SUELI CARNEIRO E UMA ANÁLISE DE “MULHERES EM MOVIMENTO”

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202504151347


Eunice Batista1


RESUMO 

Este texto é uma análise do artigo “Mulheres em movimento” da autora Sueli Carneiro, que aborda o processo histórico do movimento feminista no Brasil, o surgimento do movimento feminista negro e suas contribuições democráticas ao país. Dessa forma, este artigo propõe trazer, a partir de uma perspectiva interseccional, a realidade da mulher negra, analisando os dados trazidos pela Sueli Carneiro e comparando com a atualidade, numa diferença de 20 anos, e, diante disso, contribuindo ao debate, trazer as reflexões de Lélia Gonzalez. 

Palavras-chave: Sueli Carneiro; feminismo; feminismo negro; movimento social; democracia; racismo; sexismo.

RESUMEN 

Este texto es un análisis del artículo “Mujeres en movimiento” de la autora Sueli Carneiro, que aborda el proceso histórico del movimiento feminista en Brasil, el surgimiento del movimiento feminista negro y sus contribuciones democráticas al país. Así, este artículo se propone abordar, desde una perspectiva interseccional, la realidad de las mujeres negras, analizando los datos aportados por Sueli Carneiro y comparándolos con la actualidad, con una diferencia de 20 años, y, delante de ello, contribuir a el debate, aportando las reflexiones de Lélia González. 

Palabras-clave: Sueli Carneiro; feminismo; feminismo negro; movimiento social; democracia; racismo; sexismo 

ABSTRACT 

This text is an analysis of the article “Women in Movement” by the author Sueli Carneiro, which addresses the historical process of the feminist movement in Brazil, the emergence of the black feminist movement and its democratic contributions to the country. Thus, this article proposes to bring, from an intersectional perspective, the reality of black women, analyzing the data brought by Sueli Carneiro and comparing it with the present day, with a difference of 20 years, and, in view of this, contributing to the debate, bringing the reflections of Lélia Gonzalez. 

Keywords: Sueli Carneiro; feminism; black feminism; social movement; democracy; racism; sexism 

Introdução 

“Por isso, para as mulheres negras atingirem os mesmos níveis de desigualdades existentes entre homens e mulheres brancos significaria experimentar uma extraordinária mobilidade social, uma vez que os homens negros, na maioria dos indicadores sociais, encontram-se abaixo das mulheres brancas. (Carneiro, 2003, p. 119)” 

Este texto começa trazendo o relato de Teresa Cristina, cantora de samba, em um programa do Canal GNT (2023) para a chef de cozinha Paola Carosella. Nessa entrevista, a cantora menciona que o grande sonho de sua mãe era ser cantora, mas, ao se casar e ter os filhos, esse sonho foi posto de lado. Teresa Cristina tem em sua memória o canto da sua mãe enquanto realizava as tarefas domésticas, hábito que herdou desde pequena. Ela conta que conseguia decorar as letras de músicas bem novas, tanto que aprendeu inglês com música. 

Mesmo assim, o sonho dela era ser jogadora de vôlei, porque via excelentes referências no vôlei feminino, como Isabel Salgado, Ana Moser e Vera Mossa. Porém, Teresa Cristina percebeu que não conseguiria jogar o esporte com tamanha habilidade (porque só queria jogar se fosse pra virar profissional), foi então que desistiu desse sonho. 

Já a decisão para se tornar cantora não foi fácil. Ela conta que quando estudava com 6 anos de idade era muito estudiosa, como diz a gíria “CDF (cabeça de ferro)”. Contudo, sofria muito com o racismo na escola. Teresa Cristina fala que até então não havia se dado conta que era preta; eram as pessoas que a lembravam a todo momento. Por essa razão, ela se transforma de uma menina alegre, que gostava de imitar os artistas, para uma menina fechada, a cada ataque que sofria. Assim, ela cresceu e se tornou uma mulher extremamente tímida.  

