REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202501310031
João Pedro Soares Schmidt¹;
Rogério Emílio de Andrade²;
Márcio Godofredo de Alvarenga³.
Resumo
O artigo aborda a análise da obra O Mito do Estado, de Ernst Cassirer, com foco na relação entre mito, política e técnica no contexto histórico do fascismo e do nazismo. O estudo investiga como o autor explora a instrumentalização do mito político por regimes totalitários para consolidar o poder, combinando elementos irracionais e tecnologias modernas de manipulação. A pesquisa revisita concepções históricas sobre o Estado, desde Platão até o romantismo alemão, evidenciando a reabilitação do mito como instrumento político. Utiliza como método a análise bibliográfica, com destaque para a abordagem crítica de Cassirer sobre o papel simbólico do herói, influenciado por autores como Thomas Carlyle, e sua relação com lideranças despóticas. O texto discute como o autor denuncia a aliança entre elementos míticos e técnicas modernas de comunicação como formas de dominação no Estado contemporâneo. Conclui-se que a obra de Cassirer oferece reflexões fundamentais para compreender os perigos da manipulação ideológica no contexto atual, contribuindo para debates sobre ética, política e racionalidade em tempos de crise democrática.
Palavras-chave: Mito político. Técnica. Fascismo. Herói. Ernst Cassier.
Em elogioso prefácio ao último livro escrito por Cassirer, O Mito do Estado, Charles W. Hendel, diz das interpelações feitas por colegas do filósofo que gostariam de ver sistematizadas as ideias de Cassirer sobre os problemas políticos pungentes da época: “por que você não nos explica o significado do que está acontecendo hoje, em vez de escrever sobre história, ciência e cultura do passado?”4
Os interlocutores de Cassirer ao se referirem a “o que está acontecendo hoje”, aludiam o fenômeno da ascensão e consolidação do nazismo alemão, bem como a Segunda Guerra Mundial. Pretendiam seus interlocutores ver tal fenômeno inserido no quadro geral das formulações de Cassirer. Supunham que algo no interior da teoria das formas simbólicas poderia dar conta de explicar, ao menos em partes, o surgimento do nazismo.
Nas formulações conclusivas de O mito do Estado, Cassirer sugere que os mitos políticos contemporâneos consistiriam em velhas ideias convertidas em potentes armas de guerras por meio do comparecimento, em antigas formas políticas, dos “efeitos catalizadores” da técnica5. O substrato desde sempre presente, em menor ou maior intensidade, no campo do poder político, sobre o qual incidiriam modernamente os efeitos da técnica, é o mito.
Cassirer encontra na noção de herói, conforme exposta por Thomas Carlyle, autor do século XIX, as formulações que, em acúmulo com suas próprias produções, dariam conta, em parte, de explicar a relação entre mito e política, em especial naquilo que concerne ao entendimento do fenômeno fascista. Cassirer assevera que “os modernos defensores do fascismo não perderam a oportunidade de transformar as palavras de Carlyle em armas políticas”.6
Nas formulações de Carlyle, podemos encontrar uma noção, ainda que não filosoficamente sistematizada, de herói enquanto continuidade da autoridade medieval, agora secularizada, “substituída por uma moderna forma de ‘herói-arquia’”7. Cassirer ao denunciar a ausência de uma definição propriamente filosófica do conceito de herói em Carlyle, identifica nesta falta mesma, os elementos para inscrevê-la no âmbito da forma simbólica mitológica.
Por esse método, o herói de Carlyle torna-se uma espécie de Prometeu capaz de assumir todas as formas. Em cada conferência mostra-nos uma nova face. Aparece como um deus mítico, como um profeta, um padre, um homem de letras, um rei. Não encontra limites nem se encontra sujeito a qualquer esfera de ação.8
A concepção de mito personificado em uma figura heroica, conforme apresentado por Carlyle, operando segundo o funcionamento geral das formas simbólicas, ou seja, servindo para nós como material para a construção do mundo do “real”9, é, segundo Cassirer, a melhor aproximação, propriamente filosófica, dos fenômenos do poder no sentido de compreender os modernos ideais de governo político.10
Tal configuração contemporânea da relação entre mito e técnica no poder estatal, se apresenta hodiernamente como uma técnica inaudita de subjugação. Por óbvio, o mito do Estado moderno não foi a primeira forma de opressão realizada por meio do Estado. “Os métodos de compulsão e supressão foram sempre utilizados na vida política. Mas na maior parte dos casos esses métodos visavam a resultados materiais”.¹¹ Ocorre que, diferentemente das demais formas de opressão, o mito do Estado moderno ocupa-se de arquitetar sua dominação por meio dos sentimentos, juízos e sentimentos dos homens¹².
