TEMAS BÁSICOS DE PSICOLOGIA COMUNITÁRIA: A TEORIZAÇÃO SOBRE A DÁDIVA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10828014


Wilson Alves Senne


RESUMO

Com este artigo procurou-se sumarizar, a partir dos textos de alguns de seus principais teóricos, o chamado “Dom Ritual”, concepção desenvolvida originalmente pelo antropólogo francês Marcel Mauss, buscando-se enfatizar a atualidade das ações de dar-receber-retribuir que o constituem. Como fenômeno gratuito-obrigatório fundamental na criação do pacto social, o “Dom Ritual” apresenta-se como uma hipótese heuristicamente interessante para se confrontar o neoliberalismo afins com o individualismo metodológico como doutrina sócio-econômica dominante.

Palavras-chave: Dom, dádiva, simbolismo, relações de troca.

ABSTRACT

The aim of this article is to summarize, from the texts of some of its main theorists, the so-called “Ritual Gift”, a concept originally developed by the French anthropologist Marcel Mauss, in an attempt to emphasize the relevance of the actions of giving-receiving-repaying that constitute it. As a fundamental gratuitous-obligatory phenomenon in the creation of the social pact, the “Ritual Gift” presents itself as a heuristically interesting hypothesis for confronting neoliberalism and methodological individualism as the dominant socio-economic doctrine.

Keywords: Gift, gift, symbolism, exchange relations.

Introdução

O paradigma do dom (ou da dádiva, tanto faz) é a teorização que um núcleo de estudos começado na França, desde os anos 80, vem desenvolvendo a partir da obra fundamental de Marcel Mauss, Ensaio sobre a dádiva (1925). A revista em torno da qual este núcleo se organiza é intitulada Revue du M.A.U.S.S1, entendendo-se com as letras em maiúsculo tanto uma homenagem ao precursor quanto a abreviatura, em francês, de “Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais”. Este movimento intelectual propõe-se discutir os fundamentos filosóficos e antropológicos da teoria econômica, buscando alternativas para afirmar contra a hegemonia do neoliberalismo que prospera tanto nas ciências humanas quanto no mundo real. Alain Caillé, Jacques Godbout, Guy Nicolas são os mais destacados representantes desse núcleo de pesquisa que reúne dezenas de autores, bem como colaboradores do porte de Robert Castel, Cornelius Castoriadis, Mary Douglas e Claude Lefort. No Brasil, sobre o tema da dádiva, destaca-se o professor Paulo Henrique Martins (UFPE), autor, entre outros livros, de “Itinerários do Dom” (2019) e “Teoria Crítica da Colonialidade” (2020). Nas próximas páginas apresentamos um apontamento com base em alguns dos principais textos a respeito desta teorização que também tem sido chamada de “Terceiro Paradigma” das Ciências Sociais.    

O que é o dom ritual?

A contribuição de Marcel Mauss (1872-1950) está sendo reconhecida e revalorizada tanto mais a dinâmica do mercado nas sociedades contemporâneas impõe diretrizes sobre Estados e governos gerando uma despotenciação política dos cidadãos, que então buscam criar alternativas ao mainstream neoliberal reconsiderando possibilidades esquecidas ou abandonadas de produção, de convivência e de participação coletiva. Como um dos pais fundadores da etnologia, Mauss já observava que as sociedades ditas “primitivas” ou “arcaicas” não se organizavam essencialmente em função de princípios semelhantes aos do mercado ou do Estado – tais como a noção de interesse, racionalidade ou utilidade -, mas em função do princípio do dom ritual, pressupondo uma generalidade lógica da dádiva com a qual contrastar e pensar nossa própria sociedade, onde este princípio permanece subsistente. “Em um grande número de civilizações antigas”, diz Mauss (1988), “as trocas e os contratos são feitos sob a forma de presentes aparentemente voluntários, mas na realidade compulsoriamente dados e retribuídos. (p.187) 

Ao examinar as formas de circulação de bens em diferentes sociedades antigas, Mauss procurou compreender o caráter livre e gratuito, mas paradoxalmente ao mesmo tempo obrigatório e interessado, dos atos de dar, receber e retribuir. Em outras palavras, embora a doação (de palavras, festas, objetos…) pareça ser livre e gratuita, presentear alguém é o mesmo que presentear algo de si, algo de sua essência espiritual que é dada a alguém que, ao receber, sente-se na obrigação de retribuir, formando assim um “vínculo de almas” entre quem dá e outro que recebe, este que, por sua vez, retribui gerando uma nova obrigação de dar, ad infinitum. Entre os nativos estudados por Mauss, receber algo sem retribuição significava uma perda de prestígio que requeria reparação, porém esta retribuição seria moralmente obrigatória e, portanto, voluntária e não institucionalmente compulsória.       

