TEMPLOS DE CIVILIZAÇÃO: A IMPLANTAÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA GRADUADA NO ESTADO DE SÃO PAULO (1890-1910)

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102501281643


Ricardo Ramos Sales[1]


A obra “Templos de civilização: A implantação da escola primária Graduada no Estado de São Paulo (1890-1910)”, publicada pela editora UNESP, representa uma grande referência aos pesquisadores da História da Educação. A autora é professora titular da História da Educação na Universidade Estadual Paulista – UNESP, no campus de Araraquara, vice-diretora da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP. Possui mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1991), Estágio no Exterior na Universitat Autonoma de Barcelona (1994/1995), doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (1997), Pós-Doutorado na School of Education, University of Wisconsin – Madison/EUA (2001), Livre-Docência pela Universidade Estadual Paulista (2006) e estágio no exterior na Universidade de Santiago de Compostela (2009) e na Universidade de Lisboa (2012). É membro da Coordenação de Área de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP, pesquisadora do Laboratorio de Investigacion: Género, Interculturalidad y Derechoss Humanos vinculado ao Colegio de San Luis de Postosi (COSAN México), presidente da Sociedade Brasileira de História da Educação, integra como pesquisadora associada a equipe do Projeto Temático Saberes e Práticas em Fronteiras: por uma história transacional da educação (1890 – …), coordena o projeto integrado de pesquisa Formação e Trabalho de Professoras e Professores Rurais no Brasil: RS, PR, SP, MG, RJ, MS, MT, MA, PE, PI, SE, PB, RO (décadas de 40 a 70 do século XX), financiado pelo CNPq. É membro do Conselho Científico das revistas Linhas e Trilhas pedagógicas. É Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências /UNESP/Campus de Marília.

A referida obra está organizada em cinco capítulos, contando ainda com uma introdução, as considerações finais e as referências bibliográficas divididas em fontes manuscritas e bibliografia (aporte teórico). Ainda está presente na primeira edição a apresentação da obra pela pesquisadora Maria Cecília Sanchez Teixeira. Os seus capítulos possuem os seguintes títulos e subseções: capítulo 1 “Pilares da República”, com as seguintes subseções, “A invenção dos Grupos Escolares”, “Nas pegadas dos povos civilizados”, “A fórmula mágica: reunir escolas!”, “A irradiação do modelo”, “Apóstolos da Civilização”, “Ser professor, ser professora”, “Diretor de grupo escolar: um novo profissional do ensino primário”, e “A distribuição do poder”; capítulo 2 “Típicas escolas urbanas”, com as subseções, “As cidades e as escolas”, “Meninas e meninos, alunos do grupo escolar; capítulo 3 “Gramática espacial e a construção da identidade sociocultural da escola primária”, com as subseções, “A retórica arquitetônica”, “Entre salas de aula, pátio e corredores: o espaço escolar e a construção da ordem”; capítulo 4 “Ciência e intuição na escola primária ou como semear o “pão do espírito”: lições de conteúdo e método”; com as subseções, “Na escola a magna questão é o método”, “Um projeto civilizador”, “Um projeto de educação integral”, “O Estado educador”, “Sobre práticas escolares e o ofício de ensinar”, “O reino da diversidade: dilemas do ensino público”, “Os tempos da escola”, “Vestígios da cultura material escolar”; e o último, capítulo 5 “Templos de espetáculos e ritos”.

Já na introdução, a autora inicia com a contextualização histórica do período e as implicações ou reverberações no campo da educação. Além disso, comunica aos leitores seus principais referenciais teóricos que servirão de base para as suas análises, como o conceito de representação do historiador Roger Chartier e, consequentemente, de apropriação, além dos conceitos de documentos/monumentos de Le Goff e cultura escolar de Frago. Ainda nessa seção, apresenta suas variadas fontes do Arquivo do Estado como os relatórios dos diretores de grupos escolares e escolas-modelo, os relatórios dos inspetores de ensino, os relatórios do secretário dos Negócios do Interior, Anuários do Ensino do Estado de São Paulo, Coleção de Leis e Decretos do Estado de São Paulo, revistas pedagógicas e artigos de jornais, além da metodologia escolhida para tal pesquisa que seria, justamente, o entrecruzamento das fontes com o aporte teórico. Outrossim, Rosa Fátima destaca que a obra “dedica-se à análise de alguns aspectos da cultura escolar …, pois permite ressaltar não só os aspectos relacionados aos conteúdos da educação – pertinentes à função de transmissão cultural da escola – como aqueles relacionados à sua existência material e simbólica” (Souza, 1998, p. 19).

