TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL E PRAGMATISMO JURÍDICO: CASOS PARADIGMÁTICOS E POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11459945


Eugênio Eduardo Esposte Sant Anna Marrachine1;
Orientador: Roberto da Freiria Estevão².


Resumo

Surgida na Alemanha do início dos anos 70, a teoria da reserva do possível cruzou o oceano para ser aplicada e modificada no Brasil: ao deixar de ser parte de uma análise de razoabilidade para ser um estudo da viabilidade financeira/orçamentária de direitos fundamentais, tornou-se um dos principais vetores do Direito Econômico. Tem-se, doutra senda, o pragmatismo jurídico, capitaneado pelo estadunidense Richard Posner, possui preferência por sentenças que consideram adequadamente não apenas os efeitos imediatos da decisão judicial, mas também suas consequências mediatas. Assim, observando-se julgamentos paradigmáticos do Tribunal Constitucional Alemão e da Suprema Corte dos Estados Unidos, traça-se um paralelo entre as duas teorias a partir da premissa de que ambas buscam, em última análise, garantir os direitos fundamentais como um todo sistemático e coeso, e não cada um deles isoladamente.

Palavras-chave: Teoria da Reserva do Possível. Pragmatismo Jurídico. Direitos Fundamentais. Hermenêutica.

Abstract

Emerging in Germany in the early 1970s, the reserve of the possible theory crossed the ocean to be applied and modified in Brazil: by ceasing to be part of an analysis of reasonableness and becoming a study of the financial/budgetary viability of fundamental rights, it became on of the main vectors of Economic Law. On the other hand, legal pragmatism, led by the American Richard Posner, has a preference for verdicts that consider not only the immediate effects of the judicial decision, but also its mediate consequences. So, observing paradigmatic judgments from the German Constitutional Court and from the Supreme Court of the United States, a parallel is drawn between the two theories based on the premise that both seek, at last, to guarantee fundamental rights as a systematic and cohesive whole, not each of them specifically.

Keywords: Reserve of the Possible Theory. Legal Pragmatism. Fundamental Rights. Hermeneutics.

Introdução

Alguns estudantes, depois de aprovados no exame admissional, não têm suas matrículas aceitas pela universidade para cursar medicina, por conta da política de limitação de vagas imposta pelo Estado nos cursos superiores; inconformados, os estudantes ingressam com ação judicial perante a Suprema Corte questionando a regra limitativa, sustentando que a Constituição garante a eles a livre escolha profissional, o que, consequentemente, pressupõe acesso à formação acadêmica necessária para o exercício da profissão escolhida. Ora, se a própria Constituição – lei fundamental do país e base de todo o sistema legal – garante-lhes este direito, o Estado possui a obrigação de, diante da vocação dos estudantes, fornecer acesso à sua graduação acadêmica, certo?

A demanda descrita não é ficcional, mas foi de fato proposta no ano de 1972 diante do Tribunal Constitucional Alemão em face do art. 12, I, da Constituição Alemã (Grundgesetz), que estabelece que “todos os alemães têm o direito de escolher livremente uma profissão, local de trabalho e local de treinamento. O exercício de uma profissão pode ser regulado por lei ou com base em lei”².

Neste julgamento (mundialmente conhecido como BVerfG 33,033 – “numerus clausus”), os magistrados alemães não deram razão aos estudantes, sob o argumento principal de que a “a alocação de dispendiosos recursos para a criação de novas vagas não atenderia aos interesses prioritários da coletividade” (CASTRO, 2016, p. 72). Anotou o Tribunal Constitucional Alemão:

Mesmo na medida em que os direitos sociais de participação em benefícios estatais não são desde o início restringidos àquilo existente em cada caso, eles se encontram sob a reserva do possível, no sentido de estabelecer o que pode o indivíduo, racionalmente falando, exigir da coletividade. (…) Por outro lado, um tal mandamento constitucional não obriga, contudo, a prover a cada candidato, em qualquer momento, a vaga do ensino superior por ele desejada, tornando, desse modo, os dispendiosos investimentos na área do ensino superior dependentes exclusivamente da demanda individual frequentemente flutuante e influenciável por variados fatores. (…) Fazer com que os recursos públicos só limitadamente disponíveis beneficiem apenas uma parte privilegiada da população, preterindo-se outros importantes interesses da coletividade, afrontaria justamente o mandamento de justiça social, que é concretizado no princípio da igualdade. (CASTRO, 2016, p. 72)³

Muito embora este julgado seja mencionado e reconhecido pela doutrina a nível mundial como marco da teoria da reserva do possível4, da ratio decidendi adotada pelo Tribunal Constitucional Alemão percebe-se que esta Corte não entendeu a teoria da reserva do possível como limitação orçamentária para a concessão do pleito dos estudantes. Neste julgamento foi decidido que, como bem anotam Sarlet e Figueiredo, “mesmo dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação que não se mantenha nos limites do razoável” (2010, p. 29), sendo que, nas palavras de Sgarbossa, “apenas secundariamente entraram na fundamentação da sentença aspectos relativos à reserva orçamentária” (2010, p. 153).

Por outro lado, é claramente perceptível o uso do princípio da razoabilidade na decisão da Corte alemã, de modo a levar fortemente em consideração as consequências práticas que poderiam decorrer se, a partir de um julgamento favorável ao pleito dos estudantes, todos os cidadãos alemães passassem a requerer, sem critério algum que não a própria vontade, prestações desproporcionais: se por um lado, a priori, a letra da Constituição dá razão aos estudantes, por outro lado o apego ao formalismo legal nesta ocasião poderia gerar desdobramentos indesejáveis. Assim, pode-se afirmar que os magistrados do Tribunal Constitucional foram pragmáticos, pois levaram em conta as consequências sistêmicas da decisão e a razoabilidade, afastando-se de conceitos morais abstratos (LORDELO, 2022, p. 516).

Contudo, diante do exposto algumas questões se levantam: se os magistrados do caso BVerfG 33,033 não se utilizaram de critérios orçamentários para fundamentar sua decisão, por qual razão este julgamento é tido como marco teórico da teoria da reserva do possível? Para além disso, a linha de pensamento utilizada pelo Tribunal Constitucional da Alemanha pode ser considerada como aplicação prática da teoria hermenêutica do pragmatismo jurídico? Como a teoria da reserva do possível e o pragmatismo jurídico se relacionam?

São estas as perguntas a que este breve estudo buscará fornecer respostas.

1 Teoria da Reserva do Possível: Surgimento, Evolução e Aceitação

Lição comezinha do Direito nos ensina que, de acordo com a teoria constitucionalista tradicional, os direitos fundamentais são divididos em gerações5, 6. Estas gerações colocam em ordem cronológica os direitos que foram sendo garantidos pelas constituições ao redor do mundo desde o início do constitucionalismo até os presentes dias.

Os direitos de primeira geração são os direitos individuais (também chamados de “liberdades públicas”), como a vida, a liberdade, a propriedade, etc. Surgiram com as primeiras constituições liberais, sendo os únicos direitos assegurados nas cartas constitucionais advindas das revoluções burguesas dos sécs. XVII e XVIII, como instrumento de limitação do poder dos soberanos sobre o povo (MARTINS, 2022, p. 695). Especificamente no Brasil, são encontradas desde a primeira Constituição, datada do ano de 18247.

A segunda geração diz respeito aos chamados “direitos sociais”, como a saúde, educação, o trabalho e a assistência aos desamparados. Possuem origem nas Constituições do México (1917) e na Constituição de Weimar (1919) (MARTINS, 2022, p. 1034), sendo observados no Brasil a partir da Constituição de 19348.

Já os direitos de terceira dimensão são aqueles pertencentes à coletividade, determinável ou não, de pessoas; ou seja, possuem natureza metaindividual, como é, por exemplo, o direito ao meio-ambiente sadio e à busca da paz (arts. 225 e art. 4º, VI e VII, da Constituição Federal de 1988, respectivamente)9.

Em que pese parte da doutrina ir além e apontar a existência de outras gerações de direitos fundamentais10, os juristas, em sua maioria se contentam com as três gerações supramencionadas.

Sobre as gerações de direitos fundamentais, é importante ressaltar a natureza negativa dos direitos de primeira geração, em contrário à natureza positiva dos direitos de segunda e terceira geração; noutras palavras, os direitos de primeira geração exigem que o Estado se abstenha de determinada atitude, enquanto os direitos das demais gerações exigem do Estado atividade concreta, atitude¹¹. Nas palavras de Flávio Martins:

Nos direitos de primeira geração o Estado tem o dever principal de não fazer, de não agir, de não interferir na liberdade pública do indivíduo. Por exemplo, o Estado não pode tirar minha vida indevidamente, exceto nos casos excepcionalíssimos permitidos. (…)

Ao contrário dos direitos de primeira geração, aqui (direitos de segunda e terceira gerações) o Estado tem o dever principal de fazer, de agir, de implementar políticas públicas que tornem realidade os direitos constitucionalmente previstos. (2022, p. 695) (grifos nossos)

Todavia, em que pese ser verdadeira a assertiva de que os direitos fundamentais de primeira geração são direitos que exigem do Estado comportamento negativo, é um erro crasso (e, infelizmente, comum) afirmar que, por não demandar uma atividade positiva, os direitos fundamentais de primeira geração não possuem custos financeiros ao Estado.

No livro The Cost Of Rights (obra clássica no estudo econômico do Direito), Stephen Holmes e Cass Sustein apontam que, do ponto de vista de suporte financeiro, pode-se dizer que os direitos negativos são, ao final das contas, tão positivos quanto os direitos positivos, à medida que a sua realização e a sua proteção pelas autoridades públicas exigem investimento de recursos financeiros (1999, p. 15)¹².

Afiançando este entendimento, Mânica aponta:

A garantia e proteção de todos os direitos individuais, por óbvio, necessitam de recursos para que sejam efetivadas. Veja-se a atuação das polícias, do corpo de bombeiros e do próprio Poder Judiciário; a realização de eleições e todas as atividades administrativas de controle e fiscalização. Todos os direitos demandam custos para sua efetivação; os direitos de defesa, indiretamente; e os direitos sociais, diretamente. (2007, p. 177)

E é dentro deste contexto em que o Estado possui despesas com a manutenção dos mais variados direitos fundamentais que se verifica a limitação ao dispêndio dos recursos, os quais são finitos. Esta limitação hodiernamente se denomina “reserva do possível”, conceituada por Sgarbossa como “restrição à realização de direitos fundamentais baseada em escassez de recursos, seja esta compreendida como inexistência ou insuficiência econômica dos recursos, seja como indisponibilidade jurídica dos mesmos, por força da legislação orçamentária, v.g.” (2010, p. 148)¹³.

Todavia, como se percebe com facilidade – e aqui se responde a primeira questão levantada neste artigo –, o sentido da reserva do possível modificou-se com o passar dos anos e com a construção jurisprudencial: se originalmente a concepção original alemão advinda do caso BVerfG 33,033 tratava a reserva do possível como a prestação social devida pelo Estado, em decorrência da interpretação dos direitos fundamentais, eliminando as demandas irrazoáveis e desproporcionais, atualmente a reserva do possível se refere a limites financeiros para a implementação de determinado direito (geralmente, social, de segunda geração, que exige prestação direta do Estado). Nesta senda, a análise da constitucionalista portuguesa Catarina Botelho é certeira:

Assim, foi na jurisprudência alemã que, no domínio dos direitos sociais, primeiramente se invocou a noção de “reserva do possível ou razoável” (Vorbehalt des Möglichen oder der Vernunftigen) no sentido de aquilo que os cidadãos poderiam razoavelmente exigir do Estado. Com o passar do tempo, o conceito de reserva do possível foi sendo depurado e acabou por se direcionar no sentido atualmente referido pela doutrina, ou seja, enfatizando as condições financeiras e orçamentárias do Estado – “reserva do financeiramente possível”. A “dependência de recursos” (Ressourcenabhändigkeit) ou a “escassez de recursos” (Ressourcenknappheit) surge, portanto, como um limite constitucional (verfas-sungsrechtliche Schranke) ao Estado social. (2015, p. 99)

Insta salientar que a teoria da reserva do possível tem sido admitida pela jurisprudência brasileira, embora com extrema cautela: não se pode utilizar a teoria da reserva do possível como uma espécie de justificativa genérica para deixar de propor e aplicar políticas públicas aptas a concretizar direitos fundamentais.

Castro foi extremamente feliz ao assinalar que, em que pese o constitucionalismo alemão ter contribuído para a construção de princípios e direitos fundamentais no Brasil, raramente será possível adaptar a jurisprudência alemã ao Brasil. Registra a autora:

Ora, a Alemanha há alguns anos já vivencia o estado de bem estar social (welfare state), não passando pelos graves problemas sociais existentes no Brasil, que ainda luta para erradicar a pobreza extrema e a fome, sem contar os altos níveis de corrupção e desvios de verba pública existentes no país que dão destinação adversa do previsto constitucionalmente aos recursos públicos. (…) Verifica-se que há uma tendência na cultura nacional, e que também está presente no Direito, de importação e tradução de termos utilizados em países de culturas e realidades sociais totalmente diferentes da brasileira de forma cega, ou em certos casos, instrumentalizando-os, sem lembrar ou ser capaz de compreender a proveniência de seu uso no contexto presente. (2016, p. 68)

É certo que em um quadro comparativo entre as Constituições do Brasil e da Alemanha percebe-se que ambas guardam os mesmos princípios e garantem os mesmos direitos; em alguns casos, até no seu teor são idênticas14. Entrementes, há que se considerar que a concretude dos princípios e direitos são completamente distintas nas realidades brasileira e alemã.

Exatamente por isso, a cautela na aplicação da teoria da reserva do possível, sendo que os Tribunais brasileiros possuem orientação no sentido de que não basta a mera alegação de inexistência de recursos; antes, deve ser cabalmente comprovada a ausência de possibilidade financeira, o que se denomina “exaustão orçamentária” (MÂNICA, 2007, p. 82).

Paradigmático neste espírito foi o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45:

É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político- administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. (2004)

Isto posto, e voltando ao julgamento do caso BVerfG 33,033, é possível concluir que com a evolução do conceito de reserva do possível é provável que esta teoria não pudesse ser aplicada na demanda julgada pelo Tribunal Constitucional Alemão. Estaria, desta forma, equivocada a sentença à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade?

A ver.

2 Caso BVerfG 33,033 e Caso Bush vs. Gore: Aproximações

As eleições presidenciais estadunidenses do ano 2000 foram incrivelmente agitadas. Após prévias partidárias relativamente tranquilas, os partidos republicano e democrata escolheram seus candidatos ao pleito presidencial: George W. Bush e Al Gore, respectivamente.

