TEORIA POLÍTICA E DIREITOS HUMANOS: A INFLUÊNCIA ARISTOTÉLICA NO DESENVOLVIMENTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202411302207


Silmara Borghelot
Victória Stabile Cristal1


RESUMO

A importância dos conceitos de Aristóteles para os direitos fundamentais está cada vez mais reconhecida, embora ainda haja alguma controvérsia, tendo sua obra revisitada por diversos estudiosos do Direito nacional e internacional. O presente estudo, teórico e reflexivo, teve como objetivo investigar a influência do pensamento político de Aristóteles através da Teoria Política na formação e evolução dos direitos humanos e fundamentais. O estudo apresentou e discutiu um breve resgate histórico do tratado Aristotélico sobre Justiça, vida na polis, formas de governo, busca da eudaimonia, através das obras “Ética a Nicômaco” e “Política”, além de artigos de estudiosos da doutrina jurídica e social.

Palavras-chaves: Justiça; Aristóteles; Direitos Fundamentais.

Abstract

The significance of Aristotle’s concepts in relation to fundamental rights is increasingly being acknowledged. However, there is still some controversy, as numerous scholars in the national and international law fields revisit his work. This theoretical and reflective study aimed to explore the impact of Aristotle’s political thought on Political Theory in shaping and developing human and fundamental rights. The study provided a brief historical overview of Aristotle’s treatise on justice, life in the polis, forms of government, and the pursuit of eudaimonia, drawing from his works “Nicomachean Ethics” and “Politics,” as well as articles written by legal and social doctrine scholars.

Keywords: justice; aristotle; fundamental rights.

Introdução

A Filosofia clássica compreendeu o período entre os séculos V e IV a.C. Este é momento crucial na história do pensamento ocidental, marcado também pelo surgimento da democracia em Atenas. Este período se caracteriza pelo protagonismo exercido pelas três personalidades centrais: Sócrates, Platão e Aristóteles.

Estes três filósofos transformaram a filosofia em disciplina, ao abordarem ética, política, metafísica, e, forneceu à humanidade a história do pensamento, buscando explicar a grande busca pelas respostas para as indagações existenciais, no plano individual e coletivo. Entre os expoentes da filosofia grega, Sócrates teve maior representação no ocidente. O método socrático de questionamentos e interlocução em busca da verdade e da virtude influencia até hoje as correntes de pensamento científico (Ferreira, 2017).

Entre as contribuições fundamentais da filosofia está a teoria política, um ramo da filosofia que se dedica a explicar a natureza do poder, da justiça, do Estado, das formas de governo, da liberdade individual e da igualdade. 

Platão fundou a Academia em Atenas e foi o primeiro filósofo a propor uma teoria política. Em seu tratado descreveu um modelo teórico de organização política, que ele denominou de República, o qual se tornou a obra precursora de toda a teoria política, apresentando discussões profundas sobre justiça, natureza do Estado ideal, oligarquia, aristocracia, democracia e ditadura como sistemas de governo analisados na obra (Paviani, 2013). 

Outros pensadores contribuíram para a filosofia política, como Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Marx, que buscavam compreender de que maneira as sociedades se organizam politicamente, como o poder se constitui, através de quais princípios e relações (Freitas, Canegusuco, Assis, 2019). 

Em que pesem controvérsias ligadas ao decurso dos milênios e as muitas transformações ocorridas nas sociedades, para Bedin, “não há nada de mais vivo na atualidade que o passado” (2013, p.10)

Há diversos estudos e autores que consignam a influência jurisfilosófica de Aristóteles em documentos históricos como a Declaração dos Direitos do Homem e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Bittar, 2012; Denicol, Bittencourt, 2022; Silva Filho, 2022).

Silva Filho (2022, p. 14) recomenda:

Inicialmente, deve-se salientar que o pensamento de Aristóteles, de certo modo limitado ao horizonte estreito da antiguidade, exige uma espécie de atualização para ser apreciado de acordo com o seu próprio valor. Com efeito, muitas questões levantadas pelo filósofo parecem atualmente despropositadas, senão mesmo impertinentes, a exemplo da apologia da escravidão natural e da sujeição das mulheres na sociedade grega.

Compreendendo a historicidade presente nos compêndios Aristotélicos, que torna certos apontamentos impossíveis de aplicação nas sociedades atuais, é fundamental que se utilize dos conceitos que permanecem legítimos, atemporais e que descrevem ainda hoje a realidade do direito (Barzoto, 2010).