… homens de educação e inteligência, honestos e decentes, que subitamente renunciam ao mais alto privilégio humano. Deixaram de ser agentes pessoais e livres. Realizando os mesmos ritos, começam a sentir, a pensar e a falar da mesma forma. Os seus gestos são vivos e violentos; contudo, isso não passa de uma vida artificial. De fato, são movidos por uma força exterior. Atuam como fantoches num teatro de bonecos – e nem mesmo sabem que as cordas que os movem e que movem toda a vida social e individual dos homens são manobradas pelos chefes políticos.¹³
Antes de demonstrar o entrelaçamento entre as formas simbólicas do mito e da técnica no Estado moderno, Cassir dedica boa parte do livro a analisar formas pretéritas de concepção e legitimação do poder do Estado, sugerindo uma linearidade histórica, com períodos de avanço e retrocesso no emprego da racionalidade e no respeito à autonomia dos sujeitos. Apesar de o estudo pormenorizado dos abundantes elementos trazidos por Cassirer em sua argumentação, estar fora do escopo deste trabalho, parece-nos pertinente ao menos aduzir algumas considerações de Cassirer sobre a antiguidade clássica e a fundação da noção de Estado legal; sobre a incorporação de elementos teológicos ocorrida na idade média; sobre a consolidação da noção contratualista de Estado patente no século XVII; sobre os avanços do pensamento iluminista; e, por fim, sobre as formulações de Carlyle que, influenciado pelo romantismo em sua empreitada contra os ideais iluministas, teria pavimentado de forma importante o caminho para o surgimento do fascismo alemão.
Na antiguidade clássica, a legitimação do poder do Estado passava por uma concepção de ética e justiça. Platão, ao expor sua noção de justiça por meio da apresentação dos três elementos que a compõem: logos, nomos e taxis (razão, legalidade e ordem), já lançava os fundamentos de suas noção de um Estado legal, ou seja, de um Estado orientado pelos elevados ideais de justiça. Tais ideais de justiça poderiam apenas ser revelados pela razão, de forma que, no mesmo sentido da oposição mito-logos, o mito seria o avesso que qualquer ideal de justiça aplicada ao Estado. É nesse sentido que “o mesmo pensador que admitiu conceitos míticos e linguagem igualmente mítica na sua metafísica e na sua filosofia natural”14, torna-se um declarado inimigo do mito no campo político.
Cassirer chaga a referir-se à noção de Estado legal de Platão como um “patrimônio eterno da cultura humana”15, a partir da qual, mesmo o pensamento filosófico medieval, plasmado nas formulações de Santo Agostinho e São Tomas de Aquino, aparece como continuidade. O logos grego passa a uma racionalidade cristã16. Diferentemente dos sistemas éticos elaborados pelos gregos, fundados em um intelectualismo fundamental, de uma racionalidade que nos aponta o caminho do moral, a religião profética é marcada pelo voluntarismo divino. De sorte que nenhum método lógico de raciocínio poderia dar conta de compreender a vontade de Deus.17
A fim de encontrar uma verdade imutável e absoluta, o homem tem de ir para além do limite da sua própria consciência e da sua própria existência. Tem de ultrapassar-se a si próprio Por essa transcendência, todo o método da dialética, o método socrático e platônico, é completamente mudado. A razão cede a sua independência e autonomia. Não se ilumina já a si própria; brilha somente como uma luz refletida de outra fonte. Se essa fonte não está presente, a razão torna-se ineficaz e impotente.18
Apesar disso, ainda persiste no pensamento medieval a noção de que sequer o Estado poderia se por acima de Deus. A noção advinda dos estóicos gregos, segundo a qual todos os homens são livres e iguais por força da razão19, sofre uma modificação mínima para asseverar princípio de que todos os homens são livres e iguais pela graça de Deus. Nos dois casos, a igualdade fundada na razão, apesar do aspecto teológico no caso medieval, aparece como elemento limitação ao poder do Estado.
Apesar das diferenças fundamentais entre a racionalidade pregoada pelos gregos clássicos e os teólogos medievais, ambos faziam frente ao totalitarismo do Estado.
Segue-se que nenhuma autoridade do poder político pode ser absoluta. Está sempre limitada pelas leis da justiça. Essas leis são irrevogáveis e invioláveis porque exprimem a própria ordem divina, a vontade do supremo legislador.20
Os desenvolvimentos posteriores do pensamento filosófico colocado historicamente em oposição à autoridade da igreja, firmaram-se no princípio estóico da “autarquia” da razão humana, isso por razões históricas que não concernem ao escopo deste trabalho. De qualquer maneira, o pensamento do século XVII, rejeitava a necessidade de uma “teologia moral”.²¹ Orientava o pensamento a partir da noção de uma racionalidade autônoma e suficiente, base do direito natural.
Mesmo a vontade de um ser onipotente, dizia Grotius, não pode alterar os princípios morais nem revogar aqueles direitos fundamentais que são garantidos pelo direito natural. Este direito seria válido mesmo que – per impossibile- Deus não existisse ou não se ocupasse dos negócios humanos.²²
Prevenidos da pluralidade de sistemas de pensamento político do século XVII, há um ponto em comum que orienta toda produção sobre o poder e o estado: a noção de Estado-contrato. Nesta noção, comparece necessariamente a figura da livre adesão, da submissão contratual livremente consentida23.
Ocorre que, se tomarmos por base, por exemplo, o pensamento de Hobbes acerca do poder absoluto do Estado, o fundamento contratualista de sua teoria produz uma contradição em termos quando confrontada com os fundamentos do direito natural. Se o nexo contratual entre governante e governado é irrevogável e por meio dele se transfere toda liberdade, incorporando a vontade do súdito à vontade ilimitada do poder soberano, não se poderia mais falar do homem como um ser moral. Estaríamos diante não de um homem, mas de uma coisa sem vida.24 Essa é a razão pela qual “os escritores mais influentes do século XVII rejeitaram as conclusões de Hobbes”.25 Era imperioso que, mesmo no contrato social no qual se abdica da liberdade e de direitos, ao menos um único permanecesse no âmbito do inalienável: o direito à personalidade.26
O acordo que é a base legal de todo o poder civil tem, por consequência, os seus limites. Não é um pactum subjectionis, não é um ato de submissão por via do qual um homem possa escravizar-se. Porque por tal ato de renúncia ele cederia o próprio caráter que constitui a sua natureza e essência: perderia a sua humanidade.27
O século XVIII, o período heroico da burguesia revolucionária, produziu um sistema de pensamento político fortemente marcado pela harmonia entre a teoria e prática, entre pensamento e vida.28
O período do Iluminismo tinha perdido o interesse nessas especulações metafísicas. Toda a sua energia se concentrava em outro ponto, e era não tanto uma energia de pensamento quanto uma energia de ação. As “ideias” já não eram consideradas como “ideias abstratas”. Transformavam-se em armas para a grande batalha política. O problema nunca foi descobrir se essas armas eram novas, mas se eram eficazes.29
Os mitos não encontravam qualquer espaço no campo de pensamento iluminista, não haveria entre o mito e a filosofia, qualquer ponto de contato, em especial quando se tratava do pensamento político. O mito não seria mais que um amontoado disforme de ideias barbaras e caóticas, “superstições grosseiras, uma autêntica monstruosidade”30.
Os inegáveis acúmulos teóricos e práticos do iluminismo ao longo do século XVIII, logo passaram por violento período de crise. Além das razões históricas apontadas por Cassirer, haveria outras mais profundas causas, das quais o autor destaca dois pontos principais, identificáveis na empreitada do romantismo alemão contra as ideias iluministas.
O primeiro deles diz respeito ao interesse pela história. Ao passo que os iluministas não demonstravam nenhum interesse especial pelo passado (tomando-o como nada mais que uma forma de compreender o presente), o romantismo alemão é marcado por uma visão apaixonada e idealizada do passado.
Para eles O passado não era apenas um fato, mas um dos ideais mais altos. Essa idealização e espiritualização do passado é uma das características mais notáveis do pensamento romântico. Tudo se torna compreensível, justificável, legítimo, desde que consigamos descobrir uma origem histórica.³¹
O segundo ponto, é a nova concepção e valorização do mito. Diferentemente dos iluministas, para os românticos “o mito torna-se não somente um assunto de mais alto interesse intelectual, mas também de culto e veneração. É considerado como a mola real da cultura humana”³². Assim, o mito deixara de ser o opositor do pensamento filosófico para alçar-se ao status de uma filosofia, uma filosofia da mitologia (como elaborada por Schelling) lado a lado com a filosofia da natureza, da arte etc.³³
Essa nova etapa do desenvolvimento do pensamento filosófico culminou na consequente reabilitação do mito no seio do pensamento político.
Na filosofia, a influência de Schelling foi equilibrada e rapidamente eclipsada pela aparição do sistema hegeliano. A sua concepção do papel da filosofia ficou sendo apenas um episódio. Contudo, estava aberto o caminho que podia conduzir mais tarde à reabilitação do mito que se observa nos sistemas políticos modernos.34
Carlyle, cuja noção de herói Cassirer toma emprestado para sustentar sua tese sobre a impregnação do mito na política moderna, possui forte parentesco espiritual com a tradição do pensamento romântico a partir de Schelling. “Nada existe que Carlyle mais odeie do que as teorias ‘mecânicas’ da vida política que ele atribui ao século XVIII e aos filósofos do Iluminismo.”35
Há de se notar que, em suas formulações, Carlyle via com entusiasmo e otimismo o papel e as possibilidades do herói. Cassirer, em referência à Seillière, aduz a “prussificação” do romantismo de Carlyle como sendo o decisivo passo de seu pensamento em direção à divinização dos chefes políticos, o herói, e a identificação do poder com o direito.36 Esse processo de “prussificação” corresponde com a aproximação do autor com o pensamento conservador de sua época, aproximação que, inclusive, teria introduzido características de um misticismo estético no conjunto geral de sua obra e, ainda, traços de um misticismo racial37.
Aqui já comparecem os elementos mais conservadores das proposições de Carlyle sobre a figura do herói e sua relação com o poder e o Estado. Não sem motivos, diversas leituras posteriores atribuíram a Carlyle o rótulo de um dos “homens que mais contribuíram para a futura ‘marcha do fascismo’”.38
Mas não foi apenas a impregnação do mito na vida política moderna, muito menos os impulsos gerados pela teoria de Carlyle, que produziram o fenômeno do Estado totalitário fascista. “Para transformar as velhas ideias em fortes e poderosas armas políticas era necessário qualquer coisa mais. […] Para esse fim era necessário um novo instrumento”.39
A profundidade dos problemas sociais, geopolíticos e humanitários em que as nações engajadas na primeira guerra mundial se viram envolvidas, demandava um empenho extraordinário de forças no sentido da apresentação de soluções. Países como França, Inglaterra e Estados Unidos, ainda guardavam as condições necessárias para enfrentar tais problemas por meio das formas ordinárias e comuns, aquelas típicas das democracias burguesas do ocidente. Todavia, na Alemanha, o senários era totalmente diferente.
De um dia para o outro o problema tornou-se mais agudo e mais complicado. Os dirigentes da República de Weimar fizeram o possível para resolver esses problemas por meio de transações diplomáticas e medidas legislativas. Mas todos os seus esforços pareciam ter sido feitos em vão. Nos tempos da inflação e do desemprego, todo o sistema social e econômico da Alemanha viu-se ameaçado de um colapso completo. Os recursos normais pareciam exaustos. Era esse o solo natural para o desenvolvimento dos mitos políticos e onde eles podiam encontrar alimento abundante.40
O mito, aponta Cassirer, jamais fora totalmente superado na vida política. É em momentos de aprofundamento das crises políticas, sociais, humanitárias etc. que o mito ressurge exatamente ali onde as forças racionais não mais resistem à pressão dos desafios históricos de um povo.
[o mito] está lá sempre, espreitando no escuro e esperando a sua hora. Essa hora chega quando as outras forças unificadoras da vida social do homem, por uma razão ou por outra, perdem a sua força e já não são capazes de lutar contra a força demoníaca do mito.41
Melhor delimitando o sentido do mito como categoria filosófica, Cassirer lança mão da definição apresentada por Doutté, segundo a qual o mito seria a personificação do desejo coletivo. Tal definição está em perfeita harmonia com as expressões modernas das ditaduras. Isso porque o mito se apresenta como uma necessidade quando “o desejo coletivo atingiu uma força avassaladora e quando, por outro lado, falharam todas as esperanças de satisfazer esse desejo pelos meios ordinários”.42
Instaurada a necessidade da forma mitológica no âmbito da política, o homem moderno, tanto quanto o homem primitivo, vê-se sujeito às paixões violentas e impulsos irracionais. Todavia, mesmo nesses casos extremos, apela a uma razão que possa “justificar” o seu credo, que possa apresentar-lhe uma “teoria” que fundamente suas crenças.43 “Essa teoria prometia uma justificação racional para certas concepções que, na sua origem e tendência, eram tudo menos racionais. Carlyle pôs em evidência que o culto do herói é um elemento necessário na história humana”.44
O comparecimento do elemento de racionalização na demandada justificação das paixões violentas mobilizadas pelo mito personificado, é objeto de uma análise histórica por Cassirer, por meio dessa análise evidencia-se pela primeira vez a coexistência do mito e da técnica no poder do Estado moderno.
Na figura do herói que encarna o mito e exerce o poder despótico no Estado, duas atividades, que à primeira vista parecem mutuamente excludentes, devem se desenvolver de forma simultânea: o político moderno deve ser uma espécie de sacerdote de uma religião totalmente irracional e, ao mesmo tempo, empregar técnicas muito metódicas e sofisticadas para defender e propagar tal religião.
O homem começou como horno magus, mas da idade da magia passou para a idade da técnica. O homo magus das civilizações primitivas tornou-se um homo faber, artífice e artesão. Se admitirmos tal distinção histórica, os nossos mitos políticos modernos apresentam-se como coisa muito estranha e paradoxal. Porque o que neles encontramos é a combinação das duas atividades que parecem excluir-se uma à outra. O político moderno teve de combinar em si duas funções diferentes e mesmo incompatíveis. Tinha de ser ao mesmo tempo homo magus e homo faber. […] Nada fica ao acaso; cada passo é bem preparado e premeditado. É essa estranha combinação que constitui um dos mais extraordinários aspectos dos nossos mitos políticos. […] Mas aqui encontramos o mito feito de acordo com um plano.45
Aqui se evidencia a concepção de Cassirer sobre o comparecimento de duas formas simbólicas, mutuamente excludentes, no fenômeno político do totalitarismo moderno. A figura do herói como encarnação do mito, mantém e propaga ideais irracionais sobre a natureza e a legitimidade de seu poder, valendo-se de métodos extremamente sofisticados, visando sempre à eficiência na consecução dos resultados almejados, tudo perfeitamente calculado, premeditado e bem preparado.
Essa forma por meio da qual o mito opera no Estado totalitário moderno, corresponde à noção de técnica enquanto uma forma de vislumbrar as possibilidades do fazer mediante uma causalidade objetiva orientada apenas pela eficiência. É por meio do emprego da técnica que a função mítica do herói, mobilizadora do “desejo” enquanto impulso subjetivo, pode ser substituída pela “vontade” capaz de alcançar determinados fins.
Na técnica, o poder mágico do desejo é substituído pelo poder da vontade (Willen), cuja força se revela não apenas na capacidade de alcançar determinados fins, mas, sobretudo, no fato de manter seus fins à distância, de deixá-los repousar (Stehen-Lassen) em si mesmos como algo independente do desejo46
Ao impor uma distância de seu objeto, tomando-o como algo independente do desejo, a técnica nos abre a percepção das relações causais objetivas por meio das quais se pode dominar os objetos. Assim, ao mesmo tempo limita o eu e a vontade, que coloca o objeto como coisa autônoma (diferente do que faz o pensamento mítico e mágico), os fortalece, dando-lhes as condições para a dominação mediante um pensamento rigorosamente ordenado47.
É exatamente nesse sentido técnico que o herói opera politicamente. É por meio da técnica que “os mitos podem ser fabricados no mesmo sentido e de acordo com os mesmos métodos utilizados no fabrico de outras armas”48, como uma metralhadora ou uma bomba atômica.
⁴CASSIRER, E. O mito do Estado. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Códex, 2003, p. 13.
⁵Ibid., p. 321.
⁶Ibid., p. 256.
⁷Ibid., p. 229.
⁸Ibid., p. 232.
⁹CASSIRER, E. Filosofia das formas simbólicas. Trad. Marion Fleicher. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 39.
¹⁰CASSIRER. op. cit., p. 256.
¹¹Ibid., p. 331.
¹²Ibid., p. 331.
¹³Ibid., p. 330-331.
¹⁴Ibid., p. 96.
¹⁵Ibid., p. 103.
¹⁶Ibid., p. 104.
¹⁷Ibid., p. 107.
¹⁸Ibid., p. 109.
¹⁹Ibid., p. 132.
²⁰Ibid., p. 132.
²¹Ibid., p. 205-206.
²²Ibid., p. 206.
²³Ibid., p. 206.
²⁴Ibid., p. 208.
²⁵Ibid., p. 208.
²⁶Ibid., p. 208.
²⁷Ibid., p. 209.
²⁸Ibid., p. 213.
²⁹Ibid., p. 211.
³⁰Ibid., p. 217.
³¹Ibid., p. 216.
³²Ibid., p. 217.
³³Ibid., p. 217.
³⁴Ibid., p. 218.
³⁵Ibid., p. 230.
³⁶Ibid., p. 227.
³⁷Ibid., p. 227.
³⁸Ibid., p. 227.
³⁹Ibid., p. 321.
⁴⁰Ibid., p. 322.
⁴¹Ibid., p. 324.
⁴²Ibid., p. 325.
⁴³Ibid., p. 325.
⁴⁴Ibid., p. 326.
⁴⁵Ibid., p. 326.
⁴⁶FERREIRA, A. de O. Técnica, liberdade e vontade em Heidegger e Cassirer. Ekstasis: revista de hermenêutica e fenomenologia. V. 9, n. 2, 2020. p. 38.
⁴⁷Ibid., p. 40.
⁴⁸CASSIRER. op. cit., p. 327.
BIBLIOGRAFIA
CASSIRER, E. A Filosofia das formas simbólicas. Trad. Marion Fleicher. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
___________. O mito do Estado. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Códex, 2003;
FERREIRA, A. de O. Técnica, liberdade e vontade em Heidegger e Cassirer. Ekstasis: revista de hermenêutica e fenomenologia. V. 9, n. 2, 2020.
¹Advogado, licenciado em Filosofia (Claretiano), Especialista em Direito Constitucional e Direito Processual Civil (UNIDERP), Mestrando em Filosofia Política (UNIFESP), e Professor Universitário no Centro Universitário Santa Cecília – UNICEA
²Advogado, Mestre em Direito Político e Econômico (Mackenzie), Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito (USP); Professor Universitário no Centro Universitário Santa Cecília – UNICEA, Faculdade de Ciências Humanas do Estado de São Paulo – FACIC.
³Advogado, Diretor Administrativo na Câmara Municipal de Cachoeira Paulista e Professor Universitário na Faculdade de Ciências Humanas de São Paulo – FACIC e Centro Universitário Santa Cecília – UNICEA. Mestre em Direito Sociais, Especialista em Direito Processual Penal, Civil e Trabalhista.