REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7101154
Autores:
SOUZA, Fernando Paulino Gomes Soares
LAGE, Vanessa Harb
MESQUITA, Ana Carolina de Araújo
RESUMO
O presente trabalho se dispõe a retratar a importância da audiência de custódia, instituto que apesar de ter sido apenas recentemente implementado no ordenamento jurídico brasileiro, já assume papel de extrema relevância para a salvaguarda dos direitos fundamentais do preso. Para esta análise, se faz necessário verificar a evolução histórica do instituto, desde sua origem em normas internacionais, entrada no ordenamento jurídico pátrio e atual estágio de desenvolvimento. Posteriormente cabe uma reflexão, à luz do escopo deste ato processual, quanto a sua incompatibilidade com o método de efetivação à distância.
Palavras-chave: Audiência de Custódia; Tratados Internacionais de Direitos Humanos; Direitos Fundamentais; Garantias; Videoconferência.
ABSTRACT
This academic paper is designed to display the importance of the detention hearing procedure, an institute that plays a vital role in the protection of prisoners’ fundamental rights despite being only recently incorporated to Brazil’s judicial system. The completion of this analysis will demand an understanding of the institute’s history, since its origins on international pacts, its incorporation process, until its present stage of development in the Brazilian legal system. Furthermore, the incompatibility of the detention hearing procedure with the video conference method shall be evaluated in light of the hearing´s main objectives. Furthermore, the video conference method is argued to be inconsistent with the detention hearing procedure´s main objectives.
Keywords: Detention Hearing; Human rights International Pacts; Fundamental Rights; Fundamental Guarantees; Video Conference.
INTRODUÇÃO
Partindo da consideração de que o processo penal é, em uma de suas múltiplas facetas, o mecanismo estrutural responsável pela limitação do poder punitivo estatal, a audiência de custódia efetivamente instaurada em 2015 no Brasil, passa a servir como instrumento essencial no cumprimento de tal função. É o foco deste trabalho, ponderar, passando pela origem, processo de aprimoramento e internalização, à luz dos princípios fundamentais e do ordenamento jurídico brasileiro, a função do mencionado instituto e o porquê de sua tamanha relevância atualmente.
Primeiramente nos voltamos ao caminho percorrido pelo instituto, levando em consideração o panorama histórico responsável por sua criação e posterior desenvolvimento, desde suas origens no direito internacional, até sua interiorização e tardia concretização no Brasil.
Posteriormente, tornamo-nos a audiência de custódia propriamente dita, aclarando o seu conceito, seus objetivos, normas e procedimento, assim como as alterações jurídico-culturais, por ela influenciadas e exigidas dentro do Estado Constitucional Democrático brasileiro.
Todavia, para a total compreensão da audiência de custódia, se faz mister a leitura do instituto conjuntamente com os princípios fundamentais, que ao mesmo tempo a justificam e devem ser por ela efetivados. Não sendo suficiente que as alterações propostas pelo instituto residam apenas no plano normativo, de maneira que é essencial uma mudança cultural dos operadores do direito, de modo que essas previsões sejam postas em prática.
Derradeiramente, o último tema tratado será a controvérsia doutrinária e jurisprudencial que se formou quanto à possibilidade ou não, da efetivação da audiência através do método de videoconferência. Como se exporá mais detalhadamente em sequência, este procedimento formal não é compatível com as funções garantistas da audiência de custódia, que seriam severamente limitadas em troca de uma maior comodidade prática.
Este artigo se fundamentará na metodologia de pesquisa bibliográfica dada à natureza eminentemente teórica da matéria. Serão utilizados livros, leis, artigos e posicionamentos jurisprudenciais, que versarem sobre o tema ora trabalhado como referência para as conclusões posteriormente ilustradas.
Em apertada síntese, o escopo deste trabalho é examinar o instituto processual em tela, através dos dispositivos normativos que o englobam, além de retratar os questionamentos jurídicos e os entraves, que ainda enfrenta o recente mecanismo processual, no traslado da abstração a dimensão do real.
1. ORIGEM HISTÓRICA E O CAMINHO PERCORRIDO ATÉ SUA EFETIVAÇÃO NOS MOLDES ATUAIS EM ÂMBITO NACIONAL
A doutrina nacional comumente aponta como os primeiros precedentes da audiência de custódia o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969. Todavia, apesar de serem estes documentos internacionais inegavelmente os mais relevantes no processo de formação do mencionado instituto, é possível apontar às suas origens em momento ainda mais longínquo.
Para a compreensão do porque tais reverenciados documentos passaram a tratar deste tema, se faz necessária uma breve referência à situação global da época. Após a segunda guerra mundial, a percepção é de que o Estado de Direito teria que se tornar um genuíno Estado Democrático de Direito, deixando a Constituição de ser um mero pedaço de papel para se tornar uma fonte de obrigações universais, dotada de força ativa, como é a nossa constituição de 1988.