Teresa Cristina se encontra no samba e tem o desafio de “jogar fora” a timidez. Ela narra o quanto esse processo foi muito doloroso. Para embarcar nesse novo sonho, começou a cantar de olho fechado. Se no meio da performance abrisse o olho, procurava no olhar das pessoas uma expressão de desaprovação. Tinha medo de ouvir “Você não é cantora, o que está fazendo aí?”. Ela enfrentou as críticas por cantar de olhos fechados e foi trabalhando dentro de si, descobrindo o seu próprio valor, até mesmo aprendendo a enxergar beleza em suas características físicas. Teresa Cristina menciona que deve tudo à música, pois foi através dela que descobriu a sua própria beleza. 

É um relato forte, mas importante para as pessoas brancas entenderem as consequências do racismo na vida de pessoas não-brancas. Por esse motivo, será feita a análise do texto da Sueli Carneiro, abordando o percurso do movimento feminista no Brasil e a sua importância para a redemocratização do país, no entanto, ressaltando os desafios do feminismo negro em abordar a própria agenda dentro de um movimento com bases eurocêntricas. Dessa maneira, faz-se uma análise do mito da democracia racial (conceito de Lélia Gonzalez), e um paralelo da agenda apresentada pela Sueli Carneiro com a realidade do Brasil 20 anos depois da escrita do texto. 

1. Movimentos feministas por Sueli Carneiro 

Sueli Carneiro é doutora em Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Fundou a primeira organização negra e feminista independente de São Paulo – Geledés – Instituto da Mulher Negra. Como teórica da questão da mulher negra, criou o único programa brasileiro de atendimento em saúde física e mental para mulheres negras. Uma autora importante sobre racismo e sexismo, que muitos só se aproximam quando chegam à academia, um exemplo é o artigo “Mulheres em movimento”. Um texto importante para entender o histórico da luta feminista no país e também do feminismo negro. 

“O movimento de mulheres do Brasil é um dos mais respeitados do mundo e referência fundamental em certos temas do interesse das mulheres no plano internacional.” (Carneiro, 2003, p. 117). O movimento feminista brasileiro era um dos movimentos sociais com mais força na década de 80 do século passado. Essa potência foi demonstrada quando enviaram a Carta das Mulheres Brasileiras ao presidente da Assembleia, deputado Ulysses Guimarães em março de 1987. Oitenta por cento das propostas apresentadas foram incluídas na Constituição Federal de 1988 (CF88), fato que mudou juridicamente o status da mulher no Brasil. O artigo 5º, no inciso I, da CF88 traz a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres. Também destituiu o pátrio poder1, trazendo igualdade em direitos e deveres conjugais (artigo 226 – § 5º). 

O movimento feminista foi importante trazendo inovações inclusive para o campo de políticas públicas, como a concepção dos Conselhos da Condição Feminina – órgãos para desenhar políticas públicas de promoção da igualdade de gênero e combate à discriminação contra as mulheres. Outra contribuição do movimento foi no combate à violência doméstica e sexual, o que estabeleceu novos paradigmas sobre o que é público e privado. Em 1985, foram 2019) 

criadas Deams – Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher. As Deams, apesar de inúmeros problemas, é um espaço público que propaga os direitos das mulheres. 

Retomando a perspectiva de público e privado, Rago (1985) trata que o processo de colonização da mulher, principalmente das classes mais pobres, vem desde a época do surgimento das fábricas e na estratégia de dominação sobre as classes operárias. Gomes (1999) menciona que a normatização do trabalho e do trabalhador era a forma de controlar e disciplinar a mão-de-obra para o trabalho (essencialmente com a legislação trabalhista de 1930). 

“O trabalho precisava ser visto como um ato de criação fundamentalmente humano; um ato de dignificação e espiritualização do homem, pelo qual ele se integrava à sociedade em que vivia. Uma política de organização científica do trabalho devia encontrar o equilíbrio entre os esforços de mecanização da produção (essenciais à industrialização dos países) e a proteção dos valores humanos e cristãos do trabalhador brasileiro.” (Gomes, 1999, p. 59)  

Rago (1985) traz que esse controle é a forma de “eliminação da diferença, de normalização do Outro, que se coloca como motivação primeira das investidas do poder sobre a classe operária fora das fábricas” (p. 61). A superação da luta de classes passa por um modelo de organização familiar, moradia popular e higienização dos papéis sociais dentro das casas. O papel feminino se condicionava ao de esposa, dona de casa e mãe; Lorde (2019) diz que, num sistema patriarcal, o único poder social que a mulher possui é o da maternidade. Como menciona Rago (1985), o trabalhador homem precisa encontrar em sua casa o aconchego, para que na manhã seguinte produza como bom patriota. A mulher que ousava abandonar a vida doméstica tinha em seus ombros o estigma do pecado e da culpa do abandono do lar, dos seus filhos carentes e do seu marido exausto do trabalho para trazer sustento à família, que foram deixados para seguir uma vida promíscua.  

