HEMATOPOIETIC STEM CELL TRANSPLANTATION IN PATIENTS WITH SICKLE CELL ANEMIA
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11208924
Mirella Vieira Alvesa
Co-orientador: Thiago Fidelis Ferrãob
Orientadora: Amanda de Oliveira Baccinc
RESUMO
A anemia falciforme é uma doença genética caracterizada pela produção anormal de hemoglobina, causando deformação dos glóbulos vermelhos e obstrução dos vasos sanguíneos, levando a complicações graves como dor intensa, danos aos órgãos e crises frequentes. O tratamento convencional inclui transfusões de sangue e medicamentos para aliviar os sintomas, mas enfrenta desafios significativos, como rejeição imunológica e escassez de doadores compatíveis. A terapia autóloga, que utiliza células-tronco do próprio paciente modificadas geneticamente, surge como uma abordagem promissora. Por evitar o risco de rejeição e a dependência de doadores externos, essa técnica oferece potencial para uma terapia mais eficaz e sustentável. Além disso, a edição genética das células-tronco permite a correção do defeito genético subjacente, oferecendo a possibilidade de uma cura definitiva para a doença. Estudos iniciais têm revelado resultados promissores dessa abordagem. A introdução da proteína Cas9 nas células-tronco modificadas resultou em uma notável eficiência na edição genética, culminando no aumento dos níveis de hemoglobinas saudáveis e na reversão do fenótipo da anemia falciforme. Tais avanços destacam um potencial significativo para aprimorar a qualidade de vida e prolongar a sobrevida dos pacientes afetados, oferecendo uma nova perspectiva terapêutica para o tratamento dessa condição debilitante.
Palavras-chave: Anemia falciforme, células-tronco, hemoglobina, terapia autóloga.
ABSTRACT
Sickle cell anemia is a genetic disease characterized by the abnormal production of hemoglobin, causing deformation of red blood cells and obstruction of blood vessels, leading to serious complications such as intense pain, organ damage and frequent crises. Conventional treatment includes blood transfusions and medications to alleviate symptoms, but faces significant challenges such as immunological rejection and a shortage of compatible donors. Autologous therapy, which uses the patient’s own genetically modified stem cells, appears as a promising approach. By avoiding the risk of rejection and dependence on external donors, this technique offers the potential for more effective and sustainable therapy. Furthermore, genetic editing of stem cells allows the correction of the underlying genetic defect, offering the possibility of a definitive cure for the disease. Initial studies have revealed promising results from this approach. The introduction of the Cas9 protein into the modified stem cells resulted in remarkable efficiency in gene editing, culminating in an increase in healthy hemoglobin levels and the reversal of the sickle cell anemia phenotype. Such advances highlight significant potential to improve the quality of life and prolong survival of affected patients, offering a new therapeutic perspective for the treatment of this debilitating condition.
Keywords: Sickle cell anemia, stem cells, hemoglobin, autologous therapy.
1. INTRODUÇÃO
A anemia é uma doença que se caracteriza pela diminuição da quantidade de eritrócitos no sangue ou pela redução da concentração de hemoglobina, proteína que desempenha papel crucial no transporte de oxigênio. A redução da oxigenação, resultante da anemia, pode manifestar-se através de sintomas como fadiga, palidez, fraqueza, tontura e falta de ar (1, 2, 3).
As causas da anemia são diversas e podem incluir deficiências nutricionais, perdas sanguíneas decorrentes de hemorragias, doenças genéticas, doenças crônicas, distúrbios da medula óssea, entre outros fatores. Dentre as anemias hemolíticas hereditárias, destaca-se a anemia falciforme, caracterizada por mutação na estrutura da hemoglobina, que confere a essa proteína uma morfologia anormal sob determinas circunstâncias, levando os eritrócitos a assumirem uma forma semelhante à de foice (drepanócitos), em contraposição à eritrócitos normais, que possuem estrutura globular e flexível (1, 4, 5).
A mudança morfológica que induz os eritrócitos a tomarem outra forma pode afetar a circulação sanguínea. Isso se traduz em vasoconstrição, aderência celular e oclusão vascular, desencadeando uma variedade de manifestações clínicas, como dor e ulcerações nos membros inferiores. Além disso, a anemia falciforme está associada a várias complicações sistêmicas, tais como disfunções neurológicas, cardiovasculares, pulmonares e renais (1, 2, 5).