Com Mauss, entendemos que a dádiva não é uma obrigação contratual como típica de nossas trocas comerciais ou econômicas, tampouco uma obrigação meramente caritativa, e sim, uma obrigação tríplice e encadeada que exprime o próprio processo do ser humano como ser relacional, ou seja, como o fundamento da vida social.

“O que é a dádiva? De modo negativo, entende-se por dádiva tudo o que circula na sociedade que não está ligado nem ao mercado, nem ao Estado (redistribuição), nem à violência física. De modo mais positivo, é o que circula em prol do ou em nome do laço social.” (GODBOUT, 1998, p. 13)

As prestações primitivas através de dádivas vinculariam espiritualmente os atores, a retribuição sendo explicada pela existência de uma força dentro da coisa dada, gerando uma ligação de almas associado ao nome do doador e ao seu prestígio. Um pouco como hoje, entre nós, uma jovem que receba de presente de noivado um anel que já pertenceu à sua futura sogra pode sentir a força simbólica do presente bem como o “peso” do compromisso e da obrigação livre-compulsória que ele carrega: vemos assim que, na dádiva, o material e o espiritual se misturam, com cada coisa dada levando algo de seu doador. O que se dá e se retribui, de acordo com MAUSS (2003), não são só coisas, mas respeitos, cortesias, prestígios: “as pessoas se dão ao dar, e se as pessoas se dão, é porque ‘se devem’.” (p. 263)   

Entre os nativos da Polinésia estudados por Mauss admitia-se que o mana, como a força de ser do doador, acompanhava o objeto onde quer que este fosse. Por isso, receber um presente significava criar uma dependência para com o doador, que só recuperaria seu mana (enquanto prestígio e honra) através de alguma retribuição: quem recebe um bem sente-se obrigado a restituí-lo sob pena de ficar sob a dependência do outro, sofrer algum malefício, ou mesmo morrer. Se nas sociedades de contrato como a nossa as trocas mercantis são motivadas principalmente pelo interesse, o que preside o sistema ancestral da dádiva é o respeito recíproco, a honradez, o prestígio que o doador ganha ao dar e o recebedor ao retribuir – gerando nova liberdade para o primeiro voltar a dar. Assim, o caráter específico do dom ritual seria o de criar vínculos sociais fazendo sistema, com muitas dádivas entrecruzadas em todos os níveis. Ainda que possuindo uma dimensão de gratuidade, ou ainda que sendo também uma ação ou prestação realizada sem garantia ou certeza de retorno, o que importa na dádiva é que ela é uma ação mútua dotada de poderes quase mágicos porque capazes de transformar grupos em sociedades, guerra e rivalidade em aliança e paz, indivíduos em pessoas, isto é, ela é uma troca simbólica que, circulando, constitui tramas estruturadas de relações interpessoais. “Na relação de dádiva”, diz CAILLÉ (2002), “o vínculo é mais importante que o bem. A dádiva é simbólica por excelência; é o símbolo por excelência, o que anima o conjunto da atividade simbólica.” (p.192)

Mauss contribuiu consistentemente para a sociologia ao mostrar que o valor das coisas é inferior ao valor das relações e ao insistir no simbolismo como um fundamento da vida social. Como um “fenômeno social total”, dar-receber-retribuir indica um entrelaçamento entre fenômenos econômicos, morais, estéticos, religiosos e jurídicos no seio de prestações e contraprestações que se apresentam preferencialmente como atos voluntários, mas nos quais se entrevê a força obrigatória do dever, “sob pena de guerra privada ou pública”. O dom é assim um operador paradigmático inerentemente paradoxal, tomado de Mauss como fundamento de um modo particular de troca (e relação ou comunicação) humana que se opõe tanto ao modo de relação utilitária e essencialmente interessada quanto ao modelo do dom caritativo, puramente desinteressado, com o qual também não deve ser confundido. A propósito, alguns autores usam a expressão dom ritual justamente para evitar a confusão entre a noção de dom apresentada por Mauss e o dom enquanto caridade (como óbulo, esmola, ajutório ou equivalentes).

O dom caritativo, como a esmola, se apresenta como atos individuais descontínuos, aleatórios ou espontâneos – dando-se um ajutório, nada se espera de volta, podemos dar ou não dar, ou seja, é um ato livre e gratuito – e assimétrico, vertical (quem dá fica em posição superior a quem pede). Mas não é este o sentido do dom ritual, que deve ser captado numa dimensão de sistematicidade dinâmica, isto é, que faz sistema com o transcender. Além disso, vale realçar, “o que se dá não são apenas bens, mas também males, palavras, palavrões, injúrias, feridas, a morte, feitiços, bruxarias ou vinganças…” (CAILLÉ, 2002, p. 305). O principal aspecto do dom, que lhe confere nobreza e valor normativo é ser um operador privilegiado, capaz de ir além dos bens materiais e males humanos, de consistir um ciclo, transformar a morte em vida (é a sua dimensão doação) e inimizades em amizade (é sua dimensão de aliança e ad-sociação).   

O dom em toda parte

Os teóricos da dádiva recorrem a Mauss procurando mostrar que o dom não permaneceu restrito às sociedades por ele estudadas, mas sim, que “está em toda parte”, subsistindo com força entre nós.  Muito embora nossas sociedades tenham sido modernamente concebidas seja a partir do auto-interesse como fundamento de uma lógica utilitarista mercantil (a exemplo de A. Smith) ou seja mediante a obrigação compulsória, legal e contratual que inspirou a lógica burocrático-autoritária (a exemplo de T. Hobbes), a perspectiva de Mauss permite ver que o dom ritual não sobrevive entre nós como um mero vestígio de um modo de troca e comunicação arcaico, mas coexistindo com o mercado e com o Estado, compenetrando-se com eles. O dom como um pacto perpetuado, como signo de uma troca contínua teria uma importância em nosso cotidiano que extravasa toda leitura utilitária ou legal-formal.

Vale, nesse sentido, olhar para o vasto e sempre florescente mercado dos presentes que incessantemente são trocados no âmbito das famílias, entre amigos, colegas de trabalho, namorado(a)s, patrões e empregados ou mesmo entre desconhecidos. Assim são as trocas rituais oficialmente desinteressadas e recíprocas que culminam nas festas de Natal, aniversários, casamentos, Páscoa, chás de bebês, Dia das mães, das crianças, dos namorados, da secretária…  Não são apenas essas datas, que movimentam o comércio de presentes, que registram entre nós a presença da dádiva. Podemos também olhar para muitas relações oblativas particulares como almoços para os amigos ou a negócios, rateios de despesas (“vaquinhas”), presentes coletivos, ações filantrópicas, doações humanitárias, doações de sangue ou de órgãos, solidariedade diante de guerras ou de grandes catástrofes etc. Podemos vislumbrar o princípio da dádiva em nossas casas, considerando aquela porção de guardados domésticos que muitos conservam para uma visita improvável – baixelas, lençóis, toalhas, quarto de hóspedes… reservados para “quando vem gente”. Entre vizinhos, sempre que se deseja aproximação, logo há quem bata à porta com algum prato de bolo, um pote de rosquinhas, oferecendo gentilezas que convém não só receber mas também devolver com algum outro quitute amoroso. Muitos se dedicam a cuidar de plantas não só para ornamentar a própria casa mas também para oferecer e pedir mudas de presente, conversar sobre melhores modos de cultivar esta ou aquela frutífera ou suculenta, e até formar clubes de jardinagem. Há os que se dedicam a plantar árvores não só para tirar delas algum proveito, mas para que as próximas gerações possam usufruir futuramente de seus frutos. Aos que viajam a negócios ou a passeio, nunca falta, em toda cidade turística, uma porção de lojinhas de “souvenirs” que oferecem um mundo de “lembrancinhas” – canecas, imãs de geladeira, camisetas, bonés… – com que encher as malas para festejar, na volta, o reencontro com amigos e familiares. Assim, de muitos modos vemos que não nos poupamos das “despesas inúteis” ou “dispensáveis”, mas que de modo livre/obrigatório nos inscrevem em quadros de relações familiares ou afetivas definidos por ritos e simbolizações de reversibilidade.

Uma infinidade de temas comportamentais se abrem, como objetos de pesquisa, sob o ângulo da dádiva (e contrariamente ao determinismo do mercado e do interesse utilitário): a doação de órgãos (sangue, óvulos, coração…), as “festas americanas” (cada um leva uma coisa de comer ou beber e todos compartilham), os sistemas informáticos colaborativos tipo P2P (Linux, Kazaa, LimeWire, eMule etc), as diferentes práticas de “economia solidária” (cooperativas, crédito solidário, moeda social, comércio justo, turismo solidário…), as estratégias de fidelização de consumidores (distribuição de brindes, cupons, amostras grátis, degustações etc.), a reversibilidade necessária no campo esportivo (quando se “dá” a vitória ao adversário para continuar havendo jogo), a relação entre palavra trocada e valor de um produto ou serviço (pechinchar, obter desconto ou ganhar um “choro”…), a dádiva entre usuários de drogas (“fazer uma presença”, “passar a bola”, “serrar um cigarro” etc.), as feiras de escambo em que as pessoas vão não só para trocar objetos mas sobretudo para se encontrar, conversar, fazer um “social”, contar histórias sobre os objetos que estão trocando. Nos shows musicais, quando o espetáculo (pelo qual pagamos) é melhor do que o esperado, aplaudimos efusivamente, e o artista, em retribuição, oferece um “bis”, “dá uma “canja”… Em tudo isso podemos ver que há interesse e até mercado, mas vai longe de ser a única dimensão ou a mais importante, posto que, contrastando com o utilitarismo mercantil, as coisas trocadas nesses e em muitos outros casos não valem somente entre elas (tipo toma-lá-dá-cá), mas valendo o que valem as relações em si mesmas, o vínculo, as alianças, o simbolismo, a comunicação.

“Tudo na sociedade humana são apenas relações, até a natureza material das coisas; (…) nada se compreende a não ser em relação ao todo, à coletividade toda inteira e não com relação a partes separadas. Não há um só fenômeno social que não seja parte integrante do todo social…” (GOODBOUT, 1999, pp. 18-19)

Como um “fato social total”, as funções do dom só poderiam ser compreendidas no âmbito da ordem mais ampla da troca simbólica que sempre transborda o simples jogo de signos econômicos. Ouvimos, não raro, a afirmação cínica segundo a qual “tudo tem seu preço” – máxima que aparece reforçada através de muitos exemplos em que a moralidade é reduzida ao cálculo econômico: na prostituição, na venda de órgãos, entre cambistas, quando se compra lugar numa fila, ou quando se paga para entrar ilegalmente num país ou para obter documentos falsos etc. Mas, bem ao contrário, como no comercial famoso de cartão de crédito, “existem coisas que o dinheiro não compra” – e o que são elas? E não serão maioria? Será possível comprar amizade ou amor verdadeiros? Não haveria, em toda parte, valores inegociáveis?

Mauss já advertia seus leitores que o dom não dizia respeito somente a um movimento de bens, pois que este não passava de um dos termos de um contrato mais geral e permanente que juntava “cortesias, festins, ritos, mulheres, crianças, festas, feiras – das quais o mercado não é senão um momento.” (NICOLAS in MARTINS, 2002, p.53).

Nesse contrato mais geral e permanente, a utilidade, praticidade, eficácia etc., como características da razão interessada, vão de par (interpenetram-se, confundem-se…) com o desinteresse, a espontaneidade, a digressão, a “perda de foco”… Deste modo, o funcionamento da troca oblativa geral que liga (ou pode afastar) pessoas e valores, teria grandes afinidades com o funcionamento da linguagem, especialmente sob seus aspectos concretos de trocas de mensagens aparentemente inúteis, em que se fala, muitas vezes, “para não dizer nada” ou “por falar”, para trocar palavras mesmo “sem ter nada para dizer”. Também aqui fala-se para provocar no outro a obrigação de responder, implicando todo “tato” que as tentativas de enlaçar o outro exigem, de modo que…

“A pessoa tem de responder a seu parceiro de maneira ritual, por delicadeza, tem de dizer frases e não açambarcar as palavras, mesmo que seja a única a deter uma informação. Um discurso unívoco ou sem ritual produz uma ruptura de comunicação que destrói a troca. A semelhança do esquecimento do dom, o silêncio é uma das piores provações da vida coletiva; ele pesa sobre a própria existência do grupo. No entanto, palavras lançadas sem significado, um dito espirituoso, podem salvar a situação, relançando uma troca de falas que vale por si mesma. O diálogo funciona para evidenciar interesse, respeito, aceitação, definir diferenças, e não tanto para expressar ideias ou informações.” (NICOLAS in MARTINS, 2002, p. 54) 

Do ponto de vista de Mauss e dos teóricos que o seguem, trocando palavras, objetos, dinheiro, festas ou o que seja, o paradigma do dom permite desconstruir o mito de que trocamos essencialmente para acumular bens ou capitais, como se fosse possível tudo ter um preço. Ao contrário,    

“Uma vez que você percebe a centralidade da questão, pode reler toda a história das ciências sociais como uma sucessão de tensões entre a doutrina utilitarista e a anti-utilitarista. Já do ponto de vista político, o paradigma do dom tem muito a ver com a democracia, pois, ao invés de se conceber o indivíduo como alguém que busca apenas seu próprio benefício, almejam-se cidadãos que considerem justo e desejável aquilo que é bom para o maior número de pessoas. Na verdade, o mesmo espírito do dom fundante das sociedades arcaicas está na base das religiões e tem sua versão laica na democracia.” (CAILLÉ, 2002, p.99)

Liberdade de mercado e endividamento mútuo positivo

A relação mercantil e a relação que se estabelece à base da dádiva são frequentemente pensados, pelos teóricos da dádiva, em oposição na maneira como separam/ligam os seres humanos através das coisas. George Simmel definiu certa vez o mercado como “um vínculo social que visa escapar às obrigações normais inerentes aos vínculos sociais”, indicando que o que define a relação de troca comercial é o dar e receber na forma de equivalentes que se anulam em relações pontuais. Mediante este modelo, liberamo-nos de relações sociais indesejadas, obtendo o que desejamos do outro sem nos envolvermos em qualquer relação de mais longo prazo com ele. Ou seja, aqui visamos sempre liquidar a dívida, tornar cada troca completa, fazer de cada relação uma relação estanque, sem nos inserirmos num sistema de obrigações. Esta é a chamada liberdade de mercado: poder pontualmente saldar as dívidas e desimpedir-nos para sair de relações que não nos agradam e estabelecer, alhures, novos relacionamentos.

Ora, contrariamente a este exit característico das trocas mercantis, a tripla relação dar-receber-retribuir do dom ritual é um pacto perpetuado, que antes que significar o saldo de uma dívida sugere o próprio estado de dívida enquanto um estado de permanência em relação a outrem. Ou seja, a dádiva implica “a consciência de um pressentimento do infinito intrínseco de uma relação que não poderá ser esgotada ou realizada por nenhum testemunho de gratidão nem por nenhuma ação seja ela de que espécie for”. (NICOLAS, 1986, p. 46)

Jacques Godbout, dizendo da dádiva, se referiu a um “sentimento de obrigação” ou “endividamento mútuo positivo” dentro do qual “cada parceiro tem o sentimento de receber do outro mais do que dá”. Não raramente, um ou outro dos parceiros expressa isso negando sua própria importância como doador, exibindo “uma modéstia exagerada” (dizendo p.ex., “de nada, foi um prazer, disponha…”), como que se esforçando para diminuir a obrigação de retribuir e para tornar incerta a retribuição, de modo a deixar o outro inteiramente livre de dar, por sua vez: “Não fazemos dons para sermos retribuídos, mas para que o outro faça seu dom”. (GODBOUT in MARTINS, 2002, p. 75)

A liberdade que se observa no dom não é a de mercado pois se aqui a dívida é liquidada, no dom ela se situa no interior do vínculo consistindo, ao mesmo tempo, em tornar mais livre o próprio vínculo através da multiplicação de rituais e gestos simbólicos que visam diminuir o peso da obrigação para o outro. O empenho consciente dos atores em aumentar o grau de liberdade uns dos outros é um fato que contraria a análise estratégica segundo a qual, para aumentar o poder e o controle sobre as organizações, o indivíduo sempre tentaria reduzir o que é designado como sua “zona de incerteza”. A redução dessa zona de incerteza significa, em muitos casos, reduzir a liberdade do outro para poder aumentar a nossa – quando na perspectiva da circulação dos dons, ao contrário, se trata de ampliar tanto a liberdade do outro quanto a incerteza:

“Dizemos que ele tende a aumentar a incerteza porque procura reduzir, permanentemente, no outro, qualquer sentimento de obrigação, mesmo que as obrigações estejam sempre presentes alhures. O ator de um sistema de dom tende a manter o sistema em um estado de incerteza estrutural para permitir que a confiança se manifeste; essa é a razão pela qual as normas, sejam elas quais forem (justiça, igualdade etc.), devem continuamente ser transgredidas, modificadas, superadas. É necessário que, no que é obrigatório, se produza alguma coisa de não previsto.” (NICOLAS in MARTINS, 2002, p. 77)

Podemos imaginar que não teria graça dar a alguém de presente de aniversário, digamos, um vidro de perfume e depois, em seu próprio aniversário, receber de presente dessa pessoa um vidro de perfume igual ou equivalente: iria parecer um empréstimo, uma devolução obrigatória   e não um presente. Por isso também é melhor não esquecer de retirar a etiqueta com o preço de um presente, bem como jamais dizer quanto pagou por ele. Pois o dom não pode consistir num fazer apenas por obrigação: um dom feito por obediência a uma norma é considerado um dom de qualidade inferior.  

As regras do dom só podem ser implícitas, sem falar que também há uma tendência geral entre os atores para negar obediência a regras em um gesto de dom. Na realidade, não haveria dom sem a alegria, sem a espontaneidade do ato de doação, característica que contraria todo sentimento de um dever que ser cumprido compulsoriamente. Por consistir um sistema de ação que incita seus membros a aumentar a liberdade dos outros membros bem como o grau de incerteza, o dom não cabe no modelo das escolhas estratégicas e racionais; de igual modo, por seu aspecto jubiloso e espontâneo-criativo, o dom também escapa à moral do dever e às normas interiorizadas do modelo holístico. O dom, pois, é um pensamento que, extremado, obrigaria a saída dos dois grandes paradigmas das ciências sociais, colocando em evidência seus dois “vícios” principais: “Se o vício dos economistas consiste em compreender tudo em função dos interesses, o vício sociológico é o de considerar o homem como executante das normas sociais.” (GODBOUT in MARTINS, 2002, p. 79)

Nem individualismo, nem holismo – o terceiro paradigma

Mauss já se colocava a questão da normatividade social procurando sugerir uma alternativa tanto ao pensamento de Thomas Hobbes (que entendia ser preciso instituir uma vontade mais forte – a do Estado-Leviatã – para obrigar os indivíduos a viverem em paz), quanto ao pensamento do liberalismo do “Estado mínimo”, que aposta na mecânica simétrica dos interesses individuais do mercado como regulador da ação coletiva (a “mão invisível” sugerida por Adam Smith). Entre o despotismo da Lei afirmada em detrimento da liberdade individual e o refúgio no “cada um por si” que tende a deixar que as coisas vão por si mesmas, Mauss sugeriu poder encontrar uma alternativa no aprendizado das alianças e das reciprocidades confiantes, rivalizando em dons que ligam os humanos e constituem sociedades, trocando bens que não possuem valor utilitário antes ou mais que simbólicos, entendendo-se a sociedade como uma totalidade integrada por significações circulantes – que incluem dinheiro, automóveis, roupas, sapatos, mas também gestos, palavras, sorrisos, gentilezas, títulos, hospitalidades, presentes, serviços gratuitos, sacrifícios, etc.

A ambiguidade da dádiva no âmbito das trocas – o fato de ser ao mesmo tempo espontânea e obrigatória – opera como um elemento de incerteza estrutural que permite superar os dualismos costumeiros do pensamento ocidental, indo além de oposições tais como interesse ou generosidade, egoísmo ou solidariedade etc. Para além da obrigação ou da gratuidade com que estamos acostumados (ou submetidos), a regra tripartida do dar-receber-retribuir tende a valorizar os movimentos de base associacionistas, convergindo para a criação de instituições (comunitárias, coletivas…) alternativas.

 Alain Caillé (1998) referiu-se ao dom como “terceiro paradigma” presumindo, por suposto, a existência de outros dois: o individualismo e o holismo. Apropriando-se do termo sugerido por T. Kuhn, Caillé redefiniu “paradigma” como “um modo generalizado e mais ou menos inconscientemente compartilhado de questionar normativamente a realidade social histórica e de propor para tais questões respostas positiva e normativamente significativas” (p.9) Para o autor, o individualismo metodológico nasce da ideia de que as relações sociais podem e devem ser compreendidas como resultante do entrecruzamento dos cálculos efetuados pelos indivíduos. Como exemplares deste paradigma, o autor cita “a teoria da ação racional, a teoria da racionalidade limitada, o neo-institucionalismo, o utilitarismo, a teoria dos direitos de propriedade”, e o traduz sob a figura do homo oeconomicus. Se Max Weber é não raro associado ao paradigma individualista, o contraponto holístico pertenceria a Emile Durkheim, autor que considera a totalidade (que é sempre mais que a soma das partes) como “historicamente, logicamente, cognitivamente e normativamente mais importante — hierarquicamente superior — do que os indivíduos que contém”. (p. 11). Este segundo paradigma, que teria maior destaque em ciências sociais, estaria associado ao culturalismo, ao funcionalismo, ao estruturalismo e grande parte do marxismo.

Situados estes dois paradigmas, Caillé (1998) posicionou o paradigma do dom lembrando que os dois paradigmas precedentes seriam “incapazes de pensar — ao contrário do que creem — a gênese do laço social e a aliança”, ou seja, “a dádiva e, por conseguinte, o político”. A prevalência das estruturas, no caso do holismo, impede até mesmo que possamos falar de ação (pois se trata muito mais de sujeitos agidos por totalidades que desconhece), e o individualismo metodológico por sua ênfase na figura do indivíduo que calcula em seu melhor proveito (self-regarding e self-interested) é incapaz de proceder à geração lógica do elo que une os átomos individuais. Diferentemente destes paradigmas que se apoiam cada um em uma teoria monodimensional e reducionista da ação social – ora é o indivíduo pleno no centro da ação, ora é a totalidade “passando” ou “fazendo corpo” com um indivíduo esvaziado (“não há sujeitos, só existem lugares”) -, com o terceiro paradigma propõe-se começar pela inter-relação entre as pessoas para considerar o dom ritual como o “operador privilegiado – ou melhor, específico – da criação do vínculo social” (p.7).

Conclusão

Compreender a dádiva como sistema básico de trocas da vida social permite contestar o modelo dicotômico característico da modernidade, segundo o qual a sociedade ou seria produto do movimento fluente do Mercado ou da ação calculada do Estado. Ao invés desta divisão, podemos adotar a concepção da ação social enquanto “inter-ação”, um movimento cíclico ativado pelo simbolismo do dar-receber-retribuir que determina a distribuição dos lugares dos membros do grupo social e suas modalidades de reconhecimento, prestígio e inclusão.

A ênfase na teoria da dádiva permite rever a história das ciências sociais recolocando em evidência as implicações ético-políticas abortadas pelo capitalismo, realçando o fato associativo ou o vínculo social como fundamentais para a (re)organização social. Em tempo em que o egoísmo e o auto-interesse crescem de par com a competição, a pilhagem e a violência, a lembrança de uma ação elementar que implica solidariedade e endividamento mútuo talvez nos alerte para novos modos de vida em que  a reciprocidade, o cooperativismo e o compromisso com o(s) outro(s) – incluindo os não-nascidos, as próximas gerações, ora ameaçadas pelo individualismo excessivo -, parece-nos o melhor de todos os alvitres.    


¹http://www.revuedumauss.com.fr 

REFERÊNCIAS

CAILLÉ, Alain. Antropologia do Dom – o terceiro paradigma – Ed. Vozes, 2002

____­­­_____. Nem holismo nem individualismo metodológicos: Marcel Mauss e o paradigma da dádiva. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 13, no. 38, 1998 https://doi.org/10.1590/S0102-69091998000300001

GODBOUT, Jacques. O espírito da dádiva. FGV, 1999

_________.  Introdução à Dádiva. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 13, no. 38, 1998 https://doi.org/10.1590/S0102-69091998000300002

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Ed. 70, 1988 

_________. Sociologia e antropologia. São Paulo, Cosac e Naify, 2003

MARTINS, Paulo Henrique (org). A Dádiva entre os modernos. Ed. Vozes, 2002 _________. Itinerários do Dom: teoria e sentimento. Ateliê de Humanidades, 2019.

NICOLAS, Guy. Don rituel et échange marchand dans une société sahéienne. Paris, Institut dÉthnologie, 1986.