A mulher era pintada como carne fraca e por isso precisa ser “protegida” e mantida dentro da casa. Sua educação não lhe dava horizontes de profissões, porque era voltada exclusivamente à carreira doméstica. Ao homem destinava-se o espaço público, o trabalho e a rua, pois era o “sexo forte”, capaz de aguentar as duras horas de trabalho. A ele pertencia o papel de pai, marido e líder, provedor do lar e orientador de toda a família, incluindo a esposa.  

Por essa razão, que o movimento feminista foi e é tão importante. Desde o século 19, com o surgimento das primeiras fábricas no país até o final do século 20, na promulgação da CF88, que essa imagem tem sido largamente difundida cultural e moralmente. Antes permeada somente entre as classes dominantes, porém, a partir de então, esse modelo familiar é propagado em todas as esferas – a divisão sexual do trabalho – o trabalho remunerado e o não-remunerado. 

Voltando ao texto de Carneiro (2003), o movimento feminista trouxe outras contribuições como os direitos sexuais e reprodutivos (Lei nº 9263/96 – Planejamento Familiar), a autonomia da mulher sobre o seu próprio corpo, a sua sexualidade e a decisão se quer ou não (e quando) ter filhos. Também tem a Lei nº 9100/95 de 20% cotas para candidaturas de mulheres nas eleições, hoje em dia o percentual mínimo é de 30% e máximo de 70%, combatendo a desigualdade de gênero ao acesso ao poder e representatividade. 

A luta feminista ainda é árdua no combate à desigualdade no mercado de trabalho, seja pela ocupação de cargos de liderança ou pela igualdade salarial. Em 2023, foi sancionada a Lei nº 14611/23 sobre igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens. As empresas precisam ter transparência sobre os salários e os critérios de remuneração, com punições de multas e indenizações discriminatórias não só por gênero, mas também por raça, etnia, origem ou idade. 

O feminismo brasileiro, desde o início, identifica-se com as lutas populares e com as lutas pela democratização do país. As feministas lutaram por creches e descriminalização do aborto, que impactam diretamente às mulheres de baixa renda, entre outras tantas lutas. Porém, é um movimento que fica preso na visão eurocêntrica e universalizante das mulheres. Dessa forma, outros atravessamentos opressores além do sexismo eram silenciados ou invisibilizados. 

2. Feminismo negro: Lélia Gonzales 

“Se não é necessário que a teoria feminista americana lide com as diferenças entre nós, nem com as consequências dessas diferenças nas nossas opressões, então como vocês lidam com o fato de que as mulheres que limpam suas casas e cuidam dos seus filhos enquanto vocês vão a conferências sobre teoria feminista são, em sua maioria, mulheres pobres e de cor? Qual é a teoria por trás do feminismo racista?” (Lorde, 2019, p. 140)” 

Carneiro (2003), deste modo, começa a traçar o surgimento do movimento feminista negro no país. O feminismo até então era ditado pelas pautas das mulheres brancas, ignorando toda o legado que a escravidão deixou no Brasil. A insuficiência teórica e política não comportava as expressões do feminismo em sociedades multirraciais e pluriculturais – Gonzalez (2020, p. 134) já afirmava que “a consciência da opressão ocorre antes de tudo por causa da raça”. A nova condição de sujeitos políticos proporcionada pela luta feminista assume assim novos lugares. Foi então que surge uma nova agenda específica, contemplando a condição de mulher, negra e, geralmente, pobre.  