A classificação dos indivíduos em homozigotos ou heterozigotos distingue aqueles que portam o traço falciforme, geralmente assintomáticos, daqueles que possuem de fato a doença anemia falciforme (AF). Adicionalmente, a presença do gene da hemoglobina S (HbS) pode combinar-se com outras mutações hereditárias dessa proteína, como a hemoglobina C, hemoglobina D e talassemias, gerando diversas combinações patológicas, conhecidas como doenças falciformes (6, 7).
O manejo das crises vaso-oclusivas na AF frequentemente requer hospitalização, onde medidas terapêuticas incluem oxigenioterapia, hidratação intravenosa e analgesia. Em alguns casos, transfusões sanguíneas podem ser necessárias. No entanto, as limitações dos tratamentos convencionais destacam a necessidade de alternativas mais eficazes.
Nesse sentido, o transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH) se apresenta como uma opção promissora para pacientes com a doença (8, 9, 10). Este procedimento envolve a substituição das células-tronco hematopoiéticas do paciente por células-tronco saudáveis, que podem derivar de um doador (alogênico) ou do próprio paciente (autólogo). A realização do TCTH alogênico está sujeita a critérios rigorosos, incluindo a disponibilidade e compatibilidade de um doador, enquanto que o transplante de células-tronco autólogo destaca-se por utilizar as próprias células do paciente, característica crucial desta abordagem e uma de suas vantagens distintivas, tornando-a uma opção valiosa para pacientes com AF, pois elimina o desafio associado à busca por um doador adequado e reduz significativamente o risco de rejeição das células transplantadas (8, 9, 10, 11, 12).
Neste contexto, o objetivo desse estudo é aprofundar a compreensão sobre a anemia falciforme e explorar o uso do TCTH como opção terapêutica, uma vez que essa modalidade de transplante tem demonstrado taxas significativas de cura, representando esperança para pacientes afetados por essa condição complexa. Além disso, o trabalho busca avaliar o impacto do TCTH na qualidade de vida dos pacientes, bem como contribuir para o aumento do conhecimento sobre as opções terapêuticas para a AF.
2. JUSTIFICATIVA
A doença falciforme (DF) é uma enfermidade genética que afeta milhões de indivíduos ao redor do mundo. Esta condição não apenas gera sofrimento aos pacientes, afetando sua qualidade de vida, como representa um fardo significativo para os sistemas de saúde. Seu impacto transcende fronteiras geográficas, afetando indivíduos de diversas origens étnicas, conferindo assim relevância internacional à pesquisa sobre o TCTH como uma estratégia terapêutica (2, 4, 10).
O TCTH emergiu como uma promissora modalidade de tratamento para a DF, oferecendo a perspectiva de cura real, diferente das opções convencionais, que se limitam, em grande parte, ao controle dos sintomas. Este procedimento envolve a substituição das células-tronco hematopoiéticas do paciente por células-tronco saudáveis, potencialmente resultando na produção de células sanguíneas normais e na remissão dos sintomas e da doença (8, 9, 10).
Entretanto, a implementação bem-sucedida do TCTH enfrenta desafios substanciais, desde a identificação de doadores compatíveis até a gestão das complicações pós-transplante. Logo, esta pesquisa justifica-se pela necessidade de explorar tais desafios e buscar soluções potenciais. A compreensão aprofundada dos aspectos clínicos e científicos relacionados ao TCTH na DF é fundamental para melhorar a eficácia dessa terapia e fornecer orientações valiosas a profissionais da saúde, pacientes e formuladores de políticas voltadas a saúde (8, 9, 10).
3. MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de uma revisão de literatura, com o objetivo de avaliar a eficácia do TCTH como intervenção terapêutica em pacientes diagnosticados com anemia falciforme. Para identificar estudos sobre a temática, realizou-se uma busca nas seguintes bases de dados: PubMed, SciELO e Google Acadêmico. As buscas foram feitas utilizando uma combinação de palavras-chave específicas, incluindo “anemia falciforme”, “células-tronco”, “transplante” e “terapia gênica”, bem como outras variações pertinentes.
