REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202411281157
Márcia Coutinho Martins1
Resumo:
No presente artigo, será discutido como o conceito de ciência e de demarcação foi desenvolvido ao longo da história da produção epistemológica, o foco estará voltado principalmente para a apresentação dos conceitos desenvolvidos por Kuhn, Popper, Feyerabend, Demo e Haack. Tais conceitos servirão como subsídio para a verificação da possibilidade de se caracterizar um conceito de ciência e ainda o impacto social que tais reflexões podem favorecer.
Palavras-Chave: Epistemologia, Ciência, Pseudociência
Abstract:
In this article, it will be discussed how the concept of science and demarcation was developed throughout the history of epistemological production, the focus will be mainly on the presentation of the concepts developed by Kuhn, Popper, Feyerabend, Demo and Haack. Such concepts will serve as subsidy for verifying the possibility of characterizing a concept of science and also the social impact that such reflections may favor.
Keywords: Epistemology, Science, Pseudoscience
Introdução
Para discutir a formação de um conceito de ciência que se coadune às demandas da sociedade contemporânea, será realizada ao longo deste artigo análise da reflexão histórica e filosófica sobre a questão da demarcação.
Primeiro será discutido como o conhecimento científico tem se tornado fonte de discussões de massa, em um contexto de pandemia e de difusão de notícias falsa também sobre produção científica.
Em seguida, serão apresentados os conceitos ligados à epistemologia e do desenvolvimento do pensamento científico, de suas práticas e métodos ao longo da história humana.
Depois o foco, recairá sobre a apresentação da análise de diversos autores sobre a questão da demarcação. Assim, serão analisados os conceitos desenvolvidos por Kuhn, Popper, Feyerabend, Demo e Haack.
Ao fim deste texto, será discutida a importância do uso do saber cientifico para a construção da sociedade, de seu embasamento ético e de sua finalidade estar voltada para melhoria da qualidade de vida de toda a população mundial.
1. A importância social do saber científico
Vários autores ao longo de milênios se dedicaram ao trabalho filosófico de conceituar o que é ciência e de assim contribuir para o progresso do conhecimento humano sobre os fenômenos naturais e assegurar a sua disponibilidade para o uso seguro e ético pela humanidade.
Para caracterizar o quanto a ciência é socialmente relevante, Chalmers, na introdução de seu livro O que é ciência afinal?, afirma que a ciência goza de enorme prestígio social que estaria baseado no fato de se acreditar que há algo de extraordinário nela e nos métodos que emprega. Assim, relacionar o termo “científico” a uma afirmação corresponderia a lhe conferir certa confiança inabitual, e, segundo o autor, esse fenômeno poderia ser facilmente verificado ao se analisar propagandas de produtos que afirmam haver comprovação científica de suas qualidades, ou seja, o uso de um discurso de autoridade relacionado ao conhecimento científico. (Chalmers, 1993, p. 17-18)
Também no ambiente acadêmico, segundo o autor, ocorreria tal fenômeno, assim muitos campos de estudo agregam o termo “ciência” em sua denominação, por exemplo, as Ciências Ambientais e a Ciência da Computação, para que sua produção de conhecimento tenham o valor agregado que o termo científico traz em seu cerne, porém áreas tradicionais da ciência como a física e a química, normalmente, não precisam agregar tal termo em sua conceituação, já que são campos construídos sobre as bases conceituais estruturantes e milenares do conhecimento científico. (Chalmers, 1993, p. 18)
Porém, na atualidade, o conhecimento científico vem sendo questionado fortemente. Um movimento global de utilização de notícias falsa tem disseminado teorias e dados contraditórios e questionadores da relevância de várias aplicações de conhecimento científico em políticas públicas de saúde, entre outras questões.
Segundo Acquolini e Sousa (2021, p. 128), as informações falsas, fake news, são criadas com o objetivo de desinformar, e são caracterizadas pela manipulação de informações de forma tendenciosa, fragmentada.
Gillman (2017) conceitua e explica esse fenômeno das notícias falsa, as fake news são, segundo o autor, sinônimo de conteúdo falso ou de propaganda que espalha desinformação e acaba influenciando o resultado de eleições e serve a propósitos extremistas em todo o globo.
Já, segundo Acquolini e Sousa (2021, p. 128), a dimensão de tal fenômeno que atinge as informações sobre o conhecimento científico é denominado de “informações científicas falsas” ou fake science news ou fake science. E tais informações têm papel semelhante ao das fake news, porém, nesse caso ocorre uma “apropriação do discurso científico” para difusão de inverdades sobre produção científica que sirvam a interesses de cunho político, comercial, entre outros. (ACQUOLINI E SOUSA, 2021, p. 128)
Essa barreira que tem sido colocada em relação ao alto prestígio de que goza o conhecimento denominado científico, a fake science, é um fenômeno que se ampliou fortemente durante o período pandêmico vivenciado nos últimos anos.
Para ilustrar como se deu esse uso de informações falsa durante a pandemia, serão utilizadas as informações apresentadas no artigo publicado pelo Instituto de Pesquisa Aplicada – IPEA, intitulado “Ciência e pseudociência durante a pandemia de COVID-19”. Neste artigo, são analisadas e discutidas evidências sobre como informações científicas foram empregadas por governos no Brasil para combate à pandemia.
Já no início do artigo, seu autor, Moraes (2021), explica como a ciência é utilizada para subsidiar políticas públicas. Segundo o autor, é necessário que “intermediários do conhecimento” interpretem o conhecimento científico para um formato utilizável pelos governantes. Esses profissionais são organizados em comitês, grupos de especialistas, revistas científicas e em organizações públicas e privadas e o resultado de suas interpretações é denominado de “conhecimento intermediário”.
O autor afirma ainda que durante o período pandêmico, entre os anos de 2020 e 2021, esses profissionais dedicados à interpretação científica para aplicação por gestores públicos foram muito demandados e demonstra como o conhecimento intermediário foi utilizado por governos dos estados brasileiros. (MORAES, 2021)
Moraes (2021) aponta como uma deficiência na gestão da pandemia pelos governos a falta de interdisciplinaridade em grupos de trabalho, pois seria um meio de se encontrar métodos variados de enfrentamento ao problema, não focando apenas em questões médicas.
O autor demonstra, ainda, quais estados mais utilizaram informações não baseadas em “evidências científicas” para o desenvolvimento de políticas públicas no combate à pandemia e traça recomendações para os governantes e pesquisadores da área científica.
Merece aqui destaque a recomendação em que o autor afirma que a necessidade de se utilizar “evidências científicas” em políticas de saúde pública ficou evidente durante o trabalho de combate à epidemia, e afirma também que a “popularização da ciência” deve ser encarada como uma questão de política pública, concluído que conhecendo o que é ciência a população teria mais condições de julgar a invericidade de informações disseminadas sobre conhecimento científico aplicável por gestores, o que resultaria na pressão dos cidadãos pela produção de políticas públicas baseadas em evidências científicas. (MORAES, 2021)
Cabe a qui destacar como o autor, Moraes (2021), utiliza o termo pseudociência com a função de evidenciar e estabelecer oposição ao termo ciência, tendo o primeiro o peso das informações inverídicas ou sem fundamento reconhecido cientificamente e o segundo a pressuposto de argumento de autoridade.
É importante destacar o que afirma Gerbina (2021, p. 295), que em seu artigo informa seus leitores que durante a pandemia de Covid-19 o uso de informações falsas se intensificou tanto dentro da própria área de produção científica quanto para a sociedade em geral. A enorme produção de dados sobre a pandemia falsos ou não se tornou viral e gerou muita desinformação que derivou na dificuldade da população em identificar quais eram as fontes confiáveis de informação.
É possível verificar por meio dessas evidências sobre a expansão da veiculação de notícias e da reclamação por popularização da ciência como persiste a discussão sobre o conceito de ciência, sobre a validade do conhecimento científico e da delimitação de seu emprego e como esse debate se tornou presente no cotidiano das pessoas, transformando-se em discussão de massa, na atualidade, principalmente durante o período pandêmico que o planeta ainda enfrenta.
Há também muitas questões geradas pelo desenvolvimento econômico que também implicam o uso de informação científica em sua discussão. Segundo Gerbina (2021, p. 293), na atualidade o conhecimento científico tem uma relevância social nunca antes vista em decorrência da grande dimensão dos problemas enfrentados atualmente, como as mudança climáticas, a necessidade de fontes de energia e enfermidades de proporções planetárias.
Para verificar como a discussão da delimitação do que é ciência vem sendo desenvolvida por filósofos, faz-se necessário apresentar o conceito de epistemologia e como o debate foi realizado por vários autores diferentes.
2. Epistemologia e desenvolvimento científico
Segundo o Dicionário de Filosofia (1), a epistemologia ou gnosiologia ou ainda teoria do conhecimento é um campo da filosofia que tem como objeto a reflexão crítica sobre a “origem, natureza, limites e validade do conhecimento humano.” Há duas principais áreas de abordagem, a que reflete sobre “natureza ou essência do conhecimento” e o campo que discute “suas possibilidade ou seu valor”.
A Filosofia da Ciência ou a Epistemologia, segundo Ostermann (2011, p.9), é um campo de estudo que se dedica a discutir questões relativas à validade do conhecimento científico, sobre a existência e as características de um método científico, a forma como teorias científicas são superadas por outras, e à questão da demarcação, definição desenvolvida por Karl Popper e que busca determinar o que pode ser e o que não pode ser caracterizado como conhecimento científico.
Tal reflexão é realizada há muitos anos. Segundo Pires (2018, p. 201), o desenvolvimento de critérios que subsidiem a caracterização do que é ciência e do que não é ciência é fundamental para que o conhecimento científico progrida. E essa tarefa é realizada por filósofos desde a Grécia Antiga, por exemplo, segundo Aristóteles, proposição científica é a que possui “caráter universal”, ou seja, que pode ser generalizada.
No entanto, a ciência como a compreendemos na atualidade, toda sua importância e autonomia seria fruto de práticas relativamente recentes. Pires (2018, p. 203) explica que as primeiras manifestações do surgimento da ciência moderna se dão no século XVII, por meio das atividades científicas práticas, realizadas por pensadores como Galileu e Newton, que não buscavam mais o caráter universal da ciência.
Mas é com Francis Bacon que a ciência moderna é inaugurada a partir de um método próprio, o método científico, do qual Bacon é considerado o criador, sendo, portanto, considerado o pai da ciência moderna e de seu método, o método científico.
Ostermann (2011, p.30) afirma que Bacon era um crítico do tipo de ciência praticado em sua época, que estaria tomada pelo caráter teológico, típico da época, e pelo senso comum. Para opor-se a essas características Bacon propôs que a produção científica deveria estar baseada na observação da natureza e daí derivariam proposições a serem testadas concretamente, por meio, portanto, de indução e experimentos e que a ciência deveria servir a melhoria da vida humana. (OSTERMANN, 2011, p. 32)
Os pensadores do iluminismo, século XVIII, consideraram a ciência como a base da civilização, pois seria por meio dela que a razão se manifestaria e haveria a materialização do progresso da sociedade. (Pires, 2018, p. 203).
No método indutivo, segundo Ostermann (2011, p. 35), parte-se de dados sobre determinado fenômeno observado para a elaboração de leis gerais. Assim, o investigador libertado de crenças pessoais preconcebidas poderia interpretar os fenômenos da natureza. Desta forma, como destaca Cunha (2015, p.53-54), a epistemologia desenvolvida sob a égide do positivismo, no século XIX, conferiu à atividade científica um rótulo de ser tecnicamente neutra, portanto, não podendo ser julgada moralmente, o que, segundo o autor, seria um óbice ao juízo ético no campo da ciência.
No entanto, essa concepção de ciência mudaria muito na primeira metade do século XX, pois como Ostermann (2011, p.10) afirma haveria um fundamento consensual entre os filósofos da ciência que desenvolveram suas teses no século XX, o de crítica à “epistemologia empirista-indutivista”. Consideram, então que a mera observação não fundamenta a produção de conhecimento científico. Há a necessidade de que teorias sejam desenvolvidas e testadas.
Segundo Ostermann (2011, p. 38), seria consenso atualmente a impossibilidade de o cientista, com pessoa humana, se libertar completamente de suas crenças pessoais, não se comportando, portanto, como “observadores neutros”. Sendo assim, embora atualmente esteja considerada ultrapassa, a concepção de método científico desenvolvido por Bacon representou um marco para o progresso científico de sua época.
A autora afirma ainda que em relação à produção do conhecimento científico, os filósofos da ciência contemporâneos, em geral, rejeitam a perspectiva de progresso científico do tipo “desenvolvimento-por-acumulação” e assumem a ciência como construção humana. E essa construção contínua está de forma recorrente submetida a crises, rupturas e profundas reformulações. (OSTERMANN, 2011, p. 56).
A questão da demarcação abordada por Karl Popper é um conceito debatido por vários autores no século XX e XXI, a seguir serão apresentadas as reflexões sobre esse tema desenvolvidas por Kuhn, Popper, Feyerabend, Demo e Haack.
3. A questão da demarcação por Kuhn, Popper, Feyerabend, Demo e Haack
Thomas Kuhn, em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, (1998, p. 19-20) afirma que a História é uma fonte para a questão da demarcação, já que ao analisar os eventos históricos seria possível trassar um paradigma para os processos de produção científica. Pois o agrupamento de teorias, métodos entre outros dados realizados por meio da ciência se dá de forma gradativa em um processo de acumulação de saber crescente, o que se pode chamar de conhecimento científico.
Kuhn (1998, p. 25) afirma ainda que sua concepção de ciência está baseada, principalmente, no conceito de revolução científica, ou seja, eventos esporádicos e inesperados que alteram o que vinha sendo concebido como o paradigma de conhecimento, ou seja, por meio de uma crise, mudam a visão tradicional a qual a produção científica de determinada época estava amparada.
Segundo Alves (2013, p. 194), Thomas Kuhn delimita várias fases que constituem a pesquisa científica, são elas: a fase pré-científica, a de ciência normal, a de crise e a fase de revolução.
No contexto do processo revolucionário científico, Kuhn (1998, p. 115-116) afirma haver três formas de conclusão de crises, na primeira, é produzido conhecimento científico eficaz para a resolução do problema provocando a extinção do paradigma vigente até então, na segunda, o problema persiste e não há conhecimento solidificado que seja eficiente para sua resolução, o que só poderá ser feito por uma geração futura de cientistas com novas ferramentas, na terceira forma, um novo paradigma surge e haverá uma disputa para que ele seja aceito, surgindo, assim, uma nova tradição científica.
Segundo Alves (2013, p. 201), Kuhn também realiza uma análise de como ocorre o desenvolvimento interno de um campo da ciência, na concepção do autor, a consolidação de uma área se daria por meio de um tipo de progresso, assim, ao passar por várias etapas de concepção científica, ocorreria o estabelecimento de um paradigma e a maturidade de determinada área de conhecimento.
Já Karl Popper, segundo Alves (2013, p. 201), concebe a ciência como um campo do conhecimento em que conjecturas são elaboradas e posteriormente são refutadas. Hipóteses seriam criadas com o objetivo de solucionar problemas, tais hipóteses devem passar por testes empíricos para que possam ser corroboradas, porém a manutenção de sua validade é temporária, pois sua constante submissão a testes levará a seu falseamento e consequente abandono e substituição.
Alves (2013, p. 203) afirma que a teoria de Popper foi desenvolvida como uma contraposição ao Positivismo Lógico estabelecida pelo Círculo de Viena nas primeiras décadas do século XX, que fundamentavam na observação a fonte do conhecimento, e o acumulo de informações levariam ao desenvolvimento científico.
Popper (2013, p. 28) centra sua reflexão na crítica à indução como método de pesquisa científica, ou seja, apresenta o problema da indução, como uma falha se dela derivarem conclusões que pesquisadores conceituem como científicas, tendo como base apenas a experiência e hipóteses derivadas de mera observação.
Segundo Popper (2013, p. 33), para que uma teoria seja apontada como científica ela deve ser submetida a alguns tipos de prova. Esses tipos de prova científica são: a comparação lógica de conclusões contrapostas para se por à prova a “coerência interna do sistema”; a investigação lógica da teoria, se há nela um caráter realmente científico; em terceiro, pode-se realizar a comparação entre teorias para verificar se há um avanço, progresso entre elas; e por fim, os testes empíricos das conclusões de uma teoria para verificar se ela resiste a experimentos científicos.
E é Popper (2013, p.34-35) quem nos apresenta o conceito que denomina de o “problema da demarcação”. O autor afirma que a indução não se apresenta como um critério adequado para a realização da demarcação entre o que seria científico e o que não seria. E conceitua o “problema da demarcação” como a questão que se liga ao estabelecimento de um marco que possa determinar a distinção entre o que o autor denomina de “ciências empíricas” e o que ele denomina de “sistemas metafísicos”.
Embora admita que os “sistemas metafísicos” também tenham contribuído para o desenvolvimento científico, Popper considera que a principal tarefa da epistemologia é o desenvolvimento de um conceito de ciência empírica que a demarque de forma clara. (POPPER, 2013, p.40)
Afirma Popper (2013, p.35) que vários autores que se dedicaram às questões epistemológicas já haviam tentado realizar tal delimitação e cita Hume e Kant. Tendo sido Kant, segundo Popper, quem teria colocado essa questão como a central de sua filosofia da ciência.
E apresenta seu critério para a realização de tal demarcação: a falseabilidade. Ou seja, o critério para se determinar que um conhecimento é científico reside não na “verificabilidade” de uma teoria, mas em sua “falseabilidade”, sua submissão a testes contínuos “em sentido negativo”, isto é, que tentem refutar uma teoria científica já estabelecida. (POPPER, 2013, p.42)
Assim, Popper (2013, p. 50) defende que, no âmbito da ciência, não há enunciados que possam ser aceitos como verdades definitivas. Contra o dogmatismo, afirma que toda teoria científica deve estar apta a ser submetida a testes, antes de ser aceita como tal.
Já Paul Feyerabend em seu livro Contra o Método, nos apresenta sua concepção anarquista de desenvolvimento do conhecimento, em que a questão da demarcação é compreendida como uma amarra ao progresso científico.
Feyerabend (1977, p. 29), afirma ser possível verificar, por meio de uma análise do desenvolvimento das teorias científicas, que não há uma regra imutável com fundamento epistemológico que tenha conduzido a descobertas científicas sem que tenha sido corrompida. O rompimento com as teorias epistemológicas sobre como fazer ciência, ou seja, quanto à delimitação do que seria científico, se faz necessário, segundo o autor, exatamente para permitir o progresso científico. Tal progresso é possível, portanto, exatamente porque pensadores não se deixam cercear por tais teorias sobre a produção da verdadeira ciência. Portanto, para Feyerabend (1977, p. 30) tal postura é basilar para a construção de conhecimento, é fundamental que não haja amarras a esse processo.
Segundo Feyerabend (1977, p. 34), desenvolver um “método estático” ou uma “teoria estática” para demarcar a ciência seria uma ingenuidade quanto às características dinâmicas do desenvolvimento humano e social. Mas afirma também haver um princípio fundamental a ser professado como alicerce ao desenvolvimento da humanidade, o que denomina de “vale tudo”.
Feyerabend (1977, p. 43) destaca então que não exitem metodologias que sirvam ao desenvolvimento do conhecimento científico, pelo contrário, todas os métodos científicos são limitados. Assim, todas as ideias e teorias, sejam de que época forem, são importantes para desenvolvimento da ciência, pois, na concepção do autor, a construção científica “absorve toda a história do pensamento” e lança mão dessa história para aprimorar teorias.
É possível depreender da leitura de Contra o Método, que não há, para seu autor uma característica do conhecimento científico que o torne superior a outras áreas do conhecimento. Assim, seu anarquismo epistemológico serviria para promover uma libertação de uma “ciência ideologicamente petrificada”, da mesma forma como ocorreu há alguns séculos com a Religião que teria perdido seu papel de impositora de verdades universais. Feyerabend (1977, p. 464)
Pedro Demo é um filósofo do conhecimento brasileiro que realiza reflexões sobre a construção do conhecimento científico principalmente voltado para o campo das ciência sociais.
Segundo Demo (1985, p.27) afirma em seu livro Introdução à Metodologia da Ciência há inúmeros conceitos ligados à questão da demarcação científica, exatamente porque há muitas ideologias que subsidiam as várias interpretações sobre o que seria ciência e o que seria pseudociência.
Demo (1985, p.27) define ciência como “fenômeno histórico” que se realiza por meio de processo em que os conceitos mudam, se alterna, se contradizem e que nunca termina, há eternamente um novo começo.
Para Demo (1985, p. 32), há cuidados que podem ser tomados para se produzir conhecimento científico relevante, como adotar a coerência, ou seja, a lógica como produção de conhecimento em que a conclusão não contradiz os fatores que a embasam, e ser cuidadoso quanto à questão da intersubjetividade que trata de questões extrínsecas ao produto científico, como a ideologia que sustenta a opinião expressa nos resultados, a base em critérios científicos, o discurso de autoridade e a necessidade de realizar a comparação de forma crítica entre autores para subsidiar o produto do trabalho científico.
Demo (1985, p.27-28) discute ainda o uso do termo “senso comum”, e nos informa que senso comum seria um “conceito acrítico”, se é encarado como não tendo recebido críticas, também seria possível afirmar que as informações são encaradas com base em crença sem julgamento fundamentado, portanto, superficialmente. E a finalidade do conhecimento científico, que não seria neutro, ao contrário, afirma o autor que as ciências são rotineiramente usadas para fins questionáveis como a dominação tecnológica, a guerra e a produção de diferenças sociais.
Susan Haack, no texto Seis sinais de cientificismo (2012), desenvolve suas reflexões sobre a questão da demarcação.
Segundo Haack (2012, p.4), Francis Bacon estava certo, a produção científica moderna tem mudado profundamente a vida das pessoas em todo o planeta, por meio do desenvolvimento de um conjunto de conhecimentos em contínua expansão, que revela o funcionamento da natureza e suas características, permitindo ao ser humano a manipulação de algumas de suas propriedades.
Porém, a autora destaca que os frutos do conhecimento científico não são todos necessariamente bons. A ciência seria então “falível e imperfeita”. E seu desenvolvimento não se daria de uma forma regular e sim de uma forma que não se pode prever. Devido a características defeituosas muitos trabalhos ditos científicos são marcados, segundo a autora, pela falta de criatividade, de cuidado e até pela corrupção nas informações. E também descobertas científicas são utilizadas para maus propósitos. Isso se dá, segundo a autora, pelo fato de o conhecimento poder ser igualado ao poder sendo, portanto, suscetível a abusos. (Haack, 2012, p.4)
Haack (2012, p.4) afirma que há múltiplas formas de se investigar fenômenos, não sendo a ciência a única ou a melhor, e destaca a arquitetura, a história entre outras áreas de produção de conhecimento humano como desenvolvedoras de informação valiosa.
Segundo Haack (2012, p.6), existem “seis sinais” do que ela chama de “cientificismo”, que seriam: 1. o uso honorífico da palavra ciência, ou seja, como um mecanismo de exaltação de um campo de conhecimento; 2. o emprego de termos técnicos científicos desnecessariamente; 3. muito cuidado com a questão da demarcação; 4. a forte atenção com apontar o método como científico; 5. a busca de respostas por meio do conhecimento científico para questões que estão além da ciência; 6. recusar a importância de outras formas de investigação e de conhecimento.
A autora (2012, p.7) destaca que há muitos campos do conhecimento que empregam o título de ciência em sua nomenclatura, como a Ciência da Administração, embora áreas que desenvolvem estudos classicamente considerados científicos como a física e a química não o façam.
Para Haack (2012, p.8) o uso do termo científico ou ciência ligado a uma pesquisa ou campo do conhecimento leva as pessoas a acreditarem de forma não crítica em um conceito, ideia ou produto. Mas destaca que a produção científica, principalmente em sua fase inicial de pesquisa, produz resultados que não necessariamente são satisfatórios e que provavelmente virão a ser rejeitados. E afirma também que há conhecimento científico tão sólido que provavelmente não virar a ser refutado, embora sempre permaneça essa possibilidade, já que o dogmatismo é um conceito rejeitado na ciência.
Segundo Haack (2012, p. 10-11) foi no âmbito do Positivismo Lógico, principalmente, na obra de Karl Popper, que a questão da demarcação tomou corpo, principalmente, em decorrência do uso cada vez mais recorrente do termo “ciência” como um honorífico.
Haack retoma os conceitos de Popper para desenvolver sua reflexão e afirma que os teóricos positivistas tinham na verificabilidade a base da ciência empírica, segundo a autora, Popper alterou essa concepção radicalmente, ao afirmar que vários padrões positivos não demonstram que um enunciado é verdadeiro, apenas um padrão contrário demonstra a falsidade do enunciado. Portanto, é a refutação, o falseamento, o que demarca o que seria a ciência genuína. (HAACK, 2012, p. 10-11)
Porém Haack (2012, p.12) afirma não ser tão claro o critério desenvolvido por Popper e nem mesmo a real necessidade de se demarcar o que seria a ciência verdadeira. Já que não seria, segundo a autora, possível apontar uma distinção clara entre a atividade científica e outras atividades intelectuais humanas. Assim, para Haack, uma conceituação de ciência estará mais próxima de definir o modo como se investiga do que um “corpo de conhecimentos”.
Portanto, segundo Haack (2012, p. 10-19) cientificismo é um termo a ser empregado não a campos do conhecimento apartados da ciência tradicional por meio de critérios de demarcação, mas para a concepção que aponta a “investigação científica” como um modo de produção de conhecimento melhor do que outras formas de interpretação do mundo, como a literatura, por exemplo.
4. Um conceito contemporâneo de ciência
Para se determinar qual seria um conceito de ciência caro à produção de conhecimento científico na atualidade, pode-se utilizar o levantamento de características desse tipo de saber conforme elaborado por alguns autores.
Pode-se apontar que os autores analisados aqui anteriormente, fundamentam suas concepções principalmente na questão de eliminar o dogmatismo da seara científica, ou seja, de encarar o conhecimento científico não como verdade absoluta, mas como um processo marcado pela construção contínua.
Segundo Gerbina (2021, p. 294) as informações derivadas do conhecimento científico deveriam ter algumas características específicas, são elas: objetividade, completude, acurácia, relevância, usabilidade e confiabilidade.
A conclusão de Chalmers (1993, p. 215) é de que não haveria um conceito universal do que seja ciência ou da adequação “atemporal” de um método científico que possa ser utilizado para propósitos de produção de conhecimento diversos, não sendo, portanto, possível excluir campos de produção de conhecimento por considerá-los não adequados à determinados pressupostos teóricos epistemológicos.
O autor afirma ainda que a filosofia da ciência tem demonstrado não haver um fundamento conceitual único do qual teorias científicas possam ser derivadas ou que sejam refutadas de forma conclusiva. (Chalmers, 1993, p. 19)
Para Gerbina (2021, p. 294), há outros fatores que afetam a produção do conhecimento científico e sua validade como tal. Afirma que há dados que informam haver grande uso de plágio e informações falsas por autores no campo da ciência, sendo assim a produção científica que uso dados falsos levaria a geração de informações falsas sobre a ciência. E chama ainda a atenção para o fato de que a ciência tem servido cada vez mais a propósitos políticos.
Nesse contexto, é importante ressaltar o que afirma Ostermann (2011, p. 72), segundo o qual haveria um “compromisso social” do cientista de se comunicar com a sociedade realizando a divulgação científica, já que a postura crítica inerente à produção de conhecimento científico seria benéfica à sociedade.
A ação cada vez mais necessária em uma conjuntura econômica, política e social em que o saber científico é fortemente demandado para a resolução de problemas amplos, como os vivenciados em escala planetária durante a pandemia recente, deve ser o apontado por Moraes (2021) e Chalmers (2013, p. 215), o de fazer uso de disciplinas produtoras de conhecimento relevante de forma interdisciplinar para a melhoraria da consecução de políticas públicas e das condições de vida de toda a população.
Considerações finais
Após apresentar as reflexões históricas e filosóficas de vários autores sobre o conceito de ciência e como a questão da demarcação influencia a prática científica e seu emprego econômico e social, é possível apontar que o conceito de ciência vem sendo desenvolvido há muitos séculos, bem como o estabelecimento de critérios para o método científico.
Porém, os pensadores contemporâneos têm cada vez menos afirmado a necessidade de realizar uma demarcação entre o que seria verdadeiramente produção de conhecimento e científico e o que ficaria de fora desse conceito. A fuga do dogmatismo e de conceitos como pseudociência, centram a importância da produção científica em estar voltada para a construção de meios fidedignos de produção de formas de intervenção na natureza para a resolução de problemas.
Por ter sua prática, principalmente, nos anos recentes marcada pela difusão de notícias falsas sobre a produção científica, passou a ser, portanto, cada vez mais relevante focar os esforços no desenvolvimento de conhecimento marcado pela ética, pela autonomia, pelo pensamento crítico, pela autenticidade fugindo de bases falsas e de informações falsas.
Voltando, assim, os pesquisadores e pensadores seus esforços para o uso do conhecimento e das mais variadas ferramentas de interpretação e intervenção na natureza para a realização positiva da vida humana, como desejado por Francis Bacon e pela maioria da população deste planeta.
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1Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Artigo apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina de Epistemologia.