A reflexão importante neste ponto é que, quando a questão racial entra na equação, desenha-se a subalternização de gêneros. Se fosse possível criar uma ilustração para isso, arriscaria a seguinte imagem. 

Figura 1 – Subalternização dos gêneros

Adaptado de Carneiro 2003, p. 119 

Carneiro (2003) trata que a luta da mulher negra é simultaneamente contra a desigualdade de gênero e intragênero – o lugar que sempre lhe é imposto é o de mulata, doméstica e mãe preta. Por isso, Gonzalez (1984) explora a ideia do mito da democracia racial tão presente (até 2023) na sociedade brasileira – criou-se no imaginário social a imagem de que todo mundo é brasileiro acima de tudo. “Preto aqui é bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça, ele sobe na vida como qualquer um. Conheço um que é médico; educadíssimo, culto, elegante e com umas feições tão finas… Nem parece preto” (p. 226).  

Para ficar claro sobre o conceito do mito da democracia racial, a autora apresenta um exemplo: o carnaval. Nessa festa, a mulher negra é exaltada como a mulata deusa do samba (a rainha); ela perde o anonimato e se transforma na “Cinderela do asfalto”; desejada pelos príncipes estrangeiros e loiros. Seu corpo é medido por flashes e fogos de artifício e a Cinderela se esforça ao máximo para sair nas mídias – o sonho da Marquês de Sapucaí. Essa cena oculta a violência simbólica, pois, ao final dos dias de festa, ela volta ao anonimato e para o papel da empregada doméstica – a imagem da mulata ou da doméstica depende da situação que é vista. 

O mito da democracia racial é razão pela dificuldade do feminismo branco em enxergar as lutas e demandas particulares das mulheres não-brancas. Porém, a multiplicidade de concepções e práticas políticas, principalmente quando levada em conta os grupos subalternizados, empregou no feminismo um processo dialético entre os inúmeros sujeitos políticos. Lorde (2019) aborda a importância de transformar o silêncio em linguagem de ação (p. 49 e 51):  

“Passei a acreditar, com uma convicção cada vez maior, que o que me é mais importante deve ser dito, verbalizado e compartilhado, mesmo que eu corra o risco de ser magoada ou incompreendida. […] E é claro que tenho medo, porque a transformação do silêncio em linguagem e ação é um ato individual, algo que parece estar sempre carregado de perigo. […] Neste país, onde diferenças raciais criam uma constante, ainda que velada, distorções de visões, as mulheres negras, por um lado, sempre foram altamente visíveis, assim como, por outro lado, foram invisibilizadas pela despersonalização do racismo.” 

Mesmo que a autora trate da sociedade norte-americana, a mesma visão distorcida (mito da democracia racial) ainda é presente na sociedade brasileira. Por essa razão, as mulheres negras exigiram que se colocasse na agenda a pauta racial no movimento feminista, assim como exigiram a pauta de gênero no movimento negro. Carneiro (2003) trata que esse engajamento acarretou em fóruns específicos organizados por mulheres negras no país, incluindo temas importantes para agenda feminista sobre o efeito do racismo.  

3. Agenda feminista sob ótica racial 

Não podemos esquecer do relato da cantora Teresa Cristina apresentado na introdução deste texto. Pois são reflexo do racismo que estrutura a sociedade. Tendo esse exemplo, são em 4 temas fundamentais que o feminismo negro, mencionados por Carneiro (2003), lutam: mercado de trabalho, violência, saúde e meios de comunicação. Serão abordadas a seguir as questões de cada tema e juntamente uma reflexão atualizada sobre o cada um, visto que há uma diferença de 20 anos entre este texto e a publicação do artigo da Sueli Carneiro. 

3.1 Mercado de trabalho 

Mesmo com uma luta feminista aguerrida neste tema, os obstáculos para cargos, funções e salários equânimes ainda são praticamente os mesmos. A Lei nº 14611/23 sobre igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens ainda é muito recente para verificar seus efeitos no mercado de trabalho. Além do mais, uma pesquisa para quem sabe daqui a 20 anos: as mulheres negras serão tão beneficiadas quanto às brancas?  