A premente necessidade de uma tutela efetiva dos direitos humanos, em patamar difuso e universal, havia ficado evidente diante do retumbante fracasso do Tratado de Versalhes e da Liga das Nações em evitar outra guerra mundial e as atrocidades que dela derivaram. Fábio Konder Comparato retrata com clareza o sentimento global no período pós-guerra:
“(…) abre-se a última grande encruzilhada da evolução histórica: ou a humanidade cederá à pressão conjugada da força militar e do poderio econômico-financeiro, fazendo prevalecer uma coesão puramente técnica entre os diferentes povos e Estados, ou construiremos enfim a civilização da cidadania mundial, com respeito integral aos direitos humanos, segundo o princípio da solidariedade ética” (COMPARATO, Fábio Konder. 2005,p.57.)
Neste momento passou a ser reconhecido internacionalmente o valor soberano da dignidade humana, hoje tratado como princípio basilar do nosso ordenamento constitucional. É em tal conjuntura que surge a primeira alusão ao instituto audiência de custódia, inclusa no artigo 5º, 3, da CEDH de 1950. Quanto ao assunto, discorrem Pablo Alflen e Mauro Fonseca:
“O objetivo pensado para essa apresentação é que ela servisse como mecanismo de controle sobre a atividade de persecução penal realizada pelo Estado (…) Evitar-se-ia, com isso, o risco de incidência de um dos principais problemas verificados nessa fase inicial da persecução penal, que é a ocorrência de tortura ou maus-tratos aos indivíduos que houvesse sido presos em flagrante ou a título preventivo por ordem das forças estatais diversas do Poder Judiciário.” (ANDRADE; ALFLEN, 2016, p.16.)
É nos anos de 1966 e 1969, contudo, que surgiriam os mais impactantes documentos internacionais com relação ao festejado instituto, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos respectivamente. O primeiro define em seu artigo 9º, item 3:
3. “Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença.”.(Disponível em : http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 20/09/2022)
O referido pacto, apesar de ter sido adotado pela ONU em dezembro de 1966, apenas fora incorporado pelo estado brasileiro em julho de 1992, por meio do decreto 592. Mesmo ano em que o país, no mês de novembro promulgou pelo decreto presidencial 678, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José De Costa Rica. Ou seja, o Brasil somente internalizou os supramencionados tratados, quatro anos após a instauração do atual regime constitucional.
O Pacto de San José De Costa Rica, na mesma linha do Pacto Internacional, previu uma série de garantias do indivíduo frente ao poder punitivo estatal. Formaliza o Pacto no seu artigo 5º item 2:
Artigo 5º – Direito à integridade pessoal
2.” Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.”
(Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm Acesso em 19/09/2022)
Estabelece também, no seu artigo 7º, item 5:
Artigo 7º – Direito à liberdade pessoal
5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm Acesso em 19/09/2022)
Destarte, é perceptível pela leitura dos citados dispositivos o direcionamento do foco da comunidade internacional, desde os anos cinquenta, para a salvaguarda dos direitos fundamentais do indivíduo, mormente do preso, que se encontra em situação de total vulnerabilidade quando confrontado com o poderio do aparelho repressor estatal.
O ordenamento jurídico brasileiro, todavia, dilatou em demasia sua adequação a esta realidade, somente vindo a tomar o primeiro passo efetivamente em tal direção com a incorporação de ambos os tratados internacionais no ano de 1992. Contudo, a internalização destas normas, como asseverado, fora tão somente a primeira medida de um longo e postergado processo, que culminaria na criação da Audiência de Custódia.
É possível se dizer que, após um longo hiato em que o presente tema havia caído em esquecimento, o Supremo Tribunal Federal lhe concedeu uma sobrevida. A corte suprema do país, no âmbito do HC 87.585/TO e do RE 466.343/SP, concluiu que o Pacto de San José De Costa Rica, em razão da sua natureza de tratado internacional de direitos humanos, é dotado de valor supralegal. Dessarte a norma internacional, uma vez incorporada ao ordenamento jurídico pátrio, encontra-se localizada hierarquicamente, abaixo da Constituição Federal, porém, em patamar superior ao das leis ordinárias.
Embasado na tese fixada pela corte maior, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, associado ao corregedor geral da Corregedoria Geral de Justiça elaborou em janeiro de 2015, o provimento conjunto número 03/2015 documento responsável pela instituição e regulamentação das audiências de custódia no Estado de São Paulo.
Posteriormente, em fevereiro do mesmo ano, seria instituído o Projeto Audiência de Custódia, resultado da comunhão de esforços do Conselho Nacional de Justiça, do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Ministério da Justiça. Projeto que tinha como objetivo, a realização das primeiras audiências de custódia no país, já com a previsão do prazo máximo de vinte e quatro horas para a apresentação do preso ao juiz de direito, entendendo que o elemento agilidade seria da essência do ato processual em análise.
Todavia, a efetiva difusão do instituto em plano nacional, fora impulsionada precipuamente por três atos normativos subsequentemente citados. A recomendação número 28, de 22 de setembro de 2015, titularizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, tratando esta do procedimento a ser seguido pelos membros do Ministério Público nas audiências de custódia. A Nota Técnica número 11, de 27 de julho de 2016, também de autoria do CNMP, que dispõe sobre a atuação do MP nas audiências de custódia em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Por fim, o ato normativo de maior significância até aquele momento de formação do instituto jurídico, a Resolução número 213, de 15 de dezembro de 2015, elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça.