No primeiro capítulo, Rosa Fátima relata, de forma brilhante, como estava sendo debatido o projeto civilizador de nação brasileiro e de que maneira a educação estava imbricada nesse projeto.  Para a autora, a escola pública “é a escola para a difusão de valores republicanos e comprometida com a construção e consolidação do novo regime; é a escola da República e para a República” (Souza, 1998, p. 27-28). Nesse sentido, o modelo a ser seguido era dos países europeus e os Estados Unidos que modificaram as suas escolas primárias em que “o método individual cedeu lugar ao ensino simultâneo; a escola unitária foi, paulatinamente, substituída pela escola de várias classes e vários professores, o método tradicional dá lugar ao método intuitivo, a mulher encontrou no magistério primário uma profissão, os professores e professoras tornaram-se profissionais da educação” (Idem, p.29). A partir desse modelo, algumas experiências com as escolas particulares no Brasil ganharam importância e pautaram os debates e as políticas públicas para a educação, surgindo assim os grupos escolares, chamados incialmente de escolas centrais ou escolas graduadas.

Ainda no primeiro capítulo, a autora discorre como as reformas no ensino primário ocorreram nos países tidos como civilizados no decorrer do século XIX. Primeiramente, traça o percurso ocorrido na Inglaterra com a apropriação e desenvolvimento dos termos classe e série, constituindo-se, por fim, na ideia de “unidade organizativa dominante no ensino primário” (Idem, p. 34).

Já na França, a autora tece todo o debate que consolidou os termos classe e curso em que se chega ao entendimento de classe enquanto agrupamento homogêneo dos alunos, já o curso, as divisões do programa de ensino, o que permitiu-se estabelecer “uma correlação entre série escolar e idade do aluno”, assim como “uma maior consciência da especificidade da infância (Ibdem). Cabe salientar ainda outras duas características que surgem nesse contexto: a seletividade e a noção de repetência. Além disso, destaca-se o sucesso com o método intuitivo ou lições de coisas e o ensino concêntrico. Por fim, o emprego do tempo fixando início e término das aulas, estabelecendo cadências, ritmos, intervalos, descansos, tanto dos alunos, quanto dos professores.

Na Espanha, a discussão e implementação da escola graduada só aparece no fim do século XIX. Para os espanhóis, a classificação dos alunos era o fundamento da escola graduada. Pautava-se também na lei econômica da divisão homogênea do trabalho e por isso defendiam que tais práticas teriam mais êxito caso fossem realizadas em locais de maior população, resultando em economia de custos e racionalização.

Nos Estados Unidos, defenderam a construção de casas escolas com a participação dos educadores para estabelecer assim, uma conexão entre a parte arquitetônica e as concepções educacionais. No Brasil, somente foi possível experimentar tal reforma no ensino primário no Estado de São Paulo pelo seu teor urbanizado de desenvolvimento econômico, que permitiu a criação das escolas graduadas como “um fator de modernização educacional e cultural” (Idem, p.39).

Posteriormente, a autora expõe as ideias dos reformadores da instrução pública no país que defendiam a formação dos professores e a adoção do método intuitivo como base para “a criação da Escola-Modelo como escola de prática de ensino e experimentação dos alunos-mestres da Escola Normal” (Idem, p. 40), resultando na primeira experiência de uma escola pública aos moldes da escola graduada. Foi exatamente o deputado do Estado de São Paulo, Gabriel Prestes, que publicou uma série de artigos no jornal O Estado de S. Paulo com pressupostos das escolas graduadas, defendendo que as escolas unitárias se tornassem escolas transitórias como as criadas nos Estados Unidos para que se chegassem às escolas definitivas, ou seja, as escolas graduadas. Aliás, será o referido deputado um dos maiores defensores da criação das escolas graduadas em São Paulo.

Rosa Fátima traça o panorama da primeira fase da reforma educacional no Estado de São Paulo, a qual dividiu-se o ensino em preliminar e complementar, cada qual com suas respectivas características. Após veementes críticas às escolas de até então e a própria defesa do deputado no desenvolvimento da reforma educacional no Estado, resultaram na criação dos grupos escolares que representaria a reunião de escolas. Embora a criação dos grupos escolares tenha avançado para uma igualdade entre os sexos, não foi possível verificar uma iniciativa de implantação de classes mistas. Os grupos escolares trouxeram a mentalidade de escola urbana, moderna e de melhor qualidade. Porém, antes da virada do século XIX para o XX, criou-se mais um tipo de escola, as escolas reunidas. No entanto, a tentativa de substituição do termo grupo escolar fez surgir as escolas graduadas de liceus, embora o termo grupo escolar já estivesse consagrado. Para finalizar, a autora demonstra como as revistas pedagógicas apoiavam a criação dos grupos escolares, sem antes ressaltar as dificuldades e problemas enfrentados na implantação desse seguimento.

Logo em seguida, traça um panorama bem detalhado da funcionalidade das escolas-modelo e como esta concepção tinha como intenção alastrar-se para o interior do Estado nos grupos escolares. Para tal, usou-se das fontes (relatórios dos secretários dos Negócios do Interior e dos diretores das escolas) para demonstrar toda a organização dessas escolas, bem como a defesa de que as mesmas pudessem ser reproduzidas em outras localidades, servindo de exemplos e modelos para outros estados, embora, bem distantes da uniformidade e padronização que se previa na escola graduada.

Outro ponto importante foi a valorização da profissão do magistério pelos governos republicanos paulistas, ressaltando-a como apostolado e sacerdócio. Destaca-se ainda o aumento da figura feminina na atividade educacional e os motivos que levaram a esse aumento, inclusive vencendo as barreiras morais. Discorre sobre os processos de formação dos professores e professoras tanto advindos da Escola Normal, quanto das escolas complementares, deixando nítidas as disparidades, mas que concedeu um legado a profissionalização do magistério. Dessa maneira, apresentou-se duas maneiras de “recrutamento para o magistério primário: a competência legitimada por meio de concursos e a interferência política” (Idem, p.70). Sobre os concursos, Rosa Fátima descreve como dar-se-ia os processos à época.

A figura do diretor é apresentada como de grande relevância para os propósitos dos grupos escolares em que se esperava organizar, coordenar, fiscalizar e dirigir o ensino primário. Tinha um caráter de autoridade educacional e representante do Governo, sendo este escolhido pelo governador, dando-lhe um caráter eminentemente político. No entanto, tornou-se, juntamente com os professores, uma ocupação profissional e de carreira majoritariamente masculina. Com o passar do tempo, suas atribuições foram sendo ampliadas ganhando aspectos administrativos e pedagógicos.

A autora apresenta a teia de poderes exercidos na reforma da instrução realizada nas primeiras décadas da República, sem antes recuperar como eram nos tempos do Império. No início da República, externamente, a figura do inspetor escolar condicionava o funcionamento dos grupos escolares; internamente, o diretor centralizava o poder retirando, de certa maneira, a autonomia dos professores, o que causava, por vezes, tensões. Tais tensões são demonstradas por Rosa Fátima através das fontes por ela analisadas.

No segundo capítulo, Rosa Fátima procurou explicar a escolha do governo paulista pela criação de grupos escolares urbanos em detrimento as escolas unitárias da zona rural. Fato é que os grupos escolares estavam alinhados ao projeto da crença no progresso, na ciência e na civilização, e por isso foi exaltado. Segundo a autora, o grupo escolar “era um símbolo de modernização cultural, a morada de um dos mais caros valores urbanos – a cultura escrita” (Idem, p. 91). Exemplo desta opção pela criação dos grupos escolares em cidades urbanizadas é que os primeiros a serem criados foram, justamente, nas cidades da rota do café, elemento fundante do processo de urbanização. Embora o número de grupos escolares aumentasse, a oferta do ensino primário da educação popular não atingia nem metade das crianças em idade escolar.

A predileção pelos filhos das famílias mais abastadas nos grupos escolares e escolas modelos fica tácito na análise das fontes que a autora faz, dos grupos sociais que se apoderaram da instrução pública. De forma geral, os mais beneficiados pelas vagas escolares foram os imigrantes e filhos de famílias prósperas, o que denota a política de marginalidade e exclusão aos trabalhadores subalternos, pobres, negros e miseráveis. Importante saber também que, a República e, mais precisamente, a criação dos grupos escolares, aumentou o acesso das mulheres à escolarização com a ideia de atingir às massas. Quanto a idade de entrada das crianças na escola era entre 8 e 9 anos, pois a presença da criança na família era prolongada. A educação das crianças teve um papel importante cultural e social na produção e transformação das cidades na passagem do século XIX para o XX, uma vez que “os grupos escolares irradiavam sua dimensão educativa para toda a sociedade”. (Idem, p. 116).

O terceiro capítulo, denota-se a mudança de mentalidade do final do século XIX evidenciando a necessidade de se pensar em um edifício próprio para a escola, adequado às suas necessidades, surgindo assim a casa-escola ou edifício-escola. A palavra escola ganha a dimensão de lugar, um espaço cultural e social. Dimensões estas, simbólica e pedagógicas. Segundo as palavras da autora, “uma arquitetura escolar pública começou a ser gestada nessa época aliando a configuração do espaço às concepções pedagógicas e às finalidades atribuídas à escola primária” (Idem, p. 123). Associado ao projeto republicano de suntuosidade e progresso, a arquitetura escolar trazia em si a monumentalidade como característica fundamental, muito bem descrita pela autora. No campo simbólico, destacam-se as homenagens aos patronos, a demarcação dos tempos e espaços, os signos cívicos patrióticos, os estandartes, o aluno destaque, serviram de instrumentos para a construção da identidade da escola primária.

No que tange à arquitetura, a escola apresenta uma gramática espacial na qual desenvolve uma geometria de inclusão e exclusão. A sala de aula era projetada para disciplinar os corpos, no sentido de que estes não pudessem distrair-se e perder a concentração. Até os mobiliários foi tema de debates para atender aos propósitos educacionais e, para tal, escolheu-se em um primeiro momento as carteiras individuais para, em seguida, por motivos econômicos, optarem pelas carteiras duplas. Para além desse espaço que aprisiona, o pátio e corredores amenizam o enclausuramento dando liberdade aos corpos dos estudantes, mesmo que vigiados pelos professores nos momentos de seus intervalos da jornada escolar, como forma de disciplina e ordem. No entanto, a transição das correções das crianças de castigos físicos para a nova proposta de emulação e persuasão amistosa foi motivo de controvérsias entre os professores e os reformadores da instrução pública.

Não obstante a monumentalidade arquitetônica, a autora apresenta a precariedade dos edifícios dos grupos escolares presentes principalmente nos relatórios dos diretores. Tal precariedade também era sentida nos materiais didáticos e mobiliários. Porém, Rosa Fátima ressalta que havia grupos escolares que apresentavam situação bem diferente quanto aos materiais didáticos, o que denota que, possivelmente, essa diferença pode ser entendida pelas relações pessoais e políticas que cada diretor de grupo escolar estabelecia com os políticos à época.

No quarto capítulo, a formação do homem novo, urbano, civilizado, provocou mudanças significativas na organização didático-pedagógica da escola primária com a adoção do que era mais moderno para a época. Para tal, a opção foi a escolha do método intuitivo, que consistia na aquisição dos conhecimentos decorrente dos sentidos e da observação, e com ele a formação dos professores para atuarem nessa perspectiva. Ainda com relação ao método intuitivo, “o ensino deveria partir do particular para o geral, do conhecido para o desconhecido, do concreto para o abstrato” (Idem, p. 159), a partir das lições de coisas. Nas palavras da autora, lições de coisas versam para “uma nova concepção de infância, a generalização da ciência como uma forma de “mentalidade” e o processo de racionalização do ensino” (Idem, p. 162), consolidando as mudanças culturais do século XIX. Com o pensamento republicano liberal conservador reformista, São Paulo se antecipa aos demais para se tornar a vanguarda da reforma da escola primária no país, muito pela influência de Rui Babosa um dos maiores divulgadores do método no país.

Com relação a formação dos professores para adoção do método intuitivo, um dos problemas enfrentados consistia na dificuldade de aplicação do método na Escola Normal da capital, o que acentuaria ainda mais nas escolas complementares, de onde se formaria grande parte dos professores dos grupos escolares. Outra queixa bastante comum entre os professores e até mesmo dos diretores dos grupos escolares era a falta de material didático, pois havia uma “dependência direta entre o método e o uso de materiais escolares quase como condição sine qua non” (Idem, p. 168). Embora não podemos afirmar categoricamente que o método foi aplicado em sua amplitude, pelos problemas citados anteriormente, sua marca foi registrada no bojo das ideias de renovação do ensino primário do início da República com reflexos até os dias de hoje.

O caráter civilizador do projeto de renovação da escola primária nos primórdios republicanos brasileiros passa, necessariamente, “pelas ideias de uma educação integral compreendendo a educação física, intelectual e moral com as necessidades de homogeneização cultural e de civilização das massas” (Idem, p. 171) e a discussão com relação ao programa de ensino fazia-se premente. Nesse sentido, as ideias de uma escola mítica da Revolução Francesa são retomadas e “representava as luzes, a vitória da razão sobre a ignorância, um meio de luta contra a monarquia e, consequentemente, um instrumento de consolidação do regime republicano” (Ibdem).

Para além do caráter civilizador, o programa de ensino para o Estado de São Paulo, a partir da reforma de 1892, tinha como base os saberes elementares, as matérias de natureza propriamente científica e a de formação moral, cívica e instrumental, caracterizando assim, uma tentativa de uma educação integral. O grupo de reformadores envolveu políticos e professores que buscaram fazer a revolução do ensino pela lei. Para tal, introduziu-se o ensino concêntrico que compreendia “a organização de programas abarcando todas as matérias simultaneamente numa mesma série e em séries consecutivas, desenvolvendo-se pelo aumento crescente de intensidade” (Idem, p. 184). Outra inovação foi a organização do programa em distribuição das matérias em cursos anuais subdivididos em série.

Outro importante aspecto deste capítulo refere-se a ordenação do tempo na escola. Nesse sentido, organizou-se o tempo da escola alinhado aos tempos sociais: tempo do trabalho, do ócio e do lazer. O calendário escolar estruturava todas as práticas pedagógicas determinando o início e o fim do ano letivo, as interrupções e a duração do exercício escolar, mas também reforçou as datas cívicas.

Importante ressaltar também os vestígios da cultura material escolar na passagem do século XIX para o XX. A autora, nas palavras de Frago, exalta a necessidade de se desenvolver uma “arqueologia dos objetos e sua materialidade considerando a função, uso, distribuição no espaço, materialidade física, simbologia, aparecimento, transformação e desaparecimento” (Frago in Souza, 1998, p.223-2240).

No quinto e último capítulo, Rosa Fátima discorre como os eventos (espetáculos e ritos) incorporou a mentalidade republicana da época. Com seus festejos e apresentações públicas, incorporou símbolos republicanos e ajudou a divulgar e propagar o ideário sociopolítico da República. Tais práticas escolares resultam do dialético processo em que a escola está inserida: transmissora e produtora de cultura.

A reforma da instrução inseriu os exames públicos como prática recorrente nas escolas primárias como forma de legitimação de suas características de prestígio e qualidade, tornando-a austera e rigorosa. Sua classificação “deveria ser distribuída em graus: distinção, aprovação plena, reprovação” (Souza, 1998, p.243). Esse ritual tinha grande projeção pública com presença de políticos e autoridades locais. Os resultados eram publicados nos jornais da cidade. Eles ocorriam ao final do ano, momento em que realizavam as festas de encerramento, o evento mais importante do ano, e a distribuição de prêmios aos estudantes em destaque, como forma de emulação e disciplina, no misto de “apropriação de um capital cultural socialmente valorizado e de acesso restrito na época como [também] manifestava a qualidade do ensino ministrado pela escola” (Idem, p.245).

Ainda com relação às festas de encerramento do ano nas escolas, destacamos sua importância e relevância social, revestidas de pompa e gala, sendo inclusive, noticiadas nos jornais da cidade. Sua produção e seu conteúdo demonstrava toda a sua força pedagógica e seu compromisso com as ideias republicanas, exaltando as autoridades políticas presentes. Outro evento de grande importância nas primeiras décadas da República na Escola Normal de São Paulo foram as exposições escolares que serviram de propaganda e demonstração dos métodos de ensino. De certo, tais exposições obtiveram inspirações nas Exposições Universais e Exposições Pedagógicas nos países estrangeiros.

Para além das festas de encerramento e das exposições, as comemorações cívicas elevaram o status da escola pública de representante do imaginário sociopolítico do novo regime. Essas comemorações serviam de reforço dos valores cívicos-patrióticos envolto no projeto de busca por uma identidade nacional. Mormente, todos esses espetáculos e ritos convergiam na construção de uma identidade institucional da escola primária republicana.

Em suas considerações finais, a autora discorre sobre o processo de renovação e modernização da escola primária no Estado de São Paulo, com a criação das escolas graduadas. Demonstra como a escola torna-se uma instituição representante e propagadora do regime novo que traz em seu bojo um projeto civilizador. Os símbolos e ritos escolares são apresentados enquanto representações dessa cultura escolar traduzida dessa renovação pedagógica vivenciada no início da República que buscava afastar-se de tudo que pudesse lembrar o antigo regime. Nas palavras da autora, “a construção social e cultural da escola, primária graduada não oculta, pois, as finalidades políticas de um projeto de educação voltado para a moralização e civilização da população brasileira” (Idem, p. 285) e que reverbera até os dias de hoje.

De leitura agradável sem deixar de exprimir sua característica acadêmica, a obra de Rosa Fátima é um verdadeiro convite para adentrarmos nos meandros do ensino primário de São Paulo no início do período republicano. A maneira como o tema é desenvolvido, principalmente sua utilização do conceito de representação de Chartier, transitando entre a vida cotidiana escolar e sua correlação com a sociedade da época, nos permite entender o pensamento sobre a instrução pública e as influências advindas dos países europeus e dos Estados Unidos.

A autora nos apresenta ainda outras inquietações que não são respondidas na obra, mas que nos incentiva a buscar desenvolver pesquisas para que possamos nos aprofundar em determinados assuntos não abordados de forma aprofundada no livro, ou seja, abre janelas para que pesquisadores da área da educação possam traçar caminhos ainda não explorados.

 Portanto, indicamos a leitura desse livro para pesquisadores na área da Educação e, principalmente, na História da Educação. Embora o recorte temporal esteja bem definido pela autora, pesquisadores que desenvolvam suas pesquisas em outros tempos podem se apropriar dessa clássica obra como referência para os estudos da história da educação brasileira. Ao fim, os referenciais bibliográficos relacionados no final do livro nos convidam ao estudo e aprofundamento da História da Educação brasileira, assim como a riqueza das fontes disponibilizadas também ao final da obra, nos provoca ao desenvolvimento de outras pesquisas.


[1] Aluno do Programa de Pós-Graduação em Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP.