem  cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus  sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação14

A grande contribuição da filósofa, para o presente debate, reside na sua  análise acerca da tolerância do mal. Foi o tratamento banal dado a Hitler e seus  discursos de ódio que permitiram sua chegada ao poder, foi a tolerância das práticas  nazistas que permitiram pessoas comuns cometerem atrocidades inimagináveis. Foi  a tolerância com o intolerável que levaram à ascensão da maioria dos regimes  totalitários, durante as décadas de 1920 e 1930. 

Outro pensador que também percebeu o problema de se tolerar intolerantes  foi Karl Popper15 em “A sociedade aberta e seus inimigos” (1902); na nota 4 do  Capítulo 7 propõe o filósofo um enunciado que recebeu o nome de o Paradoxo da  Tolerância: 

A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se  estendermos a tolerância ilimitada até aqueles que são intolerantes;  se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante  contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos  tolerantes, e com eles, da tolerância.  

Pontua o autor que não se pretende criminalizar a liberdade do outro,  inicialmente devendo tentar contra-argumentar o pensamento do intolerante a fim de  uma profícua reflexão. No entanto, caso o intolerante não se proponha a dialogar e  negue a própria razão não se deve dar a ele o direito de propagar sua intolerância: 

Nesta formulação não quero implicar, por exemplo, que devamos  sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto  pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las  controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo  pouquíssimo sábia. Mas deveríamos proclamar o direito de suprimilas, se necessário mesmo pela força, pois bem pode suceder que  não estejam preparadas para se opor a nós no terreno dos  argumentos racionais e sim que, ao contrário, comecem a denunciar  qualquer argumentação; assim podem proibir seus adeptos, por  exemplo, que deem ouvidos aos argumentos racionais por serem  enganosos, ensinando-os a responder aos argumentos por meio de  punhos e pistolas. Deveremos então reclamar, em nome da  tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes16.  

É inevitável não lembrar das manifestações contra a vacinação que tomaram  boa parte do debate político na época da pandemia. Ao tentar argumentar sobre a  necessidade e os riscos de não se vacinar, boa parte do público do então presidente  Jair Bolsonaro passou a aderir a não vacinação17. A ciência foi deixada de lado em  nome da preservação da integridade moral do movimento ao qual pertenciam. É  justamente nesta insurreição dos intolerantes, de não aceitar o debate e de querer  impor suas visões de mundo aos demais, que Popper18 propõe atuação efetiva do  Estado – considerando que ele detém o monopólio legítimo da violência – contra a  intolerância: 

Deveremos exigir que todo movimento que pregue a intolerância  fique a margem da lei e que se considere criminosa qualquer  incitação à tolerância e à perseguição, do mesmo modo que no caso  da incitação ao homicídio, ao sequestro de crianças ou à  revivescência do tráfego de escravos19

Popper foi um filósofo que viu a ascensão gradual do partido nazista na  Alemanha. Percebeu como a sociedade e o Estado foram tolerantes com o  movimento nazista e constatou que foi a partir dessa tolerância que o caminho para  o poder fora aberto para Hitler. Talvez, num mundo extremamente globalizado como  o atual, novos líderes sanguinários como Hitler não sejam mais viáveis, mas líderes  que sufocam a oposição, perseguem seus adversários e polarizam a Nação estão  cada vez mais presentes nas democracias atuais. Chegando ao poder não pela  força, mas pelo poderoso poder do voto.  

Outro filósofo que se quedou a estudar a tolerância foi John Rawls (1921), em  seu celebre livro “Uma teoria da Justiça” (1971) 20. Ao estudar as liberdades, dedicou  um de seus subcapítulos – a tolerância para com os intolerantes – ao estudo dos  limites tolerância, sempre frisando que uma sociedade só é justa se for tolerante21.  No entanto, pondera: 

A justiça não exige que os homens cruzem os braços enquanto  outros destroem os alicerces de sua existência. Já que nunca pode  ser vantajoso, de um ponto de vista geral, renunciar ao direito à  autopreservação, a única questão é, então, saber se os tolerantes  têm o direito de coibir os intolerantes quando estes não representam  nenhum risco imediato para as liberdades iguais de outros22

Rawls23, não deixa de esconder seu garantismo quando o assunto é tolher a  liberdade do outro. Para o autor, tão somente uma ameaça real às instituições e às  liberdades dos demais autorizaria uma repressão estatal mais contundente contra os  intolerantes: 

A conclusão, portanto, é que, embora a seita intolerante não tenha,  ela mesma, o direito de reclamar da intolerância, sua liberdade só  deve ser restringida quando os tolerantes com sinceridade e razão,  acreditarem que sua própria segurança, e a segurança das  instituições da liberdade, estiverem em perigo. Só nesses casos devem os tolerantes coibir os intolerantes. 

Para Rawls, não se trata de suprimir as liberdades de uns para aumentar as  liberdades de outros. Isso o direito veda. O que o filósofo pretende expor é que, em  situações em que a própria existência do Estado e suas instituições, bem como as  liberdades individuais, estejam em risco, o princípio da autopreservação irá superar  o da tolerância. A única liberdade, segundo o autor, a ser restringida numa  sociedade justa é a do intolerante. “A liberdade é regida pelas condições  necessárias da própria liberdade”24. Deste modo, o autor faz uma ponderação de  valores e conclui que para a própria existência da liberdade, ela não pode ser plena  em todas as situações. 

Fechando o quadro de pensadores, Michael Walzer25, antropólogo e  historiador, traz uma interessante reflexão acerca da tolerância em seu livro “Da  tolerância”. Inicia sua obra falando que “argumentar que se deve permitir a  coexistência pacífica de grupos e/ou indivíduos diferentes não é argumentar que se  devem tolerar todas as diferenças concretas ou imagináveis”. O autor pretende  demonstrar que nem toda diferença deve ser aceita na sociedade, e ressalta que é  muito difícil identificar em que momento ideias ou movimentos intolerantes devem  ser repreendidos: 

As questões de intolerância surgem muito mais cedo, antes mesmo  de o poder estar em jogo, quando se formam as comunidades  religiosas ou os movimentos ideológicos que geram tal partido.  
Naquele estágio, seus membros simplesmente vivem entre nós,  sendo diferentes de forma iliberal e antidemocrática. Deveríamos  tolerar seus ensinamentos e atividades? Se à resposta for afirmativa  (como creio), até que ponto deveria chegar nossa tolerância?26 

O autor faz um destaque importante à intolerância institucionalizada ou  formalmente representada, que seriam os casos de religiões, agremiações ou  partidos. Quando a intolerância chega a esse nível de organização, a própria  existência da democracia é colocada em risco, pois abre-se a possibilidade da  intolerância chegar ao poder – em destaque aos partidos políticos. Assim pondera: 

A democracia exige ainda uma outra separação, uma que não é bem  entendida: a da própria política em relação ao Estado. Os partidos  políticos competem pelo poder e lutam para pôr em prática um  programa que é, digamos, talhado por uma ideologia. Mas O partido  vencedor, embora possa transformar sua ideologia num conjunto de  leis, não pode transformá-la no credo oficial da religião civil. Não  pode declarar o dia de sua ascensão ao poder feriado nacional,  insistir em que a história do partido seja uma disciplina obrigatória  nas escolas públicas, ou usar o poder do Estado para banir as  publicações ou assembleias de outros partidos”. Isso é o que  acontece em regimes totalitários, e é exatamente análogo à  oficialização política de uma igreja monolítica única27

É preciso ressaltar que, assim como John Rawls, Walzer28 é um fervoroso  defensor da tolerância, pois “o objetivo da tolerância não é, e nunca foi, o de abolir o  ‘nós’ e o ‘eles’ (e com certeza não é o de abolir o ‘eu’), mas o de garantir a  continuidade de sua coexistência e interação pacíficas”. 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Ante as ideias trabalhadas acima, Levitsky e Ziblatt, ao defenderem a  tolerância mútua, permitem que movimentos ideológicos, que propõe o próprio fim  da democracia, tenham o caminho livre para chegar ao poder. Restou claro que a  liberdade de expressão sem limites tem potencial de enfraquecer as democracias e  suas instituições. Ao regime resta seu poder de autopreservação que perpassara por  tolher a liberdade de certos indivíduos – os intolerantes. 

Acredita-se que todos são orientados por uma base ideológica. A grande  questão é saber se esta base é inclusiva ou exclusiva; se propõe ou não a negativa  de direitos ao outro. Este tipo parâmetro visa impedir que a liberdade de expressão  seja usada para justificar movimentos antidemocráticos, como, por exemplo, os de  supremacistas brancos, que pregam a negativa de direitos a pessoas negras. Em vários lugares do mundo cresce o número de democracias que enfrentam certa  instabilidade política e social. Em um movimento quase que cíclico, grupos políticos  de extrema direita voltam a ocupar cargos na democracia e a ameaçar certos grupos  sociais, havendo necessária reação estatal. 

A solução para este problema é, talvez, o sopesamento dos princípios da  autopreservação e liberdade de expressão, com o fito de verificar qual deles teria  maior peso e deveria se sobressair em relação ao outro, ou seja, qual medida da  liberdade de expressão seria suprimida para que a democracia se preservasse. 

Mas, como bem ressaltou Walzer, a questão mais dificultosa de tal  empreendimento é saber quando a liberdade deverá ser tolhida. Se tomarmos como  exemplo um indivíduo que, em suas intimas convicções, admira e tem como ideal as  atitudes e ações defendidas por Hitler, não pode ele ser obrigado pelo Estado a  pensar diferente, no mínimo terá que ser ouvinte de argumentações contrárias a  suas convicções. No entanto, a partir do momento que este indivíduo se associa a  outros simpatizantes de suas ideias e cria um movimento organizado, civilmente,  para expor seus pensamentos e pôr em prática suas visões de mundo – que não  incluem outros indivíduos que pensam diferente –, creia-se haver clara permissão  para reprimenda estatal. Não é razoável esperar que a Democracia esteja à beira de  um colapso para que medidas nada populares sejam implementadas.  

A tolerância mútua deve existir, principalmente, em relações interpessoais.  Onde convicções intimas podem ser debatidas e o único mal ser o mero dissabor do contraditório. Mas a tolerância com os intolerantes não deve ser mútua quando a  mesma é organizada e institucionalizada. Não há espaço para tolerar um partido que  defende a volta da ditadura, perseguição a casais homoafetivos ou que defende a  negativa de direitos a determinados grupos e segmentos sociais. É uma cautela que  pode parecer autoritária num primeiro momento, mas é talvez uma das formas mais  seguras de garantir a democracia. 


2 LOCKE, J. Carta sobre a Tolerância. Tradução de F. Fortes, W. Ferreira Lima. Organização,  introdução, revisão técnica, notas e comentários F F. Loque. Belo Horizonte: Autêntica, 2019, p. 02.

3 VOLTAIRE. Tratado sobre Tolerância. Traité sur la tolérance: a l’occasion de la mort de Jean Calas (1763). Tradução de William Lagos. Coleção L&PM E-books. 

4 UNESCO. Declaração de princípios sobre a tolerância. 1997, p. 11. Disponível em:  https://www.oas.org/dil/port/1995%20Declara%C3%A7%C3%A3o%20de%20Princ%C3%ADpios%20sobre%20a%20Toler%C3%A2ncia%20da%20UNESCO.pdf. Acesso em: 17 ago. 2024.

5 LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Rio de Janeiro: Zahar,  2018, p. 103.

6 LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Rio de Janeiro: Zahar,  2018, p. 20. 

7 A tolerância mútua é abordada pelos autores tanto como uma regra tradicional da política norte  americana, como uma das grades de proteção necessárias à preservação das democracias nas  crises institucionais atuais. 

8 LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Rio de Janeiro: Zahar,  2018, p. 20. 

9 STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: A política do “nós” e “eles”. Tradução de Bruno  Alexander. Porto Alegre: L&PM Editores, 2018. E-book. 

10 Segundo o referido autor, a última expansão democrática experimentada pelo mundo foi a  primavera árabe (DIAMOND, Larry. O Espírito da Democracia. São Paulo: AtuaÇÃo, 2015).

11 KANT, Immanuel. A Religião nos Limites da Simples Razão. São Paulo: Edições 70, 2008.  Importante destacar que a ideia de mal radical é trabalhado por Hannah Arendt em sua obra “Origens  do Totalitarismo” e o termo banalidade do mal é melhor trabalho em sua celebre obra “Eichmann em  Jerusalém” (ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013; ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade  do mal. Tradução de J. R. Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2000). Basicamente a diferença reside no fato de que, na primeira obra ela busca fazer um contraponto com  o mal absoluto/maligno de Kant e já na segunda obra ela dispensa essa busca epistemológica e  passa a estudar o mal despregado de suas raízes com o maligno: abdicação de pensar e refletir.

12 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de J. R.  Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 299. 

13 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de J. R.  Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 167. 

14 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de J. R.  Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 167.

15 POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo  Horizonte: Ed. Itatiaia, 1974, p. 289. 

16 POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo  Horizonte: Ed. Itatiaia, 1974, p. 289.

17 O presidente Bolsonaro disse vários comentários contrários a vacinação, dentre eles: “Ninguém pode obrigar ninguém a tomar a vacina. Eu não vou tomar. Já peguei o vírus. Já tenho  anticorpos. Por que me vacinar de novo?” (Bolsonaro, em discurso em Porto Seguro, Bahia, 17 dez.  2020). “Se você pegar e virar jacaré, o problema é seu. Se virar super-homem, se mulher deixar crescer  barba ou homem falar enfim, ela Pfizer não tem nada a ver com isso” (Bolsonaro, no mesmo  discurso, ao dizer que a Pfizer, uma das fabricantes mundiais de vacinas contra a doença, não se  responsabiliza pelos efeitos colaterais 17 dez. 2020). 

18 POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo  Horizonte: Ed. Itatiaia, 1974, p. 290. 

19 POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo  Horizonte: Ed. Itatiaia, 1974, p. 290. 

20 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2019. 

21 Ao analisar os princípios da justiça no segundo capítulo de seu livro, Rawls elenca as principais  liberdade: “Liberdade política (direito de votar e de ocupar uma função pública), liberdade de 

20 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2019. 

21 Ao analisar os princípios da justiça no segundo capítulo de seu livro, Rawls elenca as principais  liberdade: “Liberdade política (direito de votar e de ocupar uma função pública), liberdade de expressão e de reunião; liberdade de consciência e de pensamento; as liberdades da pessoa  (proteção contra a opressão psicológica e agressão física; direito à propriedade privada e a proteção  contra a prisão e detenção arbitrárias)” (RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins  Fontes, 2019, p. 65). 

22 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2019, p. 269.

23 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2019, p. 269.

24 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2019, p. 269.

25 WALZER, Michael. Da tolerância. Tradução de Almiro Pisetta. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.09.

26 WALZER, Michael. Da tolerância. Tradução de Almiro Pisetta. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 14. 

27 WALZER, Michael. Da tolerância. Tradução de Almiro Pisetta. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 106. 

28 WALZER, Michael. Da tolerância. Tradução de Almiro Pisetta. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 120.


REFERÊNCIAS  

ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de J. R. Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.  

______. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013. 

DIAMOND, Larry. O Espírito da Democracia. São Paulo: AtuaÇÃo, 2015 

KANT, Immanuel. A Religião nos Limites da Simples Razão. São Paulo: Edições 70, 2008. 

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Rio de  Janeiro: Zahar, 2018. 

LOCKE, J. Carta sobre a Tolerância. Tradução de F. Fortes, W. Ferreira Lima.  Organização, introdução, revisão técnica, notas e comentários F F. Loque. Belo  Horizonte: Autêntica, 2019. 

POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton  Amado. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1974. 

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2019. 

STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: A política do “nós” e “eles”.  Tradução de Bruno Alexander. Porto Alegre: L&PM Editores, 2018. E-book.

UNESCO. Declaração de princípios sobre a tolerância. 1997. Disponível em:  https://www.oas.org/dil/port/1995%20Declara%C3%A7%C3%A3o%20de%20Princ% C3%ADpios%20sobre%20a%20Toler%C3%A2ncia%20da%20UNESCO.pdf. Acesso  em: 17 ago. 2024. 

VOLTAIRE. Tratado sobre Tolerância. Traité sur la tolérance: a l’occasion de la  mort de Jean Calas (1763). Tradução de William Lagos. Coleção L&PM E-books. 

WALZER, Michael. Da tolerância. Tradução de Almiro Pisetta. São Paulo: Martins  Fontes, 1999.


1Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Processo Penal, atuando  principalmente nos seguintes temas: defesa técnica, princípios norteadores do direito penal,  divergências de defesas, garantismo penal, réu e direito penal do inimigo. Tem fluência em inglês e  compreende bem francês.