Os critérios de inclusão estabelecidos previamente foram:
- Estudos publicados em revistas científicas;
- Estudos que investigaram o uso do TCTH como tratamento para a anemia falciforme;
- Estudos com resultados clínicos relevantes e abordagens terapêuticas claras;
- Estudos disponíveis em inglês ou português.
Já os critérios de exclusão foram:
- Estudos não relacionados à anemia falciforme ou ao TCTH;
- Estudos não disponíveis na íntegra.
A análise dos dados consistiu na avaliação dos resultados apresentados nos artigos selecionados. Os principais desfechos clínicos, bem como os métodos empregados em cada estudo, foram resumidos e interpretados.
4. CONSIDERAÇÕES GERAIS
4.1. Anemia falciforme
A hemoglobina é o principal constituinte dos eritrócitos e confere a eles sua coloração avermelhada. Quando os níveis de hemoglobina diminuem abaixo do considerado normal em um individuo, há a caracterização do quadro de anemia (6, 7).
Neste contexto, dentre as anemias destacam-se as hemoglobinopatias, um grupo de doenças de origem genética que ocorrem devido a mutação nos genes relacionados à produção dessa proteína. Essas mutações podem ser categorizadas em dois grupos: mutações estruturais ou mutações de produção. Mutações estruturais levam a produção de hemoglobina disfuncional, o que encurta a vida útil dos glóbulos vermelhos e pode gerar complicações; mutações de produção, por outro lado, resultam em uma taxa reduzida de produção de hemoglobina, levando a diferentes graus de anemia (3, 7).
Um exemplo de hemoglobinopatia é a AF, caracterizada por uma mutação estrutural no gene responsável por codificar a cadeia beta globinica. Esta condição é predominantemente observada em indivíduos com ascendência africana, embora também possa ser encontrada em outras populações étnicas (5, 6, 10).
A anemia falciforme é a manifestação de um distúrbio genético em que um indivíduo herda uma homozigose para a variante HbS, caracterizada pela presença de dois alelos HbS. Isso resulta em uma morfologia alterada dos eritrócitos, comprometendo sua funcionalidade (1, 2, 3, 5).
Aqueles que herdam apenas um alelo HbS, mantendo o outro alelo normal da hemoglobina A, não desenvolvem a doença e são categorizados como portadores do traço falciforme. Geralmente assintomáticos, em determinadas regiões geográficas, essa condição pode inclusive conferir resistência à malária (1, 5, 6).
A história da anemia falciforme remonta a 1910, quando o Dr. James Herrick a descreveu pela primeira vez ao examinar as células sanguíneas de um paciente caribenho com sintomas de dor e letargia. Ele identificou a forma peculiar dos glóbulos vermelhos, que pareciam foices, e cunhou o termo “anemia falciforme”. Posteriormente, os esforços se voltaram para a investigação dos mecanismos subjacentes da doença, quando em 1927 estabeleceu-se a relação da doença com a falta de oxigenação. Em 1949, a hereditariedade da condição foi documentada, e em 1951, Linus Pauling e Harvey Itano elucidaram a anomalia na estrutura da hemoglobina como a causa da deformação dos eritrócitos (3, 5).
A busca por tratamentos e uma possível cura concentrou-se principalmente a partir da década de 1980. Os transplantes de medula óssea foram investigados como abordagem curativa, mas devido à complexidade e aos riscos envolvidos, sua aplicação era limitada. Em 1995, a descoberta de que a hidroxiureia aliviava significativamente a dor relacionada à AF representou um marco no tratamento, melhorando a qualidade de vida dos pacientes. No Brasil, em 2015, a autorização para o transplante de células-tronco hematopoéticas em casos graves da doença pelo Sistema Único de Saúde (SUS) representou um avanço significativo no tratamento (5, 8).
4.2. Patogenia
A hemoglobina é uma proteína vital para o transporte de oxigênio nos seres humanos. É constituída por quatro subunidades conhecidas como cadeias globínicas ou subunidades alfa (α) e beta (β). Em adultos, a configuração típica da hemoglobina é chamada de hemoglobina A (HbA), formada por duas cadeias alfa e duas cadeias beta. Cada subunidade da hemoglobina abriga um grupo heme, estrutura que contém ferro em seu núcleo. O ferro desse grupo é responsável pela ligação do oxigênio à molécula. Quando o oxigênio está disponível nos pulmões, a hemoglobina se liga a ele e, em seguida, o transporta pelo sistema vascular para liberá-lo nos tecidos, onde é necessário para processos metabólicos essenciais (1, 13, 14).
A estrutura da hemoglobina também é mantida por ligações específicas, incluindo ligações de ponte de hidrogênio e de sulfeto, garantindo que as subunidades alfa e beta permaneçam unidas de maneira estável. Além disso, essa proteína ajuda a transportar o dióxido de carbono produzido nas células de volta aos pulmões, onde será eliminado do corpo. Portanto, a estrutura altamente especializada da hemoglobina é fundamental para a respiração e a homeostase (1, 13, 14).
Na DF, a etiologia primária reside na mutação que ocorre no códon 6 do gene da cadeia beta da globina. Trata-se de uma transição na qual a adenina (A) é substituída por timina (T), resultando na conversão do resíduo glutamil na posição β6 para um resíduo valil (β6Glu-Val). Esta alteração propicia a gênese da HbS, uma variante atípica da hemoglobina que exibe a capacidade intrínseca de polimerização sob determinas condições (1,13,14,15,16).
Quando exposta a baixos níveis de oxigênio, a HbS leva à formação de polímeros compostos por 14 fibras de desoxiemoglobina, criando uma estrutura multipolimérica em forma de foice no interior das células. Isso é devido a propriedades físico-químicas distintas em relação à hemoglobina normal, resultantes da perda de cargas elétricas pela substituição do ácido glutâmico (1,13,14,15,16).
A velocidade e a extensão da formação de polímeros dependem principalmente de três fatores: o grau de desoxigenação, a concentração de HbS dentro da célula e a presença ou ausência de hemoglobina F. Além disso, a polimerização da HbS resulta em desidratação celular devido à perda de potássio (K+) e água (H2O), levando à ativação excessiva do canal de transporte de potássio e cloreto (K+Cl–), estimulada pela acidificação, edema celular e pelo canal de Gardos, um canal de transporte de K+ ativado pelo aumento do cálcio (Ca2+) devido a elevação na concentração desse íon (1,13,14,15,16).
Outra consequência relevante é a perda da capacidade de deformação das hemácias, dificultando sua passagem pelos capilares devido ao aumento da concentração intracelular de HbS, resultando em lesões citosólicas mais pronunciadas, polimerização da HbS e lesões na membrana. Isso, somado à inibição aumentada dos eritrócitos falcizados ao endotélio, facilita a formação de trombos tanto na micro quanto na macrocirculação (1,13,14,15,16).
4.3. Diagnóstico
O hemograma é uma ferramenta fundamental para auxiliar no diagnóstico e acompanhamento da AF. As alterações nos índices hematimétricos, bem como as observações feitas na análise microscópica das lâminas sanguíneas são de grande importância para a avaliação contínua da doença (15, 17).
A redução da hemoglobina é uma marca registrada dessa condição devido à presença de anemia. O volume corpuscular médio (VCM) pode estar dentro dos valores normais ou até mesmo aumentado, principalmente pela elevada presença de reticulócitos. É comum observar um aumento na amplitude de distribuição dos eritrócitos (RDW) também pela presença de reticulócitos. Enquanto isso, a concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM) e a hemoglobina corpuscular média (HCM) costumam permanecer dentro dos valores normais. As plaquetas podem estar em quantidades aumentadas e a contagem global de leucócitos varia consideravelmente, não apresentando um padrão específico, sendo influenciada por diferentes fatores individuais (15, 17).
O diagnóstico definitivo da AF requer a realização de uma série de exames laboratoriais voltados para a identificação de hemoglobinas anormais, com ênfase especial na HbS (2, 3, 6, 17). No caso do traço falciforme, a primeira etapa consiste em uma triagem, que é conduzida por meio da eletroforese de hemoglobina. O propósito principal desta etapa é detectar a presença da HbS. O traço falciforme é caracterizado pela presença de uma única cópia mutante do gene da cadeia beta da globina (6, 14).