Na obra “Ética a Nicomaco”, Aristóteles utiliza o termo “política”, como a forma contrata de referente ou pertencente à polis, cidade-estado. Mais adiante. Em seu tratado, o pensador chamou de politikê epistêmê, a “ciência política”. Entre diversas funções e finalidades, a teoria política promove possibilidades de avaliar as instituições constituídas, verificar fragilidades e potências nas relações institucionais e com os cidadãos (Miller, 2022; Aristóteles, 2011; 2001).

Aristóteles acreditava que a vida na polis deveria ser orientada pela busca pela eudaiimonia, estado de felicidade como bem supremo, após o qual, nada mais haveria a se desejar (Mazzi, 2022). Este foi o mote Aristotélico na propositura da ciência política, complexa, profunda e abundante em conceitos e pressupostos. 

O presente estudo investigou a relação entre a Teoria Política de Aristóteles e os direitos fundamentais, discutindo como a Filosofia Aristotélica pode influenciar a compreensão e a aplicação desses direitos. Estão descritos os principais conceitos da teoria política de Aristóteles, assim como a origem e evolução dos direitos fundamentais de modo a evidenciar os pontos de convergência entre ambos os campos. 

APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS DA TEORIA POLÍTICA COM OS DIREITOS HUMANOS

Sobre a Justiça 

Neste capítulo estão reunidos alguns dos conceitos propostos por Sócrates e Platão, e transformados por Aristóteles nas obras “A Política” e “Ética a Nicômaco”, para posterior análise dos enlaces entre a Teoria Política Aristotélica e os direitos fundamentais. Iniciaremos pelo que ficou hoje conhecida como Justiça distributiva (Aristóteles, 2011; 2001).

Sócrates via a justiça como um universal que pode ser aprendido por todos, desde que se entendesse que as virtudes internas são mais importantes do que as externas, contradizendo as visões relativistas de poder e moral oferecidas pelos sofistas (Benoit, 1996). 

Em sua obra “República”, Socrates teria enfrentado o desafio de posicionar a justiça como um bem em si mesma, independente das consequências. “Para isso, Sócrates terá que ser bem-sucedido em seu elogio da justiça em si mesma para depois devolver as suas recompensas, defendendo, portanto, a sua posição de tomar a justiça como um bem em si e por suas consequências” (Menezes, 2019, p. 40)

Platão descrevia a existência de justiça como virtude que se apresenta em duas formas: divina e humana. Após a morte, a justiça divina, universal, absoluta e metafísica julgaria os atos praticados pelos homens em vida, atribuindo penitências de acordo com o tipo de erros cometidos. A justiça dos homens embora menos importante, deveria ser seguida, como forma de atender aos critérios da justiça divina (Bittar, 2005).

Ainda conforme Bittar (2022), Platão situa as leis da Polis como o meio de se chegar às virtudes, entremeadas entre o homem, a polis e o cosmos. 

Freitas, Canegusuco e Assis resumem a conceituação de virtude segundo Aristoteles: 

A virtude não é uma coisa natural no ser humano, mas um hábito adquirido, uma disposição permanente. A ética orienta o homem para a aquisição dos hábitos virtuosos que o encaminham no sentido da perfeição. Virtude é, portanto, ação, atividade da vontade que delibera, isto é, que examina várias possibilidades possíveis e escolhe. O ato de escolher passa a ser um ato racional e voluntário próprio do cidadão ético e político. A virtude se desenvolve no espaço público (polis) e por intermédio da ação, ou seja, no encontro dos homens enquanto cidadãos. Por isso os fins racionais de uma escolha têm sempre em vista um bem, que é o bem comum (Freitas, Canegusuco, Assis, 2019, p. 369)

A virtude é então algo externo à índole, adquirido por meio da disposição vigilante, em direção às melhores escolhas para se ter o estado de eudaimonia tão desejado.

