REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11580831
Amanda Caroline Martins Barboza Nunes¹;
Rita de Cássia Pessoa Nocetti².
RESUMO
Esse texto resulta de uma pesquisa bibliográfica e documental, que articulou aparência e essência, para investigar os contornos do processo de uberização das relações profissionais, a partir da análise crítica da influência das lawtechs na advocacia brasileira. Os recentes e crescentes avanços tecnológicos têm transformado todas as relações sociais, mas com mais intensidade as relações profissionais. Com o uso de algoritmos, o controle do comportamento social torna-se cada vez mais evidente, formando um emaranhado de mediações que, de alguma forma, obscurecem as novas conformações da prestação de serviços de toda espécie. Nesse cenário, o movimento de uberização das relações profissionais, que tem sido entendido como representativo do modo de expansão de startups que se amoldam à empresa Uber, vem promovendo uma metamorfose no sistema capitalista, com suas tecnologias computacionais de organização do trabalho, proporcionando a apropriação das forças produtivas, advindas da interação social em aplicativos digitais. Observou-se que, em um contexto singular, a advocacia sempre apresentou-se como um terreno fértil para a expansão do capital sobre as diversas possibilidades de produção, circulação e apropriação de valor, porém, mais recentemente, de modo mais intenso, por meio das lawtechs. Como resultado, a pesquisa revela riscos decorrentes da expropriação da autonomia dos profissionais da advocacia e, de modo propositivo, oferece insights sobre as transformações no mercado da advocacia brasileira, destacando a necessidade de adaptação e inovação, incorporando novas tecnologia e atuando em nichos, para enfrentar essas mudanças estabelecendo diferenciais competitivos no mercado.
Palavras chave: Advocacia Digital. Lawtechs. Uberização da Advocacia.
1. INTRODUÇÃO
Desde que uma empresa norte-americana, em meados de 2010, na cidade de São Francisco, Califórnia, desenvolveu um aplicativo para otimizar a mobilidade, com foco inicial no serviço com carros de luxo, e que passou a expandir sua área de atuação, bem como o seu portfólio de serviços, a vida mudou. Essa empresa é a Uber.³
A Uber chegou ao Brasil em 2014, na cidade do Rio de Janeiro. Desde então, o mercado de trabalho intermediado por aplicativo alastrou-se, abarcando inúmeros seguimentos, ou mesmo setores da economia, afetando direta e irreversivelmente a prestação de serviços e a comercialização de produtos.
Essa crescente intermediação da prestação de serviços, através dos aplicativos, no mercado de trabalho brasileiro, passou a ser denominada como a “uberização” do trabalho, quase sempre usada como um sinônimo de precarização das relações de trabalho.4
Não há dúvidas de que o tema do trabalho executado por intermediação de aplicativos é um tema tanto atual quanto sensível. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua, que analisou Teletrabalho e Trabalho por Meio de Plataformas Digitais (IBGE, 2023), dentre 1,5 milhão de pessoas que prestam serviços intermediados por plataformas digitais, os aplicativos de transportes lideram o ranking com aproximadamente 704 mil pessoas.
Esse primeiro dado demonstra a velocidade de disseminação dessa ideia entre diversas atividades laborais, de modo significativo. Ou seja, há muito o trabalho por meio de plataformas digitais deixou de ser exclusividade do setor de transportes. A mesma pesquisa apontou, também, que o grupo de 25 a 39 anos correspondia a quase metade (48,4%) das pessoas que trabalhavam por meio de plataformas digitais (IBGE, 2023).
Ante essa realidade, não seria apressado dizer que a familiaridade da jovem advocacia com as tecnologias, a necessidade de estabilidade financeira e o impulso social, no sentido de “forçar” uma espécie de necessidade reafirmação do seu status de pessoa competente, agora, depois da graduação, conquistando bens materiais e alcançando êxito na sua profissão, o quanto antes, tornam esses ingressantes na carreira da advocatícia o público alvo das lawtechs.
Sendo as expressões “uberização” e “lawtechs” relativamente novas, com desenvolvimento conceitual de certo modo ainda precário, nesse trabalho, ambas expressões representam um tipo de prestação de serviço intermediado por aplicativos ou por plataformas digitais.