Em contrapartida, no diagnóstico da anemia falciforme, além da triagem inicial, é requerida uma confirmação diagnóstica mais específica, tipicamente realizada por meio da cromatografia líquida de alta pressão (HPLC) ou da análise molecular do DNA por PCR ou sequenciamento. Estas abordagens possibilitam a identificação de mutações em ambos os alelos do gene da cadeia beta da globina, conferindo maior robustez ao diagnóstico da patologia (6, 14).
4.4. Tratamento
O acompanhamento de pacientes com AF requer cuidados específicos e visitas regulares a centros especializados, preferencialmente com equipes multidisciplinares. Os objetivos terapêuticos abrangem o tratamento de complicações relacionadas à doença e a promoção da saúde global, incluindo medidas de rotina para acompanhar o crescimento, desenvolvimento físico e psicológico, bem como tratar lesões orgânicas (1, 18, 19).
A longo prazo, diversas estratégias são empregadas, como suplementação de ácido fólico, fundamental devido à hiperplasia eritropoética; o uso de medicamentos específicos que podem aumentar a hemoglobina fetal em pacientes selecionados; profilaxia com foco na prevenção de infecções recorrentes; tratamento de crises dolorosas vaso-oclusivas, uma das manifestações mais frequentes e debilitantes da AF; e manejo de outras crises agudas que possam surgir durante o curso dessa condição (18, 19).
Vale ressaltar que o indivíduo com traço falciforme geralmente não necessita de tratamento e as intervenções terapêuticas têm como objetivo aprimorar a qualidade de vida dos pacientes e reduzir as complicações relacionadas à doença (18, 20).
4.4.1. Tratamentos convencionais
O gerenciamento da AF tem como objetivo primordial a otimização da perfusão tecidual, o controle da dor, a prevenção e o tratamento de complicações associadas, tais como anemia, crises vaso-oclusivas (CVO) e infecções. Até o momento, a terapia com hidroxiureia (HU) tem se destacado como o tratamento mais eficaz, uma vez que promove o aumento da produção de hemoglobina fetal (HbF), resultando na redução dos níveis de HbS e, por conseguinte, na minimização da falcização de eritrócitos e da subsequente vaso-oclusão (18, 21).
Apesar de sabermos que a HU é segura e eficaz, ainda não compreendemos totalmente seus efeitos a longo prazo. Estudos observacionais estão sendo realizados para entender melhor essa questão, onde pesquisas indicam que os efeitos colaterais crônicos mais comuns são a redução de neutrófilos (neutropenia) e de plaquetas (trombocitopenia) (18, 22).
Outras reações adversas da HU incluem mielossupressão, perturbação gastrointestinal, erupção cutânea (com hiperpigmentação de unhas, palmas e plantas dos pés), desenvolvimento de úlceras em membros inferiores (em pacientes com síndromes mieloproliferativas), enxaqueca, potencial teratogénico, possível risco de desenvolvimento de câncer e necessidade de redução da dose em pacientes com insuficiência renal (18, 22).
A mielossupressão é o efeito adverso mais grave, podendo levar a níveis críticos de hemoglobina, neutrófilos e plaquetas, o que pode ser fatal. Quando esses limites são atingidos, a terapia com HU é interrompida e, em seguida, reiniciada com uma dose menor (18, 22).
Além disso, também contamos com o Crizanlizumabe, um anticorpo monoclonal humanizado, que tem como alvo específico a P-selectina, bloqueando suas interações com ligantes. Essa ação inibitória é fundamental na prevenção das CVOs, responsáveis por causar isquemia tecidual e intensa dor, sendo uma das principais causas de morbidade, frequentes atendimentos de emergência e hospitalizações em pacientes com essa doença (13, 23).
O uso do Crizanlizumabe resulta em diversos sinais, sintomas e reações, que incluem episódios de dor disseminada pelo corpo, cefaleia, febre, calafrios ou tremores, náusea, vômito, diarreia, cansaço, tontura, urticária, sudorese, falta de ar ou chiado no peito. Caso ocorra uma reação relacionada à infusão, pode ser necessário interrompe-la ou diminuir sua velocidade, além de utilizar medicamentos para reduzir o risco de reações durante a administração do fármaco (18, 23, 24).
