REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7106164
Autores:
MESQUITA, Ana Carolina de Araújo,
SOUZA, Fernando Paulino Gomes Soares,
LAGE, Vanessa Harb.
RESUMO
Trata-se de trabalho elaborado com o objetivo de analisar, de forma crítica, o tratamento dado pelo legislador brasileiro aos crimes hediondos e equiparados e sua íntima relação com a seletividade penal, que incide de forma mais severa em relação às camadas mais vulneráveis da sociedade. Para isso, será realizado um breve estudo histórico dos discursos criminológicos, quando então se verificará a presença de resquícios de um tratamento diferenciado no ordenamento brasileiro e sua ligação com o direito penal do inimigo.
Palavras-chave: Crimes hediondos e equiparados. Seletividade penal. Discursos criminológicos. Direito penal do inimigo.
ABSTRACT
This is a work prepared with the objective of critically analyzing the treatment given by the Brazilian legislator to heinous and similar crimes and their intimate relationship with criminal selectivity, which affects more severely in relation to the most vulnerable strata of society. . For this, a brief historical study of criminological discourses will be carried out, when the presence of remnants of a differentiated treatment in the Brazilian legal system and its connection with the enemy’s criminal law will be verified.
Keywords: Heinous and similar crimes. Penal selectivity. Criminological discourses. Criminal law of the enemy.
INTRODUÇÃO
O presente texto visa analisar, de forma crítica, o tratamento dado aos crimes hediondos e equiparados, partindo do conceito de seletividade penal, que incide de forma mais severa em relação às camadas mais vulnerabilizadas da sociedade.
No primeiro capítulo, busca-se situar o artigo no âmbito da Criminologia crítica, bem como se filiar à doutrina que identifica o início dos discursos criminológicos no momento histórico da Inquisição, no século XIII. Isso, porque desde então já havia uma produção de um saber criminológico, sendo o “Malleus Maleficarum” o primeiro livro da Criminologia. Tal marco é importante para o desenrolar do texto, porque a partir dele é que se desenvolve um discurso de alteridade, em que há a diferenciação do “outro”.
No segundo capítulo, analisar-se-ão as permanências dessa construção diferenciada. Serão observadas as disposições legais atinentes ao tratamento distinto dado aos crimes hediondos pelo ordenamento jurídico pátrio, desde o mandado de criminalização constitucional previsto no art. 5º da Constituição Federal de 88, até as disposições específicas da Lei de Crimes Hediondos e da Lei de Execução Penal. Posteriormente, será realizada uma crítica à seletividade penal, que incide, majoritariamente, sobre corpos negros.
No terceiro capítulo, discorrer-se-á sobre a Teoria do Direito Penal do Inimigo de Gunther Jakobs, a qual se relaciona com o saber produzido na Inquisição, por destacar as características de um sujeito nocivo.
Por derradeiro, poder-se-á observar a íntima relação entre seletividade penal e Direito Penal do Inimigo, sob uma perspectiva crítica.
Este artigo fundamentar-se-á na metodologia de pesquisa bibliográfica, bem como análise de dados quantitativos. Serão utilizados artigos, livros e leis que versam sobre o tema, bem como dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen, 2021), no que se relacionam ao tema proposto, como referência para ilustrar as posteriores conclusões.
Origem dos discursos criminológicos: a construção do outro
Inicialmente, fazem-se necessários breves apontamentos acerca do objeto e marco inicial da criminologia, a fim de alinhar o presente artigo a marcos teóricos determinados. De acordo com Vera Malaguti Batista, o objeto de estudo da criminologia é o curso dos discursos criminológicos. Diz-se curso, pois não se trata de uma história linear ou evolução de teorias: a trajetória da criminologia é a de acumulação de discursos. Nesse sentido, pode-se afirmar que uma teoria não é superada pela sua sucessora, nem tampouco a antecedente não mais se relaciona com a realidade de dada sociedade. Há, em verdade, rupturas, mas também permanências – e é isso que deve ser observado no estudo.
No século XIX, as escolas clássica e positivistas classificavam o crime como ente jurídico e ente de fato, respectivamente. Posteriormente, com a mudança do paradigma etiológico para o da reação social, observou-se que o crime é construído socialmente, não devendo este ser visto “como algo ontológico, que teria aparecido na natureza como os peixes, os abacates e as esmeraldas” (MALAGUTI, 2009).
Enquanto alguns autores sinalizam que o início dos estudos criminológicos se dá com o Iluminismo, na virada do século XIX para o XX (BARATTA, 2002), Eugenio Raul Zaffaroni, Gabriel Ignacio Anitua e Vera Malaguti Batista apontam que a criminologia já seria esboçada no século XIII. Nesse sentido, Anitua aduz que a Inquisição foi a primeira agência burocratizada dominante destinada à aplicação de castigos e à definição de verdades, e por isso seria a primeira a formular um discurso de tipo criminológico (ANITUA, 2008)1.
Para esses autores, é nos primórdios da Inquisição que se tem início o curso dos discursos criminológicos. A princípio, para compreendermos essa afirmação, é preciso entender a demanda por ordem da sociedade nesse momento histórico (MALAGUTI apud PAVARINI): o século XIII representa um momento de verticalização do Estado, no qual há acumulação e centralização de poder nas mãos da Igreja Católica.
É nesse contexto que há o confisco do conflito pelo Estado: “mais do que usurpar a função jurisdicional, o Estado e o Direito – o rei e seus juristas especializados – apropriaram-se das relações de poder interpessoais, do próprio conflito” (ANITUA, 2008). De acordo com Malaguti:
A partir de Foucault, Zaffaroni trabalha a criminologia como uma questão política que provém do século XIII, na conjuntura do início do processo de centralização do poder da Igreja e do Estado, do processo de acumulação de capital e com o aparecimento do poder punitivo que começa operar a tradução da conflitividade e da violência no sentido do “criminal”.
A questão criminal se relaciona então com a posição de poder e as necessidades de ordem de uma determinada classe social. Assim, a criminologia e política criminal surgem como um eixo específico de racionalização, um saber/poder a serviço da acumulação de capital. A história da criminologia está, assim, intimamente ligada à história do desenvolvimento do capitalismo.
É nesta cadência, nesse baião de Marx com Foucault, que a criminologia crítica, em especial a de Zaffaroni, trabalha o século XIII como um marco na mudança das relações de poder. A Inquisição impõe o confisco do conflito à vitima, que se torna apenas uma figura secundária na ascensão do poder punitivo. Esse processo político institui um método para a busca da verdade, que se constituirá numa permanência subjetiva do Ocidente. Este método pressupõe uma averiguação, numa relação de força entre quem exerce o poder e o objeto estudado. Este eixo racionalizante é composto pela articulação entre um discurso médico e um discurso jurídico desenvolvido através de técnicas de domínio sobre o objeto “averiguado”. Os manuais dos inquisidores são testemunhos dessas técnicas de apuração da “verdade” (MALAGUTI, 2011). 2
Nesse cenário, a definição de delito necessitava da junção de um saber médico para retirar o punctum diabolicum, etiologia de todo o mal, com o jurídico, burocraticamente organizado no tribunal jurídico-teleológico da Inquisição. Desse modo, antecedendo em 700 anos Cesare Lombroso e os estudos da frenologia, o estudo dos crânios, já havia, no século XIII, a junção de um saber médico-jurídico, além do discurso religioso, como forma de controle de corpos, principalmente femininos.
De acordo com Zaffaroni, o Malleus Maleficarum (o Martelo das Feiticeiras), o mais famoso tratado de demonologia, é o primeiro livro de criminologia. Escrito para explicar os poderes dos demônios e das bruxas, o documento “insistiu na propensão das mulheres ao pacto demoníaco e contribuiu para tornar a bruxaria um delito, predominantemente feminino” (SILVA, 2013). Conforme aduz Soraia da Rosa Mendes, citando Anitua e Lola Aniyar Castro:
Os manuais de inquisidores, em especial o Martelo, eram, portanto, uma compilação de crenças na alardeada propensão, quase que exclusiva, da mulher ao delito. E, a partir dessa “teoria” o poder punitivo consubstancia-se de modo a reforçar seu poder burocrático, e a reprimir a dissidência, principalmente, as mulheres (ANITUA, 2008). Em síntese, o perigo que as bruxas representavam justificava a resposta punitiva adotada, orientada para a sua eliminação (ANIYAR CASTRO, 2010, p. 36). (MENDES, Soraia da Rosa, Criminologia Feminista, pgs. 23 e 24).
Assim, antes mesmo do pretenso pai da criminologia, Lombroso, e a famosa tipologia de indivíduos propensos à “criminalidade”, o Malleus apontava o caminho das criminalizações e identificava o corpo feminino como criminalizável. Sobre isso, Zaffaroni afirma:
Não há dúvidas de que o livro, em que, pela primeira vez, se expôs um sistema integrado de criminologia etiológica, direito penal, processo penal e criminalística, como um todo orgânico, foi uma enorme técnica de neutralização amplamente usada na Europa medieval e moderna para sacrificar milhares de mulheres e reafirmar o patriarcado. (ZAFFARONI, 2012, p. 13, tradução livre)3
A exegese inquisitória trazia a ideia do delito como pecado, a confissão como forma de expurgar a culpa e a desumanização do criminoso pela criação de um discurso de alteridade – do outro, o herege, a bruxa, os subversivos. Tudo isso, de acordo com o autor argentino, produziu certo pensamento criminológico orientado pela Igreja Católica, instituição que determinava os contornos dos criminalizáveis e das criminalizações. De acordo com Malaguti, “se a criminologia corre o risco de ser “saber e arte de despejar discursos perigosistas”, conhecer o eixo dos medos é traçar o caminho das criminalizações e dos criminalizáveis” (MALAGUTI, 2011, p. 24).4
Além de um discurso, a Inquisição foi, em si, uma grande técnica de neutralização (ZAFFARONI, 2012). São articuladas técnicas de domínio para coisificar a “bruxa” e o “herege”, dentre elas as construções da identidade “criminal” e incorporação de identidades “criminosas” (MALAGUTI, 2011, p. 24).
Não só a Inquisição marca o primeiro momento do curso dos discursos criminológicos, como é possível identificar no nosso ordenamento jurídico pátrio algumas permanências. No presente trabalho, destacaremos o tratamento diferenciado atribuído aos crimes hediondos e equiparados e a influência da Teoria do Direito Penal do Inimigo, de Gunther Jakobs.
Tratamento mais gravoso dado aos crimes hediondos e equiparados: análise legal e crítica
“Hediondo”, conforme dicionário, é descrito como algo que provoca horror, causa repulsa e grande indignação moral. Assim, pode-se dizer que os crimes hediondos e os equiparados a eles são crimes considerados pelo legislador como especialmente graves, que ferem a dignidade humana, causando grande comoção e reprovação da sociedade.
A Constituição Federal de 1988 trouxe, no art. 5º, XLIII, um mandado de criminalização dos crimes hediondos, mas relegou ao legislador infraconstitucional a definição de um rol específico, o que foi efetivamente realizado pelo art. 1º da Lei 8.072/90. Com ele, o legislador brasileiro adotou o sistema legal, de forma que são considerados hediondos aqueles delitos que estão previstos no art. 1º da Lei nº 8.072/90. Vejamos:
Art. 1o São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados:
I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII e IX);
I-A – lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2o) e lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3o), quando praticadas contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição;
II – roubo:
a) circunstanciado pela restrição de liberdade da vítima (art. 157, § 2º, inciso V);
b) circunstanciado pelo emprego de arma de fogo (art. 157, § 2º-A, inciso I) ou pelo emprego de arma de fogo de uso proibido ou restrito (art. 157, § 2º-B);
c) qualificado pelo resultado lesão corporal grave ou morte (art. 157, § 3º);
III – extorsão qualificada pela restrição da liberdade da vítima, ocorrência de lesão corporal ou morte (art. 158, § 3º);
IV – extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ lo, 2o e 3o);
V – estupro (art. 213, caput e §§ 1o e 2o);
VI – estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1o, 2o, 3o e 4o);
VII – epidemia com resultado morte (art. 267, § 1o).
VII-A – (VETADO)
VII-B – falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B, com a redação dada pela Lei no 9.677, de 2 de julho de 1998).
VIII – favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º).
IX – furto qualificado pelo emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum (art. 155, § 4º-A). (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
Parágrafo único. Consideram-se também hediondos, tentados ou consumados:
I – o crime de genocídio, previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956;
II – o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
III – o crime de comércio ilegal de armas de fogo, previsto no art. 17 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
IV – o crime de tráfico internacional de arma de fogo, acessório ou munição, previsto no art. 18 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
V – o crime de organização criminosa, quando direcionado à prática de crime hediondo ou equiparado.
(…)
Quanto aos crimes equiparados a hediondos, a previsão veio na própria Constituição Federal de 1988, que considerou como tais a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo, determinando, ainda, um tratamento diferenciado (mas idêntico aos crimes hediondos) em relação aos delitos comuns:
Art. 5º. (…)
XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
Assim, conforme CRFB/1988, é vedado aos crimes hediondos e equiparados a concessão de fiança, graça e anistia, havendo proibição ainda do indulto, por parte da Lei 8.072/90, que nada mais é do que uma graça coletiva:
Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:
I – anistia, graça e indulto;
II – fiança.
É certo que a grande diferenciação entre o tratamento dos crimes comuns e crimes hediondos e equiparados se dá no âmbito da execução penal. No que se refere à progressão de regime, antes da Lei nº 13.964/19, seria necessário que o condenado cumprisse ao menos 2/5 da pena, se primário, ou 3/5, se reincidente, conforme previsão na Lei de Crimes Hediondos. Com a edição do Pacote Anticrime, houve uma alteração substancial dos prazos de progressão de regime, estando todos previstos, atualmente, na Lei nº 7.210/84:
Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos:
I – 16% (dezesseis por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça;
II – 20% (vinte por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça;
III – 25% (vinte e cinco por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido com violência à pessoa ou grave ameaça;
IV – 30% (trinta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça;
V – 40% (quarenta por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, se for primário;
VI – 50% (cinquenta por cento) da pena, se o apenado for:
a) condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário, vedado o livramento condicional;
b) condenado por exercer o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado; ou
c) condenado pela prática do crime de constituição de milícia privada;
VII – 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado;
VIII – 70% (setenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional.
(…)
Assim, o condenado por crime hediondo ou equiparado deverá cumprir, pelo menos, 40% ou 50% da pena, se primário, e 60% ou 70%, se reincidente, a depender do resultado do delito (com ou sem morte), em ambos os casos.
Quanto ao livramento condicional, prevê o Código Penal a necessidade de o condenado cumprir mais de 2/3 da pena, sendo vedado o benefício ao reincidente específico:
Art. 83 – O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, desde que:
I – cumprida mais de um terço da pena se o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes;
II – cumprida mais da metade se o condenado for reincidente em crime doloso;
III – comprovado:
bom comportamento durante a execução da pena;
b) não cometimento de falta grave nos últimos 12 (doze) meses;
c) bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído; e
d) aptidão para prover a própria subsistência mediante trabalho honesto;
IV – tenha reparado, salvo efetiva impossibilidade de fazê-lo, o dano causado pela infração;
V – cumpridos mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, tráfico de pessoas e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza.
(…)
Por fim, em relação à saída temporária, o Pacote Anticrime passou a vedar tal benefício também ao condenado que cumpre pena por crime hediondo com resultado morte:
Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semi-aberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos:
(…)
§ 2º Não terá direito à saída temporária a que se refere o caput deste artigo o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo com resultado morte.
Passada esta breve análise do ordenamento jurídico, é necessário tecer algumas críticas. O estabelecimento de hipóteses taxativas de certos crimes a serem considerados como hediondos pode, a uma primeira vista, ser considerada neutra, mas não é. Uma análise mais cautelosa da previsão legal demonstra que a seletividade penal opera, de forma notável, no art. 1º da Lei nº 8.072/90.
O sistema de justiça penal nasce baseado na premissa de uma igualdade formal: as condutas tipificadas atingiriam de forma igualitária aqueles que as praticassem. No entanto, a impunidade e os processos de criminalização são orientados pela seleção desigual das pessoas, de acordo com estereótipos marcados, presentes no senso comum e nos operadores do controle penal. Essa seletividade tem nos marcadores sociais e raciais o seu norte.
Primeiramente, a seletividade pode operar a nível de criminalização primária ou secundária. A criminalização primária consiste no efetivo sancionar de uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas. Está relacionada diretamente à escolha dos bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito Penal. Já a criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas. Segundo Nilo Batista, as agências de criminalização, ao decidirem quem serão as pessoas criminalizadas e as vítimas potenciais protegidas, operam seletivamente. E como é realizada essa seleção? Conforme Lola Aniyar de Castro:
“O sistema de classes influi nos processos de criminalização. Três são as vias habituais para fazê-lo:
1- criminalizam-se condutas que pertencem, preferentemente, à maneira e às condutas de vida dos setores marginais;
2- criminalizam-se indivíduos, preferentemente, pertencentes a estes setores, assim como os que pertencem a grupos subculturais desprovidos de poder (negros, índios, jovens não conformistas), quando a polícia dirige sua atenção e seus recursos, precisamente, para esses indivíduos; e
3- outra forma de criminalização ocorre através do tipo de tratamento ou de sanção selecionada”.
E é exatamente isso que ocorre com os crimes hediondos: há uma criminalização diferenciada, mais gravosa, aos setores marginalizados. O sistema penal opera de forma seletiva e se retroalimenta das desigualdades sociais. De um lado, dados do Infopen (2021) apontam que a maior parte dos presos cumpre pena em relação a delitos patrimoniais (furto e roubo) e ao tráfico de drogas. Do outro, os mesmos dados apontam que a população carcerária brasileira totaliza 749,2 mil pessoas, sendo a maioria (67,5%) negra. Não de forma ocasional, a modalidade de roubo que mais encarcera (roubo circunstanciado pelo emprego de arma de fogo), dentre outras, é considerada hedionda, bem como há o mandado de equiparação do tráfico.
Como constatação da retroalimentação da estrutura, o Infopen apontou que, nos últimos anos, houve um aumento na quantidade de pessoas negras encarceradas, e uma redução das pessoas brancas. Isso, porque o tratamento mais gravoso dado aos crimes hediondos faz com que as pessoas condenadas por essas infrações sejam ainda mais estigmatizadas pelo sistema penal. Segundo Michel Misse, com o estigma pode vir a ocorrer o fenômeno da sujeição criminal. O sociólogo aduz que, quando uma pessoa é rotulada como criminosa e a ela é atribuída um continuum em praticar delitos, ela pode assumir para si essa identidade criminal que sempre lhe foi apontada. Podemos encarar essa construção como tendo por base a ideia de Howard Becker, de que o rótulo não serve só para efetivamente colocar as pessoas no lugar da rotulação, mas também para fazer com que elas mergulhem na situação de vulnerabilização. Conforme Misse:
É importante frisar que a sujeição criminal é o resultado, numa categoria social de indivíduos, de um processo social de constituição de subjetividades, identidades e subculturas do qual participam como fatores: 1) designações sociais que produzem uma específica “exclusão criminal” (através de acusações e incriminações) de agentes que caiam na classificação social do que seja delito (crime ou contravenção); 2) atribuições ao agente (baseada na crença de que sua trajetória confirma, nesse caso, regras sociais de experiência) de uma tendência a praticar crimes, isto é, de seguir um curso de ação incriminável, geralmente com a expectativa de que esse curso de ação venha a ter (ou já tenha) regularidade; 3) autorrepresentações, no agente, ou representações nos seus familiares, ou mesmo nos seus grupos de referência ou na comunidade em que vive, que ora demandam ou tentam “justificar” ou “explicar” suas práticas e escolhas individuais, ora as atribuem à sua singularidade ou concluem pela impossibilidade dessa justificação. A inexistência de quaisquer dessas dimensões exclui um agente da situação de sujeição criminal, mas não necessariamente da incriminação. Indivíduos que são eventualmente incriminados podem não incorporar (ou não serem socialmente incorporados) na sujeição criminal. As práticas criminais não produzem sempre sujeição criminal. (MISSE, Michel)5
Assim, pode-se afirmar que a sujeição criminal está diretamente relacionada a um processo social de constituição de subjetividades, identidades e subculturas. Dele faz parte a atribuição de um estigma de criminoso, que é visto como um inimigo da sociedade, a fim de justificar um tratamento diferenciado. Assim, no próximo capítulo veremos de forma mais aprofundada como se dá, atualmente, a construção da figura do inimigo.
Direito Penal do Inimigo
A Teoria do Direito Penal do Inimigo foi desenvolvida por Gunther Jakobs em meados da década de 1990 e está diretamente ligada ao discurso criminológico da alteridade, da construção do outro. Primeiramente, por essa teoria estar inserida no âmbito do funcionalismo sistêmico desenvolvido pelo autor, é fundamental entender antes do que se trata este. Somente depois poder-se-á compreender o papel que cumpre a teoria ora em análise dentro do modelo funcional radical da pena estruturado pelo jurista alemão.
O funcionalismo sistêmico de Jakobs consiste em modelo teórico de conceituação do direito penal, o qual é marcado pela radicalização do critério funcional, de forma que os critérios exigidos para a estruturação do sistema penal se encontram dentro do próprio sistema, não sendo submetidos a limites extrínsecos.
Jakobs acredita que o direito penal é um sistema fechado, auto estruturante, e pautado pela chamada função preventiva geral positiva da pena. O autor acredita que o objetivo da pena é de tão somente de restabelecer a vigência da norma, a qual teria sido atacada pela ação contrária a norma jurídica.
Assim, para o autor, a pena não deve ser entendida por uma perspectiva de retribuição ao indivíduo que pratica o delito, tampouco deve o sistema penal buscar a ressocialização do condenado, mas deve tão somente buscar reafirmar a legitimidade e vigência da norma, uma vez que o Estado e a sociedade são estruturados e dependentes de um complexo normativo positivado.
O modelo teórico funcional sustentado por Jakobs é de tamanha extremidade, que o autor entende que o único bem jurídico a ser digno de tutela pelo direito penal é a própria validade fática das normas. Neste sentido discorre Cezar Roberto Bitencourt:
“Jakobs, quando, por exemplo, faz alusão ao objeto de proteção do Direito Penal no crime de homicídio, argumenta que a provocação da morte não constitui propriamente a lesão do bem jurídico-penal, mas tão só a lesão de um bem. Em sua ótica, a conduta de matar aquire sentido para o Direito Penal, não porque lesa o bem vida, mas na medida em que representa uma oposição à norma subjacente do delito de homicídio.”. Bitencourt, 2017, p. 136.
É através do desenvolvimento de seu modelo funcional radical, o qual segundo o autor é orientado pela pretensão de reafirmar a legitimidade das normas e por conseguinte do próprio Estado e da sociedade, é que Jakobs chega ao conceito de direito penal do autor.
Jakobs, por meio desta alcunha, visa separar o direito penal do cidadão, sendo este aplicado ao chamado cidadão de bem, do direito penal do inimigo, o qual seria aplicado ao chamado criminoso habitual. Enquanto o cidadão teria direito a observância de todas as garantias e princípios fundamentais do processo penal, o inimigo não gozaria destes direitos, uma vez que seriam entendidos como verdadeiros inimigos do Estado.
O Direito Penal do Inimigo, portanto, permite a aplicação de regras distintas conforme a pessoa do acusado. Assim, a sociedade estaria separada em dois grandes grupos, os cidadãos, que com ela contribuem positivamente e os inimigos, que representariam um perigo à sociedade, e que, portanto, deveriam ser extirpados. Trata-se da normalização pelo autor de regramentos característicos de um estado de guerra, a qual, contudo, só seria travada contra uma parcela da sociedade.
Por mais que a teoria de Jakobs seja claramente incompatível com um estado democrático de direito, o Estado brasileiro não é estranho a sua implementação. São diversos os exemplos encontrados tanto na legislação formal, como é o caso da lei de crimes hediondos, das organizações criminosas, quanto na atuação cotidiana dos agentes de segurança pública, os quais atuam de forma desproporcionalmente violenta contra pessoas que possuem marcadores sociais vulnerabilizantes, atuação que se encontra inserida em uma perspectiva de racismo interseccional e estrutural.
Considerações finais
O direito penal do autor nada mais é do que uma construção teórica que visa justificar a seletividade penal, símbolo do direito penal nacional. O direito penal brasileiro sempre fora e segue sendo importantíssimo instrumento de manutenção de desigualdade social e do racismo estrutural, trazendo penas muito mais severas aos chamados crimes hediondos e equiparados, os quais estão inseridos no escopo da criminalidade comum, cometida pelas classes mais desfavorecidas. Ao passo que os crimes de colarinho branco, por exemplo, cometidos em sua maioria pelas classes mais abastadas, contam com penas muito mais baixas.
A seletividade penal, a qual traz punições desproporcionais às classes marginalizadas, taxadas pelo sistema penal e pela própria sociedade como inimigos, é resultado de séculos de opressão social e de uma deliberada cegueira racial e de classe por parte do Poder Legislativo, aliadas à conivência dos operadores do direito.
Destarte, é imperiosa a extirpação do ordenamento jurídico nacional e da própria sociedade de qualquer resquício de aplicação do direito penal do autor. Isso, porque ele é absolutamente incompatível com os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade como forma de não discriminação, do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição Federal.
Contudo, é preciso ressaltar que o Direito Penal é apenas um instrumento de opressão. A alteração do panorama atual de exacerbado punitivismo direcionado às classes mais vulnerabilizadas depende de uma mudança estrutural de paradigma. A sociedade, o Poder Legislativo e os operadores do direito devem deixar de encarar a pena como solução de problemas e passar a encará-la como um sintoma de um Estado desigual e omisso, como ela realmente o é.
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1 ANITUA, Gabriel Ignacio, História dos Pensamentos Criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 54
2 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 23.
3 “Pocas dudas caben acerca de que el libro en que por vez primera se expuso un sistema integrado de criminología etiológica, derecho penal y procesal penal y criminalística como un todo orgánico, fue una enorme técnica de neutralización busada profusamente en la Europa medieval y moderna para sacrificar a muchos miles de mujeres y reafirmar el patriarcado”.
4 BATISTA, Vera Malaguti. CRIMINOLOGIA E POLÍTICA CRIMINAL em: Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, Rio de Janeiro: vol. 1. no.2, julho/dezembro 2009, p. 20-39.
5 https://www.scielo.br/j/ln/a/sv7ZDmyGK9RymzJ47rD5jCx/?lang=pt