Nesse sentido, o uso massivo de tecnologia no dia a dia, nos processos produtivos, não faz da empresa ou do profissional um “uberizado”, pois, o ponto central da uberização não está no processo produtivo, mas na forma como se dá a relação entre o cliente, aquele que está na outra ponta da prestação do serviço, ou seja, o consumidor, e o prestador dos serviços. Assim, pelo menos no desenvolvimento dessa pesquisa, a presença da figura do intermediador foi considerada quesito fundamental para a caracterização da uberização das relações.
Na mesma direção, considerou-se como lawtech a empresa que se interpõe na relação entre um advogado ou um escritório de advocacia e seus clientes. Simplificando, uma lawtech é uma espécie de “Uber da advocacia”.
Nesse contexto, partindo da hipótese de que a “uberização” do trabalho tem levado a uma transformação significativa na natureza das relações profissionais, especialmente no Brasil, afetando, inclusive, a advocacia, essa pesquisa de natureza bibliográfica e documental, voltou o olhar para o seu objeto, por meio de uma análise crítica do processo de uberização das relações profissionais, mais especificamente, para a influência das lawtechs na advocacia brasileira.
Com o foco no objetivo geral da pesquisa, de analisar os impactos da “uberização” nas relações profissionais, especialmente, a influência das lawtechs na advocacia, visando compreender a complexidade desse fenômeno e suas implicações na sociedade e no mercado de trabalho brasileiros, de modo a estruturar os dados, definiram-se três objetivos específicos: i) analisar a evolução histórica da uberização no Brasil, identificando os elementos constitutivos das relações estudada, para estabelecer critérios de apreciação; ii) avaliar os dados identificados, na busca de compreender os impactos sociais, econômicos e, especialmente, jurídicos, decorrentes dessas relações “uberizadas”; iii) apontar prováveis tendências das relações profissionais mediadas por aplicativos, indicando, nesse caso, as possíveis mudanças na advocacia.
Como resultado dos procedimentos de análise, com um viés científico próprio das ciências jurídicas, estruturou-se a abordagem do tema em três partes (que resultaram nos tópicos centrais desse texto), por meio de uma dialética básica de aproximação, avaliação e projeção.
Por aproximação entendeu-se a tarefa de pesquisa de reconhecimento do contexto, para, então, identificados os elementos constitutivos das relações estudadas, estabelecer critérios de apreciação, evitando, sobretudo, os preconceitos.
Na avaliação dos dados e dos aspectos críticos, previamente identificados, a busca voltou-se para uma tentativa de compreender os impactos sociais, econômicos e, especialmente, jurídicos, decorrentes dessas relações.
No exercício de projeção, buscou-se identificar possíveis tendências, procurando evitar, o quanto possível, a pressa em produzir generalizações, reconhecendo a existência de nuances expressivas entre relações profissionais de uma atividade tão diversa em sua essência, como é o caso da advocacia.
Considerando a complexidade do tema, a abordagem norteou-se o tempo todo por meio de uma questão chave, a mesma que definiu o problema de pesquisa e, por isso mesmo, direcionou essa investigação: de que modo o processo de uberização das relações profissionais tem influenciado, por meio das lawtechs, a advocacia brasileira?
Ao intentar responder essa questão chave, chegou-se ao presente texto, estruturado em seis seções distintas, contando a partir da introdução, aqui apresentada, em seguida, na segunda seção, ocorre a descrição da metodologia utilizada, na terceira seção, apresenta-se a revisão da literatura, centrada na abordagem dos pontos chave dessa pesquisa, permitindo uma observação do contexto atual, na quarta seção, apresenta-se perspectiva analítica da pesquisa, na quinta seção, encontra-se o viés prospectivo da análise, e, por fim, as considerações finais acerca da pesquisa realizada encerram o texto.
Cabe ainda dizer que, embora existam diversos estudos sobre o processo de uberização das relações profissionais, permanecem raras as pesquisas que enfrentam esse tema do ponto de vista aqui abordado, centrando-se na correlação entre as lawtechs e a advocacia, tanto mais sob a perspectiva crítica aqui desenvolvida, com uma análise interdisciplinar e, principalmente, humanística, observando-se as expectativas sociais e as competências imprescindíveis ao exercício profissional da advocacia brasileira, num contexto de acelerado avanço tecnológico.
2. ENQUADRAMENTO METODOLÓGICO DA INVESTIGAÇÃO
A presente pesquisa é de base qualitativa, onde foram analisados documentos normativos brasileiros, nos sites oficiais do governo.
Na construção da base bibliográfica da pesquisa foram identificadas referências teóricas, utilizando para a busca desses textos os conceitos: “relações profissionais”, “terceirização”, “uberização”, “lawtechs” e “estruturas sociais produtivas”.
De início, porém, partiu-se da expressão “lawtech”. Quando pesquisado esse termo na plataforma Scielo, obteve-se como resposta um único artigo científico.5 Com relação ao Google Acadêmico, observou-se um grande número de resultados,6 entretanto, não com o mesmo enfoque desta produção.
Em busca de outras fontes teóricas, foram apontados dilemas e análises de vários autores, acerca das relações que envolvem a cooptação da força de trabalho, por meio do uso de tecnologias, particularmente por meio de aplicativos de intermediação de prestação de serviços.
A partir daí, a pesquisa adotou uma abordagem analítica de textos científicos, levando-se em conta o que propõe Severino (2013):
A pesquisa bibliográfica é aquela que se realiza a partir do registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos, como livros, artigos, teses etc. Utiliza-se de dados ou de categorias teóricas já trabalhados por outros pesquisadores e devidamente registrados. Os textos tornam-se fontes dos temas a serem pesquisados. O pesquisador trabalha a partir das contribuições dos autores dos estudos analíticos constantes dos textos. (SEVERINO, 2013, p. 106).
Tendo em vista a ausência de pesquisas empíricas que analisem o impacto desse tipo de inovação tecnológica especificamente no campo do Direito, o método adotado foi de base inicialmente exploratória, buscando levantar informações sobre as lawtechs existentes e suas principais características, delimitando, assim, o campo de análise da pesquisa, mapeando as condições de entendimento por onde o papel da advocacia poderia ser analisado em seus desdobramentos.
Na sequência, a pesquisa bibliográfica passou a receber tratamento distinto, tornando-se uma investigação mais voltada para um eixo explicativo, nos aspectos que envolviam a perspectiva mais propositiva das análises.
A pesquisa explicativa, dirá Severino (2013), é aquela que, além de registrar e analisar os fenômenos estudados, busca identificar suas causas, seja através da aplicação do método experimental-matemático, seja através da interpretação possibilitada pelos métodos qualitativos. Assim foi feito, pela interpretação que os métodos qualitativos permitiram, no terceiro tópico dessa pesquisa.
3. DILEMAS MODERNOS NO MUNDO DO TRABALHO
Ao buscar reconhecer o contexto em que se desenvolvem as lawtechs, bem como, identificar os elementos constitutivos desse tipo de relação profissional, deve-se, num primeiro momento, abrir o horizonte de análise, tornando possível observar intensas e ininterruptas relações produtivas, nas quais a humanidade tem desenvolvido modelos de organização, visando o melhor desempenho e aumento de produtividade. Muitas dessas alterações racionais do ambiente tornam as relações de trabalho cada vez mais complexas e simultaneamente mais sofisticadas (BOHLANDER; SNELL, 2015).
Nesse contexto, a profissionalização dos diversos tipos de trabalho pode ser caracterizada pela presença de três movimentos: “conduzir um devir, mobilizar a experiência passada e antecipando o porvir” (ZARIFIAN, 2012, p.10). Nesse sentido, exercícios constantes de reflexão e planejamento induzem os agentes de um processo produtivo, de qualquer natureza, ao ato de se profissionalizar.
Nota-se, assim, que a necessidade de produzir mais tende a aumentar a divisão do trabalho, parcelando, desvalorizando e simplificando o trabalho individual, transformando o trabalho coletivo na somatória imprecisa de objetivos particulares, promovendo condições para sua autovalorização (FESTI, 2018).
Essa divisão de trabalho implica a divisão de tarefas entre os trabalhadores. No entanto, os distintos conteúdos e a justificação que fornecem sentido para cada tarefa e os modos precisos como estas devem ser operadas, com suas prescrições tão exatas, alimentam uma comprometedora distância entre o profissional e o trabalho que lhe é prescrito.
Esse distanciamento é expresso na forma de objetivos, de padrões, de regras, de normas e de procedimentos cada vez mais técnicos. Com essa tecnicidade, composta por elementos mais complexos, realizam-se fortes pressões sobre os profissionais e tende-se a regulamentar todo tipo de atividade, reduzindo-as, tão somente, ao domínio de técnicas (FESTI, 2018).
Essa perigosa fragmentação do trabalho, mascarada tantas vezes em padronização e programação de processos, expressa-se na redução da subjetividade, implicando perda de participação do trabalhador na concepção da tarefa e induzindo-o apenas para o aprimoramento da execução (RUAS, 1985).
Em meio a esse reducionismo, a sociedade, que está sedimentada na troca entre capital e trabalho, na qual o trabalho não é apenas um meio de realização do ser humano, mas principalmente uma forma de subsistência física do trabalhador — sem uma proteção minimamente adequada — a própria pessoa humana está se transformando em coisa (mercadoria), não apenas durante o tempo de trabalho (SOUTO MAIOR, 2019).
Essa sequência de expropriação da autonomia e do próprio sentido do trabalho, apresenta-se como uma das características do trabalho na área da advocacia, que se destacou, desde o início, pelo fato de ser relacional em sua essência e, além disso, imprimir rapidamente a alta utilização de tecnologias inovadoras.
Essa característica relacional pressupõe que esse tipo de atividade produtiva traga em si um saber próprio que, ao ser utilizado, permite executar determinadas tarefas que podem conduzir seus agentes a um processo produtivo racional, ou mesmo mecanizado (FERREIRA; TAMAYO, 2001), por mais que no gabinete de um escritório de advocacia predominem as operações intelectuais.
Sendo essa dimensão relacional concebida, analisada e avaliada conforme o referencial individual de cada profissional, segundo sua própria subjetividade, torna-se impossível separar o pessoal do profissional, considerando que essa persona é conduzida por sua cadeia de valores, hábitos, crenças e escolhas, que lhe conferem particularidade à leitura e à interpretação da realidade que o cerca (FLEURY, 2002).
Um profissional ou uma profissional da advocacia convive, cotidianamente, com grandes pressões, contrassensos e pares paradoxais, como “justiça e injustiça”, “moral e imoral”, “vida e morte”, coexistindo nos processos de construção de relações entre sua própria pessoa e o seu “objeto” de trabalho, uma ação intensa, intrínseca e humanamente vinculada, configurando-se, assim, ao mesmo tempo, como uma ação produtiva e de interação social.
No entanto, no ambiente dos serviços advocatícios amparados por lawtechs, observa-se que o trabalho coletivo costuma ser organizado, por vezes, de forma taylorista7, fragmentando as atividades produtivas em células de trabalho,8 executadas por profissionais especializados em cada uma das áreas do direito, prezando pela necessária divisão da sua tarefa.
Com uma divisão tecnicista do trabalho, como um legado do sistema de produção capitalista, que acaba por determinar um padrão dos processos de forma hierarquizada, retira-se do profissional da advocacia a possibilidade de pensar a concepção de suas próprias tarefas e controlar seus próprios processos de produtivos. Como resultado, surge significativa redução da ação autônoma e, consequentemente, a alienação desse profissional.
Nesse sentido, os processos de hoje recuperam a perspectiva de Robert Linhart (1977), que conclui que: “numa análise do modo de produção capitalista ‘puro’, a ‘organização científica do trabalho’ de Taylor é a que se encontra melhor colocada para encarnar o processo de trabalho capitalista, reconduzido à sua essência” (LINHART, 1977, p. 89).
Com a intermediação da tecnologia, o viés dos profissionais da advocacia passa a ser o viés dos processos, que, por sua vez, passam a ser a execução de procedimentos repetitivos, em um tempo especializado, que, com o passar do tempo, subtraem do executor a possibilidade de aprimorar o processo criativo e a capacidade de decidir sobre o caso concreto. Daí a necessidade de procurar compreender os impactos da adoção quase que indiscriminada de serviços de intermediação por aplicativos.
4. POSSÍVEIS IMPACTOS DAS LAWTECHS NA ADVOCACIA
Nesse contexto, mesmo no mais tradicional escritório de advocacia, que resiste o quanto pode aos avanços tecnológicos, onde se aborta, inclusive, elementos básicos da administração empresária, não trabalhando com planejamento, suprimindo a participação dos trabalhadores no processo decisivo, deixando de promover a integração interdisciplinar dos conhecimentos e das boas práticas em administração, ainda assim, a própria essência da atividade conduz as tarefas no sentido da fragmentação, promovendo, por meio da especialização, a alienação (SIMÕES, 2018).
Como consequência, os modelos de gestão absorvem uma quantidade significativa de dominação e controle, com uma organização dos processos de trabalho, sob rígida divisão de tarefas e não-valorização dos saberes e das experiências dos colaboradores, alimentando a alienação e a consequente não-responsabilização nas etapas do atendimento (DEJOURS, 1994).
Os modelos rigidamente estruturados do trabalho implicam uma relação estreita entre profissional-cliente, com redução do universo das necessidades e dos conhecimentos específicos necessários, tornando tal processo tantas vezes previsível. Essa rigidez pode fazer com que os agentes sofram significativa redução do protagonismo profissional, especialmente no campo da advocacia, assumindo a condição de executores de rituais, trocando a complexidade da vida pela simplificação do raciocínio, transformando os procedimentos em atos rotineiros eficientes em si e validados pela impassibilidade da exatidão científica (CUNHA, 2018).
A possibilidade de autogoverno e da cooperação entre uma equipe de profissionais da advocacia, caracterizada pela autonomia, ante as diversas necessidades da rotina profissional, pode estabelecer mudanças a partir da própria intersubjetividade dos agentes, ou seja, tomadas de decisão baseadas nas expectativas, nos valores, nas prioridades, nas necessidades e nas experiências de cada indivíduo, tornando os agentes em sujeitos da ação (CUNHA, 2018).
Procedimentos estabelecidos sob esse prisma do protagonismo podem tornar os profissionais mais aptos a criar e reinventar formas de trabalhar cotidianamente, interferindo positivamente na forma e nos resultados, possibilitando, ainda, a configuração de novos formatos tecnológicos (CUNHA, 2018).
Durante a ação, os profissionais poderão tanto adotar o que já está estabelecido, construído, quanto exercer autonomamente novas formas de produção. Esse espaço para o exercício da autonomia pressupõe a criatividade como uma possibilidade premente, podendo ser explorada para reinventar procedimentos e pensar dimensões ainda não exploradas. Mesmo nos processos mais comuns, há possibilidade de se formar abertura para o questionamento da lógica produtiva, rigidamente estruturada, podendo o colaborador perceber “pontos de fuga” que ampliem sua percepção e sua autonomia (CUNHA, 2018).
Um exemplo de reinvenção de procedimentos comuns pode ser visto no surgimento de startups que prestam assessoria jurídica, no âmbito de processos administrativos, especialmente, em casos de indenizações decorrentes de falhas na de prestação de serviços por parte de companhias aéreas.
Essas startups aproveitaram o cenário favorável, considerando o número significativo de processos contra as companhias aéreas e a formação de uma jurisprudência aderente, pautada na peculiar proteção que o consumidor brasileiro recebe, sob a tutela da Lei no 8.078/1990, o Código de Defesa do Consumidor.
Com práticas nada convencionais,9 essas startups criaram novos modelos de negócio, que contam com estratégias de marketing de massa, em ações e campanhas de comunicação, impactando o maior número possível de pessoas, com anúncios pagos em redes sociais.
Com isso, essas empresas experimentam um crescimento meteórico e atraem mais investimentos, tornando-se, rapidamente, empresas de grande porte, com potencial maior ainda de captação e de fidelização de clientes.
Para a advocacia, esses tipos de ações publicitárias são consideradas, quase todas, ilícitas, sendo vedadas pela Lei nº 8.906/1994, o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pelo provimento nº 205/2021 da OAB, que dispõe sobre a publicidade e a informação da advocacia, e pelo Código de Ética e Disciplina da OAB.10
A exemplo dessas práticas “agressivas”, em muitos casos, o consumidor lesado pode receber antecipação de pagamento, pelo dano sofrido, sendo depositado, diretamente na sua, uma conta uma quantia fixa, em até 48 horas, desde que abra mão de quaisquer valores a serem recebidos no futuro em razão dos danos sofrido¹¹, ou então, essas startups podem negociar, sob instrumento de representação, uma indenização com a companhia aérea e, nesses casos, ela fica com 30% a 50% do valor.¹²
Nesse contexto de disputa de mercado, muitas dessas startups têm contado com o apoio da Associação de Defesa dos Direitos dos Passageiros Aéreos (ADDPA), por vezes, e até mesmo de empresas do setor afetado, como, p.ex., o caso da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (ABEAR), além delas mesmas, as startups, estarem organizadas em associação, como a Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L).