A incorporação do suplemento L-glutamina revelou-se eficaz na redução da frequência de crises de dor em indivíduos afetados pela AF. Considerando o papel crucial do estresse oxidativo nessa condição, a administração oral de glutamina demonstrou a capacidade de desencadear uma resposta protetora nas células sanguíneas. Esse efeito contribui para a atenuação do estresse oxidativo, oferecendo alívio para a dor associada à anemia falciforme. Embora a perspectiva desse um novo tratamento para a anemia falciforme seja promissora, é relevante destacar as limitações disponíveis quanto a utilização específica da L-glutamina nesse contexto. Persistem incertezas significativas em relação à sua eficácia, segurança e interação adequada com as opções de tratamento convencionais (25, 26).
4.4.2. Opções terapêuticas atuais
O transplante de medula óssea em pacientes com DF oferece tanto vantagens quanto desvantagens. Se por um lado representa esperança de cura para distúrbios hematológicos, incluindo a doença falciforme, por outro, traz consigo desafios significativos. O transplante pode ser realizado de duas maneiras: alogênico, com células de um doador, ou autólogo, utilizando as próprias células do paciente. As células-tronco, fundamentais para o procedimento, podem ser obtidas de várias fontes, como medula óssea, sangue periférico e sangue do cordão umbilical (11, 12, 27).
O TCTH, também conhecido como transplante alogênico, envolve a substituição da medula óssea do paciente por células-tronco hematopoiéticas saudáveis de um doador compatível. Uma das principais vantagens do TCTH alogênico é a possibilidade de cura definitiva da DF, já que as células-tronco do doador saudável podem produzir células sanguíneas normais, eliminando assim os sinais e sintomas da doença. No entanto, encontrar um doador compatível pode ser difícil, e o procedimento está associado a complicações graves, como rejeição do enxerto e doença do enxerto contra o hospedeiro (11, 12, 27).
Já o TCTH autólogo, utiliza as células-tronco hematopoiéticas saudáveis coletadas do próprio paciente. Uma vantagem significativa do TCTH autólogo em pacientes com AF é a redução do risco de complicações relacionadas ao enxerto, uma vez que as células-tronco são do próprio paciente. Além disso, o procedimento pode ser realizado mesmo na ausência de um doador compatível, ampliando as opções de tratamento para os pacientes. No entanto, não oferece uma cura definitiva, pois as células-tronco do paciente podem conter a mutação genética subjacente à doença, e pode não ser adequado para pacientes com danos severos em órgãos (29, 30).
Os resultados após o procedimento de TCTH variam, mas geralmente há uma sobrevida global de aproximadamente 90 – 95%. Essa taxa de sucesso é especialmente significativa para pacientes com doadores de histocompatibilidade leucocitária (HLA) compatível, onde a sobrevida livre de doença atinge cerca de 80 – 85%. Esses resultados positivos refletem a eficácia do procedimento e destacam a importância da compatibilidade entre doador e receptor para o sucesso do tratamento (29, 30).
Além disso, é importante mencionar que complicações relacionadas ao transplante ainda podem ocorrer, levando à mortalidade de 5 a 10% dos pacientes. A principal causa de morte nesses casos é a doença do enxerto contra o hospedeiro, com frequências de doença do enxerto contra o hospedeiro aguda (DECHa) e crônica (DECHc) de 12% e 25%, respectivamente (29, 30).
As complicações crônicas mais comuns incluem o déficit de crescimento e a esterilidade, sendo que crianças que recebem o TCTH próximo ou durante o estirão de crescimento apresentam baixa estatura após o procedimento. Quanto à reversão das lesões preexistentes ao transplante de medula óssea, lesões no sistema nervoso central e a função pulmonar estabilizaram ou melhoraram em todos os pacientes avaliados. Sobre a pega da medula óssea, o quimerismo misto estável ocorreu em aproximadamente 25% das crianças com DF que receberam transplantes de doadores HLA-idênticos (29, 30).
Um único estudo avaliou o TCTH em pacientes jovens portadores de AF sem complicações. Este grupo de 14 crianças africanas, que moravam na Bélgica e buscavam tratamento ambientalmente curável, não apresentou óbitos, e apenas um caso teve recuperação da doença (29, 30).
Vários ensaios clínicos estão atualmente em andamento, investigando diferentes estratégias de adição e edição de genes. Embora os resultados disponíveis até o momento se baseiem em um número limitado de pacientes e, em alguns casos, tenham um acompanhamento relativamente curto, demonstram ser promissores. A abordagem terapêutica mais inovadora é baseada na modificação genética das células-tronco e no transplante autólogo. Nesse procedimento, as células-tronco são coletadas do próprio paciente, geralmente da medula óssea, e encaminhadas para um laboratório, onde passam por edição genética. No contexto do tratamento da DF, foram desenvolvidas estratégias terapêuticas que combinam a adição de genes baseada em vetores lentivirais (LV) com técnicas CRISPR-Cas9 (8, 9, 10, 11, 12).
Esses vetores lentivirais são sistemas de entrega de genes que permitem a inserção de material genético nas células do paciente. Por sua vez, o CRISPR-Cas9 é uma tecnologia de edição genética que permite cortar e modificar sequências específicas de DNA. O objetivo dessas estratégias é inibir a produção da β-globina falciforme e aumentar a incorporação de uma globina anti falciforme (AS3) em tetrâmeros de hemoglobina, ou induzir a expressão de γ-globinas fetais anti falciformes. As células-tronco progenitoras hematopoiéticas de pacientes com DF são modificadas com LVs que expressam AS3 e um RNA guia direcionado para o gene endógeno da β-globina ou regiões associadas ao silenciamento da hemoglobina fetal (11, 12).
A introdução da proteína Cas9 nas células modificadas resultou em alta eficiência de edição, altos níveis de hemoglobinas anti falciformes e a reversão do fenótipo de anemia falciforme, tudo isso com um número significativamente menor de cópias do vetor em comparação com a abordagem convencional baseada em LV. Posteriormente, essas células-tronco modificadas são transplantadas de volta para o próprio paciente. O objetivo é que essas células-tronco corrigidas originem eritrócitos saudáveis, que não causem obstruções nos vasos sanguíneos, aliviando assim as complicações da DF (11, 12, 28).
Além do CRISPR-Cas9, outras técnicas de edição genética, como as TALENs (Transcription Activator-Like Effector Nucleases) e as ZFNs (Zinc Finger Nucleases), também são utilizadas em pesquisas para desenvolver novas abordagens terapêuticas para a anemia falciforme. As TALENs consistem em proteínas de nucleases ligadas a um domínio de ligação ao DNA, projetadas para reconhecer sequências específicas de ácido, permitindo a edição precisa do genoma. Da mesma forma, as ZFNs são proteínas de nucleases que incluem um domínio de ligação ao DNA chamado “dedo de zinco”, capaz de reconhecer sequências de DNA específicas, ligado a uma endonuclease, permitindo a indução de quebras de dupla fita no DNA em locais desejados. Ambas as técnicas oferecem potencial para corrigir a mutação genética subjacente à AF (31).
Atualmente, essas pesquisas encontram-se em fases pré-clínicas, onde estão sendo desenvolvidos e validados os protocolos necessários para os procedimentos. Após a obtenção dos resultados desses testes, será possível avaliar a segurança e eficácia dessas estratégias, onde serão incluídos pacientes para estudos clínicos que visem verificar a aplicabilidade prática dessas promissoras abordagens terapêuticas (8, 11).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os avanços recentes no tratamento da DF marcam uma era de inovação que traz esperança. Com a evolução das técnicas de TCTH, tanto alogênico quanto autólogo, os pacientes com DF têm novas oportunidades para tratamentos mais eficazes e com menos complicações. Embora o TCTH alogênico tenha demonstrado alta taxa de sobrevida e eficácia, ele ainda enfrenta desafios como a doença do enxerto contra o hospedeiro e a necessidade de doadores compatíveis. Em contrapartida, a terapia gênica autóloga, particularmente através da edição de genes com técnicas como CRISPR-Cas9, abre um caminho promissor para a correção da causa genética da AF, reduzindo a dependência de doadores e os riscos associados ao transplante alogênico. Esses avanços não só ampliam as opções terapêuticas para a AF, mas também elevam a expectativa de uma melhoria substancial na qualidade de vida dos pacientes, marcando um progresso significativo na luta contra esta doença desafiadora e complexa.
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aGraduanda em Biomedicina no Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU;
bBiomédico, curso de Biomedicina do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU;
cBiomédica, curso de Biomedicina do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU