REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202411182248
Mariane Bolzan
Helenise Sangoi Antunes
RESUMO. Este artigo trata-se de um recorte de uma Dissertação de Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria/UFSM e surge do interesse em pesquisar como a história de vida de uma professora alfabetizadora, que trabalha em uma escola do campo do município de Restinga Sêca/RS, relaciona-se com os seus processos formativos enquanto docente. Busca-se fazer uma aproximação da professora alfabetizadora às suas memórias das trajetórias pessoais e profissionais de vida. A pesquisa é de cunho qualitativo conforme estudos de Bogdan e Biklen (1994), utilizando a metodologia história de vida. Os instrumentos que fizeram parte da coleta de dados são a entrevista semiestruturada oral e escrita, registros em diário de campo e os relatos autobiográficos. Entre os autores que fizeram o aporte teórico neste trabalho estão Abrahão (2003), Antunes (2001, 2010), Arroyo (2004), Bosi (1999), Caldart (2004), Freire (1996), Nóvoa (1988), Tardif (2002), Souza (2006), e outros que colaboram para estudos sobre formação de professores, histórias de vida e educação do campo. Concluindo este trabalho consegue-se dar visibilidade e possibilidade para esta professora que atua no meio rural, em revisitar os seus processos de formação e sentir-se valorizada perante o trabalho que realiza.
Palavras-chave: Formação de Professores, Educação do Campo, Histórias de Vida, Processos Formativos.
Introdução
Este artigo parte de uma Dissertação de Mestrado em Educação e está vinculado à Linha de pesquisa “Formação, Saberes e Desenvolvimento Profissional” (LP1) do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria – PPGE/UFSM. Ele surge do interesse em pesquisar como as histórias de vida de uma professora alfabetizadora, que trabalha em escolas do campo do município de Restinga Sêca/RS, relacionam-se com os seus processos formativos enquanto docente. Através do estudo, busca-se fazer uma aproximação da professora alfabetizadora às suas memórias das trajetórias pessoais e profissionais de vida, relembrando etapas de seus processos de formação.
A pesquisa realizada é de cunho qualitativo, conforme estudos de Bogdan e Biklen (1994), utilizando a metodologia história de vida. As informações foram coletadas por meio de encontros agendados previamente com a colaboradora. Os instrumentos que fazem parte da coleta de informações são a entrevista semiestruturada oral e escrita e os relatos autobiográficos, também orais e escritos; todos estes foram gravados, transcritos e organizados conforme as categorias de análise que surgiram: Memória da escola, Formação inicial e Prática docente. Entre os autores que fizeram o aporte teórico neste trabalho estão Abrahão (2003), Antunes (2001, 2010), Arroyo (2004), Bosi (1999), Caldart (2004), Freire (1996), Nóvoa (1988), Tardif (2002), Souza (2006), e outros que colaboram para estudos sobre formação de professores, histórias de vida e educação do campo. Pretende-se, neste trabalho, dar visibilidade e possibilidade para essa professora colaboradora que atua no meio rural de revisitar os seus processos de formação.
A primeira parte do artigo destina-se aos “Caminhos metodológicos”, onde descreve-se passos trilhados para o desenvolvimento da pesquisa em questão. Procura-se trazer autores que contribuem para a fundamentação da metodologia escolhida. Este capítulo está subdividido em dois. O primeiro intitula-se “Algumas considerações sobre memória, (auto)biografia e história de vida”, onde são trazidos autores que contribuem para essas temáticas que fazem parte do artigo. Ainda no caminho metodológico, no subcapítulo dois “Conhecendo a colaboradora e o chão da pesquisa”, trago informações importantes sobre a a narradora e também sobre a escola do campo, na qual ela trabalha como professora.
Em sequência, o item “Formação de professores em escolas do campo” é destinado a revisão de literatura, com os autores que sustentam teoricamente a escrita deste trabalho. Discute-se sobre as problemáticas e os desafios da formação de professores na contemporaneidade, partindo das contribuições de estudiosos que versam sobre a temática. Para melhor organização e compreensão, esta parte é dividida em três subcapítulos. No primeiro “Memórias da escola”, são trazidos importantes trechos da colaboradora da pesquisa, referindo-se às suas memórias de infância e principalmente da escola. O segundo “Formação inicial” está marcado por lembranças da formação inicial da educadora. Já o último subcapítulo “Prática docente” traz contribuições da narradora sobre suas práticas docentes em sala de aula, costurando-se com autores que tratam sobre essa temática.
Para finalizar os escritos deste artigo, utiliza-se o título “Finalizando o percurso…possibilidades e aprendizados”, apontando alguns aprendizados adquiridos no decorrer deste caminho, assim como também, algumas possibilidades para se repensar a formação de professores de escolas do campo, a partir de uma perspectiva onde as histórias de vida dos professores sejam levadas em consideração.
Caminhos metodológicos
Esta pesquisa possui uma abordagem qualitativa, pautada em estudos teóricos realizados por Bogdan e Biklen (1994) e foi desenvolvida através da metodologia história de vida. Segundo esses autores, a pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento, supondo um contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo investigada, normalmente por meio de um trabalho de campo.
Ainda no que tange à técnica qualitativa, Arostégui (2006, p. 515) afirma que “são aquelas que trabalham com dados não expressos de forma numérica, quer dizer, com conceitos agrupáveis em classes, mas não suscetíveis de adquirir valores mensuráveis numericamente”. Essa medida numérica é um dos pontos que difere a técnica qualitativa da quantitativa. Na pesquisa de abordagem qualitativa “… não se trata de montar um quebra-cabeça cuja forma final conhecemos de antemão. Está-se a construir um quadro que vai ganhando forma à medida que se recolhem e examinam as partes”. (Bogdan & Biklen, 1994, p. 50).
Assim sendo, a pesquisa de abordagem qualitativa vai constituindo forma e vida conforme vai se desenvolvendo, e nada pode ser revelado sem, antes, analisar todas as partes que a compõem.
Este estudo faz referência à história de vida da colaboradora da pesquisa, portanto, conforme Bogdan e Biklen (1994), ela é uma maneira de o pesquisador “abarcar” toda a vida do entrevistado ou, então, alguns momentos específicos da vida dele. A metodologia história de vida possui como preocupação maior estabelecer um vínculo entre pesquisador e pesquisado, procurando compreender todo o contexto em que o sujeito vive. Nesse sentido, Elizeu Clementino de Souza afirma que
As histórias de vida são, atualmente, utilizadas em diferentes áreas das ciências humanas e de formação, através da adequação de seus princípios epistemológicos e metodológicos a outra lógica de formação do adulto, a partir dos saberes tácitos e experienciais e da revelação das aprendizagens construídas ao longo da vida como uma metacognição ou metareflexão do conhecimento de si. (Souza, 2006, p. 25).
As histórias de vida oportunizam um processo de reflexão de sentidos construídos ao longo de uma trajetória docente, que, no caso desta pesquisa, auxiliam-nos na compreensão do ser professor. A metodologia história de vida precisa partir do desejo do entrevistado de contar sobre sua vida, pois é preciso que haja relações entre pesquisador e pesquisado. Assim, o entrevistador deve estar atento às relações que desenvolve e escolher o sujeito que melhor responderá aos seus anseios de pesquisa. O vínculo afetivo é estabelecido aos poucos, conforme o sujeito depositar sua confiança no pesquisador. E, em contrapartida, nós (pesquisadores) também construímos esse vínculo e vamos nos sensibilizando com nossos interlocutores. Segundo Abrahão (2003) “trabalhar com narrativas não é simplesmente recolher objetos ou condutas diferentes, em contextos narrativos diversos, mas, sim, participar na elaboração de uma memória que quer transmitir-se a partir da demanda de um investigador”. (Abrahão, 2003, p. 85).
Para a realização desta pesquisa, foi preciso escolher os instrumentos de coleta de informações, quais sejam: as entrevistas semiestruturadas orais e escritas e os relatos autobiográficos, também orais e escritos. Cabe ressaltar que, na entrevista semiestruturada, foram debatidas e aprofundadas outras questões que a alfabetizadora relatou, não se detendo somente às questões propostas na entrevista, pois esta é flexível. Assim, conforme forem surgindo questões, estas serão trazidas para a conversa. Conforme Pardal e Correia (1995), a entrevista semiestruturada não é tão rígida quanto a estruturada nem tão livre e aberta quanto a não-estruturada. A opção por ser feita, também, de forma oral é porque, ao ser gravada em aparelho gravador e transcrita, nenhuma informação se perde ou cai no esquecimento.
Com a metodologia definida, um grande avanço foi conquistado, pois, conforme Antunes (2001) “a metodologia, portanto, vai além de definir os métodos a serem utilizados pelo pesquisador. Ela torna-se um ponto estrutural no trabalho de investigação científica, porque aponta condições para o pesquisador guiar-se durante a sua investigação. (Antunes, 2001, p. 49). É a partir dessa metodologia que o estudo foi norteado durante todo o processo, desde a coleta das informações até a análise dos resultados, distribuídos em categorias de análise.
Algumas considerações sobre memória, (auto)biografia e história de vida
Este item está reservado para falar sobre memória, (auto)biografia e história de vida, sendo esses três termos bastante utilizados ao longo da pesquisa. Ao aproximar a professora alfabetizadora de sua história de vida, relembrando os seus processos de formação, a memória e a (auto)biografia terão papéis fundamentais ao longo do processo.
Ao recordar sua história de vida, a memória terá uma importante função nessa pesquisa, já que:
… as histórias de vida e o método (auto)biográfico integram-se no movimento actual que procura repensar as questões da formação, acentuando a ideia que ‘ninguém forma ninguém’ e que ‘a formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos da vida’… (Nóvoa, 1988, p. 116).
Ainda conforme Nóvoa (2004, p. 27), “mais do que o passado, as histórias de vida pensam o futuro”. Antunes (2011) corrobora com a ideia quando afirma a necessidade de haver certo rigor metodológico que seja adequado quando se deseja conhecer a história de vida de um ser humano, neste caso, uma professora, já que, segundo Nóvoa (1992), torna-se necessário compreender que o eu profissional não se desarticula do eu pessoal, pois as práticas pedagógicas são reflexos das lembranças de sua formação.
Mais especificamente, os excertos acima apontam para a ideia de que, através da memória e das histórias de vida dessa professora alfabetizadora que foi entrevistada, ela irá repensar sobre as questões relacionadas à sua formação, vindo, até mesmo, a modificar práticas que seriam constantes em sua atuação profissional. A reflexão sobre a formação, seja ela inicial ou continuada, constitui-se em uma importante etapa, pois, a partir desta, poderão propiciar novas metodologias e novas práticas.
Antunes (2010, p. 45) afirma que “a memória docente constitui-se numa forma de conhecer a auxiliar no processo de formação inicial e continuada dos professores”. Assim sendo, a memória e as lembranças do tempo escolar tornam-se fatores importantes e definidores no processo de tornar-se professor. Ainda conforme a autora, “a memória existe para que as pessoas não se esqueçam de que possuem uma história…” (Antunes, 2010, p.46).
As pesquisas com histórias de vida ou (auto)biografia fazem-se importantes, pois proporcionam ao pesquisador e aos sujeitos envolvidos perceber a necessidade de uma reflexão acerca da trajetória como formador, aprendendo aquilo que, de fato, teve relevância em sua história de vida profissional e pessoal. De acordo com Bosi (1999, p. 55), “na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho…”. Este excerto reitera a importância da utilização dos relatos autobiográficos para a criação de algo novo. As (auto)biografias, conforme Antunes (2010), são uma importante ferramenta para oportunizar a reflexão- ação-reflexão de elementos essenciais do tornar-se professor. Concordando com a autora, Queiroz traz uma definição de autobiografia:
Narrar a sua própria existência consiste numa autobiografia, e toda a história de vida poderia, a rigor, ser enquadrada nesta categoria tomada em sentido lato. Mas no sentido restrito a autobiografia existe sem nenhum pesquisador, e é essa a sua forma específica. (Queiroz, 1988, p. 23).
Nessa perspectiva, entende-se que, na história de vida de uma professora, marcada fortemente pela subjetividade, o coletivo faz-se presente de certa forma. Mesmo o professor sendo uma pessoa, com características próprias e individuais, as suas relações sociais transformam a sua história em atravessamentos nas histórias da comunidade escolar e vice-versa.
No cenário educacional, é vital a singularidade do indivíduo no sentido de eles sentirem-se como “pessoas e professores”. Mas as demandas do cotidiano massificam-nos e tornam-nos homogêneos. Acredito que o processo de escrita (auto)biográfica auxilia-nos na ruptura desse cenário opressor e autoritário, pois é preciso criar espaços em que o professor possa falar e ser ouvido
Conhecendo a colaboradora e o chão da pesquisa
Os processos de concentração fundiária e o êxodo rural foram sempre marcantes na história brasileira. As escolas rurais apresentam características físicas bastante diferenciadas das escolas urbanas e isso é bastante visível em nosso município. Em termos dos recursos disponíveis, a situação da escola da área rural ainda é bastante carente se comparada à escola urbana. No município de Restinga Sêca/RS há oito escolas do campo, localizadas em áreas rurais. Quatro dessas escolas funcionam em dois turnos (manhã e tarde) e outras quatro escolas apenas em um turno letivo. Em todas essas escolas há transporte escolar para que os alunos cheguem até a escola, visto que alguns não residem próximo. Geralmente, os professores quando residem na cidade preferem não lecionar nessas escolas do interior, devido ao fato de terem que se deslocar até o campo, passando muitas vezes por empecilhos.
A literatura tem mostrado a importância destacada do professor no processo de progressão e aprendizado dos alunos. Apesar dessa constatação, a condição de trabalho desses profissionais tem se deteriorado cada vez mais. No caso específico da área rural, além da baixa qualificação e salários inferiores aos da zona urbana, eles enfrentam, entre outras, as questões de sobrecarga de trabalho e dificuldades de acesso à escola, em função das condições das estradas e da falta de ajuda de custo para locomoção. No município de Restinga Sêca, onde a pesquisa foi realizada, há quatro escolas do campo multisseriadas,
A colaboradora da pesquisa se chama Flávia Quatrin Avozani e possui 41 anos de idade. Ela nasceu no município de Silveira Martins, porém atualmente, reside no interior da cidade de Restinga Sêca/RS. Flávia trabalha na Escola Municipal de Ensino Fundamental Dezidério Fuzer há 19 anos, desde que se formou. A colaboradora é formada em Pedagogia com habilitação para Pré-escola, pela Universidade Federal de Santa Maria. Flávia é casada e tem um filho de 16 anos que reside com ela.
Os alunos da escola, a maioria filhos de pequenos agricultores rurais, moram na zona rural que a escola abrange. A maior parte possui a idade condizente com o período escolar em que frequenta. Alguns alunos têm mais aptidão para atividades práticas e que envolvam tecnologias, já outros, para atividades teóricas, e alguns se adaptam bem a todas as atividades propostas (Projeto Político Pedagógico, 2015). Os professores que atuam na escola possuem formação apropriada para as atividades que desenvolvem nas diversas áreas do conhecimento, sendo que a grande maioria possui título de especialista na área da Educação (Projeto Político Pedagógico, 2015).
Formação de professores de escolas do campo
Como a pesquisa foi realizada com uma professora alfabetizadora que trabalha em uma escola do campo, torna-se necessário contextualizar, brevemente, o chão do estudo, apontando algumas características da Educação do Campo, termo ainda desconhecido por muitos de nossa sociedade. Além disso, precisamos ter nitidez sobre o processo histórico que o campo sofreu nos últimos tempos, desde a estrutura escravocrata, na busca por mão de obra, até a discriminação com que o meio rural foi submetido no decorrer dos anos.Não se pode deixar de mencionar a questão do êxodo rural, que é o fenômeno social que resulta na migração da população rural para os centros urbanos, com o objetivo de garantir melhores condições de vida. O êxodo rural é caracterizado por migrações em larga escala, onde comunidades inteiras abandonam os campos em busca de novas oportunidades, principalmente nas grandes e médias cidades. Como consequência do êxodo rural descontrolado, alguns problemas sociais podem surgir nas localidades urbanas que recebem um elevado número de migrantes sem estarem estruturadas para isso.
Conforme Kolling, Nery e Molina (1999), as primeiras ações voltadas, em específico, para a educação rural ocorreram ao final do século XIX, quando o Estado passou a promover políticas educacionais ainda tímidas e pequenas, voltadas à valorização do rural frente à urbanização. Porém, já no século XX, com a intensificação dos processos de urbanização/industrialização e com a promoção do mundo urbano, acabou-se por abolir e diminuir as políticas educacionais voltadas para os segmentos rurais.
O termo mostrou-se mais em evidência após acontecer o I Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária (I ENERA), realizado em 1997, promovido pelas entidades: MST, UNB, UNESCO, UNICEF e CNBB, e tendo, como finalidade principal, levantar um debate nacional sobre a educação do mundo rural, levando em conta o contexto do campo, bem como a maneira de ver e de se relacionar com o tempo, o espaço e o meio ambiente e quanto ao modo de viver, de organizar a família e trabalho. (Kolling, Nery & Molina, 1999, p. 14).
A educação rural começou a ser pensada, em termos de políticas públicas, a partir do evento acima citado, em 1997, pois, anteriormente a isso, as leis e políticas eram apenas compensatórias para solucionar os problemas do campo de imediato, não possuindo continuidade. Além disso, sabe-se que existem políticas públicas voltadas para a educação em meio rural, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96, que determina:
Art. 28 – Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente:
I – conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural;II – organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas;
III – adequação à natureza do trabalho na zona rural. (Brasil, 1996).
Torna-se latente a necessidade da implementação dessas leis de acordo com as necessidades das populações do campo. Neste mesmo documento, a educação básica é compreendida “pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio” e tem por finalidade “desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (Lei 9.394/96, artigo 22). Mas questiona-se quanto ao fato da evasão que, ultimamente, tem crescido muito e, principalmente, pelos educandos migrarem do campo para buscar estudo na cidade. Brandão (1983, p. 243) afirma que “as famílias de trabalhadores rurais não esperam da educação na escola rural uma educação rural.” Corroborando com a ideia, Meurer (2010, p. 13) afirma que “é essencial que a sociedade cobre políticas públicas que se articulem com um projeto social e priorizem a permanência do educando na terra onde reside”. Com isso, indaga-se sobre o que tem sido feito para garantir, de fato, a permanência do alunado do campo.
Ainda referindo-se às escolas do campo, estas devem conter propostas diferenciadas da escola urbana, pois a população e os interesses não são os mesmos. Meurer (2010, p. 23) afirma que é preciso trabalhar para que os indivíduos “consigam reconhecer-se enquanto sujeitos da terra, o que necessariamente implicará na transformação do currículo escolar para essa realidade”. Para isso, é preciso ter uma tomada de consciência e um olhar sensível, já que estamos acostumados e habituados a trabalhar com os moldes urbanos de educação.
Ao trabalhar em uma escola do campo, esta “não precisa ser uma escola agrícola, mas será necessariamente uma escola vinculada à cultura que se produz através de relações sociais mediadas pelo trabalho na terra”. (Arroyo, 2004, p. 34). O currículo dessas instituições de ensino precisam ser discutidos e repensados por todos, pois precisam sempre partir dos saberes locais, articulados ao conhecimento sistematizado, contribuindo, também, para a formação humana (Meurer, 2010). Muitas vezes, fizemos a associação do rural apenas ao agrícola, da terra como principal fonte de renda, mas, segundo Carneiro (2008, p. 11) “a questão a ser colocada é sobre as características que esse rural está assumindo na atualidade”. O espaço do campo está caracterizando-se pela heterogeneidade que apresenta, e, cada vez mais, os sujeitos que a ele pertencem estão cobrando melhorias.
Ainda, conforme Imbernón (2000, p. 12), “a nova era requer um profissional da educação diferente”. Dessa forma, educadores precisam estar atentos e preparados para suportar as adversidades e os empecilhos que lhes surgirem ao longo do percurso profissional e formativo. O professor da atualidade precisa trazer algo novo e diferenciado em sua proposta de ensino, pois, só assim, conseguirá atrair a atenção do aluno, seja em escolas urbanas ou rurais. Esse professor diferente deve levar em consideração a realidade em que o aluno está inserido e partir desta para promover meios em que o ensino se efetive. O novo professor precisa ser reflexivo e investigador, sendo capaz de refletir sobre a sua própria prática docente e interpretá-la.
Segundo Nóvoa (2009, p. 17), para haver essa reflexão, é preciso “passar a formação de professores para dentro da profissão”, criando espaços em que os próprios professores possam refletir sobre o seu trabalho docente e dando suporte para práticas de formação que sejam baseadas na partilha, na troca e no diálogo profissional. Por isso, retoma-se novamente, o tema de pesquisa, em que se propôs ouvir e dar voz a uma professora alfabetizadora que, certamente, traz consigo lembranças que merecem ser narradas.
Memórias da escola
As memórias da escola da colaboradora Flávia ainda estão bastante vivas em seu coração, pois é com carinho e emoção que ela recorda cada fato vivido por ela nesta importante etapa de seu desenvolvimento.
Tudo começou em maio de 1975, quando nasci no interior de Silveira Martins. Filha de agricultores, eu trabalhava na lavoura para ajudar a família. Aos 10 anos eu fui morar em Santa Maria, com minha avó que ficara viúva e sozinha. Continuei meus estudos na Escola Municipal Aracy Barreto, na Silva Jardim. (Professora Flávia, 2016).
A professora viveu no campo até os seus dez anos de idade, quando precisou sair para cuidar de sua avó, mas conforme seu relato, conseguimos ver que ela valoriza sua origem e sente orgulho por fazer parte da zona rural, onde reside atualmente.Através de questionamentos, a narradora relembrou o seu período de escolarização, de sua primeira professora e de seus colegas, dizendo que “quando comecei a estudar eu não tinha idade para frequentar a escola, pois fazia aniversário em maio, por isso eu apenas acompanhava minha irmã, até conseguir fazer a matrícula”. (Professora Flávia, 2016). O gosto de estar dentro de uma escola era tanto, que mesmo não estando matriculada, a menina ia até a escola para poder inserir- se nesse novo mundo, que até então, para ela era algo novo. O desejo de estar nesse ambiente foi ficando cada vez maior e prazeroso, que a menina Flávia acabou tornando-se professora, para estar de fato, mergulhada nesse inspirador ambiente que é a escola.
A professora Flávia recorda-se com carinho da sua escola que era no meio rural. Sua memória ainda está muito viva, relembrando pequenos detalhes desse meio, conforme sua fala
Minha escola era no meio rural e era muito pequena, tinha apenas uma sala de aula, onde ficavam todas as turmas, em classes de madeira. Nós sentávamos de dois em dois. O nosso material era guardado embaixo/dentro da carteira. Na hora do recreio brincávamos de rolar na grama, fazíamos assovios com palmas de mato. Brincávamos todos juntos, meninas e meninos. A nossa merenda e a limpeza era feita pela professora. (Professora Flávia, 2016).
Através do seu relato, consegue-se perceber a calmaria e a tranquilidade em que se vivia na zona rural. Tudo era muito simples e prazeroso, as crianças se contentavam com tão pouco, como as palmas dos matos. Conforme Flávia, foram tempos muito marcantes em sua trajetória de vida, que certamente contribuíram no desejo por tornar-se professora, em especial, de uma escola do campo, pois durante todo o seu exercício docente trabalhou em escolas assim.
Através das contribuições da professora Flávia, percebe-se o quão fundamental é o papel da memória. É através dela que recordamos acontecimentos marcantes ou não em nossa trajetória de vida. A memória não é seletiva, pois conseguimos capturar fatos bons ou ruins de nossa vida, cabendo a nós fazer a seleção do que iremos ou não seguir em nossa trajetória pessoa e profissional. Assim, aconteceu com a nossa colaboradora, que soube selecionar o que seria proveitoso ou não para o exercício da docência.
Os relatos da professora nos possibilitaram entender não apenas como deve ser a formação do(a) professor(a), mas, principalmente o que esse profissional pensa sobre si mesmo e somente compreendo-o profundamente é que as propostas educacionais poderão obter êxito. Quando se dá a chance ao professor de contar suas angústias e suas crenças é que se pode melhor averiguar a dinâmica do movimento da educação formal.
Esses excertos atrelados às falas de estudiosos da área, nos fazem perceber que as memórias da prática docente da colaboradora Flávia Quatrin Avozani apontam para a ideia de encantamento com a profissão desempenhada por ela, mesmo com os desafios e pelo descaso da educação brasileira. A professora busca aliar a teoria com a prática, para dessa forma, desempenhar um papel de autonomia em sala de aula, buscando metodologias diferenciadas que possam atender as demandas que tem, visto que encontram diversas realidades em um único espaço e é preciso estar preparado para atendê-los.
Finalizando o percurso… Possibilidades e aprendizados
Ao analisar os relatos da professora Flávia, foi possível extrair algumas das percepções já apontadas pelos pesquisadores sobre história de vida e formação docente, ou seja, através das histórias de vida, podem surgir novas propostas sobre a formação do professor. Ao longo desta investigação, consegue-se perceber os processos formativos da professora Flávia, relacionando-se ás suas práticas docentes. Esforço, dedicação e sonhos fizeram parte dos processos de formação e isso está bastante claro em sua fala. Contudo, a história de vida dessa colaboradora está fortemente marcada por seus processos de formação enquanto docente.
Percebe-se também que o termo Educação no campo é algo que recentemente vem ganhando destaque nos debates educacionais, ainda desconhecido por muitos, e conforme o relato da professora, ultimamente nos cursos em que frequenta que ela ouviu falar, pois até então era algo novo. “A Educação do campo não cabe em uma escola, mas a luta pela escola tem sido um de seus traços principais…” (Caldart, 2004, p. 156). Construir uma educação do campo significa pensar numa escola sustentada no enriquecimento das experiências de vida, não em nome da permanência nem da redução destas experiências, mas em nome de uma reconstrução dos modos de vida, pautada na ética da valorização humana e do respeito à diferença. (Salete, 2002)
Ao se pensar em uma formação específica para o educador do campo é que se torna necessário pensar quais caminhos devem ser percorridos para a construção desse processo de formação diferenciado. Com isso, percebemos a importância dos cursos de licenciatura desenvolver o diálogo entre os diversos saberes, a fim de incentivar os saberes presentes em todas as culturas.
Precisa-se lutar para que se tenham mais espaços para formação continuada dos professores de escolas do campo, para que estes possam dialogar com outros profissionais da sua área. Dessa forma, não se sentirão sozinhos e sim valorizados e reconhecidos, pois muito pouco se sabe sobre o significante trabalho que desempenham nas escolas do campo em que atuam.
Desse modo, compreender a história de vida e a própria trajetória apresenta-se como um importante instrumento na formação de professores, pelo fato de que ao rememorar fatos e acontecimentos, esses podem ser refletidos com base em teorias que enfocam como, por exemplo, o papel do professor. Isso poderá desencadear escolhas quanto à atuação futura do professor, o que de fato, aconteceu com a colaboradora da pesquisa. A professora vivenciou certas situações em sua escolarização e poderá buscar meios de não reproduzi-las, ou preservá-las em situações da prática pedagógica.
Não se está propondo modelos a serem seguidos, mas questionando a partir daquilo que se apresenta como instrumento que auxilia na formação docente no sentido de contribuir com novos olhares sobre a formação do professor nos cursos de licenciatura. Considera-se que na formação do professor existem momentos que podem aliar saberes da experiência, que permitam a construção de novos significados ao fazer profissional, isto é, que permita a formação de um professor consciente e responsável diante dos desafios atuais.
A pesquisa também faz pensar na importância de conhecer e refletir sobre as memórias e histórias da professora, pois cada um de nós constrói e significa a própria vida e trabalho de modo subjetivo e distinto. E isso pode ser refletido na maneira como lidamos com nossa profissão, como tratamos nossa área de conhecimento, estudos e nossos alunos.
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