Em defesa de sua atuação, parte dessas startups argumentam estarem amparadas pelo que institui os artigos 286 e 298, da Lei nº 10.406/2002 (Código Civil), e na Lei nº 13.140/2015 (Lei da Conciliação e Mediação), por entenderem que atuam na mediação como meio alternativo de resolução de conflitos, atuando no âmbito extrajudicial, e apostam também na liberalidade contratual por parte do consumidor.
Contudo, para além desse trabalho concorrencial, os casos que se adequam ao objeto dessa pesquisa são os de startups que, de fato, atuam para a uberização da advocacia, com a intermediação entre os clientes e os advogados, como acontece, p.ex., com a empresa Resolvvi.¹³
Essa startup criou um banco de prestadores de serviços de advocacia, denominado “Diretório de Advogados Resolvvi”, por meio do qual promete ao advogado cadastrado o acesso a casos e problemas de consumidores de todo o país. No passo a passo para o cadastramento, apresentado pela empresa, fica evidente o espelhamento do modelo de negócio da Uber e a ação de intermediação da atividade advocatícia:
- Cadastre-se – Faça o seu cadastro agora mesmo! Podem se cadastrar advogados e escritórios de advocacia.
- Aguarde para completar seu perfil – Seu cadastro será analisado e nossa equipe entrará em contato para completar o seu perfil.
- Esteja disponível para consumidores de todo o Brasil – Através da plataforma, consumidores de todo o Brasil entrarão em contato e você aplicará sua expertise para gerar o melhor resultado para o seu cliente.
- Utilize a tecnologia da Resolvvi – Utilize a tecnologia da plataforma para se conectar com seus clientes e para gerir seus pedidos.14
Para apontar, aqui, um dos impactos diretos dessa uberização, cita-se um dado da PNAD Contínua, que aponta uma renda mensal entre as pessoas “plataformizadas” com o nível superior completo, com rendimento médio de R$ 4.319,00, que era 19,2% inferior ao daqueles que não trabalhavam por meio de aplicativos de serviços, com renda média de R$ 5.348,00 (IBGE, 2023).
Além da remuneração menor, pode-se dizer que aqueles que atuam por meio de plataformas digitais perdem o locus de controle do seu negócio, transferindo as principais decisões estratégicas para terceiros, elevando o risco-proveito da sua atividade profissional.
Como os protagonistas desse movimento de uberização atuam na falta da intervenção legislativa para regulamentar essa inovação, a OAB tem se posicionado contrariamente à sua expansão, apoiando-se no Estatuto da Advocacia e no Código de Ética e Disciplina, propondo diversas ações em todo o território nacional, com pedido de antecipação de tutela para impedir a atuação dessas empresas, obtendo êxito em muitos desses processos, como p.ex., na 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro, que condenou a empresa Zamorfe Mediacoes Administrativas Ltda., controladora do site Liberty Fly, a se abster de praticar qualquer ato de anúncio, de publicidade ou de divulgação de oferta de serviços consistentes na angariação ou captação de clientela, por qualquer meio, físico ou digital. Segundo a OAB, somente até 2021, já haviam sido enviadas 99 notificações às startups, de um total de 132 empresas investigadas, das quais, 32% são de SP, 13% do RJ, 9% de MG e o restante distribuído por diversos outros estados, sendo que dessas notificações, pelo menos 10 ações judiciais foram movidas.15
Com isso, tem sido possível reduzir a velocidade de expansão das lawtechs ou mesmo restringir seu campo de atuação, momentaneamente, mas, muito provavelmente trata-se de um movimento irreversível, de modificação das estruturas das relações profissionais, com mudanças disruptivas na forma da prestação de serviços, da advocacia brasileira. O exercício de perceber a direção para onde aponta esse movimento, apresentase como um desafio, como o reconhecimento de um território a ser desbravado, em uma rota que se apresenta, até o momento, como um futuro inevitável, onde o papel da Ordem será basicamente “periférico”, delineando as ações de marketing, de publicidade e de captação de clientela.
5. DESAFIOS CONCRETOS E OPORTUNIDADES PROMISSORAS
Esse trabalho jamais teve a pretensão de apresentar soluções, ou mesmo, trazer respostas definitivas, mas, ainda que de modo incipiente, não se furta da possibilidade de apontar algumas pistas, mesmo que em forma de alertas, para que se possa avaliar, com clareza, os riscos e, quiçá, mitigar alguns dos impactos negativos do processo de uberização da advocacia brasileira.
Considerando os avanços recentes da Inteligência Artificial (IA) e a crescente facilidade de acesso aos recursos tecnológicos que fazem uso dela, observa-se uma primeira e mais evidente tendência, de que as tarefas afeitas às rotinas administrativas repetitivas, em alguma medida mecânicas, como a criação e a observação de checklist, ou ainda a identificação e qualificação de partes, triagem de jurisprudência, itemização das peças processuais (inicial, contestação, apelação, etc.), redação de peças jurídicas, o controle de prazos, isso e muito mais, possam ser realizadas pela inteligência artificial, com alto grau de precisão com velocidade infinitamente superior à humana (CUNHA, 2018).
Desde sempre, os muitos avanços tecnológicos vendiam a ideia de que as pessoas passariam a ter mais tempo livre e que os profissionais teriam a oportunidade de dedicarem-se às atividades mais estratégicas ou mesmo mais complexas, ou ainda ampliar sua rede de contatos.
Contudo, a prática demonstra uma tendência de aumento da produtividade, sem que isso reverta-se em aumento de ganho, traduzindo-se em otimização da mão de obra ou, simplificadamente, o bom e velho “mais por menos”. Afinal, está mais que evidente, e não é de hoje, que os clientes buscam a entrega de serviços com qualidade cada vez mais patente, a um custo cada vez menor. Essa lógica está presente na prestação de serviços advocatícios, e estará cada vez mais, aumentando a pressão por resultados.
Soma-se a isso a força disruptiva da inteligência artificial, capaz de fazer ruir todos os paradigmas atuais de modelo de prestação de serviços advocatícios. Ou alguém seria capaz de duvidar que os serviços advocatícios que serão prestados em uma ou duas décadas em nada se assemelharão ao que é realizado hoje em dia?
A esse respeito, destaca-se o alerta de Ritcher (2017, p. 51):
Posto que é inevitável o avanço tecnológico sobre a vida em sociedade, como já́ vem acontecendo, notadamente, há anos. Se aquele que presta serviços advocatícios não ficar a par da metamorfose social causada pela tecnologia – a exemplo do advogado que não se adaptou à máquina de escrever e continuou a redigir suas peças processuais à punho – perderá o bonde da história, e o modelo de serviço que presta à sociedade acabará por sucumbir.
Se a tecnologia é o grande diferencial das lawtechs, provavelmente, qualquer que seja a estratégia de defesa a ser adotada pelo profissional da advocacia, especialmente aquele que não vê a possibilidade de atuar como um “uberizado” ou “plataformizado”, deverá buscar incorporar as inovações disponíveis e procurar identificar um nicho de atuação onde suas habilidades sejam reconhecidas como um diferencial competitivo a ser explorado.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se notar que essa pesquisa apenas tangenciou as questões normativas capazes de frear os avanços tecnológicos das lawtechs sobre a advocacia. Antes, partiu-se da presença disruptiva dessas startups no cotidiano dos profissionais do direito, como um dado concreto, de uma realidade que não dá sinais de reversibilidade.
Observou-se, num primeiro momento, que a necessidade social de produzir cada vez mais acaba por gerar uma infinidade de camadas no trabalho, de divisão e subdivisão, parcelando as tarefas em etapas e procedimentos racionais e, com isso, simplificando o labor individual. Assim, ao mesmo tempo, desvalorizam-se essas pequenas atividades, exercidas à exaustão, transformando o trabalho coletivo numa somatória imprecisa de objetivos particulares, promovendo um movimento cíclico e constante de apropriação da experiência (passado), buscando modificar a realidade (futuro).
Nessa dimensão mecanicista, na avaliação dos possíveis impactos das lawtechs sobre a advocacia, analisou-se tanto a força dessas startups que utilizam estratégias agressivas de marketing, numa disputa concorrencial desproporcional, em desfavor da advocacia, quanto a uberização propriamente dita da advocacia, por meio de plataformas de tecnologia que se propõem a conectar os advogados com clientes em todo território nacional.
Nesse caso, as tentativas de interromper a expansão das lawtechs não mostram sinais de reversibilidade dessas mudanças disruptivas que, certamente, deverão transformar a prestação de serviços da advocacia brasileira a curto e médio prazos.
No exercício de projeção, buscou-se identificar possíveis tendências, como a necessária incorporação de tecnologias que assumam a reprodução de rotinas administrativas repetitivas, por meio do uso de inteligência artificial, aumentando a produtividade, sem que isso reverta-se, necessariamente, em aumento de ganho.
Apontou-se, ainda, como possível estratégia de defesa, além da incorporação de tecnologia, a atuação em nichos, priorizando aqueles que demandem as habilidades próprias de cada profissional, estabelecendo um diferencial competitivo no mercado.
Por certo, cabem diversos estudos, com distintas perspectivas, sobre esse mesmo processo de uberização das relações profissionais da advocacia, mesmo porque, como visto, ainda são escassas as pesquisas que confrontam os pontos críticos da correlação entre as lawtechs e a advocacia.
3Cf.: https://www.uber.com/pt-br/newsroom/fatos-e-dados-sobre-uber/.
4A esse respeito ver: A ADVBOX. Uberização: como ela afeta o mercado advocatício? Disponível em: https://blog.advbox.com.br/uberizacao-no-trabalho/. E também o texto de Eugênio Bortolon (2023), que entende que tanto a terceirização quanto a uberização precarizam as condições de vida dos trabalhadores.
5Verificar em: https://www.scielo.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S218395222021000100123&lang=pt.
6Aproximadamente 288 artigos científicos. Verificar em: https://scholar.google.com.br/scholar?hl=ptBR&lr=lang_pt&as_sdt=0%2C5&q=lawtech&btnG=.
7Expressão da administração que se refere a Frederick Taylor (1856 – 1915), o qual tinha por objetivo melhorar os processos produtivos, produzindo em menos tempo, mantendo a qualidade. Ele acreditava que a administração tinha que ser vista como uma ciência e isso consistia em que suas ações fossem padronizadas de acordo com um estudo minucioso do tempo e dos movimentos usados pelos operários de acordo com suas funções. Para Taylor, o operário deveria saber realizar apenas a sua função específica porque analisar às demais funções ou o processo era perda de tempo e consequentemente de dinheiro (Cf. TEIXEIRA, 2014).
8O modelo conhecido como Toyotismo conduziu os processos administrativos a uma estruturação eficiente da rede de fornecedores, estrategicamente dispostos e sob o jugo do zero defeito, com a entrega de quantidades exatas em prazos exatos, minimizando a constituição de estoques e diversificando a cadeia de produção, dando agilidade logística ao transporte e armazenamento de materiais escalares, que seriam “agregados” nos objetos de base nas fábricas, chamadas de “montadoras” (VERRI, 2014).
9A esse respeito ver: Judicialização do setor aéreo. Startups prometem indenização por problemas no setor aéreo, para OAB, serviço é ilegal. In: portal de notícias, Migalhas, edição 5.808, de 18 de fevereiro de 2020.
10Publicado no Diário da Justiça, Seção I, do dia 01.03.95, pp. 4.000/4004.
¹¹Estratégia adotada, por exemplo, pela QuickBrasil (Cf.: https://quickbrasil.org/landing/).
¹²Por exemplo, as empresas: AdvogadoAereo, Aéreo Indenizações, Aeroindeniza, DireitoNoAr, Indenizando, LiberFly e Resolvvi.
¹³https://www.resolvvi.com
14Disponível em: https://www.resolvvi.com/faca-parte-do-diretorio-de-advogados-resolvvi/.
15Cf.: https://startups.com.br/noticias/oab-x-legaltechs-afinal-startups-podem-ameacar-o-futuro-da-advocacia/#:~:text=O%20bafaf%C3%A1%20%C3%A9%20que%20a,total%20de%20132%20empresas%20investigadas.
REFERÊNCIAS
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¹Graduanda em Direito, pela Faculdade Católica de Rondônia. E-mail: karolmtrm@gmail.com
²Professora universitária. Especialista em Direito e Processo do Trabalho, PUC/MG. Mestre em Direito Socioeconômico, PUC/PR. Doutora em Educação, UNIVALI/SC. E-mail: ritanocetti@gmail.com