REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8338545
Carla Karine Amaral Rosa1
Maria Fernanda Lacerda De Melo E Silva2
Catiene Magalhães De Oliveira Santanna3
RESUMO
A chegada das criptomoedas revolucionou as relações econômicas existentes, gerando a necessidade de regulamentação por parte dos entes governamentais, especialmente no que diz respeito à tributação desses ativos. O Direito Tributário brasileiro possui hoje o desafio de lidar com as criptomoedas, marcadas tanto pela reflexão relacionada à própria natureza do criptoativo como pelo exame indispensável à capacidade contributiva dos indivíduos que se aventuram na utilização dessas moedas virtuais. O presente trabalho tem como objetivo central analisar a forma atual de tributação presente no ordenamento brasileiro, bem como a forma mais adequada de regulamentação desses criptoativos. Para tanto, utilizou-se pesquisa documental exploratória para realizar uma análise da natureza jurídica das criptomoedas, além da avaliação das modalidades de tributos atualmente aplicáveis, e as tentativas de regulamentação realizadas pelos legisladores brasileiros, dados esses obtidos por meio de livros, artigos e publicações periódicas relativas ao campo tributário. Ao término da análise realizada, concluiu-se que a maneira mais adequada de avaliar a incidência de tributos sobre os ativos virtuais é atribuir uma natureza jurídica híbrida às criptomoedas, de forma a observar sua aplicabilidade no caso concreto para determinar o fato gerador do tributo. Os regimes jurídicos presentes no ordenamento brasileiro ainda não alcançaram um consenso acerca dos criptoativos, portanto se faz necessária a regulamentação do uso das criptomoedas, visando a assegurar o princípio da segurança jurídica.
Palavras-chave: Criptomoeda; Natureza jurídica; Regulamentação; Tributação.
ABSTRACT
The arrival of cryptocurrencies has revolutionized existing economic relations, generating the need for regulation by governmental entities, especially regarding the taxation of these assets. Brazilian Tax Law today has the challenge of dealing with cryptocurrencies, marked both by reflection related to the very nature of the crypto-asset and by the indispensable examination of the contribution capacity of individuals who venture into the use of these virtual currencies. This paper aims to analyze the current form of taxation present in the Brazilian legal system, as well as the most appropriate way to regulate these crypto assets. To this end, exploratory documentary research was used to conduct an analysis of the legal nature of cryptocurrencies, in addition to an assessment of the currently applicable tax modalities, and the attempts at regulation made by Brazilian legislators, data obtained through books, articles, and periodicals related to the tax field. At the end of the analysis, it was concluded that the most appropriate way to assess the incidence of taxes on virtual assets is to attribute a hybrid legal nature to cryptocurrencies, to observe its applicability in the concrete case to determine the taxable event. The legal regimes present in the Brazilian legal system have not yet reached a consensus about crypto assets, therefore it is necessary to regulate the use of cryptocurrencies to ensure the principle of legal certainty.
Key words: Cryptocurrency; Legal nature; Regulation; Taxation.
INTRODUÇÃO
Dentro de um contexto recente de diversos avanços no campo da tecnologia, principalmente no que diz respeito à facilitação das transações financeiras e relações negociais, surgem as criptomoedas, um tipo de ativo que objetiva a descentralização das relações econômicas, possibilitando a realização de operações financeiras sem a necessidade de autoridades centrais validadoras das transações. Entretanto, com a chegada desse novo sistema, tornou-se necessária a regulamentação dessas operações, tanto para garantir a segurança jurídica nesse comércio, quanto para permitir a tributação delas.
Diante disso, este artigo levanta a seguinte questão: qual seria a forma de incidência dos tributos sobre os criptoativos no Brasil? Com base neste questionamento, este trabalho busca esclarecer se a visão da natureza jurídica híbrida das criptomoedas é o tratamento mais adequado à temática.
Na presente pesquisa, teremos como objetivo geral a análise da forma atual de tributação das criptomoedas. Para tanto, no capítulo um, iniciaremos com um estudo da natureza jurídica e econômica das criptomoedas, e o reflexo desta classificação na possibilidade de tributação delas. Após essa definição, o capítulo seguinte investigará as modalidades de tributos que atualmente são consideradas aplicáveis às moedas virtuais, tomando como base as conclusões alcançadas no estudo da natureza jurídica acima referido. Por fim, registraremos as dificuldades encontradas pela legislação brasileira atual em relação ao assunto em questão, demonstrando as tentativas de regulamentação no Brasil no decorrer dos anos no capítulo final.
O estudo terá como alicerce o método de abordagem hipotético-dedutivo de Karl R. Popper, em que se levantarão hipóteses acerca do fenômeno da natureza jurídica das criptomoedas e sua tributação em relação a impostos e contribuições especiais, e a partir disso, tentaremos comprovar suas sustentabilidades. A técnica de abordagem para coleta de dados será bibliográfica e documental, utilizando métodos quantitativos e qualitativos para correlacionar os dados para interpretação, com base em livros, como “Bitcoin: A moeda da Era Digital”, de Fernando Ulrich, artigos científicos, consultas em sites, além dos dados presentes no ordenamento jurídico brasileiro, visando a melhor compreender o problema levantado.
1 DEFINIÇÃO DE CRIPTOMOEDAS E SUA NATUREZA
A chegada das criptomoedas se deu em 2008, quando Satoshi Nakamoto publicou um documento trazendo o conceito de um novo tipo de moeda chamada bitcoin, que veio a revolucionar as relações comerciais virtuais existentes, com a qual era possível a realização de quaisquer transações financeiras desde compra e venda de bens até investimento de capitais.
A criação das criptomoedas é reflexo da evolução do campo informático, a qual se somou o progresso da economia. O principal aspecto dessa nova “moeda” virtual é a desnecessidade de um intermediário para validar as operações e realizar o gerenciamento do sistema, gerando, assim, um custo de transação muito baixo.
Apesar disso, a criptomoeda levantou questionamentos no mundo todo acerca da sua legalidade e falta de regulamentação. Com o aumento no volume de transações com esses criptoativos, vários países vêm buscando meios para controle e tributação das operações.
1.1 CONCEITO DE CRIPTOMOEDAS
As criptomoedas são uma forma de dinheiro totalmente digital, ou seja, não existe fisicamente, nem é impressa em locais tradicionais, como um banco. A tecnologia base desse sistema possibilita o envio de recursos financeiros de parte a parte (P2P, peer-to-peer), sem necessitar da intermediação de uma instituição financeira, uma vez que se permite que sejam efetuados pagamentos ou transferências eletrônicas diretamente ao outro polo transacional.
Essa descentralização é possível devido a um livro-razão público chamado de blockchain, um grande banco de dados público contendo o histórico de todas as transações realizadas, o que impossibilita a ocorrência de um gasto duplo, assegurando que os criptoativos não tenham sido previamente gastos em outra operação. Na prática, as transações são verificadas por meio de criptografia de chave pública. Tal mecanismo exige que a cada usuário sejam atribuídas duas “chaves”, uma privada e outra pública, que pode ser compartilhada com qualquer um. Somente o dono da criptomoeda pode usar sua chave privada para dispor de seus ativos, transferindo-os a quem desejar (ULRICH, 2014).
Isso demonstra o aspecto pseudoanônimo das criptomoedas, em que todas as transações são abertas, transparentes e rastreáveis, contudo, não é possível a identificação de quem transferiu algo e quem recebeu a transferência.
Percebe-se que a proposta dos criptoativos é revolucionar o fluxo de transação de recursos globais, visando à substituição do sistema financeiro atual, e dispensando a figura do intermediário nas relações financeiras. Esse tipo de moeda possui características de escassez, divisibilidade e portabilidade, fazendo com que as transações sejam mais baratas e rápidas do que as feitas por redes de pagamentos tradicionais, tornando possível a realização de micropagamentos (ULRICH, 2014).
Com isso, surge um debate que tem como objeto tanto as transformações provocadas pelos criptoativos no sistema monetário, quanto o desafio do ordenamento jurídico de regular e tributar ao mesmo tempo que se adapta às inovações tecnológicas nas transações financeiras.
1.2 NATUREZA JURÍDICA DAS CRIPTOMOEDAS
Percebe-se que há grande dificuldade em definir a natureza jurídica das criptomoedas, tendo em vista que possuem uma natureza “camaleão em função da sua adaptabilidade ou funcionalidades que variam de acordo com o seu emprego no meio social ou econômico empregados” (CUNHA; VAINZOF, 2017).
A primeira linha de raciocínio leva à ideia de que o instituto jurídico da moeda seria o mais compatível com as criptomoedas, já que ambos podem ser utilizados como intermediários de troca e facilitam a realização de transações. No entanto, além de haver previsão de competência exclusiva do banco central para emissão – conforme art. 164 da Constituição Federal –, a definição de “moeda” exige que sejam atendidos três critérios: meio de troca, reserva de valor e unidade de conta, o que não se observa nas criptomoedas, impossibilitando, então, seu enquadramento enquanto moeda no Brasil.
Uma segunda análise possibilita que se encontre semelhanças com o mercado de commodities, em que os bens ou produtos recebem investimentos e sofrem alterações de preços provocadas por notícias ou especulações. Porém, criptomoedas não poderiam ser consideradas bens, em virtude de que teriam nascido com o propósito de ser meio de pagamento. (LISBOA, 2021).
Então, os criptoativos poderiam possuir natureza sui generis, ou seja, poderiam ser definidos tanto como bens quanto como meio de pagamento. Em frente a esse cenário, a Receita Federal do Brasil decidiu adotar, desde 2017, o posicionamento de que as criptomoedas são ativos financeiros.
O Banco Central do Brasil (BACEN), no Comunicado 25.306/2014, alertou sobre os riscos das criptomoedas, devido à grande volatilidade de seus valores, e ressaltou a diferença entre moeda virtual e moeda eletrônica, sendo esta última prevista na Lei 12.865/2013. Segundo a instituição, as moedas eletrônicas são “recursos armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitem ao usuário final efetuar transação de pagamento denominada em moeda nacional”, conceito este incompatível com a modalidade das moedas virtuais, pois possuem forma própria de denominação e não se caracterizam dispositivo ou sistema eletrônico para armazenamento em reais (BACEN, 2014).
Em 2019, o BACEN passou a reconhecer as criptomoedas como bens (“ativos não financeiros produzidos”) – e indiretamente como meio de pagamento – e qualificar a atividade de mineração de criptomoedas como “processo produtivo”, devendo seguir as recomendações do texto Treatment of Crypto Assets in Macroeconomics Statistics (STEFFENS, TESSARI; 2021).
Buscando maior regulação desse fenômeno econômico, a Receita Federal publicou a Instrução Normativa RFB nº 1888/19, que dispõe sobre a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil. Conforme texto legal, foi abordada uma breve conceituação de criptoativos em seu capítulo II, artigo 5º, I:
Art. 5º Para fins do disposto nesta Instrução Normativa, considera-se:
I – criptoativo: a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal; (BRASIL, 2019)
Segundo a Instrução Normativa, as criptomoedas são equiparadas a ativos financeiros, por isso há exigência em prestar as informações relativas às transações com criptomoedas.
Ademais, em 2021, a Receita publicou um comunicado informando que o ganho de capital por alienação de criptomoedas em montante superior a R$ 35 mil por mês está sujeito à retenção de imposto de ganho sobre capital (BRASIL, 2021).
Já a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) emitiu um comunicado a respeito de criptoativos no início de maio de 2018, rejeitando a tese de as criptomoedas serem qualificadas como ativos financeiros, devido ao fato de a conceituação ainda estar em discussão, não sendo permitidas as suas aquisições por fundos de investimento (COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS, 2018).
Portanto, a conclusão é que se descarta juridicamente na legislação brasileira a possibilidade de a criptomoeda ser considerada moeda, entendendo-se, então que uma natureza jurídica híbrida seria mais válida, abrindo margem para discussão de uma fungibilidade da natureza jurídica das criptomoedas.
1.3 NATUREZA JURÍDICA FUNGÍVEL DAS CRIPTOMOEDAS
A nível internacional, percebe-se uma grande variedade de classificações jurídicas quanto às moedas virtuais, especialmente em relação ao Bitcoin, criptomoeda mais popularmente conhecida. Dentro das classificações adotadas, temos mercadoria, ativo financeiro, bem, serviço, ganho de capital, propriedade privada, sistema eletrônico de pagamento, e-money, entre outros.
As criptomoedas adotam uma natureza jurídica baseada na sua forma de uso, seja como meio de pagamento, investimento, reserva de valor etc., reforçando a ideia de enquadramento como ativos financeiros. A fungibilidade da natureza jurídica das criptomoedas certamente influenciaria no tratamento tributário adequado (ULRICH, 2014).
Almeida, Santos e Leal (2021, p. 9-10) exemplificam que
“se por exemplo, um usuário compra Bitcoins e aguarda uma valorização para futuramente resgatá-lo, observa-se uma função clara de investimento. Por outro lado, se forem realizados a compra de um bem móvel e o pagamento é feito por criptomoedas, os efeitos decorrentes nesse caso, são aqueles que tratam de compra e venda. […] A fungibilidade da natureza jurídica das criptomoedas é perceptível nos exemplos acima explanados e certamente influenciariam no tratamento tributário adequado.”
Em países como EUA, El Salvador e Rússia, a atividade de mineração de criptomoedas é fonte de emprego, tendo relevância para tributação, incidindo imposto sobre a renda ou sobre serviços prestados, proporcionando mais fatores geradores para o instituto, que se somam aos fatores geradores que se referem à sua própria circulação (FOBE, 2016).
Portanto, entende-se que a forma de tributação dos criptoativos se baseia principalmente na sua forma de uso, que refletem diretamente no fato gerador alvo do tributo. Se forem considerados ativos financeiros e utilizados como meio de pagamento, haverá incidência de tributação pelo ganho de capital além de tributos relacionados à compra e venda ou prestação de serviços. Outro aspecto é que quando ocorre a troca entre criptomoedas, será possível tratarmos essa operação como permuta de ativos e provavelmente tributável como ganho de capital (CAMPOS, 2018).
Portanto, é necessário um estudo mais aprofundado das hipóteses de classificação das moedas virtuais, buscando um tratamento jurídico adequado em prol do desenvolvimento econômico e progresso tecnológico, preceito constitucional consagrado na Carta Magna nos artigos 192 e 218.
2 AS MODALIDADES DE IMPOSTOS POSSIVELMENTE INCIDENTES SOBRE OS CRIPTOATIVOS
No Brasil, não há nenhuma regulamentação específica para as operações e tributação de moedas virtuais. No entanto, tomando como base o poder de tributar conferido pela Constituição Federal à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, apesar da ausência de regulamentação das transações com criptomoedas no Brasil, é necessária a análise das consequências tributárias do uso das criptomoedas em relação às normas jurídicas atualmente vigentes.
Como se vê anteriormente, a normatização das criptomoedas se resume a apenas orientações, comunicados e instruções normativas emitidas pelo Banco Central do Brasil, pela Receita Federal do Brasil e pela Comissão de Valores Mobiliários. Portanto, nota-se que não há consenso entre os atos administrativos vigentes atualmente, o que condiz com a visão desarmônica mundial da natureza da criptomoeda.
Assim, a tributação incidente sobre as transações de moedas virtuais dependerá da relação jurídica estabelecida entre as partes envolvidas, o que evidencia que não há apenas um tributo apto a incidir sobre a relação jurídica material tributária. A adoção do conceito de natureza híbrida das criptomoedas a depender da transação realizada evita erros na aplicação da legislação ao modelo de transação.
Para tanto, analisar-se-á a possibilidade de incidência do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), estes com maior discussão doutrinária acerca da incidência.
2.1 QUANTO À INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA (IR)
Inicialmente, é importante definir o conceito de renda, tendo como base a legislação ordinária. No art. 153, inciso III da Carta Magna, tem-se que “compete à União instituir imposto sobre: III – renda e proventos de qualquer natureza.” (BRASIL, 1998). Ainda mais, temos a definição trazida pelo art. 43 do Código Tributário Nacional:
Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:
I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior. (BRASIL, 1966)
Assim, quando houver a alienação de criptomoedas e ocorrer um acréscimo patrimonial, entende-se que é incidente o Imposto de Renda sobre o ganho de capital (diferença entre o valor da venda e o custo de aquisição). Já nos casos de compra originária da criptomoeda (mineração), considera-se o próprio valor da aquisição para constatar a existência de acréscimo patrimonial.
Conforme exposto na seção 1.2 do presente artigo, a Receita Federal determinou, em sua Instrução Normativa RFB n° 1.888 e em comunicado expedido em 2021, que devem ser declarados os ganhos e movimentações com criptomoedas. Em seus atos normativos, a RFB exige que a posse de moedas virtuais acima de R$ 5 mil seja informada no IR 2022.
Ainda na normativa, o art. 6º determina a obrigatoriedade da prestação de informações por parte das exchanges de todas as transações as quais forem intermediadoras, e aos usuários, a obrigatoriedade se aplica às transações superiores a R$ 30.000,00 (trinta mil reais) ou quando realizadas via exchange domiciliada no exterior, neste caso independentemente do valor da transação (SOUSA, 2020).
Diante disso, percebe-se que sempre que houver a troca do criptoativo por bens e serviços, assim como a utilização da moeda virtual como meio de pagamento, e havendo diferença entre o valor de aquisição declarado e o bem adquirido, abre-se a possibilidade de incidência do Imposto de Renda sobre ganho de capital.
2.2 QUANTO À INCIDÊNCIA DO IMPOSTO SOBRE OPERAÇÕES FINANCEIRAS (IOF)
O Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) é previsto no artigo 153, inciso V da Constituição Federal de 1988, que determina a competência da União acerca dos impostos sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários (BRASIL, 1988).
O artigo anteriormente referido não menciona especificamente as criptomoedas, mas entende-se que as operações de crédito e câmbio realizadas com criptomoedas estão inclusas implicitamente no texto legal.
O Código Tributário Nacional, em seu art. 63, regulamentou a matéria referente ao IOF e seu fato gerador, dispondo o seguinte:
Art. 63. O imposto, de competência da União, sobre operações de crédito, câmbio e seguro, e sobre operações relativas a títulos e valores mobiliários tem como fato gerador:
(…)
II – quanto às operações de câmbio, a sua efetivação pela entrega de moeda nacional ou estrangeira, ou de documento que a represente, ou sua colocação à disposição do interessado em montante equivalente à moeda estrangeira ou nacional entregue ou posta à disposição por este; (BRASIL, 1966)
Então, o IOF tem por fato gerador os negócios jurídicos de crédito, câmbio, seguro, títulos ou valores mobiliários, nos termos da lei. Ou seja, a efetivação da moeda em território nacional, a operação de crédito ou o câmbio da criptomoeda para a moeda corrente poderá ter incidência do imposto retromencionado.
Ressalta-se que as operações de compra e venda de moeda estrangeira que ocorrem por meio dos contratos de câmbio são fiscalizadas por instituições reguladoras, como o BACEN e o CVM. No entanto, não há quaisquer regulamentações para a fiscalização das criptomoedas pelas instituições financeiras, e ainda há comunicados do BACEN reforçando a ideia de que os criptoativos não são considerados como moeda. Assim, as criptomoedas não preenchem os requisitos necessários para a incidência do IOF-câmbio. Caso haja, no futuro, a disseminação das criptomoedas como meio de pagamento, será possível caracterizá-las como moeda estrangeira, e, assim, sujeitá-las ao IOF-câmbio.
Ocorre que atualmente a sua utilização como meio de pagamento não é amplamente difundida e caso venham a ser amplamente aceitas como meio de pagamento pela sociedade, as criptomoedas sejam equiparadas às moedas estrangeiras pela legislação de regência, circunstância que teria o condão de submeter tal espécie de moeda virtual ao controle e à regulamentação do BACEN, o qual incluiria as criptomoedas na lista de moedas estrangeiras existentes, de modo que a aquisição de tal espécie de moeda virtual somente poderia ser operacionalizada por meio de um contrato de câmbio.
Assim, caso as criptomoedas fossem reguladas como moedas estrangeiras e equiparadas legalmente a essas, não haveria sombra de dúvida de que na aquisição de criptomoedas deveria incidir o Imposto sobre Operações Financeiras em seu câmbio.
Outro argumento favorável a não incidência do IOF sobre as criptomoedas é o fato de que os rendimentos auferidos pelo usuário que aliena seus criptoativos não decorrem do esforço do titular da criptomoeda ou de um terceiro, mas sim da variação positiva do valor advinda da oferta e demanda do criptoativo. Portanto, ainda assim não incide IOF-Câmbio na aquisição de criptomoedas, pois não se trata de uma moeda estrangeira, e em relação a possível incidência do IOF título mobiliário, depende da existência de título representando os valores do criptoativo.
2.3 QUANTO À POSSÍVEL INCIDÊNCIA DE DEMAIS IMPOSTOS
Apesar do foco do presente estudo estar atrelado ao Imposto de Renda e ao Imposto sobre Operações Financeiras, o tópico seguinte apresentará de forma compilada a atual visão do ordenamento jurídico quanto à incidência do II, IE, IPI, ICMS, ITCMD e ISSQN, para fins de esclarecimento sobre como a natureza jurídica híbrida da criptomoeda poderá sujeitá-la a diversas possibilidades de tributação.
2.3.1 Quanto ao Imposto sobre Importação de Produtos Estrangeiros (II) e do Imposto sobre a Exportação de Produtos Nacionais ou Nacionalizados (IE)
Os impostos de importação e exportação são previstos no art. 153, I e II, da CF/88 e tem como fato gerador a entrada ou saída de produtos no território nacional. Verifica-se, assim, que ambos os impostos pressupõem a existência de um produto, estrangeiro (II), nacional ou nacionalizado (IE), que deve ser importado ou exportado para que o imposto correspondente seja aplicado. Desse modo, nota-se que não é possível determinar a nacionalidade da criptomoeda, além de já ter sido esclarecida sua natureza jurídica mais adequada como ativo financeiro, e não produto. Assim, não há incidência do II e IE nas transações com criptoativos, uma vez que não há ocorrência de importação ou exportação.
2.3.2 Quanto ao Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI)
Preliminarmente, o Código Tributário Nacional, em seu parágrafo único do art. 46, prevê a definição de produto industrializado como “produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo” (BRASIL, 1966). A caracterização da hipótese de incidência do IPI depende, desse modo, da existência de um produto que tenha passado por operação de transformação, beneficiamento, montagem, acondicionamento ou renovação. Comparando o conceito de produto industrializado com as propriedades do criptoativo, este tem natureza totalmente digital, ou seja, não é submetido ao processo de industrialização descrito acima.
2.3.3 Quanto ao Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços
de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação Industrializados (ICMS)
O imposto de competência estadual previsto no art. 155, II, da CF/88 tem como fato gerador as hipóteses elencadas no artigo referido, qual seja, a circulação de mercadoria ou prestação de serviços interestadual ou intermunicipal de transporte e de comunicação, ainda que iniciados no exterior. Analisando a relação entre o conceito de criptomoeda atualmente aceito pela legislação brasileira e a aplicabilidade prevista do ICMS, verifica-se não há incidência do referido imposto em relação às operações realizadas com criptoativos, eis que tais ativos não são bens mercantis, ainda que se caracterizem como digitais.
2.3.4 Quanto ao Imposto Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD)
O ITCMD é imposto de competência estadual previsto no art. 155, I, da CF/88 e com incidência das disposições do art. 35 e seguintes do CTN, o qual prevê a possibilidade de incidência do ITCMD na transmissão de propriedade de quaisquer bens móveis ou imóveis.
Em face disso, torna-se válida a incidência sobre criptoativos, caso ocorra a doação ou a transmissão a herdeiros, dependendo, entretanto, das disposições de cada Estado ao instituírem o referido imposto.
2.3.5 Do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN)
Quanto ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência municipal, previsto no art. 156, III, da CF/88 e instituído por meio do art. 1º da Lei Complementar nº 116/03, possui como fato gerador o que for definido pela lei municipal, desde que a definição respeite os limites fixados pela lei complementar.
Analisando as operações à luz do ISSQN, verifica-se que poderia incidir sobre criptomoedas, tendo em vista que os serviços que incidem o ISS são aqueles elencados na Lista anexa a LC 116/03. Ou seja, as empresas que fazem o câmbio entre as criptomoedas e moeda fiduciária (itens 10.01 e 15.13 da Lista – agenciamento, corretagem ou intermediação de títulos em geral, valores mobiliários; e operações de câmbio em geral), bem como os mineradores que fazem o processamento dos dados (item 1.03 da Lista) deveriam pagar o ISS, de acordo com a legislação supracitada.
3 AS TENTATIVAS DE REGULAMENTAÇÃO DAS OPERAÇÕES COM CRIPTOMOEDAS NO ORDENAMENTO BRASILEIRO E SEUS DESAFIOS
O Projeto de Lei (PL) 2.303/2015, proposto pelo deputado federal Aureo Ribeiro, foi a primeira tentativa de normatização do mercado de criptomoedas no Brasil, a qual buscava dispor sobre a inclusão das moedas virtuais e programas de milhagem aéreas na definição de ‘arranjos de pagamento’ sob a supervisão do Banco Central (CÂMARA, 2019). O legislador pretendeu, com esse instrumento, equiparar às milhas aéreas às criptomoedas, o que no plano prático não guarda muitas semelhanças. Isso porque o programa de milhagem não funciona a partir de uma rede descentralizada, como também não utiliza criptografia como base.
Após o Projeto de Lei acima, o mesmo Deputado apresentou o Projeto de Lei 2.060/2019, no qual buscou desenvolver mais os conceitos de criptoativos e as penalidades aplicáveis às condutas fraudulentas com criptoativos. No entanto, tal Projeto de Lei ainda não abrangia todos os aspectos necessários à adequada regulamentação das criptomoedas.
Em 2019, os parlamentares apreciariam outro projeto, o PL 3.825/2019, produzido pelo Senador Flavio Arns, que até acabou sendo aprovado pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE). Na mesma temática, o Senador Styvenson Valentin criou o Projeto de Lei 3.949/2019, que dispõe sobre transações com moedas virtuais e estabelece condições para o funcionamento das exchanges de criptoativos, prevendo alterações em diversas normativas que tratam acerca de lavagem de dinheiro, mercado de capitais, e crimes contra o sistema financeiro nacional.
No entanto, ambos os projetos acima tiveram sua tramitação encerrada, devido à apresentação de uma versão substitutiva a ambos pelo relator do projeto, senador Irajá Abreu. Esse substituto seria o PL 4.401/2021, projeto fruto da renumeração do PL 2.303/2015 referido no início deste capítulo, com uma ementa reformulada dispondo acerca da prestadora de serviços de ativos virtuais, regulamentando o funcionamento de empresas prestadores de tais serviços, prevendo que estas dependerão de prévia autorização de órgão a ser indicado pelo executivo federal para atuarem no País.
Na data do presente trabalho, o PL 4401 foi aprovado pela Câmara dos Deputados, após diversas emendas à proposta inicial, sendo a Emenda nº 6-PLEN a final que permitiu o envio à Câmara, tornando-se a Lei nº 14.478, de 21 de dezembro de 2022, regulamentando então, os serviços de ativos virtuais.
No texto do Projeto de Lei, o órgão indicado pelo executivo federal terá competência para gerenciar elementos como, por exemplo, autorizações de funcionamento, fusões e aquisições societárias, e hipóteses em que os serviços de ativos virtuais serão incluídos no mercado de câmbio. O PL também prevê que as instituições autorizadas a funcionar pelo BACEN poderão prestar os serviços de ativos virtuais, exclusivamente ou cumulados com outras atividades, na forma da regulamentação determinada pelo órgão indicado pelo executivo federal.
E ainda, o PL cria o art. 171-A no Código Penal, tipificando o crime de estelionato em caso de prática de fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros, com previsão de pena de 2 (dois) a 6 (seis) anos de reclusão.
Há, também, a previsão zerar as alíquotas de impostos devidos sobre a importação, industrialização e comercialização de máquinas de mineração de criptomoedas até 2029.
Ao compararmos as primeiras propostas normativas com o PL 4.401/2021, é possível perceber a mudança na direção em favor da regulamentação dos ativos virtuais no Brasil, ao invés de um texto direcionado à atuação das exchanges de criptomoedas.
CONCLUSÃO
O presente estudo objetivou analisar a forma de tributação das criptomoedas no Brasil, refletindo acerca de sua natureza jurídica e as possíveis incidências tributárias. Para tal fim, definiu-se alguns objetivos específicos.
O primeiro se deu ao realizar um estudo da natureza jurídica das criptomoedas e o reflexo desta classificação na possibilidade de tributação delas. Verificou-se que as criptomoedas devem ser vistas de forma híbrida, devido as várias formas de uso e aplicabilidade encontradas pelo mundo. Depois, foi realizada uma investigação das modalidades de tributos possivelmente aplicáveis às moedas virtuais. Tal análise permitiu que verificasse que, diante do ordenamento jurídico brasileiro vigente, são passíveis de incidência sobre os criptoativos o Imposto de Renda (IR), o Imposto Sobre Transmissão Causa Mortis (ITCMD) e o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), com base na comparação entre os conceitos previstos nas poucas normativas presentes no Direito brasileiro e os fatos geradores de cada imposto. Por fim, avaliou-se as tentativas de regulamentação encontradas no ordenamento brasileiro no decorrer dos anos. Nota-se que há legisladores, especialmente o Deputado Federal Aureo Ribeiro, que buscam apresentar possíveis mecanismos de controle e organização da tributação das transações com criptoativos, o que já se caracteriza como um ponto de partida para estudos mais profundos da matéria.
Com isso, a hipótese do artigo de que a saída para se regulamentar as moedas virtuais foi confirmada, pois os criptoativos possuem diversas formas de aplicação, o que gera várias possibilidades de fatos geradores passíveis de tributação.
Dessa forma, conclui-se que, tendo em vista a ausência de regulamentação específica para as transações com criptomoedas, e a falta de consenso quanto à natureza jurídica de tais criptoativos, a forma mais apropriada para uma possível tributação seria considerar as criptomoedas de forma híbrida, ou seja, classificá-las conforme sua aplicação concreta, e, a partir disso, determinar o fato gerador do tributo.
Em pesquisas futuras, com o maior amadurecimento dos conceitos-base dos assuntos tratados no decorrer deste artigo, será possível uma melhor classificação dos criptoativos, além de haver legislações específicas para garantir maior segurança jurídica nas movimentações financeiras virtuais.
REFERÊNCIAS
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1Graduanda do Curso de Direito da União das Escolas Superiores de Rondônia – UNIRON, karinerosacarla@gmail.com;
2Graduanda do Curso de Direito da União das Escolas Superiores de Rondônia – UNIRON, mafelacerda@hotmail.com
3Professora orientadora do Curso de Direito da União das Escolas Superiores de Rondônia – UNIRON, srm@uniron.edu.br
Porto Velho – RO, agosto de 2023.2