Dentro do intrincado sistema eleitoral estadunidense, ocorreu que os candidatos estavam praticamente empatados no pleito no momento em que começou a contagem de votos no estado da Flórida, à época governado por Jeff Bush, irmão do candidato republicano. Ainda durante o pleito, várias irregularidades foram alegadas pela campanha de Al Gore, como o caso de uma urna que desapareceu e depois acabou sendo encontrada em uma escola e a invalidação de milhares de votos do condado de Palm Beach, distrito de população majoritariamente negra e democrata. Isto em um cenário no qual a vantagem de votos em favor de George Bush não chegava à casa do milhar. As irregularidades e a minúscula diferença entre as quantidades de votos alcançadas pelos candidatos fizeram com que o candidato democrata requeresse judicialmente, em 09 de novembro, a recontagem manual dos votos de quatro condados, incluindo Palm Beach. A batalha judicial foi estendendo-se, sendo que no dia 26 de novembro o estado da Flórida declarou George W. Bush vencedor das eleições naquele Estado e, consequentemente, das eleições presidenciais. Al Gore não aceitou o resultado, recorrendo à Suprema Corte da Flórida que, em 08 de dezembro, decidiu a favor do candidato democrata e ordenou a recontagem manual de mais de 45.000 cédulas ignoradas pelas máquinas. Até que finalmente, em 12 de dezembro de 2020, a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou que o encerramento de prazo para a recontagem manual de votos. Foi a primeira vez na história da Suprema Corte15 interferiu diretamente nas eleições presidenciais (MARINS, 2020)16.

Este julgamento da Suprema Corte estadunidense, conhecido como Bush v. Gore, 531 U.S. 98 (2000), estabeleceu um marco importantíssimo dentro do estudo da hermenêutica constitucional e aplicação de direitos fundamentais, marco este estabelecido em prol do chamado pragmatismo jurídico.

O pragmatismo (em sentido amplo) é um movimento filosófico que possui por premissa que “uma ideologia ou proposição é verdadeira se funcionar satisfatoriamente, ou seja, que o significado de uma proposição deve ser encontrado nas suas consequências práticas, rejeitando- se ideias não-práticas” (LORDELO, 2022, p. 514)17.

Os primeiros estudos pragmáticos remontam o final do séc. XIX, tendo sido o termo “pragmático” utilizado pela primeira vez no contexto filosófico pelo professor norte-americano William James (1842-1910), em artigo intitulado “Philosophical Conceptions and Practical Results”, publicado pela Universidade de Berkeley (LORDELO, 2022, p. 514)18. Uma vez que possui o principal objetivo de conectar teoria e prática, o pragmatismo influenciou diversas áreas do conhecimento, como religião, ética e, claro, o direito.

No âmbito do Direito, o pragmatismo jurídico é adotado como uma das principais correntes hermenêuticas estadunidenses (MARTINS, 2022, p. 441) e tem como principal nome o jusfilósofo americano Richard Posner (1939 – ), para quem os magistrados possuem o dever de buscar considerar as consequências de suas decisões, não sopesando em excesso o mero formalismo19. Nas palavras do jurista, pragmatismo jurídico é

Olhar para os problemas concretamente, experimentalmente, sem ilusões, com plena consciência do ‘caráter local’ do conhecimento humano, da dificuldade das traduções entre culturas, da inalcançabilidade da ‘verdade’, da consequente importância de manter abertos diferentes caminhos de investigações sociais e, acima de tudo, da insistência em que o pensamento e ação sociais sejam válidos como instrumentos a serviço de objetivos humanos tidos em alto apreço, e não como fins em si mesmos. (2012, p. 358)

A doutrina elenca como principais características do pragmatismo jurídico: contextualismo (toda controvérsia jurídica – atual ou pretérita – é intrínseca à um contexto específico e único), antifundacionismo (o processo decisório é uma atividade que não deve obediência a quaisquer fundamentos abstratos anteriormente existentes, como, v.g., precedentes), consequencialismo (foco específico nas consequências da decisão) e perspectivas alternativas (possibilidade de se extrair do texto legal diversas perspectivas, e não apenas aquela decorrente do mero formalismo).

Voltando ao julgamento Bush v. Gore, é evidente a utilização da teoria pragmática jurídica na sentença da Suprema Corte dos Estados Unidos: embora a manutenção do resultado eleitoral sabidamente viciado possa ter limitado o direito social ao voto, por outro lado privilegia a segurança jurídica da sociedade americana. Com efeito, caso a Suprema Corte decidisse, já em 12 de dezembro, pela recontagem dos votos, haveria grave prejuízo às instituições de Estado americanas, bem como instabilidade mundial pela falta de certeza sobre quem seria o futuro presidente dos Estados Unidos (MARTINS, 2022, p. 442).

Inclusive, o próprio Richard Posner (no livro Breaking the Deadlock: the 2000 Election, the Constitution and the Courts) em que avaliou especificamente específico o caso Bush v. Gore e chegou à conclusão de que a Suprema Corte agiu de maneira correta, analisando as consequências práticas de sua decisão, sendo a sentença “exemplo excelente e louvável da abordagem pragmática com a lei” (apud MARTINS, 2022, p. 442).

E a mesma inspiração jurídico-pragmática é notada no julgamento BVerfG 33,033: como estudado anteriormente neste artigo, o pleito dos pretensos estudantes de medicina não foi denegado pelo Tribunal Constitucional Alemão por conta da “reserva do financeiramente possível” (Ressourcenknappheit), mas sim com forte na “reserva do possível ou razoável” (Vorbehalt des Möglichen oder der Vernunftigen), partindo da premissa de que, mesmo considerando que existam de fundos orçamentários para tanto, a concessão do pedido formulado geraria consequências futuras deletérias e, em última análise, colocar os próprios direitos sociais em risco – basta imaginar o que decorreria do fato de todo estudante não aprovado dentro das vagas oferecidas pelas universidades procurar o Poder Judiciário para garantir ingresso na instituição de ensino.

Desta forma, é possível concluir que o resultado do caso é BVerfG 33,033, mais do que marco da aplicação teoria da reserva do possível – cuja a definição se transmutou no decorrer das décadas –, é também caso chave para entender o alcance do pragmatismo jurídico: os direitos fundamentais não são absolutos, devendo ser observada com extrema atenção as consequências práticas da decisão judicial, sob pena de no futuro inviabilizar-se, justamente, o exercício de direitos fundamentais.

3 Conclusões

A recente Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018, modificou substancialmente a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), acrescentando-lhe os seguintes artigos:

Art. 20 – Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único – A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.

Art. 21 – A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.

Parágrafo único – A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.

Art. 22 – Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

§ 1º – Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.
§ 2º – Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.
§ 3º – As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro é considerada pela doutrina como norma de sobredireito (Überrecht): é uma lei que não busca regular, de maneira direta, a conduta humana, mas sim tenciona determinar como outras leis incidirão e serão aplicadas; é uma norma que regula outras normas infraconstitucionais, sejam de natureza civil ou não, sejam de direito privado ou público (FARIAS, ROSENVALD e NETTO, 2019, p. 167).

A inclusão de artigos tão escancaradamente pragmáticos neste diploma que incide sobre todas as demais leis demonstra que, mais do que importante e aceita pelo Direito brasileiro, a linha de pensamento defendida por Richard Posner é extremamente necessária ao ordenamento jurídico por completo.

Hodiernamente, com a vigência da Lei nº 13.655/18, a aplicação do pragmatismo jurídico é um dever do magistrado brasileiro. Pudera: diante da necessidade de garantir-se e concretizar os direitos fundamentais previstos, não pode o aplicador do Direito apegar-se a abstrações e conceitos estanques, fazendo ouvidos moucos e olhos cegos para a realidade que se apresenta: decisões judiciais, qualquer delas, têm consequências. Algumas consequências são imediatas, mais fáceis de vislumbrar; outras são mediatas e se encontram mesmo a médio ou longo prazo temporal; mas todas elas devem ser sopesadas pelo órgão detentor do poder decisório justamente para que se garanta o exercício de direitos fundamentais.

Neste sentido, avaliados julgamentos históricos na jurisprudência mundial (o caso BVerfG 33,033, julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão, e o caso Bush vs. Gore, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos) pôde-se concluir que em ambos, de maneira diversa entre si, os magistrados utilizaram-se de preceitos do pragmatismo jurídico para julgar e garantir segurança jurídica.

No tocante especificamente ao caso BVerfG 33,033, percebe-se que o fundamento da reserva do possível utilizado pelo Tribunal alemão em 1972 difere substancialmente do conceito atualmente aceito como reserva do possível; naquela ocasião, a reserva do possível disse respeito à (falta de) razoabilidade do pleito formulado pelos autores, o que levou à negativa do pedido. A ideia de “reserva do possível ou razoável” encaixa-se como uma luva dentro dos preceitos jurídico-pragmáticos, à medida em que limitaram o raio de aplicabilidade de um direito fundamental com o escopo de, a longo prazo, tornar possível a manutenção deste mesmo e outros direitos.

Ademais, é possível ainda a conclusão de que a teoria da reserva do possível, seja através de seu viés de razoabilidade (Vorbehalt des Möglichen oder der Vernunftigen), seja através de seu viés financeiro (Ressourcenknappheit), é uma circunstância da realidade que impacta a efetividade dos direitos fundamentais. Logo, sua análise é forçosa ao magistrado pragmático, devendo este sempre considerar se as consequências das decisões que respondem positivamente à quesitação orçamentária e de razoabilidade.

No famoso poema From Whom The Bells Tolls20, John Donne (1572 – 1631) recorda, em seu leito de morte, que o ser humano não existe sozinho, de maneira estanque, mas existe por que a humanidade, como um todo, existe. De semelhante modo os direitos fundamentais: nenhum direito fundamental é como uma ilha, isolado em si mesmo; antes, o direito fundamental é como uma pedra de um continente de direitos, devendo ser garantida a todo cidadão a concretude de todos os direitos em conjunto.

Nesta ótica, o pragmatismo jurídico é uma régua confiável e, desde 2018, positivada a serviço do operador do Direito, trazendo em seu bojo a teoria da reserva do possível que, em qualquer de suas duas acepções, pode indicar a decisão que melhor realize o acesso aos direitos fundamentais.


²No original, “alle Deutschen haben das Recht, Beruf, Arbeitsplatz und Ausbildungsstätte frei zu wählen. Die Berufsausübung kann durch Gesetz oder auf Grund eines Gesetzes geregelt warden”.
³A decisão do Tribunal Constitucional Alemão pode ser consultada na íntegra e no idioma original em: http://www. servat.unibe.ch/dfr/bv033303.html.
4Neste sentido: MARTINS, 2022, p. 1042; MÂNICA, 2003, p. 180.
5Flávio Martins atribui a idealização desta divisão ao jurista tcheco-francês Karel Vasak, em 1979, embora reconheça que tal classificação apenas foi difundida posteriormente por Norberto Bobbio, na clássica obra A Era dos Direitos, publicada em 1990 (2022, p. 694).
6A nomenclatura “gerações” é alvo de críticas por parte da doutrina, pois o termo indicaria a substituição de algo velho por algo novo, o que não ocorre com os direitos fundamentais, já que as gerações coexistem e complementam-se. Para os críticos, não se tratam de “gerações” de direitos fundamentais, mas sim de “dimensões”.
7Esta constituição previa, no art. 179, os direitos à liberdade de ir e vir (caput e inciso VI), liberdade de expressão (inciso IV), garantia de vedação à tortura (inciso XIX), dentre outros.
8A Constituição de 1934 previa no art. 10, inciso II o direito à saúde, no art. 121 diversos direitos trabalhistas (férias remuneradas, salário mínimo, etc.) e no art. 149 o direito de todo brasileiro à educação.
9Embora não seja o objeto primordial deste estudo, insta salientar que os primeiros resquícios da terceira geração de direitos fundamentais apareceram no Brasil na Constituição de 1937, embora de maneira extremamente superficial. As Constituições de 1946 e 1967 ignoraram esta geração de direitos fundamentais, que foi retomada com grande vigor pela Constituição 1988 (MARTINS, 2022, p. 696).
10Bobbio cita uma quarta geração de direitos fundamentais, ligados à ciência genética, biodireito e biotecnologia (2004, p. 96); por outro lado, Flávio Martins, acompanhado de Paulo Bonavides, defende que os direitos fundamentais de quarta geração guardam relação com a democracia, informação e pluralismo (2022, p. 967). Por fim, Sarlet cita os direitos dos animais não humanos como direitos fundamentais de quinta geração (2007, p. 313).
¹¹Não sem motivo Georg Jellinek divide os direitos fundamentais entre status libertatis (direitos de primeira geração) e status civitatis (direitos de segunda e terceira geração) (MARTINS, 2022, p. 699)
¹²Para análise deste tema especificamente no contexto brasileiro, vide: BARCAROLLO, Felipe. O Dever Fundamental de Pagar Impostos como Condição de Possibilidade para a Implementação de Políticas Púbicas. In: Revista de Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento. Vol. 01, nº 01 – Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2013.
¹³Flávio Martins faz notar que existem divergências acerca da natureza da reserva do possível: para parte da doutrina trata-se de princípio constitucional implícito; outros afirmam ser um postulado interpretativo; e, por fim, há aqueles que a consideram como condição da realidade que impacta na eficácia dos direitos fundamentais (2022, p. 1043). O citado autor filia-se à ultima posição, a qual também adotamos para fins da presente obra.
14As constituições latino-americanas foram, via de regra, pensadas e escritas tendo como parâmetro as constituições de origem europeia e a Constituição dos Estados Unidos.
15A Suprema Corte dos Estados Unidos existe desde 1789.
16A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos pode ser consultada na íntegra e no idioma original em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/531/98/.
17Ressalta-se que, embora possam parecer-se, pragmatismo e utilitarismo não se confundem: o pragmatismo é corrente filosófica localizada no campo da epistemologia, se preocupando, portanto, com a utilidade das formas de conhecimento humano; já o utilitarismo, corrente filosófica surgida durante o séc. XVIII na Inglaterra, é focado no campo da ética, aplicando o chamado “princípio da utilidade” a questões morais e jurídicas concretas, preocupando-se primordialmente com as consequências das ações humanas (LORDELO, 2022, p. 515).
18Interessante notar que, embora seja apontado pelos estudiosos como o primeiro a utilizar o termo “pragmatismo” filosoficamente, o próprio William James aponta que Charles S. Pierce (1839-1914) foi o autor do conceito, tendo proferido palestra sobre o tema na Universidade de Cambridge no início da década de 1870 (JAMES, 1898, p. 290).
19O próprio Richard Posner é magistrado, atuando como juiz do Tribunal de Apelação da 7ª Região desde 1981 (MARTINS, 2022, p. 442).
20No man is an island,/Entire of itself./Each is a piece of the continent,/A part of the main./If a clod be washed away by the sea,/Europe is the less./As well as if a promontory were./As well as if a manor of thine own/Or of thine friend’s were./Each man’s death diminishes me,/For I am involved in mankind./Therefore, send not to know/For whom the bell tolls,/It tolls for thee.” Disponível em: <https://allpoetry.com/For-whom-the-Bell-Tolls> Acesso em: 07 fev. 2023.

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1Mestrando em Dogmática Jurídica e Transformação Digital no UNIVEM – Marília-SP. eugeniomarrachine@adv.oabsp.org.br
2Roberto da Freiria Estevão, Mestre em Direito (Teoria do Direito e do Estado) pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Integrante e líder do grupo de pesquisa “DIFUNDE” (Direitos fundamentais, democracia e exceção na era digital), no UNIVEM. Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Estado de São Paulo. Graduação em Direito pela Faculdade de Direito da Alta Paulista Tupã (1980). Especialista em Processo Penal pela PUC-SP. Professor do Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM, Cursos de Graduação e Mestrado em Direito. E-mail: roberto_freiria@terra.com.br