Aristóteles retoma as definições antropológicas de Platão para justiça, e a desloca da perspectiva cosmológica de Platão para a decisão humana sem crivo do acaso. Para Denicol e Bittencourt,

Pelo contexto político e social em que está situado, Aristóteles aprofundou a reviravolta do pensamento filosófico já iniciada por Sócrates e Platão, que deu fim à etapa centrada na reflexão cosmológica e inaugurou o período antropológico. As leis não vinham mais de deuses, mas são feitas pelo homem para o homem. Tal deslocamento do pensar fundou diversos alicerces de notável importância para o florescer das conceituações do Grego, que atravessaria séculos na influência teórica (Denicol, Bittencourt, 2022, p. 60)

Destacando a justiça humana alicerçada e produzida pela polis, Aristóteles atribui à educação a principal via de desenvolver virtudes nos cidadãos, devendo a polis educar para as relações sociais, uma vez que não se dedicou a propor uma moral individual sem que estivesse profundamente inserida na relação com a cidade (Hadot, 2012).

A justiça nesta roupagem é um conceito importantíssimo nos escritos filosóficos de Aristóteles, demonstrando o quanto o pensador se debruçou detalhadamente sobre a distribuição que lhe pareceu mais justa de bens e honrarias em uma cidade. Neste aspecto de justiça, mostrou-se contrário à igualdade absoluta entre os habitantes da cidade: igualdade e os ideais de justiça somente serão alcançados em sua plenitude se tratarmos os individuais iguais, igualmente, na medida da desigualdade de cada um(D’OLIVEIRA, 2015, p. 5).

Freitas, Canegusuco, Assis (2019) chamam a atenção para a classificação Aristotélica para “justiça universal” e “justiça particular”. A justiça universal é feita com o seguimento fiel da lei, acessando dessa maneira a todas as virtudes previstas em lei. A justiça particular é o hábito que realiza e respeita a igualdade, podendo ser visível na justiça distributiva e na justiça comutativa. Esta última, segundo os autores acima citados, “corrige os erros e delitos nas relações entre os cidadãos: furtos, roubos, rapina, assassinato, estupro, adultério, injúria. A justiça comutativa consiste também na correção dos erros da justiça distributiva” (2019, p. 374).

A justiça distributiva estará na distribuição de virtudes e bens de acordo com méritos e necessidades dos cidadãos. Assim, para se exercer justiça social e justiça distributiva na proposta Aristotélica, há que se respeitar a equidade, que deriva para o que hoje se trata por proporcionalidade. Para ele, a proporcionalidade deveria guiar a distribuição de acessos a serviços e bens básicos e especiais, garantindo a aqueles que mais contribuíram para vida na cidade, a primazia ante os demais (Ribeiro Lopes Barbon, 2022).

A função primordial dos atributos da proporcionalidade da justiça seria garantir a estabilidade social e política da cidade, através de critérios objetivos e racionais para a concessão de favorecimentos (Labruna, Ferreira, 2024).

De maneira complexa e dinâmica, Aristóteles tentou equilibrar as necessidades de tratamento igualitário e os critérios de mensuração do mérito, de modo que se mantivesse a harmonia social (Freitas, Canegusuco, Assis, 2019). 

A concepção Aristotélica de justiça sob o cuidado de se manter a equidade e proporcionalidade guarda nexos com os princípios fundamentais dos direitos humanos, que servem para garantir igualdade de oportunidades e tratamento justo quaisquer que sejam suas origens, cultura, características corporais, mentais. 

A leitura dos artigos mais recentes aplicando os conceitos de Aristóteles traz reflexões e argumentos nos diversos ramos do Direito. Labruna e Ferreira (2024) em revisão acerca da situação carcerária brasileira, utilizaram o conceito aristotélico de justiça e proporcionalidade em termos de aplicação de prisão preventiva. 

O princípio da proporcionalidade, que deve ser observado por todos os Poderes, no âmbito do poder Judiciário, orienta a aplicação da reprimenda e a correta individualização da pena. A proibição de punições excessivas veio impor limites ao abuso de poder estatal em respeito à dignidade da pessoa humana, uma orientação filosófica que está inserida no mesmo plano de outros princípios garantidores de direitos fundamentais, como a proporcionalidade a razoabilidade e a lesividade (Labruna, Ferreira, 2024, p. 7)

Para Denicol e Bittencourt (2022), Aristóteles constituiu a justiça política, com a ideia de que justiça não se resume à aplicação de leis, mas à promoção do bem-estar coletivo tem expressões nos debates contemporâneos sobre direitos fundamentais, proporcionalidade da pena, tendo como objetivo entre outros, garantir condições de vida digna a todos sem distinção. 

O papel da educação

Para Aristóteles, a educação é um componente central na estruturação do caráter e contribui para o desenvolvimento do que ele chamava de virtude. A educação não deveria se limitar à transmissão de conhecimentos técnicos ou práticos, mas, se deter na formação moral e ética do indivíduo, desde a mais tenra idade, nas vivências de amizades cívicas (Miller, 2022; Denicol, Bittencourt, 2022; Freitas, Canegusuco, Assis, 2019). 

Os deveres cívicos de participar da vida na polis, conhecer as leis e regulamentos, e tomar decisões para o bem comum garantiria a formação dos futuros cidadãos e governantes, através do desenvolvimento de valores morais e intelectuais virtuosos (Denicol, Bittencourt, 2022).

Outra dimensão extremamente atual da ideia de Aristóteles sobre educação, é a de que a educação deveria se adaptar a cada etapa da vida humana, uma vez que a criança não deteria os atributos que a coloquem em condições de tomar decisões na polis (Miller, 2022). 

O homem como animal político (zoon politikon)

Descrita detalhadamente na obra “Política”, a expressão “animal político” de Aristóteles conceitua atributos intrínsecos do ser humano, que se desenvolve na convivência social com os demais, fadado, portanto, a viver na polis, em contínua interação com a organização social mais completa, representando a cidade/estado (Aristóteles, 2011). 

A inclinação política aristotélica se manifesta na formação de comunidades, nas ações em cooperação segundo as quais os cidadãos tendem a atingir a máxima realização individual, representada pela expressão grega eudaimonia (Vale da Silva, 2017).

Aristóteles também discutiu a importância da cidadania ativa e participativa na polis grega. Ele via os cidadãos como indivíduos dotados de capacidade para governar e ser governados, destacando a importância dos direitos e deveres que acompanham a cidadania. Para autores como Vale da Silva (2017); Pêcego e Terra (2024), Freitas, Canegusuco e Assis (2019) a ideia do ser humano como animal político ainda está presente atualmente, ora como busca de autorrealização, ora como participação ativa na governança e administração dos equipamentos públicos, com equidade e justiça. 

As formas de governo

Para Denicol e Bittencourt (2022), Aristóteles estratificou as formas de governo a partir do número de habitantes de uma cidade e da finalidade do governo. Chamou de formas “puras” a monarquia, a aristocracia e a politeia. Para Aristóteles, o governo ideal poderia ser de apenas de um monarca virtuoso, de poucos sábios ou por cidadãos moderados em maior número. 

Entretanto, Aristóteles admitiu a existência e criticou as formas corruptas de governo, caracterizadas pela busca dos interesses próprios dos governantes em detrimento do bem comum. Referiu a tirania como uma degeneração da monarquia, por trazer o despotismo para o governo. A oligarquia seria uma corrupção da aristocracia por fazer prevalecer o interesse egoísta de poucos. A democracia seria, para Aristóteles, a corrupção da politeia, pois o povo, em maior quantidade e levado por interesses próprios, lutaria para dominar o governo (Vale da Silva, 2017; Denicol, Bittencourt, 2022).

Entre todas as considerações Aristotélicas sobre as formas de governo, há defesa da República como sendo um híbrido de oligarquia e democracia, constituindo um governo misto, embora excluindo mulheres, escravos e estrangeiros. Compreendendo as diferenças entre as sociedades gregas de milênios atrás, entende-se que a discussão sobre os direitos não se aplicava a todos, mas, aos que pertenciam a certos estamentos sociais. A República poderia equilibrar os interesses dos mais abastados e dos mais pobres, garantindo a estabilidade social. 

Enlaces entre a Teoria Política de Aristóteles e os direitos fundamentais 

Tendo em vista os conceitos já apresentados e discutidos nas páginas anteriores, a pretensão deste capítulo é trazer um panorama da propositura de Aristóteles, ora através da versão traduzida de sua obra, ora por meio de autores e autoras que em seus estudos, se utilizaram dos conceitos e argumentos para analisar as contribuições da teoria política para os direitos fundamentais. 

Aristóteles distinguia três campos da ciência, de acordo com os fins e objetos respectivos, em Contemplativa, Prática e a Ciência Produtiva (poiética);

A ciência contemplativa (que inclui a física e a metafísica) se ocupa da verdade pela verdade ou do conhecimento pelo conhecimento; a ciência prática se ocupa do agir bem; e a ciência produtiva se ocupa da criação de objetos úteis e belos (Miller, 2022, p. 170)

Segundo a classificação Aristotélica, a política seria uma ciência prática por se trata de conduzir os cidadãos à eudaimonia, estado de felicidade e gozo. Mesmo que guarde algumas semelhanças com a ciência produtiva, uma vez que questiona, reforma e defende formas de organização política. Miller nos orienta quanto ao impasse, informando que Aristóteles descreveu a política como uma “disciplina normativa ou prescritiva – mais do que como uma investigação puramente empírica ou descritiva […] caracterizando-a como a ciência mais soberana de todas” (Miller, 2022, p. 170).

Ainda de acordo com Miller (2022), do mesmo modo como a ciência médica se dedica a descrever o que se espera do trabalho dos médicos, a ciência política estabelece as tarefas do político ou estadista, principalmente na condição de legislador, traçando a constituição necessária e adequada às características da cidade-estado, leis, costumes e instituições de atuação sobre educação e modelos morais.

Para Aristóteles, a constituição é uma determinada ordem e organização dos habitantes da cidade-estado, variando ao longo do tempo. A constituição proposta pelo pensador grego não é um documento concreto, mas, um princípio organizador que seria como que a alma do grupo, o modo de vida dos cidadãos. Os cidadãos, por seu turno, seriam apenas uma minoria da população que usufrui da totalidade dos direitos constituídos (Hadot, 2012; Miller, 2022; Aristóteles, 2011).

A teoria política e os direitos humanos são objetos de estudo que se ligam por permitirem investigar a relação entre poder, organização social e a preservação das liberdades fundamentais dos indivíduos; discute os atributos da justiça, qual seria a organização ideal do Estado e o papel do filósofo-rei, como se verá nas páginas seguintes.

A fundamentação dos direitos humanos

O direito à vida e à felicidade, tão presente nas teses dos filósofos gregos na busca pelo thelos (razão para a vida) somente poderia ser alcançado os homens seguirem a autoridade da polis, que é a comunidade plena, autosuficiente podendo garantir a “boa vida” a todos. Para Aristóteles, o desejo de que se alcance este fim, é necessário se observar governança feita por alguém dotado de autoridade: 

“uma comunidade humana só pode ter a ordem necessária se ela possuir um elemento de governança que esteja em uma posição de autoridade, assim como um exército só pode ter ordem se ele possuir um comandante no controle” (Miller, 2022, p. 202).

Aristóteles repete em diversos capítulos de “Politica”, que a polis tem o objetivo de garantir a vida, ou seja a existência biológica; mas, também a “boa vida” ou seja, a felicidade de existir, ser em liberdades (no plural), como animal político, ensejando o que hoje se conhece como Direitos Fundamentais (Pêcego, Terra, 2024, Aristóteles, 2011).

Os direitos fundamentais são o reconhecimento do Estado à garantia de proteção à dignidade através da justiça, da liberdade e da igualdade de acesso aos bens e serviços econômicos, sociais e culturais, como o direito ao trabalho, educação, serviço de saúde, segurança, lazer, justiça que dão sustento ao existir humano. São construídos juridicamente no decorrer da história da sociedade. A estes direitos são atribuídas universalidade, inalienabilidade, indivisibilidade e inviolabilidade; porquanto são reconhecidos como inerentes à natureza humana (Miller, 2022; Vale da Silva, 2017). 

Aristóteles reconhecia a importância das leis para manter a organização estrutural e política da sociedade e estabelecer a justiça. Ele ressaltava o que hoje se conhece como Estado de Direito, no qual as leis fossem aplicadas de maneira igualitária, respeitando os direitos dos cidadãos. A concepção Aristotélica fez surgir o princípio da Subordinação do Estado À Lei, a separação dos poderes e a independência do judiciário, basilares da democracia brasileira (Vale da Silva, 2017; Hadot, 2012; Miller, 2022).

O mundo devastado pelas mortes no Holocausto dos judeus durante a II Guerra Mundial escreveu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com inspiração indireta nos postulados Aristotélicos, sobretudo os princípios da dignidade humana, justiça, equidade e o direito natural. Nesta declaração, os escravizados, judeus, negros e demais populações alijadas de direito foram realocadas numa reparação histórica de direitos fundamentais há muito violados (Silva Filho, 2022).

A Declaração ressalta como segunda via de entendimento, que é necessário, tendo em vista os crimes de guerra, proteger na forma da lei os direitos humanos, para que ninguém se veja compelido a rebelar-se contra tirania e opressão (Silva Filho, 2022; Menin, 2018).

Além da Declaração Universal dos Direitos Humanos, outros eventos mundiais em resposta aos anseios da humanidade por proteção à vida ocorreram (Quadro 1). A Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio também ocorreu em 1948, declara em seu artigo II que genocídio é 

qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como: assassinato de membro do grupo, dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; transferência forçada de menores do grupo para outro (Brasil, 1952).

Os detalhes do texto do artigo II é uma clara alusão aos horrores que aconteceram durante a segunda guerra mundial. A Convenção foi promulgada no Brasil através do Decreto número 30.822, de 6 de maio de 1952, com o texto original, escrito em língua francesa e assinado pelo presidente Getúlio Vargas (Brasil, 1952).  

Quadro 1. Eventos ligados ao reconhecimento de direitos humanos

Ano Evento
1948Declaração Universal dos Direitos Humanos
1948Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio
1949Convenção de Genebra sobre Proteção das Vítimas de Conflitos Bélicos
1950Convenção Europeia dos Direitos Humanos
1966Pactos Internacionais de Direitos Humanos de 1966
1969Convenção Americana de Direitos Humanos de
1998Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional

Fonte:  elaborado pelas autoras

Observe-se no Quadro 1 que dos anos 1940 até o final dos anos 1960 todas as demais convenções tiveram como objeto a visibilidade dos direitos humanos fundamentais: a Convenção de Genebra sobre Proteção das Vítimas de Conflitos Bélicos, em 1949, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos em 1950, os Pactos Internacionais de Direitos Humanos de 1966; a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 e o Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998 (Menin, 2018).

O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional foi promulgado no Brasil para execução e cumprimento em sua totalidade, pelo Decreto de número 4.388, de 25 de setembro de 2002, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (Brasil, 2002). Criou-se então, o Tribunal permanente, que traz em seu Artigo Primeiro:

É criado, pelo presente instrumento, um Tribunal Penal Internacional (“o Tribunal”). O Tribunal será uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, de acordo com o presente Estatuto, e será complementar às jurisdições penais nacionais. A competência e o funcionamento do Tribunal reger-se-ão pelo presente Estatuto (Brasil, 2002).

Assim, seguindo a racionalidade de primeiro ensinar a humanidade sobre os direitos humanos fundamentais, passa-se a estabelecer as sanções penais às quais os que os desrespeitam estarão sujeitos, no mundo inteiro.

Para Bobbio, que se interessou pelas formas de governo de modo a entender qual seria a melhor forma de exercício do poder, há três gerações dos direitos humanos. A primeira, de natureza política e civil; a segunda geração trouxe os direitos sociais; a terceira geração inclui os direitos de fraternidade, incluído a proteção às relações de consumo. Aproximar o Estado da vida e dos problemas das pessoas seria então, o principal objetivo dos direitos humanos:

Portanto, o que se objetiva nas declarações de direitos humanos em geral, por meio da ideia de universalidade da natureza humana, é o governo ao mesmo tempo dos homens e das leis, isto é, dos homens que fazem as leis e das leis que encontram um limite em direitos preexistentes dos indivíduos que elas próprias não podem ultrapassar (Bobbio, 2004, p. 204).

No Brasil, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º anuncia a igualdade formal de todos perante a lei, não podendo haver nada que signifique algum tipo de discriminação. O referido artigo situou os direitos fundamentais em posição de destaque na organização do Estado e na proteção do cidadão (Brasil, 2024) e os categoriza em individuais, coletivos, sociais e políticos. 

A exemplo da busca pela eudaimonia refletida na teoria política, os direitos individuais e coletivos anunciados na Constituição Federal de 1988 comportam a vida em dignidade, liberdade de indivíduos e coletivos organizados. Os direitos sociais são referentes à educação, propriedade, alimentação, segurança, trabalho, moradia. 

Os direitos de nacionalidade garantem aos brasileiros natos e naturalizados os requisitos para manterem sua nacionalidade, dentro e fora do país. Os direitos políticos garantem participar de eleições e escolher seus representantes sem quaisquer coerções, manifestar suas opções políticas, constituir partidos políticos, candidatar-se a cargos políticos (Silva Filho, 2022). 

Em que pese toda grandiosidade da Constituição Federal e todos os esforços sociais, os direitos fundamentais no Brasil ainda não são devidamente respeitados, haja vista as desigualdades sociais, os desastres ambientais, alguma morosidade no trâmite de ações judicializadas. 

Para Frank (2006), Aristóteles viu o estado de direito como um poder político cuja prática é guiada pela combinação entre racionalidade e desejo, dando forma ao constitucionalismo e a responsabilidade política. Então, sempre haverá desafios, mas o princípio da equidade permite que os juízes extrapolem a rigidez das leis em direção à justa atenção às diferentes necessidades que as pessoas apresentam.

Em suma, enquanto Aristóteles não formulou diretamente uma teoria moderna de direitos fundamentais; suas ideias sobre justiça, ética e cidadania forneceram os fundamentos filosóficos que influenciaram significativamente o desenvolvimento posterior desses conceitos essenciais para a organização e a garantia dos direitos individuais e coletivos na sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os objetivos traçados para o estudo foram satisfatoriamente alcançados, na medida em que estão realçados os contributos epistemológicos Aristotélicos e sua aplicabilidade histórica na compreensão dos direitos fundamentais. Compreender a tessitura conceitual dos direitos humanos se mostrou fundamental para discutir a importância dos direitos fundamentais e a extensão de seu alcance na sociedade e no Direito.

Os liames entre a Teoria Política de Aristóteles e os Direitos Fundamentais apontados pelos autores e autoras referenciais para a elaboração do estudo são: a fundamentação dos direitos fundamentais, a promoção da justiça social; teoria política; o exame da democracia e suas contribuições com os direitos humanos; a discussão sobre os limites do poder político; o Estado de Direito e os princípios éticos de governança. 

O exame dos artigos selecionados para a elaboração do presente estudo mostrou que a teoria política de Aristóteles, contribuiu em primeiro momento, fundamentando filosoficamente a existência e a preservação dos direitos humanos, atribuindo-lhes universalidade, afirmando a obrigatoriedade de se respeitá-los, afirmados como “boa vida”, felicidade. A Teoria política é, por fim, a teoria da busca da felicidade e da escolha pela forma de governo e das instituições da sociedade que assegure a “boa vida”.

A teoria política de Aristóteles e os direitos humanos compartilham o objetivo de promover a justiça social com oportunidades acessíveis para todos. Tanto a justiça social quanto os direitos humanos têm por horizonte a transformação das sociedades em direção à equidade, em que todos os indivíduos possam fruir de direitos e liberdades resguardadas suas especificidades. 

Outro momento de enlace é que os direitos humanos delimitam o exercício do poder político, protegendo liberdades fundamentais dos indivíduos vítimas de violações por parte dos governos e instituições. É graças à base doutrinária da teoria política que se tem o instrumental analítico para exame e discussão desses limites.

A teoria política examina a relação entre a democracia e os direitos humanos, sobretudo na ótica da participação política e garantia de liberdades individuais, frente aos desafios contemporâneos como o aumento do autoritarismo, a ascensão de movimentos ultra conservadores, nacionalistas, a exacerbação da crise migratória, ocasionando desigualdades sociais. Também há que se acrescentar os desafios de enfrentar as emergências climáticas como pauta permanente para as decisões políticas adequadas às necessidades da população.

Em que pese não ter vivido em época contemporânea, com todas as complexidades e desafios, os pensamentos de Aristóteles continuam ativos, provocando estudos, embasando debates filosóficos, sobretudo no que se refere à justiça, ao bem comum, ao Estado de Direito e, sobretudo, à busca por vida plena para todos.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES, A Política. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2011.

ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. 4. ed., São Paulo: UNB, 2001.

BARZOTTO, L. F. Filosofia do direito: os conceitos fundamentais e a tradição jusnaturalista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

BEDIN, G. A. A Idade Média e o Nascimento do Estado Moderno: Aspectos Históricos e Teóricos. 2. ed. Ijuí: UNIJUI, 2013.

BENOIT, H. Sócrates – o nascimento da Razão negativa. 2. ed. SP: Moderna, 1996.

BITTAR, E. C. B. A Justiça em Aristóteles. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BRASIL, Casa Civil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 10 jul 2024.

BRASIL, Casa Civil. Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952, promulga a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Disponível em : https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/atos/decretos/1952/d30822.html#:~:text=CONVEN%C3%87%C3%83O%20PARA%20A%20PREVEN%C3%87%C3%83O%20E%20A%20REPRESS%C3%83O%20DO%20CRIME%20DE%20GENOC%C3%8DDIO&text=As%20Partes%20Contratantes%20confirmam%20que,a%20prevenir%20e%20a%20punir. Acesso 31 jul 2024.

DENICOL, K. A.; BITTENCOURT, P. J. S. Concepção de Justiça em Aristóteles. Revista Internacional Consinter de Direito, Paraná, Brasil, v. 8, n. 14, p. 57–77, 2022. DOI: 10.19135/revista.consinter.00014.01. Disponível em: https://www.revistaconsinter.com/index.php/ojs/article/view/27 . Acesso em: 6 jul. 2024.

D’OLIVEIRA, M. C. B. Breve análise do principio da Isonomia. Disponível em: http://institutoprocessus.com.br/2012/wp-content/uploads/2011/12/3_edicao1.pdf  Acesso em: 04 abr. 2015.

FERREIRA, E. P. O espaço público e a cidadania: contribuições de Hannah Arendt. Sapere Aude, v. 8, n. 15, p. 211-226, 22 jul. 2017.

FREITAS, M. A; CANEGUSUCO, M.; ASSIS, O. Q. A teoria das formas de governo de Norberto Bobbio, segundo Aristóteles e Políbio. Revista Em Tempo, [S.l.], v. 18, n. 01, p. 364 – 390, dec. 2019. Disponível em: <https://revista.univem.edu.br/emtempo/article/view/3222>. Acesso em: 29 july 2024.

Jill, F. Aristotle on Constitutionalism and the Rule of Law. Theoretical Inquiries in Law, v. 8, n. 1, p. 37-50, 2006. doi: https://doi.org/10.2202/1565-3404.1142

HADOT, P. Elogio da Filosofia Antiga, São Paulo: Loyola, 2012.

LABRUNA, F.; FERREIRA, M. C. JUSTIÇA EM ARISTÓTELES E A PROPORCIONALIDADE EM MATÉRIA PENAL . International Contemporary Management Review, [S. l.], v. 5, n. 2, p. e86, 2024. DOI: 10.54033/icmrv5n2-002. Disponível em: https://www.icmreview.com/icmr/article/view/86  Acesso em: 10 jul. 2024.

MAZZI, R. A. P.; MARQUES, H. R.; RIPOLL, R. R. O estado da arte da ciência da felicidade e o desenvolvimento local. Interações (Campo Grande), v. 23, n. 4, p. 1161-1177, 2022.

MENEZES, L. M. B. R. O Governo do Filósofo. Journal of Ancient Philosophy, São Paulo, Brasil, v. 13, n. 1, p. 40–73, 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/filosofiaantiga/article/view/160901.. Acesso em: 30 jul. 2024.

MENIN, D. A historicidade dos Direitos Humanos e os pensamentos de Bobbio e Arendt na construção do direito ao trabalho e ao lazer. Licere, Belo Horizonte, v. 21, n. 4, 2018.

MILLER, F.; PERRET, C.; TROSTER, Tomás. A teoria política de Aristóteles. Poliética, v. 10, n. 1, p. 167-207, 2022.

PAVIANI, J. Platão & a educação. Autêntica, 2013.

PÊCEGO, D. N.; TERRA, P. T. P. F. A Justiça em Aristóteles. Contexto Jurídico, [S. l.], v. 10, n. 1, p. 15, 2024. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/contexto/article/view/85530 . Acesso em: 8 jul. 2024.

RIBEIRO LOPES BARBON, B. A concepção de justiça distributiva para aristóteles e sua aplicação na atividade tributária dos estados democráticos de direito. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília, [S. l.], v. 18, n. 1, p. 96–116, 2022. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/redunb/article/view/42581. Acesso em: 24 jul. 2024.

SILVA FILHO, D. L. Aristóteles e os Direitos Humanos: o pensamento aristotélico na fundamentação da Declaração Universal de 1948. Repositório UFERSA, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufersa.edu.br/server/api/core/bitstreams/984aeb90-cb6d-418c-bcea-f331cb92c90a/content Acesso em 10 jul 2024.

VALE DA SILVA, M. D. Uma Análise da Teoria da Justiça em Aristóteles Presente na Ética a Nicômaco (Livro V). InterEspaço: Revista de Geografia e Interdisciplinaridade, v. 3, n. 9, p. 141–157, 10 Out 2017. Disponível em:  https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/interespaco/article/view/5113 Acesso em: 8 jul 2024.


1 Alunas do Mestrado em Ciência Jurídica da UNIVALI 2023.