A Resolução número 213, do CNJ, inovou no ordenamento jurídico brasileiro, como há muito tempo se aguardava, ao detalhar as diretrizes e determinações a serem seguidas na aplicação da audiência de custódia em todo o território nacional, que a partir daquele momento passariam a ter seu modo de funcionamento uniformizado. Tal ato normativo, na linha do Projeto Audiência de Custódia e do artigo 306 § 1º do Código de Processo Penal, com redação dada pela reforma de 2011, estipulou prazo máximo de 24 horas, incluindo fins de semanas e feriados, para a apresentação do preso em flagrante, assim como daquele apreendido mediante mandado de prisão, ao juiz de direito. O texto legal também ratificou a indispensabilidade da presença tanto de membros do Ministério Público quanto da Defensoria Pública durante a audiência, além de ter confirmado a imprescindibilidade do contato prévio entre o preso e o seu patrono.
A resolução em tela se mostrou um passo fundamental no caminho evolutivo e para a consequente difusão nacional do instituto. É possível destacar a relevância do artigo 15 para o referido processo, estando assim redigido:
Art. 15. Os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais terão o prazo de 90 dias, contados a partir da entrada em vigor desta Resolução, para implantar a audiência de custódia no âmbito de suas respectivas jurisdições.
Parágrafo único. No mesmo prazo será assegurado, às pessoas presas em flagrante antes da implantação da audiência de custódia que não tenham sido apresentadas em outra audiência no curso do processo de conhecimento, a apresentação à autoridade judicial, nos termos desta Resolução. (Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/resolucao-audiencias-custodia-cnj.pdf. Acesso em 21/08/2020)
O Supremo Tribunal Federal assumiu função determinante neste processo de difusão nacional do instituto, dando respaldo a resolução nº 213 e confirmando a legalidade das audiências de custódia, durante o julgamento da Ação Declaratória de Preceito Fundamental 347 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.240. A corte suprema não apenas afirmou a constitucionalidade do instituto, mas também o considerou ferramenta essencial no combate ao estado de coisas inconstitucional em que se localiza hodiernamente o sistema prisional do país.
Finalmente, no ano de 2019, a audiência de custódia seria tipificada pela lei 13.964, popularizada pela denominação de Pacote Anticrime. A lei em análise determina a alteração da redação do artigo 287 do CPP, que passaria a prever o instituto de forma expressa, através da seguinte redação:
Art. 287. Se a infração for inafiançável, a falta de exibição do mandado não obstará a prisão, e o preso, em tal caso, será imediatamente apresentado ao juiz que tiver expedido o mandado, para a realização de audiência de custódia. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019. Disponível em : http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm. Acesso em 20/09/2022)
Outra alteração prevista pela lei 13.964/2019 é do artigo 310, do CPP, nos termos infra:
Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
……………………………………………………………………………………………………………………….§ 1º Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato em qualquer das condições constantes dos incisos I, II ou III do caput do art. 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento obrigatório a todos os atos processuais, sob pena de revogação. (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 2º Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 3º A autoridade que deu causa, sem motivação idônea, à não realização da audiência de custódia no prazo estabelecido no caput deste artigo responderá administrativa, civil e penalmente pela omissão. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 4º Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm. Acesso em 21/08/2020)
Imperioso ressaltar, contudo, que no momento da elaboração deste trabalho, se encontra suspensa por determinação do ministro do STF Luiz Fux, a eficácia das regras do Pacote Anticrime que instituem a figura do juiz de garantias e do § 4º do Art. 310, CPP, que prevê a liberação compulsória do preso no caso de violação do prazo máximo de 24 horas previsto em lei para a realização da audiência de custódia.
Em sua decisão cautelar, tomada no âmbito das ADIs 6298,6299,6300 e 6305, afirmou o ministro que concedera a cautela para ” evitar prejuízos irreversíveis à operação do sistema de justiça criminal, inclusive de direitos das defesas”. Além de afirmar também que:
“A regra de liberação compulsória após o prazo de 24 horas fere o princípio da razoabilidade ao desconsiderar as dificuldades práticas locais de varias regiões do país e dificuldade de logística inerentes a operações policiais de grande porte”. (Decisão na íntegra disponível em: https://sedep-site.s3-sa-east-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/2020/01/23051739/juizgarantia.pdf. Acesso 20/09/2022)
Data vênia, ousamos discordar do eminente Ministro da corte suprema, em seu entendimento pela suspensão dos institutos tanto do juiz de garantias e quanto da determinação de liberação compulsória em razão do excesso de prazo. De fato, é necessário que o magistrado no caso concreto, como é obrigatório em qualquer processo, realize uma análise pautada pelos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Todavia, não se justifica a negação generalizada destes institutos, os quais são fruto de um processo evolutivo que vem desde o período do pós-segunda guerra, sob pena de violação do princípio humanista da vedação ao retrocesso.
Negar-lhes aplicação por motivos de dificuldades práticas de implementação, é imputar ao indivíduo, alvo da máquina repressora estatal, mais um ônus dentre os tantos já existentes nessa relação inegavelmente desigual. Cabe ao Estado o fornecimento de condições para o desenvolvimento de suas estruturas, tornando-as aptas a proteger os direitos fundamentais dos cidadãos, de maneira que seja compatível com as necessidades dos tempos contemporâneas. Não pode o princípio da reserva do possível, como tantas vezes o foi em nossa história, ser confundido com uma proteção do cômodo, capaz de justificar diversas atrocidades perpetuadas por esse estado de inércia estatal, como a própria corte suprema já reconheceu ao declarar o estado de coisas inconstitucional que se encontra o sistema carcerário brasileiro.
Essa importantíssima questão quanto à constitucionalidade dos dispositivos previstos pela Lei nº 13.964 será submetida ainda ao Plenário do STF. Destarte no presente momento, até a manifestação definitiva da corte maior, o prazo máximo de 24 horas para a realização da audiência de custódia, retorna a se embasar na Resolução número 213, do CNJ, não havendo mais a previsão de liberdade compulsória decorrente da extrapolação do prazo legal até segunda ordem.
2. O INSTITUTO, SUAS FUNÇÕES E PROCEDIMENTO CONFORME O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.
Quanto à conceituação da audiência de custódia, explicam Aury Lopes JR e Caio Paiva:
“A denominada audiência de custódia consiste, basicamente, no direito de (todo) cidadão preso ser conduzido, sem demora, à presença de um juiz para que, nesta ocasião, (i) se faça cessar eventuais atos de maus tratos ou de tortura e, também, (ii) para que se promova um espaço democrático de discussão acerca da legalidade e da necessidade da prisão.” (JUNIOR, Aury Lopes; e, PAIVA, Caio. Acesso em 24.08.2022.)
O recurso, afirma Carlos Weis:
“aumenta o poder e a responsabilidade dos juízes, promotores e defensores de exigir que os demais elos do sistema de justiça criminal passem a trabalhar em padrões de legalidade e eficiência.” (WEIS, Carlos. Edição 05, 03/2013)
Dessarte, o ato processual consiste na apresentação do acusado a um juiz de direito, em prazo de máximo de 24 horas, na linha resolução número 213, do CNJ, sendo indispensável à assistência tanto durante como antes da sua realização por um advogado ou defensor público, assim como é também imprescindível a participação de membro do Ministério Público.
O ato jurídico possui como escopo, a concretização de três objetivos principais, sendo estes, o controle da legalidade da prisão, a avaliação da sua necessidade e a prevenção da prática de maus-tratos e tortura contra o preso.
Primeiramente visando atingir tais finalidades, deverá o magistrado competente para a sua condução examinar o preenchimento dos requisitos legais para a prisão, ou seja, irá analisar se a prisão era ou não adequada e necessária no momento de sua realização, e em caso afirmativo, se esta situação permanece. Com base nestes elementos, decidirá em sequência o juiz, se decreta a prisão preventiva do acusado ou concede sua liberdade.
Já o seguinte e talvez objetivo maior do instituto ora em análise é a verificação por parte do juiz, se o preso teve respeitada a sua dignidade como ser humano, verificando se este fora vítima de maus-tratos ou tortura e analisando a ocorrência de eventual excesso por parte dos agentes estatais. Desta forma, fica clara a função fiscalizatória do instituto, que ao permitir a atuação do magistrado nesta direção, visa diminuir o desequilíbrio de forças naturalmente existente entre o acusado e a força repressora estatal. Assim sendo, é essencial para que o juiz consiga desempenhar esta função, que se possibilite a participação ativa da pessoa presa, da Defesa e do MP, uma vez que muitas vezes o mero envio formal do APF ao magistrado não é condizente com a realidade fática.
Envereda no mesmo sentido Gustavo Badaró ao afirmar que:
“(…) o juízo a ser realizado na chamada audiência de custódia é complexo: não se destina apenas a controlar a legalidade do ato já realizado, mas também a valorar a necessidade e adequação da prisão cautelar, para o futuro. Há uma atividade retrospectiva, voltada para o passado, com vista a analisar a legalidade da prisão em flagrante, e outra prospectiva, projetada para o futuro, com escopo de apreciar a necessidade e adequação da manutenção da prisão, ou se sua substituição por medida alternativa à prisão ou, até mesmo, a simples revogação sem imposição de medida cautelar” (BADARÓ, Acesso em: 28/08/2022)
O procedimento em si da audiência de custódia é muito simples, seja ele baseado no artigo 310 do CPP, com redação dada pela lei nº 13.964, de 2019, que no momento se encontra suspenso, pendente de decisão do pleno do STF quanto a sua constitucionalidade, ou ainda de acordo com o previsto pela Resolução 213 do CNJ.
Quanto à extensão da aplicação do instituto, ele é plenamente utilizável não apenas nos casos de prisão em flagrante, mas também às demais formas de privação de liberdade, excetuando-se os casos de prisão pena. Para se chegar a tal conclusão não se faz nem mesmo necessária à alusão a lei nº 13.964/19, já que a própria resolução traz essa previsão.
O procedimento, segundo dispõe a resolução, se inicia com a lavratura do auto de prisão em delegacia, devendo ser o patrono, caso constituído, imediatamente notificado do encarceramento, e em caso contrário, será o acusado representado pela Defensoria Pública, que deverá ser notificada de tal fato. Após a lavratura, os autos serão remetidos prontamente ao cartório criminal e o preso conduzido ao juízo competente.
Imperativamente será garantido ao acusado o direito de se comunicar de forma livre e confidencial com seu patrono, anteriormente a realização da audiência. A audiência contará obrigatoriamente com a presença do acusado, o que não poderia ser diferente, já que o instituto para alcançar um dos seus objetivos principais, que é a garantia da integridade do mesmo, depende de que ele seja capaz de ter participação ativa, relatando qualquer violação que tenha sofrido.
Será obrigatória também a participação do patrono do acusado ou de defensor público, caso não haja advogado constituído, assim como do representante do Ministério Público e obviamente do magistrado. A audiência deve ser gravada, constando em ata tão somente um breve relato dos atos praticados e do provimento decisório do juiz.
Durante a mesma, o magistrado procederá à qualificação do acusado e inquirirá acerca das circunstâncias de sua prisão, visando apurar a ocorrência de eventual ato que possa ser definido como agressão ou tortura. Posteriormente, deverá permitir que as partes realizem as perguntas que entenderem pertinentes, não devendo estas se referirem ao mérito.
Findadas as perguntas, o magistrado concederá a fala ao membro do Ministério Público e posteriormente à defesa, que apresentarão seus argumentos quanto à manutenção ou não da prisão. Em seguinte, o juiz comunicará sua decisão acerca das questões expostas, havendo o cumprimento obrigatório e imediato do que for por ele determinado.
A audiência de custódia, apesar de ser veiculada por um procedimento que não é dotado de complexidade, é um instrumento essencial hodiernamente na garantia dos direitos fundamentais constitucionais e processuais penais, como se verá a seguir.
3. A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA COMO GARANTIA DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E PROCESSUAIS PENAIS
O ato processual como previamente definido possui função complexa, visando prioritariamente o controle da legalidade e necessidade da prisão, tanto de forma pretérita quanto atual, além de prevenir a ocorrência de maus-tratos e tortura contra o preso. Esses objetivos do instituto o tornam um mecanismo essencial para a efetivação de diversos princípios fundamentais, podendo ser citados como os mais significativamente afetados os princípios da dignidade humana, da celeridade, do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório e da oralidade.
Tomando por base o processo evolutivo do instituto jurídico, iniciado no período pós-segunda guerra mundial, é fácil perceber o forte vínculo que ele mantém com o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF), estando este engrenhado naquele. O princípio da dignidade da pessoa humana, como já elaborado, surge como resposta global às barbaridades cometidas no contexto das grandes guerras, tendo como aspecto central a valorização do ser humano, como um ente merecedor de respeito, após séculos de sistemático abuso. O referido princípio, hoje considerado o valor fundante do nosso ordenamento jurídico, visa à garantia de condições mínimas de existência digna do ser humano, como um ser que deve ser protegido não só em seu aspecto físico, mas também moral e psicológico. A audiência de custódia, ao exigir o encaminhamento em até 24 horas do preso ao juiz, é um instrumento essencial tanto no aspecto preventivo quanto repressivo de atos de agressão, maus tratos ou tortura, transgressores deste valor máximo.
Ultrapassada a análise do princípio norteador do ordenamento jurídico pátrio, é possível a identificação de outros valores diretamente afetados pelo instituto em análise.
Retornando ao procedimento da audiência de custódia, que demanda a pronta apresentação do preso, no prazo máximo de 24 horas ao magistrado competente, é possível reparar que ele se encaixa perfeitamente na exigência de celeridade processual (art. 5º LXXVIII, CF). De forma que, a estipulação de tal limitação temporal impede que o cidadão se encontre preso por prazo indeterminado sem que sua situação seja sequer analisada pela autoridade designada pela constituição. Esta determinação, portanto, se destina principalmente a evitar que uma pessoa se encontre presa erroneamente por longo período, em caso que representa a total violação de seus direitos fundamentais e falha imperdoável do Estado, o que não pode mais ser tolerado em uma democracia constitucional.
Ao lado do princípio da dignidade da pessoa humana, é plausível afirmar que os valores mais afetados pelo instituto em tela são os princípios do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF) e os seus corolários, o princípio do contraditório e o princípio da ampla defesa, ambos previstos pelo artigo 5º, LV, da CF.
O princípio do devido processo legal como consagrado na lei maior, dita que ninguém poderá ser despojado de seus bens ou liberdade sem a observância do processo legalmente assegurado. Este é um dos mais significativos instrumentos de preservação dos direitos do réu em face da força inexorável do Estado, sendo possível afirmar que este princípio desencadeia diversos outros, tanto em matéria constitucional quanto processual penal, dentre os quais se incluem o contraditório e a ampla defesa.
A audiência de custódia, ao ser introduzida ao direito pátrio passou a fazer parte da estrutura do devido processo legal, de maneira que não sendo o preso conduzido no prazo máximo expresso em lei à presença do magistrado, viola-se uma norma procedimental cogente e consequentemente o processo em si.
Diretamente conectados com o princípio supracitado e até mesmo entre si, estão os princípios do contraditório e da ampla defesa. Estes, apesar de terem um vínculo inegável, não se confundem, nas palavras de Ada Pellegrini:
“defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório(visto em seu primeiro momento, da informação) que brota o exercício da defesa: mas é esta, como poder correlato da ação, que garante o contraditório. A defesa, assim, garante o contraditório, más também por este se manifesta e é garantida. Eis a intíma relação e interação da defesa e do contraditório”. (PELLEGRINI GRINOVER, ada.1992,p.63)
O princípio do contraditório, contemporaneamente, em sede processual penal, é analisado em duas dimensões: na primeira ele é entendido como o direito à informação (conhecimento); já na segunda ele se refere à igualitária e efetiva participação das partes, ou seja, representa aqui o princípio da paridade de armas. Destarte, como elucidou Ada Pellegrini, é o contraditório em sua vertente conhecimento que possibilita a realização da ampla defesa, enquanto sem esta, o contraditório em sua segunda vertente, de participação efetiva e igualitária de ambas as partes, é impossibilitado.
A ampla defesa por sua vez, classicamente reflete a ideia de que o acusado pode se valer dos mais diversos métodos para rechaçar a acusação que lhe fora imputada. O direito de defesa pode ainda ser dividido em suas vertentes: defesa técnica, que pressupõe o auxílio de uma pessoa com conhecimentos teóricos do Direito, defesa pessoal positiva, que se refere às atuações do próprio réu no sentido de resistir a pretensão punitiva estatal, e defesa pessoal negativa, que consiste no direito de não atuar do acusado, já que ele não têm a obrigação de auxiliar na sua condenação.
Hodiernamente, contudo, o direito de defesa amplo deve ser visto à luz do princípio do contraditório, ou seja, não apenas como esta permissão de utilização por parte do acusado de qualquer método capaz de influenciar na formação do convencimento do magistrado, mas também sob a perspectiva da garantia de que seus atos tenham igual possibilidade de influência em dito convencimento com relação aos da parte contrária. De forma que de nada adianta que o acusado tenha a sua disposição os mais complexos artifícios defensivos, se ele não tiver a oportunidade de efetivamente e de forma igualitária persuadir o juiz de suas alegações.
Diante dos conceitos apresentados destes dois princípios, os quais são profundamente interligados, é perceptível a função desempenhada pela audiência de custódia na concretização de ambos em seara processual penal. De forma que é somente através da oitiva imediata do preso por parte do juiz que se possibilita que o acusado exerça o direito de defesa em todas as suas modalidades, sobretudo na sua forma direta, o que inegavelmente, ao colocar o magistrado de frente para o acusado, contribui também para a realização do contraditório em sua dimensão de efetiva e igualitária participação. Além disso, a limitação temporal da audiência ao prazo máximo de 24 horas faz com que o juiz entre em contato com o acusado muito antes do que ocorria em tempos passados, o que na maioria dos casos só seria ao final da instrução, sendo de uma obviedade ululante que o quanto antes o réu tiver a oportunidade de se defender, maior impacto e efetividade essa manifestação terá na persuasão do magistrado.
Por fim, cabe a análise do princípio da oralidade, que apesar de poder ser compreendido no âmbito da ampla defesa, em razão de sua relevância para o tema ora tratado, merece um destaque próprio. Este princípio, em plano processual penal, pode ser definido como o emprego da palavra falada em juízo, instituindo que as conclusões entre as partes devem ser realizadas à viva voz em audiência, instante propício para o magistrado escutar seus argumentos e coordenar o melhor desenvolvimento da causa.
O princípio da oralidade é imperioso para a efetividade da audiência de custódia em todos os seus aspectos, já que na linha das normas internacionais e da Resolução 213 do CNJ, o preso deve ser necessariamente conduzido a presença do juiz, ou seja, ele deve fisicamente ficar “cara a cara” com o magistrado. De maneira que talvez o maior avanço proporcionado pela audiência de custódia é a rápida possibilidade de contato direto. Quanto ao tema é clara a jurisprudência da Corte Internacional de Direitos Humanos:
“a corte tem reiterado que o juiz deve ouvir pessoalmente o detido e valorar todas as explicações que este lhe proporcione, para decidir se procede à liberação ou manutenção da privação de liberdade. Caso contrário seria despojar de toda efetividade o controle judicial disposto no artigo 7.5 da Convenção.” (Caso Bayarri Vs Argentina § 65. Sentença de 30.10.2008 Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_187_esp.pdf Acesso em: 16/09/2022).
4. A INADEQUAÇÃO DA REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA ATRAVÉS DE VIDEOCONFERÊNCIA
A questão da possibilidade ou não do emprego do método de videoconferência na audiência de custódia é tópico causador de controvérsia tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Esta discussão em âmbito nacional surgiu de forma mais efetiva a partir do Projeto de Lei do Senado 554/2011 e provavelmente se intensificou em razão do fato de a Corte Internacional de Direitos Humanos ser silente quanto ao tópico. O código processual brasileiro, como previamente mencionado, fora alterado em seu artigo 306 pela reforma pautada no Projeto de Lei do Senado 554/2011, responsável não pela tipificação do instituto audiência de custódia em si, o que só viera ocorrer em 2019, mas trazendo importantes previsões, assim como a tipificação do prazo máximo de 24 horas para a apresentação do preso.
O PLS 554/2011 fora aprovado pela Comissão de Direitos Humanos e Participação Legislativa e posteriormente pela Comissão de Assuntos Econômicos em 26 de novembro de 2013, chegando posteriormente na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, quando fora distribuído ao senador Humberto Costa. No dia 25 de junho de 2014, o referido projeto de lei recebeu uma proposta de emenda substitutiva capitaneada pelo Senador Francisco Dornelles, que alteraria a redação inicial tão somente para prever que a audiência de custódia poderia ser realizada através do sistema de videoconferência.
O principal argumento adotado pelo senador é que a adoção deste método geraria uma redução na circulação de presos, fato gerador de riscos à segurança pública, institucional e do próprio preso. Todavia, esta emenda não prosperou, e tanto a redação do mencionado artigo quanto dos dispositivos alterados pela lei nº 13.964/19 não fazem referência expressa ao método, seja para admiti-lo, seja para proibi-lo. Quanto ao pacote anticrime, é forçoso ressaltar que seu texto original trazia vedação expressa no sentido da vedação do referido método em seu artigo 3º-B, §1º, o qual foi objeto de veto do Presidente da República.
Quanto à jurisprudência dos tribunais superiores, apesar da mesma ter dado sinais de que estaria se consolidando no caminho da vedação, com a pandemia do novo Corona Vírus o tema ganhou novos contornos, com decisões admitindo a audiência virtual em casos excepcionais, fundamentadas na situação de emergência sanitária.
Quanto à parcela da doutrina que sustenta a possibilidade de veiculação da audiência de custódia por videoconferência, se mostra admissível citar como principais, os seguintes argumentos: A) o já citado risco a segurança pública, institucional e do próprio preso em razão do deslocamento, como afirmou o Senador Francisco Dornelles; B) o veto presidencial ao dispositivo 3º-B, §1º da Lei 13.964/19, que vedava a videoconferência como método de realização da audiência, indicaria a sua possibilidade; C) que a transmissão de som e imagem de tal sistema permitiriam que o juiz detectasse eventuais torturas e agressões; D) que a exigência da realização da audiência em vinte e quatro horas da prisão, na linha do que afirmou o Ministro Fux do STF, ao demandar a presença física do juiz, inviabilizaria a sua efetivação em determinados locais do país que não permitem deslocamento rápido e constante, fato que violaria a razoabilidade; E) a inviabilidade de deslocamento não apenas dos juízes, mas também da Polícia, o que geraria grandes dificuldades tanto em termos de pessoal quanto financeira para que seja possível a disponibilização de transporte rápido e seguro ao preso; F) Por fim, cita-se a questão de saúde pública, que passou a ser muito citada com a pandemia do novo Corona Vírus.
Como alegado anteriormente, não devem prosperar os argumentos pautados na dificuldade estatal de cumprir com sua obrigação de garantir a dignidade de seus cidadãos. Não podem estes arcar com as consequências da falha estatal de fornecer estruturas aptas a efetivar tais direitos, o que se estende não apenas aos argumentos referentes à dificuldade de deslocamento, mas também na questão do risco a segurança pública e institucional, assim como quanto à saúde pública. Não pode prosperar, diante do princípio da presunção de inocência, a alegação de que o preso, que nem mesmo tenha sido condenado em primeira instância, represente uma ameaça de tal monta a segurança pública no seu deslocamento, que ele deve ter seus direitos reduzidos por um método claramente menos eficaz de garanti-los. Assim como não pode ser o preso responsabilizado por um problema de saúde pública que cabe ao Estado gerir.
Já a afirmação de que o veto presidencial ao artigo 3º-B, §1º, da Lei nº 13.964/19, que vedava o método de videoconferência na audiência de custódia, indicaria a opção pela sua possibilidade, não deve prosperar por um motivo muito simples. O dispositivo atualmente tão somente não trata do assunto, de forma que até que haja a manifestação expressa do legislativo em algum dos sentidos, caberá ao poder judiciário a interpretação da norma em análise.
Por fim, a alegação de que a videoconferência seria suficiente para que o juiz detectasse eventuais torturas e agressões desconsidera uma multiplicidade de fatores responsáveis por tornar a audiência de custódia um método eficaz na coibição de tais práticas. Não há dúvidas que a presença física entre os seres humanos, juiz e réu, contribui em muito, não apenas para a formação de empatia daquele para com este, mas principalmente na capacidade do juiz de percepção da real condição física, psicológica e moral do acusado, que pode com muito mais facilidade ser escondida em plano virtual. Quanto ao assunto, segue a magistral colocação de Aury Lopes JR e Caio Paiva:
“O maior inconveniente desse substitutivo é que ele mata o caráter antropológico, humanitário até da audiência de custódia. O contato pessoal do preso com o juiz é um ato da maior importância para ambos, especialmente para quem está sofrendo a mais grave das manifestações de poder do Estado. Sob o pretexto dos altos custos e riscos (como se não vivêssemos numa sociedade de risco) gerados pelo deslocamento de presos “perigosos”, o que estão fazendo é retirar a garantia da jurisdição, a garantia de ter um juiz, contribuindo ainda mais para que eles assumam uma postura burocrática e de assepsia da jurisdição. É elementar que a distância da virtualidade contribui para uma absurda desumanização do processo penal. É inegável que os níveis de indiferença (e até crueldade) em relação ao outro aumentam muito quando existe uma distância física (virtualidade) entre os atores do ritual judiciário. É muito mais fácil produzir sofrimento sem qualquer culpa quando estamos numa dimensão virtual” (JUNIOR, Aury Lopes; e, PAIVA, Caio. Acesso em 24.08.2020)
Ao que sobrepõem:
“Acrescentando-se a distância e a “assepsia” geradas pela virtualidade, corremos o risco de ver a indiferença e a insensibilidade do julgador elevadas a níveis insuportáveis. A Convenção Americana de Direitos Humanos assegura, em seu artigo 7.5, que toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz. Por mais esforço que se faça, existe um limite semântico que não permite uma interpretação tal que equipare “presença” com “ausência”.” (JUNIOR, Aury Lopes; e, PAIVA, Caio. Acesso em 19/09/2022)
Dessarte há um vínculo incindível, formado entre o tema em tela e os princípios que são reciprocamente garantidos e intrínsecos a audiência de custódia em si considerada. Os princípios da dignidade da pessoa humana, do contraditório e ampla defesa, assim como o da oralidade, somente podem ser concretizados integralmente através da audiência de custódia realizada na forma em que ela fora originariamente projetada para funcionar. Não é e nem pode ser admissível que o indivíduo, alvo da tutela estatal, seja submetido a um procedimento claramente menos ineficaz na proteção de seus direitos mínimos, com base na maior comodidade estrutural em abstrato para o Estado de viabilização de tal método.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Deparamo-nos, após trinta e um anos de democracia, com uma Constituição Cidadã que apesar de amplamente protetiva e desenvolvida do ponto de vista filosófico-teórico, necessita de efetividade prática, sobretudo em âmbito processual penal. A audiência de custódia, como um mecanismo valorativamente concretizador, globalmente difundido no período do pós-segunda guerra, forçou o Estado brasileiro, ainda que com muito atraso, a tentar adaptar a legislação processual penal pátria às exigências normativas exigidas pelo mencionado instituto. Todavia, o processo de integração da audiência de custódia ao nosso ordenamento jurídico não demanda apenas a adequação das normas nacionais às internacionais, mas depende mormente de uma completa redefinição cultural, irradiada a todos aqueles que atuam no palco processual penal.
Nesta linha, um Estado Democrático de Direito não é dotado apenas de legitimidade formal, mas também substancial, derivando esta da sua capacidade de tutelar efetivamente os direitos fundamentais de seus cidadãos. É neste cenário, em que o Estado brasileiro carece de medidas capazes de concretizar os direitos consagrados na lei maior, que se destaca a audiência de custódia, como um mecanismo extremamente eficaz, sendo, ao mesmo tempo, um instrumento adequado à proteção dos direitos mínimos dos presos e um método desprovido de complexidade procedimental.
É exatamente a simplicidade do procedimento da audiência de custódia que permite que os aplicadores do direito se distanciem dos conceitos utópicos e factivelmente inalcançáveis da verdade absoluta e de realização da justiça ideal. Conceitos estes, que, no passado, foram justificadores de um atuar inquisitorial dos magistrados, como verdadeiros donos da verdade. Hoje, são substituídos pelo mencionado instituto, por um procedimento regrado e compatível com o devido processo legal democrático, que conduz os juízes à função contra majoritária de velar pelo cumprimento das regras do jogo democrático. Conclui-se que a audiência de custódia, instrumento viabilizador do cumprimento de diversos princípios fundamentais em âmbito penal, representa uma mudança procedimental amplamente necessitada pelo direito processual penal nacional. A eficácia deste instituto, entretanto, reside em imprescindível transformação da mentalidade dos operadores do direito e da cultura da própria sociedade. Tal evolução demanda que os princípios e garantias fundamentais sejam efetivamente integrados ao plano dos fatos, sob pena de serem relegados ao posto de adorno axiológico da dimensão do dever ser, assim como uma admirável pintura criada para representar uma realidade ideal outrora inalcançável.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA RIBEIRO, Gustavo. A audiência de custódia e a lei 13.964/19. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/318754/a-audiencia-de-custodia-e-a-lei-13964-19. Acesso em 20.09.2022.
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.57.
FOREAUX, Rodrigo. A realização de Audiência de Custódia por videoconferência: de “a” a “z”, os porquês que justificam autorizar a sua realização por videoconferência. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79585/a-realizacao-de-audiencia-de-custodia-por-videoconferencia-de-a-a-z-os-porques-que-justificam-autorizar-a-sua-realizacao-por-videoconferencia. Acesso em 20.09.2022.
FRESSATO DE GODOY, Nádia. Audiência de Custódia: Origem, conceito e seu enquadramento na atual sistemática jurídico processual penal brasileira. Disponível em: https://nadiainyt.jusbrasil.com.br/artigos/504150447/audiencia-de-custodia-origem-conceito-e-seu-enquadramento-na-atual-sistematica-juridico-processual-penal-brasileira. Acesso em 20.09.2022.
JUNIOR, Aury Lopes; e, PAIVA, Caio. Audiência de custódia aponta para evolução civilizatória do processo penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-ago-21/aury-lopes-jr-caio-paiva-evolucao-processo-penal. Acesso em 19.09.2022.
PELLEGRINI GRINOVER, Ada. As Nulidades no Processo Penal. 2.ed.São Paulo,Malheiros,1992.p.63.
WEIS, Carlos. Trazendo a realidade para o mundo do direito. Informativo Rede Justiça Criminal. Edição 05, ano 03/2013. Disponível em: http://www.iddd.org.br/Boletim_AudienciaCustodia_RedeJusticaCriminal.pdf. Acesso em 20.09.2022.