TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS E SEUS IMPACTOS NO COMBATE AO RACISMO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10157993


Azenath Paula da Silva
Manoela Calheiros Malta Orsi


Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar a importância dos tratados internacionais de direitos humanos de combate ao racismo e contra a discriminação racial adotados pelo Estado Brasileiro. Além de apontar os processos de exclusão social e econômica vivenciados pela população negra brasileira no período pós abolição formal de 13 de maio de 1888. Para isso apresentaremos algumas proibições legais e normativas de acesso à educação formal e institucionalizada praticada contra o povo negro durante e no pós abolição.  Em seguida faremos uma breve retrospectiva acerca do processo de criação da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, bem como teceremos considerações acerca dos motivos que resultaram na instituição da Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Por fim indicaremos as Políticas Públicas de Ação Afirmativa criadas no Estado Brasileiro para ampliação de acesso ao Ensino Superior e as de Cotas Raciais para ingresso em Concursos Públicos à disposição da população negra. Para isso, utilizou-se como metodologia do estudo, a pesquisa bibliográfica qualitativa, descritiva e dedutiva. Reconhece-se, ao final, melhorias em favor do segmento populacional negro brasileiro, contudo há um longo a caminho para ser percorrido e desafios para serem superados para que seja possível a construção de uma nação condizente com os valores supremos presentes no Preâmbulo da Carta Magna de 1988. 

Palavras-chave: ações afirmativas. combate ao racismo. direitos humanos. políticas públicas. 

Abstract

The objective of this article is to present the importance of international human rights treaties to combat racism and racial discrimination adopted by the Brazilian State. In addition to pointing out the processes of social and economic exclusion experienced by the black Brazilian population in the period after the formal abolition of May 13, 1888. To this end, we will present some legal and normative prohibitions on access to formal and institutionalized education practiced against the black people during and in post abolition. Next, we will briefly look back at the process of creating the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination, as well as make considerations about the reasons that resulted in the establishment of the Inter-American Convention Against Racism, Racial Discrimination and Related Forms of Intolerance. Finally, we will indicate the Public Affirmative Action Policies created in the Brazilian State to expand access to Higher Education and those of Racial Quotas for entry into Public Competitions available to the black population. For this, qualitative, descriptive and deductive bibliographic research was used as the study methodology. In the end, improvements in favor of the Brazilian black population segment are recognized, however there is a long way to go and challenges to be overcome so that it is possible to build a nation consistent with the supreme values ​​present in the Preamble of the Magna Carta 1988.

Keywords: affirmative actions. combating racism. human rights. public policy.

INTRODUÇÃO

A terrível experiência com a barbárie que culminou com o extermínio de milhares de vida durante a segunda guerra mundial, além das perdas ocorridas no período da primeira grande guerra, fez eclodir o desejo nos países que estiveram envolvidos no conflito a necessidade de criação de um organismo internacional cujos objetivos girassem em torno da promoção da paz entre as nações. Nesse sentido, o período que sucedeu ao fim da segunda guerra mundial “convidou” as nações a pensarem na construção de uma estratégia capaz de estabelecer e intermediar acordos visando fomentar além de uma cultura de paz, a segurança e a cooperação. 

Nessa toada no ano de 1945 nasceu a Organização Nacional das Nações Unidas que, por sua vez, na data de 10 de dezembro de 1948 com a chancela de 48 Estados promulgou a Declaração Universal de Direitos Humanos. A Declaração Universal de Direitos Humanos é considerada um instrumento dotado de princípios valorativos e responsável por colocar em evidência e destaque na agenda das instituições internacionais a preocupação com a proteção aos seres humanos. Os artigos 1º e 2º proclamam o princípio da igualdade, da liberdade e da dignidade, bem como a proibição de qualquer tipo de discriminação seja em razão da raça, cor, língua, religião.

Observa-se, assim, que desde o seu nascedouro o combate a práticas discriminatórias de qualquer espécie faz parte da agenda da ONU. Contudo, a partir da segunda metade do século XX a temática de combate ao racismo e contra a discriminação racial passa a ganhar relevo na agenda da Organização Nacional das Nações Unidas. 

A importância do debate acerca da construção de estratégias de combate ao racismo dada a constatação de que os problemas ocasionados pela discriminação racial necessitam ser enfrentados sistematicamente motivou a elaboração desse artigo. Para isso regressaremos no tempo para apresentar as proibições legais e normativas de acesso à educação formal e institucionalizada praticada contra o povo negro durante e no pós abolição. No segundo momento faremos uma breve retrospectiva acerca do processo de criação da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, bem como teceremos considerações acerca dos motivos que resultaram na instituição da Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Por fim apresentaremos as Políticas Públicas de Ação Afirmativa para ampliação de acesso ao Ensino Superior no Brasil e as de Cotas Raciais para ingresso em Concursos Públicos à disposição da população negra. Conclui-se que não obstante o reconhecimento da relevância da implantação das ações afirmativas muito ainda precisa ser feito.  Por fim, pontuaremos alguns desafios que precisam ser superados para que a construção de uma nação condizente com os valores supremos presentes no Preâmbulo da Carta Magna seja possível.

1. DA EXCLUSÃO DO ACESSO À EDUCAÇÃO DURANTE O REGIME ESCRAVOCRATA E SEUS REFLEXOS NA VIDA DA POPULAÇÃO NEGRA NO PÓS ABOLIÇÃO

O regime de trabalho escravocrata vigorou no Brasil durante mais de 300 anos. Nesse relevante intervalo de tempo as pessoas negras escravizadas eram alijadas de usufruírem diversos direitos básicos, incluindo o acesso à educação formal e institucionalizada. Eram vistas como coisas ou na melhor das hipóteses como animais. Gomes (1956, p. 313), afirma que ao descrever o Brasil no começo do século XVIII afirmou que “os escravos são as mãos e os pés do senhor do engenho”. 

Nesse período foram editadas uma série de leis e atos normativos com cunho impeditivo ou de restrição ao acesso de pessoas negras e/ou escravizadas às escolas, principalmente no século XIX. Há registros de que a Província do Rio de Janeiro editou lei cuja redação proibia a frequência nas escolas públicas de pessoas com moléstias contagiosas, os escravos e os pretos africanos, ainda que livres ou libertos. Trata-se da Lei nº 1 de 14 de janeiro de 1837.  Na mesma linha de pensamento e ano de 1837, a Província do Rio Grande do Sul também editou lei segregacionista. Outras províncias independentes da região editaram legislação admitindo nas escolas apenas pessoas livres, a exemplo das localizadas na Paraíba e Rio Grande do Sul. A Província de Pernambuco através do Regulamento sobre a Instrução Pública proibiu o acesso de africanos ainda que livres ou libertos, às aulas públicas.

O marco formal da Abolição da Escravatura no Brasil ocorreu no dia 13 de maio de 1888 com a publicação da Lei Áurea. A partir dessa data, oficialmente a população negra escravizada passou a condição de liberta. A Libertação dos escravos pregada na referida data, no entanto, não aconteceu sob a perspectiva material, mas, tão somente formal, pois o cotidiano que se sucedeu a promulgação do ato legislativo não representou uma mudança de paradigma à realidade vivida no cativeiro e a agora experenciada como libertos. Após a abolição da escravatura as pessoas antes escravizadas e agora libertas não foram inseridas no mercado de trabalho, o que contribuiu para a manutenção do estado de pobreza, em decorrência da ausência de um planejamento capaz de integrá-los na nova ordem econômica. 

A competição com os imigrantes europeus para acesso ao trabalho praticamente não existiu, porque o Estado Brasileiro não envidou esforços para prepara-los para o mercado de trabalho formal e especializado. Foram deixados à deriva e à própria sorte, sem eira e nem beira. No dizer de Hasenbalg (2005) a abolição da escravatura não decorreu apenas da questão social, pois as pressões econômicas da Europa acarretaram a concessão de liberdade aos escravos e a substituição pela mão de obra europeia.

Segundo Fernandes (1972) os postos de trabalho antes ocupados pelos escravos foram ocupados pelos imigrantes europeus que vieram ao Brasil no final do século XIX. As novas oportunidades de trabalho ficaram com os estrangeiros, como meeiros, com os quais o negro não conseguia concorrer em condição de igualdade, diante da diferente formação profissional.

Para Pinsky (2010) a abolição da escravatura não visou libertar as pessoas, mas apenas afastar os empecilhos da economia e o negro ficou livre e desamparado, sem condições de concorrência no mercado de trabalho. Na visão de Barcellos (2018) o indivíduo que não tem resguardada a dignidade humana encontra dificuldades para a eficácia de outros direitos. Aquele que vive em situação de miserabilidade dificilmente terá participação política, liberdade ou autonomia individual, pois sofre os seus danos. Assim, os direitos destacados pela dignidade humana devem caminhar juntos e em linha ascendente para a eficácia 

Não houve um projeto prévio como a elaboração de planos ou medidas que pudessem facilitar o processo de integração e inserção da população preta ao novo contexto social como reforma agrária, incentivo à educação formal, capacitação para o mercado de trabalho etc.

Segundo o Sociólogo Florestan Fernandes (2015) em seu livro:

A preocupação pelo destino do escravo se mantivera em foco enquanto se ligou a ele o futuro da lavoura. Ela aparece nos vários projetos que visaram regular, legalmente, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, desde 1823 até a assinatura da Lei Áurea. (…) Com a Abolição pura e simples, porém, a atenção dos senhores se volta especialmente para seus próprios interesses. (…) A posição do negro no sistema de trabalho e sua integração à ordem social deixam de ser matéria política. Era fatal que isso sucedesse.

O abolicionismo enquanto movimento social representou uma das manifestações que congregou diversos setores das camadas sociais, tendo como defensores políticos e pessoas vinculadas à oligarquia do país. Dentre os políticos que se destacaram encontramos o deputado pernambucano Joaquim Nabuco. Um dos textos de um de seus projetos de leis, acrescente-se rejeitado pela Câmara dos Deputados que data do final de 1880 preocupado com o processo de escolarização dos negros escravizados, dispunha em seu artigo 49: “Serão estabelecidas nas cidades e vilas aulas primárias para os escravos. Os senhores de fazendas e engenhos são obrigados a mandar ensinar a ler, escrever, e os princípios de moralidade aos escravos”.

Há estudos que indicam que as iniciativas oriundas de abolicionistas, a exemplo do projeto de lei do Deputado Joaquim Nabuco acima citado, com o objetivo de inserir o negro na sociedade nos pós abolição, dotando-o de condições básicas para o exercício da cidadania foram ignoradas e alijadas dos debates. Consequentemente e nas palavras de Thedoro (2022, p. 117) “a pobreza urbana no Brasil do século XIX, é negra. E assim seguirá sendo nos séculos subsequentes, conformando a desigualdade econômica com base na clivagem racial”.

Segundo Hasenbalg (2005) o negro voltou a acompanhar o desenvolvimento econômico nacional cerca de quarenta anos depois da abolição da escravatura, quando a superioridade branca era evidente nos aspectos sociais. A origem geográfica e o passado sofrido dos negros geraram desigualdade de oportunidades e contribuíram para a discriminação racial.

2. DA CRIAÇÃO DE TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS DE COMBATE AO RACISMO E DOS COMPROMISSOS ASSUMIDOS PELO ESTADO BRASILEIRO

Para Moraes (2003), a declaração universal dos direitos humanos é um instrumento fundamental para a promoção da justiça social e da igualdade, já que estabelece que todos os indivíduos têm direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, à educação, à liberdade de expressão, à liberdade de pensamento, à igualdade perante a lei, entre outros direitos.

Não obstante o reconhecimento da sua importância muitas críticas lhes foram direcionadas sob o argumento de que suas deliberações eram destituídas de força obrigatória e cogente perante os estados membros. Dessa forma, visando resolver a celeuma, a Organização das Nações Unidas por meio de sua Assembleia Geral criou mecanismos de regulamentação evidenciados através de tratados, de convenções e de pactos. Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos são uma espécie de contratos ou acordos cujo objetivo primordial é a proteção dos direitos humanos em nível global.

Observa-se, ainda, que a partir da segunda metade do século XX a temática de combate ao racismo e contra a discriminação racial ganha relevo na agenda da Organização Nacional das Nações Unidas. É nesse período que o organismo internacional adota uma postura mais proativa com relação ao tema.  No ano de 1960, 17 países africanos passaram a integrar a ONU na condição de membros. Segundo Piovesan (2021) a entidade, declara, ainda, que a partir da data de 21 de março de 1966 será comemorado o dia internacional contra a eliminação da discriminação racial. Proclamando, assim, a nível global a sua irresignação contra o “Massacre de Shaperville” que consistiu no assassinato de 69 pessoas negras, por parte das forças de segurança da África do Sul, no dia 21 de março de 1960.

A Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial é um tratado internacional de direitos humanos instituído e adotado pela pelas Nações Unidas na data de 21 de dezembro de 1965 e que foi assinado pelo estado brasileiro em 07 de março de 1966 e ratificado em 27 de março de 1968, sem reservas.

Este acordo ratificado pelo Estado brasileiro representou a gênese e parâmetro dos fundamentos da adoção das Políticas Públicas de Ação Afirmativa como estratégia de indução da igualdade, vista sob o ponto de vista material, para a população afrodescendente brasileira, bem como o respeito aos seus direitos humanos. A redação do item 4 do art. 1º da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial dispõe que: 

Medidas especiais tomadas com o objetivo precípuo de assegurar, de forma conveniente, o progresso de certos grupos sociais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem de proteção para poderem gozar e exercitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais em igualdade de condições, não serão consideradas medidas de discriminação racial, desde que não conduzam à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido atingidos os seus objetivos.

A ratificação por parte do Estado brasileiro desse tratado internacional de direitos humanos chancelou o compromisso que a nação brasileira anos mais tarde iria operacionalizar através da adoção de políticas públicas de combate ao racismo vinculadas à ampliação do acesso ao ensino superior das pessoas negras e reserva de percentual de vagas para ocupação de cargos públicos na esfera federal.

Posteriormente, sem embargos da importância da ratificação pelo Estado brasileiro da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial um outro instrumento internacional com objetivo semelhante, mas com características peculiares e específicas aos países que compõem a organização dos estados americanos passou a integrar o ordenamento jurídico pátrio.  Trata-se da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 1, de 18 de fevereiro de 2021, e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022 que seguiu o procedimento previsto para aprovação das emendas constitucionais, ou seja, o contido no art. 5º § 3º da Carta Magna, sendo assim, gozando, assim, dito instrumento do status de norma constitucional. 

A Conferência de Durban, por sua vez, conhecida como a terceira conferência mundial contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e forma correlatas de intolerância, aconteceu na África do Sul no ano de 2001, tendo como um dos participantes o Estado Brasileiro ao lado de tantos outros países. Na visão de Conceição (2023, p. 72) 

a importância desse encontro representou o fortalecimento das demandas das vítimas da escravidão e de seus descendentes ao longo dos séculos, na medida em que o reconhecimento da escravidão como crime contra a humanidade, bem como a possibilidade de reparação foram assuntos abertamente discutidos durante o evento. 

Um dos compromissos inseridos no Plano de Ação da Conferência de Durban e assumidos pelos países participantes, incluindo o Brasil, destaca-se o de n. 113 que tem a seguinte redação:

Encoraja os Estados a adotarem estratégias, programas e políticas, incluindo, inter alia, ações afirmativas ou medidas positivas e estratégias ou ações, para possibilitar que as vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata exerçam plenamente seus direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais, incluindo o melhor acesso a instituições políticas, judiciais e administrativas, e concedendo aos mesmos maior oportunidade de participarem totalmente em todas as esferas de vida das sociedades nas quais elas vivem.

As ações afirmativas as quais o Compromisso n. 113 acima citado se referem, materializaram-se no contexto do Estado Brasileiro, inicialmente, através da ampliação do acesso ao ensino superior para pessoas negras através do sistema de cotas, além de reserva de percentual de vagas para ingresso em concursos públicos federais para candidatos negros e indígenas. 

O Estado Brasileiro ao aderir, aprovar e ratificar tratados internacionais de direitos humanos vinculados à temática racial demonstra a sua abertura perante à comunidade internacional agindo em cooperação e integração. 

Os instrumentos internacionais acima mencionados constituem-se como ferramentas de grande importância e de combate ao racismo na seara internacional e nacional. No contexto do estado brasileiro, ganha relevo o fato de que amplificaram a ideia da necessidade dos países signatários adotarem medidas efetivas sob o ponto de vista da igualdade material, o que no Brasil passou a surtir efeitos a partir das ações afirmativas de cotas raciais para acesso ao ensino superior nas instituições federais e posteriormente para o acesso a cargos públicos federais efetivos.

Nesta senda, Pugliesi, Fracaro e Mello (2021) asseveram que com a expansão do processo de concretização dos direitos humanos, emerge a demanda pelo reconhecimento da diversidade, ante a insuficiência da identificação do ser humano enquanto abstração para operar a igualdade material. Continuam os autores dizendo que é nesse sentido que sucedem tratados internacionais destinados especificamente a grupos vulneráveis.  

Dessa forma, é imprescindível se fazer a caracterização do conceito de justiça global: tema amplo que inclui uma pluralidade de demandas de justiça no que diz respeito a assuntos internacionais e globais, justiça global pode ser compreendida como a totalidade de demandas de justiça que podem ser razoavelmente aplicadas, em geral, à ordem global e, em particular, às relações internacionais (KOLLER, 2013). 

3. DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÃO AFIRMATIVAS QUE PROMOVAM A IGUALDADE MATERIAL EM FAVOR DA POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA

O Tema igualdade permeia há muito o imaginário dos povos e regiões em todas as épocas, tendo sido vetor predominante na busca e acesso por direitos outrora negados sob o nefasto argumento de serem extensíveis a apenas aqueles considerados cidadãos. 

Durante a idade média obteve o seu apogeu, na medida em que segundo Vicentino (1997):

[…] A sociedade feudal era composta por dois estamentos, ou seja, dois grupos sociais com status fixo: os senhores feudais e os servos. Os servos eram constituídos pela maior parte da população camponesa, vivendo como os antigos colonos romanos – presos à terra e sofrendo intensa exploração. Eram obrigados a prestar serviços ao senhor e a pagar-lhe diversos tributos em troca de permissão de uso das terras e proteção militar”. (VICENTINO, 1997).

Com o advento das revoluções liberais, no final do século XVIII, a saber norte-americana e francesa o conceito de igualdade alçou um outro patamar que acabou por influenciar as bases e o surgimento do Estado Moderno fazendo nascer uma nova concepção de igualdade oriunda das transformações sociais presentes no período. Registre-se que nesse momento não se tratava ainda de um conceito cunhado em um ideal efetivamente material, mas formal. A classe burguesa certa de suas conquistas passou a exigir tratamento igualitário perante a lei. Cabendo aqui destacar Silva (2014):

[…] A burguesia, cônscia de seu privilégio de classe, jamais postulou um regime de igualdade tanto quanto reivindicara o de liberdade. É que um regime de igualdade contraria seus interesses e dá à liberdade sentido material que não se harmoniza com o domínio de classe em que assenta a democracia liberal burguesa.

Destaca-se que a presença do termo igualdade nas constituições brasileiras anteriores a Constituição Cidadã apresentava a característica de ser mais um elemento sob o ponto de vista formal, ou seja, perante a lei, destituído do sentido material. Chegando até ser objeto de supressão literal, a exemplo do que aconteceu com a Carta de 1937 (SILVA, 2014).  A Carta de 1824, por exemplo, promulgada durante o regime escravocrata dispusera no inciso XIII do art. 179, que “a lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”. Sabe-se que no Brasil, durante o período escravocrata as pessoas escravizadas não eram consideradas cidadãs. Depreende-se com isso que a expressão “igual para todos” era dirigida para parte da população. 

Contudo, com o surgimento da Carta Magna de 1988, pode-se inferir que a expressão Igualdade ganhou relevo, pois passou a figurar no preâmbulo do texto constitucional. O que por si só apresenta o grau de importância a ser dado. Haja vista a noção de que é no preâmbulo constitucional onde se encontram os fins e são revelados os fundamentos sob a perspectiva filosófica, ideológica, política, social e econômica de uma nova Constituição. 

A igualdade perante lei decorrente do pensamento de Locke, Rousseau e Montesquieu apresenta uma concepção formal, meramente processual. Desconsiderando até certo modo a realidade fática, o mundo da vida. Com o passar dos tempos essa concepção restou por insuficiente para atender os anseios sociais, fazendo erigir uma nova ideia focada na busca pela igualdade em seu aspecto tangível, material. 

Pensar as ações estatais, sob a lente unicamente da igualdade, não atende a diferença cultural dos grupos que compõe o povo de um Estado. Além da igualdade entre os homens por pertencerem à mesma espécie, é necessária a percepção da diversidade existente nessa espécie, isto é, o multiculturalismo. Buscando elucidar a igualdade e a diferença, Santos (2004) afirma que os dois conceitos devem ser analisados de forma indissociável. É necessário em determinado momento que se questione a igualdade nas ações estatais, todavia, não pode ser olvidado a necessidade de implementações que atendam a diferença de cada grupo para não haver descaracterização deles (DE ALMEIDA CORREA, 2023).

Salienta Barbalho (1992, p. 03), o preâmbulo, “enuncia por quem, em virtude de que autoridade e para que fim foi estabelecida a Constituição. Não é uma peça inútil ou de mero ornato na construção dela”. 

Na lição de Da Silva (1992), as normas do Preâmbulo assim como as das disposições transitórias são classificadas, quanto à sua eficácia, como normas de aplicabilidade da constituição. No dizer do autor, os preâmbulos valem como orientação para interpretação das normais constitucionais. Tem, pois eficácia interpretativa e integrativa.

A noção de Estado Social Democrático de Direito, amplamente difundida nas Constituições do segundo pós-guerra, está intimamente vinculada aos direitos fundamentais. A compreensão do que seja, portanto, esses direitos fundamentais é condição para se buscar um Estado e, neste sentido, também uma sociedade, ambos baseados no princípio democrático. Quando as constituições elaboram, em seus primeiros artigos, os fundamentos do Estado e da sociedade, estes somente alcançam efetividade social mediante a concretização dos postulados normativos referentes aos direitos fundamentais. São, portanto, os direitos fundamentais o caminho para se consolidar esse ideal buscado (MALISKA, 2001).

Fazendo uma releitura de Piovesan (2021) em sua obra Combate ao Racismo uma das estratégias ao encargo do Estado Brasileiro em matéria de combate ao racismo é a necessária promoção de políticas públicas que não sejam neutras, pois uma vez sendo corre-se o risco de ser uma fonte geradora de discriminação indireta. Para a autora, a necessidade de um protagonismo estatal, orientando pelo dever do Estado de respeitar (não violar direitos), proteger (não permitir que terceiros, atores não estatais, violem direitos) e implementar direitos humanos (adotando todas as medidas legislativas, executivas e judiciais necessárias).

Ainda, no dizer da autora “no tocante ao dever de implementar direitos humanos situam-se as ações afirmativas, consideradas como medidas não apenas legítimas, mas necessárias, pela jurisprudência da Corte Interamericana e pelos Comitês da ONU para a implementação do direito à igualdade.”

Gomes (2001) conceitua políticas afirmativas como o conjunto de políticas públicas e privadas de combate à desigualdade racial e de gênero, cujo objetivo é o resgate de direitos fundamentais e de dívidas históricas da sociedade. O Brasil não figura como a primeira nação cuja experiência com ação afirmativa se tem notícia. Os Estados Unidos das Américas aparecem como o primeiro país aderente a referida medida, tendo como principal objetivo solucionar a questão da marginalização social e econômica de grande parte de sua população negra.

 Posteriormente, outros países, a exemplo da Índia que, após o seu processo de independência, adotou uma série de ações afirmativas, frise-se, não restritas apenas às reservas de vagas para acesso ao ensino superior, mas evidenciadas no mercado de trabalho, legislaturas e nos serviços públicos. Basicamente, as ações afirmativas ou discriminações positivas são medidas de promoção da igualdade racial que, normalmente, quando aplicadas são capazes de a médio ou a longo prazo, transformar o curso e trajetória da vida dos seus destinatários, diluindo estereótipos e preconceitos construídos contra grupos vulnerabilizados, bem como capaz de promover a mobilidade social dos indivíduos beneficiários. Possibilita, ainda, o estímulo a modificações no campo cultural, pedagógico e psicológico capazes de extrair do imaginário coletivo a ideia de superioridade e de subordinação de uma raça em relação à outra. 

Por outra perspectiva, as discriminações positivas atuam como mecanismos que impedem a manutenção dos nefastos efeitos ocasionados pela discriminação do passado, mas com reflexos no presente. Apresentando-se, ainda, como uma estratégia capaz de induzir o convívio com a diversidade, na medida em que permite a inserção e participação dos grupos sociais historicamente discriminados e marginalizados em espaços de poder e de tomadas de decisão. 

Para Gomes (2001), Guimarães (1999), Heringer (2002), Menezes (2001), Jaccoud e Beghin (2002) as ações afirmativas contemporâneas podem ser apresentadas como um mecanismo de inclusão social, promoção de cidadania, combate à discriminação institucionalizada, corretora de desigualdades históricas cujos reflexos estão ainda presentes. Elas podem ainda ser vistas como um conjunto de políticas públicas ou privadas que visam promover igualdade de oportunidades para grupos historicamente marginalizados e/ou segregados. 

Para Motta (2018, p. 231), “a isonomia formal (caput) pugna pela igualdade de todos perante a lei, que não pode impedir que ocorram as desigualdades de fato, provenientes da diferença das aptidões e oportunidades que o meio social e econômico permite a cada um”. Para Barcellos (2018, p. 175), “a isonomia material busca promover a igualdade real dos indivíduos – ou, ao menos, a redução das desigualdades –, o que pode ser levado a cabo por meio de mecanismos variados.”

Importante definição de políticas afirmativas consta do artigo 2o, inciso II, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial da Organização das Nações Unidas, da qual o Brasil é signatário desde a edição do Decreto no 65.810, de 08 de dezembro de 1969, abaixo transcrita:

Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contando que, tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sidos alcançados os seus objetivos (ONU, 1965, p. 03).

Nesse sentido, as ações positivas revelam-se como instrumentos em prol da efetiva igualdade material. Ademais, dentre tantos outros objetivos, destacam-se no dizer de Lívia Santana Vaz em seu livro Cotas Raciais os seguintes: estímulo da convivência com a diversidade; mobilidade social, por possibilitar a ascensão social de pessoas dos grupos raciais subalternizados, tornando a “comunidade mais igualitária em termos gerais” (DWORKIN, 2002:329).

 O favorecimento do desenvolvimento econômico, já que muitos países têm sua população formada por maioria ou significativa parcela de indivíduos pertencentes a tais grupos, como é o caso do contingente negro no Brasil; o estímulo a outros eventuais destinatários da política pública, por meio de “exemplos vivos de mobilidade social ascendente”; a desconstrução de estereótipos negativos que perpetuam o estigma de inferioridade dos membros de tais grupos vulnerabilizados; o aproveitamento de talentos desperdiçados e apagados pelo racismo e outras formas de opressão que com ele se interseccionam. 

A Lei nº 12.711/2012 e a Lei nº 12.990/2014, respectivamente instrumento legal que garante a reserva de percentual de vagas para o acesso de estudantes oriundos de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capta, estudantes negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência ao ensino superior em instituições públicas federais e diploma legal que determina a reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para cargos efetivos da esfera federal são políticas de inclusão social que para Moreira (2016)  são meios de se reparar e de se integrar os negros na sociedade. Valorizam a democracia, ao permitir que os negros contemporâneos as políticas afirmativas de cotas para ingressos às universidades públicas e acesso a cargos públicos efetivos nos concursos públicos federais tenham acesso a espaços sociais que seus ancestrais não conseguiram e que participem dos processos decisórios do país, o que afetará os contextos sociais de forma positiva.

A recente revisão ocorrida na Lei nº 12.711/2012 a conhecida lei de cotas para ingresso em universidades federais pela Câmara dos Deputados Federais amplia o seu escopo de atuação, incluindo, por exemplo, os quilombolas como beneficiários da política inclusiva, além de redução para 1 salário mínimo a renda per capita para a reserva de 50% das cotas,  o que justifica-se pela necessidade de buscar mecanismos que promovam efetivamente uma justiça social e racial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se com o presente artigo demonstrar a importância da adesão por parte do Estado Brasileiro aos instrumentos internacionais de Direitos Humanos de combate ao racismo, ante a necessária colaboração que deve existir entre os países signatários seja na ordem interna ou externa com vistas a promover a igualdade material. Apresentou-se o percurso de exclusão de diversas ordens materiais e simbólicas vivenciadas pela população negra escravizada no antes e pós abolição cujas consequências perduram até o dia hoje. Demonstrou-se que as Políticas Públicas de Ação Afirmativa e de combate ao racismo tem como principal objetivo a promoção da igualdade material e que por isso são necessárias e essenciais para a toda a sociedade brasileira.

Assim, é de relevo reconhecer que apesar dos esforços empreendidos pelo Estado Brasileiro através da edição de leis, ratificação de tratados internacionais, adoção de ações afirmativas com vistas a promoção da igualdade racial e combate ao racismo, observa-se ainda que persistem alguns desafios centrais visando ao fortalecimento dos direitos humanos sob a perspectiva étnico-racial. 

Sendo necessário, ainda, fomentar uma cultura jurídica orientada pela incorporação dos parâmetros protetivos internacionais, para fortalecer o diálogo vertical e horizontal de jurisdições sob a perspectiva do sistema jurídico multínivel com base no princípio da prevalência da dignidade humana. Bem como unir e erradicar a discriminação, fortalecendo a ótica repressiva do Direito.

Promovendo a igualdade mediante ações afirmativas, fortalecendo a ótica promocional do Direito, aplicando indicadores para promover a igualdade e combater a discriminação, estimulando a pesquisa de dados desagregados sob a perspectiva étnico-racial, gênero, idade e outros, promovendo o valor da diversidade, mediante programas educativos e campanhas de sensibilização e assim, assegurando a diversidade e o pluralismo nos sistemas políticos e legais.

REFERÊNCIAS

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