TAXATION OF PLURAL FAMILY ENTITIES
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12640009
Gutemberg Morais Serrano1
Resumo
O presente artigo tem como escopo tratar sobre a tributação das famílias, em sua forma plural, sobre os prismas conceitual, principiológico e comparado. Tendo sido realizado através de levantamento bibliográfico, com a finalidade de demonstrar de que forma a tributação, em especial o imposto de renda, atua nas entidades familiares à luz dos princípios da igualdade tributária, da capacidade contributiva e da proteção à família. Inicialmente, será abordado a definição plural hodierna de família e as mais diversas entidades familiares, bem como considerações sobre a tributação a ela incidente. Em segundo momento, com base nas disposições constitucionais, são trazidos os princípios da capacidade contributiva e do mínimo existencial familiar, que informam esse tema. Em seguida é abordada a tributação das famílias no Brasil e faz-se uso do direito comparado para analisar como Portugal e França enfrentam essa temática. Por fim, são mencionadas possíveis soluções para correção das desigualdades na tributação das famílias e para uma política fiscal alinhada com a concepção protetiva da família, de forma que esta não intervenha no livre planejamento da entidade familiar, seja ela qual for.
Palavras-chave: Entidades Familiares Plurais. Tributação. Princípios Constitucionais. Direito Comparado.
1. INTRODUÇÃO
De acordo com Scaff (2016), este é um assunto que faz parte de nosso dia-a-dia, mas que é muito pouco explorado, seja dentro dos estudiosos do direito de família, seja dentre aqueles que se dedicam ao direito tributário. Este autor parabeniza ainda a proposta do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) de introduzir este tema em Congressos de Direito de Família, inaugurando no Brasil esta área de estudos transdisciplinares internos ao direito, “apesar de ser muito difundido na Europa” (Firmeza e Xerez, 2015).
Ainda de acordo com Scaff, ao fazer uma exposição preliminar e uma comparação sobre os pontos de contato entre as duas disciplinas jurídicas, enquanto o direito de família é fortemente subjetivo, pois leva em conta para sua análise questões como o amor, paternidade, afeto, carinho e outros âmbitos subjetivos inerentes a sua própria natureza, o direito tributário é fortemente objetivo, com todas as suas relações pautadas no texto da lei, tentando reduzir substancialmente qualquer margem de subjetividade ao aplicador da norma.
Isso, no entanto, não deve se tornar um obstáculo a sua mais perfeita compreensão, mas apenas um desafio a ser enfrentado, de forma a arejar o ramo tributário com os eflúvios do direito de família que já alcançaram o direito civil desde o advento da Constituição de 1988.
Nesta perspectiva, o presente trabalho objetiva analisar a tributação, em especial o imposto de renda, nas entidades familiares plurais hodiernas, à luz dos princípios da igualdade tributária, da capacidade contributiva e da proteção à família.
Para isso, primeiramente será apresentado o conceito atual e plural de família, para posterior considerações sobre o fenômeno da tributação das famílias bem como sua delimitação conceitual.
Em seguida serão abordados aspectos da preservação da capacidade contributiva das famílias e da garantia do mínimo existencial familiar.
Por fim, será apresentado o regime de tributação familiar adotado no Brasil, realizando comparações da incidência do imposto de renda em algumas formações familiares, fazendo-se uma análise das desigualdades envolvidas. Também será apresentada uma comparação com a legislação alienígena, apresentando o modelo de tributação das famílias adotado em outros países.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA OU REVISÃO DA LITERATURA
2.1 Conceito Plural de Família
A Constituição Federal de 1988, trata, em capítulo próprio da família, trazendo, em seu art. 226, o seguinte:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuito a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
Percebe-se que a Constituição Federal, traz, de forma exemplificativa, três entidades familiares: o casamento, a união estável e entidade monoparental (§ 4º). Tal rol é exemplificativo pois apenas cita algumas entidades familiares, mas em nenhum local trouxe expressões como “somente” ou “são entidades familiares as seguintes”, caracterizadoras de um rol taxativo. Nesse sentido, constata-se uma tendência de ampliar o conceito de família para outras situações não tratadas expressamente pela Carta Cidadã. Por exemplo, para demonstrar esses novos modelos de família, Maria Berenice Dias fala em Famílias Plurais, acompanhada por outros juristas como Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.
De acordo com esta autora, “o novo modelo de família funda-se sob os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo uma nova roupagem axiológica ao direito de família (…) (Dias, 2015). A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes, como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado”. Em seguida, a doutrinadora traz, de forma exemplificativa, as seguintes formas de entidades familiares: matrimonial (decorrente do casamento); informal (decorrente da união estável); homoafetiva (decorrente da união de pessoas do mesmo sexo); monoparental (constituída pelo vínculo existente entre um dos genitores com seus filhos); anaparental (decorrente da convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estruturação com identidade e propósito); eudemonista (família que busca a felicidade individual vivendo um processo de emancipação dos seus membros). Atualmente se discute também a existência da família multiespécie, que seria aquela formada por humanos e seus animais de estimação, quando considerados membros ou, até mesmo, filhos, não sendo mais raro encontrar discussões em juízo sobre a guarda dos pets.
De acordo com Tartuce (2019), justamente diante desses novos modelos de família é que se tem entendido que a família não pode se enquadrar numa moldura rígida, em um suposto rol taxativo da Constituição, como alguns juristas ainda entendem. Esta tendência também é confirmada pela jurisprudência, conforme se extrai de ementa do Superior Tribunal de Justiça, “inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado ‘família’, recebendo todos eles a ‘especial proteção do Estado’. Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento – diferentemente do que ocorria com os diplomas superados – deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade”2.
2.2 Considerações sobre o fenômeno da tributação das famílias
De acordo com Velloso (2010), quando se trata da tributação das famílias, este termo evidencia o reconhecimento, no âmbito tributário, da família como instituição e núcleo de vida, que repercute na capacidade contributiva dos seus integrantes e, por conseguinte, requer “um tratamento específico de modo a realizar os princípios da igualdade tributária, da capacidade contributiva e da proteção à família”. Assim, se por um lado existe o dever das famílias de pagar tributos para financiar a promoção de políticas públicas e a realização dos direitos fundamentais, por outro deve existir a garantia de uma efetiva fruição da proteção especial da família em face das imposições tributárias.
Ainda de acordo este autor, dois temas, que serão melhor debatidos posteriormente, são de grande importância na análise da tributação das famílias: a repercussão que a vida em família tem na capacidade contributiva dos seus integrantes e, por consequência, na exigência de igualdade tributária; e a legitimidade, ou exigência constitucional, dos incentivos tributários à família.
2.3 Delimitação conceitual da tributação das famílias
Muitas são as formas de incidências tributárias previstas na Constituição e capazes de intervir no patrimônio, na renda e no consumo das famílias, dentre elas podem-se destacar as seguintes: a) incidências sobre o patrimônio, como o imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA) e o imposto predial e territorial urbano ou rural (IPTU e ITR); b) incidências sobre a circulação de mercadorias, bens e serviços (ICMS e ISS), afetando as famílias, ainda que indiretamente; c) incidências sobre a renda, como o Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF); d) incidências sobre a receita bruta e e) incidências sobre a folha de salários, estes últimos com maior interdisciplinaridade com o direito empresarial.
Todavia, para fins de delimitação conceitual, bem como sendo suficiente ao que este trabalho se propõe, filia-se à concepção de tributação de família de Velloso (2010), que se funda na análise da incidência do imposto de renda sobre a unidade familiar.
3. METODOLOGIA
Este estudo utilizará uma pesquisa bibliográfica qualitativa com abordagem investigativa e expositiva, focando especialmente em fontes eletrônicas e físicas, como livros, artigos, notícias e revistas. Além disso, serão considerados os princípios fundamentais legais do Direito Tributário e do Direito de Família, incluindo a Constituição Federal, o Código Tributário e o Código Civil. Também serão analisadas as principais jurisprudências sobre o tema. Isso será realizado por meio de um diálogo entre as fontes mencionadas, fazendo uso dos métodos dedutivos, dialéticos e do direito comparado.
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES OU ANÁLISE DOS DADOS
4.1 Preservação da capacidade contributiva das famílias
Segundo Krugman e Wells (2015), a estrutura do imposto de renda reflete às famílias o princípio da capacidade de pagar. Enquanto as famílias de baixa renda pagam imposto a menor ou até negativo (recebimento de subsídios), aquelas que têm renda elevada pagam com uma parcela maior de sua renda a título de imposto. Considera-se, assim que, de acordo com Caliendo (2019) “o princípio da capacidade contributiva é uma cláusula pétrea do sistema constitucional tributário e seu conteúdo decorre do princípio da igualdade”.
A Constituição Federal, em seu art. 145, §1.o, estabelece que, “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”. Assim, em dimensão objetiva este princípio não leva em consideração a situação pessoal da família, isto é, são excluídos os critérios extraeconômicos em relação aos seus membros. Subjetivamente, o princípio zela pela igualdade entre os contribuintes como base para estabelecer a repartição da carga tributária, situação em que entra a condição individual (pessoal) do membro da família.
Dessa forma, a capacidade econômica das famílias deve ser respeitada, sob pena de se incorrer em violação ao direito ao mínimo existencial dos seus integrantes.
4.2 Garantia do mínimo existencial familiar
Relacionando mínimo existencial e tributação, Torres (2009) aborda a existência de um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado na via dos tributos e que exige prestações estatais positivas. Por corolário, de acordo com Ferrarini (2009), o mínimo existencial familiar compreende a imunidade do necessário à sobrevivência dos filhos e dos próprios contribuintes.
Torres afirma ainda que entre as imunidades implícitas no texto constitucional, está o mínimo existencial familiar. Essa imunidade poderia ser vista no abatimento para os filhos e na isenção parcial para os idosos no imposto de renda, bem como na hipótese legal do abatimento pelo cônjuge da importância não declarada pelo outro em separado.
Sendo assim, entende-se que esses casos de não incidência tributária, com especial relevo quando da não incidência do imposto de renda sobre determinados integrantes das famílias, se constituem materialmente como hipóteses de imunidade tributária, mas também desvelam a garantia de um mínimo existencial familiar. A especial proteção destinada à família nos ditames constitucionais, impõe, assim, que a tributação incidente conforme a capacidade econômica e o mínimo existencial na busca de dar-se efetividade aos direitos fundamentais dos contribuintes (Amato e Muniz, 2014).
4.3 Tributação das Famílias no Brasil
Quando se fala neste tema no Brasil, é relevante tratar de um problema que pode gerar injustiças e desigualdades sociais, que é o tratamento conferido pelo ordenamento jurídico às famílias que possuem apenas um membro economicamente ativo, e que por sua condição, deve cuidar da sua própria subsistência e da sua família.
Esta desigualdade mostra-se presente seja fazendo uma comparação com solteiros economicamente ativos (contribuintes solteiros), pois não poderiam abater muitas despesas que refletem diretamente na sua capacidade contributiva, seja com famílias em que ambos os cônjuges são economicamente ativos.
Para ilustrar tal situação, apresenta-se a seguinte tabela, na qual resta claro que a carga tributária suportada por uma família em que ambos auferem rendimentos é bem inferior à que apenas um dos cônjuges trabalha:
Figura 1 – Comparativo de alíquotas efetivas entre diferentes famílias
Fonte: Velloso, 2012.
Constata-se que a família 2 sofreu uma carga tributária de quase o quádruplo da família 1, ferindo os princípios da isonomia tributária, capacidade contributiva e da proteção estatal à família, em que pese a Constituição Federal vedar tratamentos discriminatórios entre as famílias. Esta distorção desestimula a formação e manutenção da família
Com efeito, através destes princípios constitucionais, procura-se proteger os indivíduos respeitando suas peculiaridades e os tratando de forma isonômica. Todavia, mostram-se desrespeitados quando se trata de tributação das famílias, havendo, conforme se analisou, tratamento diferenciado entre as variadas formações familiares. Tal é o raciocínio de Derzi (2007), no tocante ao imposto de renda, ao afirmar:
O imposto sobre a renda em nosso país há muito se afastou da proteção da família e da dignidade vital do contribuinte, que deveria ser tabu para o fisco. Em vários outros países, os cônjuges podem, ainda que haja um único provedor, se o quiserem, somar os seus rendimentos líquidos e, em seguida, dividi-los por dois, atraindo com isso alíquota mais reduzida e apurar o imposto a pagar para cada um deles. Além dos Estados Unidos (que hoje atenuaram essa divisão para as rendas mais altas), a Alemanha, Portugal e França adotam regras similares. É evidente que a proteção da família não se reveste mais daquelas características que tinha nos idos de 1940. Naquela época, impunha-se um modelo rígido de organização doméstica, sendo prestigiadas as famílias numerosas, então ligadas ao sentido de soberania pela ocupação do território nacional. Hoje, a proteção da intimidade é direito fundamental, de tal modo que os cônjuges devem continuar escolhendo se preferem declaração conjunta ou em separado. O modelo familiar deve ser flexível e o imposto de renda deve ser neutro, sem onerar de forma mais acentuada os lares de chefia feminina ou masculina, ou ainda compartilhada.
A considerável diferença de carga tributária entre as duas famílias aponta para o tratamento desigual entre contribuintes em situação equivalente, atingindo a proteção de isonomia constitucional. De acordo com Sabbag (2017), o princípio da isonomia tributária traduz o comando da “proibição dos privilégios odiosos”, já que visa a “coibir a odiosidade tributária, manifestável em comandos normativos discriminatórios, veiculadores de favoritismos por meio da tributação”.
Já no que diz respeito ao mínimo existencial familiar, núcleo que deve ser protegido de qualquer intervenção do poder público, se um imposto afrontado com ditos postulados for capaz de desestruturar uma forma de entidade familiar, ele deve ser declarado inconstitucional, como alerta Ferrarini (2009):
Se o imposto (ou taxa ou contribuição) for exacerbado a ponto de desestruturar a família ou desestimular o casamento, atingindo a faixa de renda situada além da capacidade contributiva, será inconstitucional, por ultrapassar os lindes da justiça e se projetar abusivamente para o campo da liberdade, ferindo direitos fundamentais dos cidadãos.
Ainda no que se refere ao exemplo dado, ou seja, tributação diferente para uma família com um cônjuge provedor de renda e a outra com dois provedores, Barroso (2014) destaca:
(…) os estudiosos no assunto visualizam duas saídas para o problema, nenhuma dela fácil: a primeira se basearia na inclusão de uma renda imputada da dona de casa entre os rendimentos da família; a segunda teria em vista permitir à mulher trabalhadora a dedução de quantias correspondentes ao pagamento da empregada doméstica ou proporcional à idade dos filhos. “Qualquer destas soluções implicaria criar novos discrimes, seja diante do parceiro masculino, seja frente às pessoas que têm rendas não estimadas.
Diante do exposto, não pode o direito tributário discriminar a tributação entre as pessoas casadas e não casadas (ou entre qualquer outra forma de entidade familiar), evitando ao máximo algum tipo de penalidade ou prejuízo pelo tipo de família escolhido. Neste ponto, busca-se o princípio da neutralidade tributária como forma de resguardar o direito das pessoas viverem em família sem nenhuma sorte de consequência negativa na seara tributária. Sobre isso, trazendo o exemplo da mulher no mercado de trabalho, mas que pode ser ampliado para outras formas de entidades familiares, Barroso acrescenta:
O princípio da neutralidade da lei diante do modelo ideal de casamento deve prevalecer não podendo o Direito Tributário assumir papel pedagógico de reconduzir a mulher ao lar, por meio de impostos mais agressivos à segunda renda familiar; nem tampouco pode o Estado obrigar à adoção de um modelo oposto ao tradicional, ao deixar de atribuir valor adequado ao trabalho doméstico. Seja qual for a opção dos contribuintes, quanto ao modelo familiar, os resultados tributários devem ser idênticos em qualquer uma delas.
Portanto, seja qual for a forma de entidade familiar que se está a analisar, em hipótese alguma, inclusive pela incidência do imposto de renda, a unidade familiar pode sofrer agressões quanto ao seu mínimo existencial, quanto a sua capacidade contributiva e quanto à isonomia tributária, quando comparada a um outro tipo qualquer de família.
Ademais, tendo em vista o princípio da não intervenção ou da liberdade aplicado ao Direito de Família, informado pelo art. 226, § 7.º, da CF/1988 que incentiva o próprio planejamento familiar, devendo Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desses direitos, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais e privadas, bem pelo art. 1513 do Código civil que narra que é “defeso a qualquer pessoa de direito público ou privado interferir na comunhão de vida instituída pela família” e reforçado pelo art. 1565 § 2.º, pelo qual o planejamento familiar é de livre decisão do casal, sendo vedada qualquer forma de coerção por parte de instituições privadas ou públicas, não pode o Estado, ainda que de forma indireta, através da tributação, interferir no número de filhos ou ainda desencorajar certas entidades familiares, tendo em vista o rol exemplificativo destas na CF/1988.
4.4 Sistema Splitting como possível solução
De acordo com Velloso (2010), apresenta-se como solução para essa distorção – no sentido de que não ocorram mais lesões aos princípios supracitados – o aumento significativo do “valor da dedução fixa, estabelecendo-a num patamar mais realista, que se aproxime dos gastos efetivos com dependentes”. Entretanto, aponta-se como uma solução mais efetiva a adoção de um verdadeiro incentivo à família por meio de um “sistema de divisão da renda familiar”, o qual se denomina splitting.
No splitting as rendas são acumuladas, mas não são tributadas como se fossem uma unidade. Efetua-se uma redistribuição das rendas antes da incidência tributária: elas são acumuladas e divididas por membro familiar e, por fim, sujeitas à tributação em separado. Derzi (2003) traz um exemplo: a família que obtém renda líquida mensal de R$ 2.200,00 proveniente de somente um dos cônjuges fica sujeita à alíquota máxima (27,5%), pagando R$ 182,92 por mês. Implantando o sistema da divisão da renda familiar (splitting), a alíquota cairia para 15%, pagando cada um deles, considerada a parcela dedutível, somente R$ 6,30 por mês.
Além dos Estados Unidos, Irlanda, Alemanha e Portugal adotam regras similares, com divisão de renda que se restringe aos cônjuges. Na França, a divisão da renda pode ser feita até por três ou quatro, dependendo do número de filhos, não se limitando, portanto, aos cônjuges. Sendo este último denominado splitting familiar, que é, portanto, um sistema mais elaborado que o splitting conjugal, pois considera, na própria divisão das rendas, as inviaráveis despesas que os casais têm com os filhos.
Comum em ambas as modalidades é que a técnica de divisão jamais será desfavorável aos integrantes das famílias, vale dizer, ou lhes favorece, ou, na pior das hipóteses, não lhes afeta. Aplicando-se o splitting, “as desigualdades existentes na tributação das famílias em apenas um dos cônjuges é economicamente ativo frente a das famílias em que ambos os cônjuges têm renda própria”, estariam superadas. Entretanto, embora a nítida equidade da sistemática, sua utilização não é permitida pela legislação brasileira (Velloso, 2010).
4.5 Direito Comparado – tributação das famílias no direito português e francês
A experiência portuguesa em matéria de tributação das famílias constitui um bom exemplo da implementação de ferramentas tributárias atentas à proteção integral da família. Segundo o Código de Imposto sobre Rendimento de Pessoas Singulares (Portugal), na apuração do tributo considera-se a existência de um agregado familiar, decorrente da coparticipação dos cônjuges na formação do rendimento a ser tributado, e, a partir daí, a imposição tributária incide sobre a quota de rendimentos auferidos apenas pelo responsável pela direção do conjunto.
Ainda relevante no direito lusitano é a “Carta de Princípios para uma Política Fiscal para a Família”, elaborada pela Associação Portuguesa de Famílias Numerosas (APFN) e pela Confederação Nacional de Associações de Família (CNAF), dentre os princípios propostos, destacam-se os seguintes: (i) o dever do Estado em definir uma política fiscal que leve em conta a importância e centralidade da família para a sociedade, em virtude de sua funcionalidade como formadora de cidadãos; (ii) o mandamento de proteção ao limite de tributação destinado às famílias, de modo que uma família não receba tributação maior do que um cidadão tributado individualmente; (iii) a preservação do mínimo existencial familiar, demonstrada pela proteção de sua manutenção como forma de incentivo e progresso da família e, consequentemente, de seus integrantes; e (iv) a defesa de um tratamento especial destinado às empresas familiares.
Assim, ao se analisar a tributação das famílias no direito lusitano, constata-se a preocupação com a proteção do mínimo existencial familiar. Entende-se que, quanto mais protetiva for a incidência tributária, observando-se a capacidade econômica dos contribuintes, maior será a evolução da família, possibilitando a efetiva realização dos direitos fundamentais dos seus membros.
Outra legislação comparada interessante de se abordar no âmbito da tributação das famílias é a do direito francês. Sendo que esta ganha maior destaque em matéria de tributação das famílias, pelo fato de ser o exemplo mais notório da sistemática de um splitting familiar. O Code General des Impôts estabelece na apuração do seu imposto de renda uma sistemática que se fundamenta nas condições pessoais de cada família, a partir da formação do quociente familiar.
Assim, na apuração do tributo francês, consideram-se unidades familiares (como por exemplo: solteiros, divorciados, separados, sem dependentes; viúvos sem dependentes; casados ou vinculados por pacto de solidariedade civil), e a partir daí se determina o imposto bruto e a renda familiar tributável, tendo-se como resultante o quociente familiar. Vale-se ainda do mecanismo denominado plafonnement pelo qual, eventualmente, se revê o imposto com o objetivo de corrigir desigualdades nas tributações das famílias, em comparação a contribuintes sem dependentes, por exemplo.
Desse modo, constata-se que tanto o direito português quanto o direito francês, adotantes, respectivamente do splitting conjugal e familiar, mostram-se estruturalmente mais alinhados com a noção de proteção especial da família em âmbito tributário do que o Brasil. Nesse sentido, ao país (que já possui, inclusive, acordos de cooperação internacional com tais nações estrangeiras) cabe, ciente das prescrições constitucionais, implementar uma sistemática que erradique desigualdades de tributação das famílias.
5. CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Carta Magna assevera que as famílias, como base da sociedade, fazem jus à proteção estatal especial. A tal proteção não deve se furtar ao fenômeno tributário. Dessa forma, a imposição tributária deve respeitar tanto os princípios constitucionais tributários e as limitações constitucionais ao poder de tributar quanto atender a preservação integral da entidade familiar, seja ela qual for.
Ao analisar o tema da tributação das famílias, constata-se a necessidade de preservação e garantia da capacidade contributiva e do mínimo existencial familiar, havendo uma sobreposição axiológica pela qual a capacidade econômica das famílias deve ser respeitada com vistas a não se incorrer em violação ao mínimo existencial dos seus membros, ao mesmo tempo em que se possibilita o financiamento dos direitos fundamentais e das políticas públicas.
Verificou-se que na sistemática de tributação da renda das famílias brasileiras algumas desigualdades estruturais, notadamente nas formações familiares com uma única fonte de renda. Com efeito, quando se observa experiências estrangeiras, constata-se que o splitting – mecanismo em que as rendas são acumuladas, redistribuídas e individualizadas antes da incidência tributária – mostra-se um instrumento mais benéfico à sustentabilidade econômica das famílias. O splitting conjugal, do direito português, e o splitting familiar, do direito francês, são exemplos evidentes da correção de desigualdades na tributação das famílias e de uma política fiscal alinhada com a concepção protetiva da família.
Mais do que isso, é possível ir ainda além, estabelecendo um splitting familiar sem a limitação da quantidade de filhos imposta pelo direito francês, tendo em vista o princípio da não intervenção ou da liberdade que informa o Direito de Família brasileiro e que possibilita o livre planejamento familiar, bem como aplicando-o a qualquer tipo de entidade familiar, considerando que vigora no nosso sistema a pluralidade de entidades familiares, haja vista o rol meramente exemplificativo destas na CF/1988.
2STJ, REsp 1.183.378/RS, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25.10.2011, DJe 01.02.2012
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1Graduado em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pós-graduado em Direito Administrativo. Auditor Federal de Controle Externo no Tribunal de Contas da União (TCU). e-mail: gutemberg.serrano@gmail.com