A síntese de indicadores sociais publicada em 2023 pelo IBGE apresenta que o rendimento médio de um homem branco em 2022 foi de R$ 3.793,00; mulher branca, R$ 2.730,00; homem preto, R$ 2.230,00; e mulher preta ou parda R$ 1.781,00. Nesse relatório, não apresenta especificamente por gênero e raça as atividades econômicas mais exercidas como ocupação. Porém, consegue-se ter uma dimensão, levando em conta 2 pontos: 

I. Gênero: há 3 grupos em que elas são a maioria: Administração pública, educação, saúde e serviços sociais; Serviços domésticos; e Alojamento e alimentação. 

II. Raça: há 7 grupos em que as pessoas pretas e pardas são a maioria. E em todas essas como atividades operacionais. As diferenças mais acentuadas (com a maioria de negros) são em agropecuária, construção e serviços domésticos. As únicas atividades econômicas nas quais os negros não são a maioria são “informação, financeira e outras atividades profissionais” e “administração pública, educação, saúde e serviços sociais”. 

Como já é histórico, cabe às mulheres negras os serviços domésticos. Carneiro (2003) trata que mesmo com maior escolaridade, a melhoria salarial e a melhoria em posição funcional não são garantidas. É o peso do racismo nas estruturas da sociedade que permite que, em 2023, uma mulher negra em média ganhe R$2mil a menos que um homem branco. 

“o fato de 48% das mulheres pretas […] estarem no serviço doméstico é sinal de que a expansão do mercado de trabalho para essas mulheres não significou ganhos significativos. E quando esta barreira social é rompida, ou seja, quando as mulheres negras conseguem investir em educação numa tentativa de mobilidade social, elas se dirigem para empregos com menores rendimentos e menos reconhecidos no mercado de trabalho.” (Márcia Lima apud Carneiro, 2003, p. 121) 

3.2 Violência 

Ao tratar de violência doméstica, sexual e feminicídio, problemática discutida mais abertamente na sociedade, atinge a todas as raças e classes sociais – mais expressivamente em mulheres negras. No entanto, Carneiro (2003) aponta uma violência específica vivida por mulheres não-brancas – a violência da imagem e representação positiva – “representação positiva, limita as possibilidades de encontro no mercado afetivo, inibe ou compromete o pleno exercício da sexualidade pelo peso dos estigmas seculares, cerceia o acesso ao trabalho, arrefece as aspirações e rebaixa a autoestima” (ibden, p. 122). 

Gonzalez (1984) diz que a ideologia do branqueamento segue a lógica da dominação pela internalização e a reprodução de valores brancos ocidentais – eurocentrismo – Carneiro (2003) chama de efeitos no imaginário e nas relações sociais da hegemonia da “branquitude”. Não à toa que uma notícia teve larga repercussão em 2023 (Época Negócios) foi sobre uma clone virtual, criada por inteligência artificial e que atende a fãs para satisfação sexual através do pagamento do valor de R$5/ minuto. Esse clone tem a imagem de uma mulher padrão: branca, magra, cabelos ruivos, olhos verdes, nariz fino e seios fartos. 

3.3 Saúde 

Dentro desse tema, os debates que Carneiro (2003) traz são sobre os estudos e as reflexões de Dr.ª Fátima Oliveira (apud Carneiro, 2003, p, 123), uma médica negra referência na luta por políticas de saúde para a população negra. A médica menciona que para o atendimento da população, o quesito cor no sistema de classificação de identificação racial acaba tornando-se um problema entre os profissionais da saúde e formuladores de políticas de saúde. Muitas acusações surgem de posturas racistas, já outros profissionais negligenciam o preenchimento desse dado. O que se considera, de maneira geral, é que essa informação não é um “dado epistemológico essencial”. 

Outra questão dramática é a esterilização de mulheres negras principalmente de baixa renda. A falta de outros métodos contraceptivos reversíveis nos serviços públicos culminou, em 1991, na lei que regulou o uso da esterilização. Uma questão tratada no texto é a anemia falciforme, uma anemia hereditária e constitui a doença genética mais comum da população negra – atinge 10% da população brasileira entre negros e descendentes (atualmente 8%). Apesar da conquista do estabelecimento do Programa de Atenção à Anemia Falciforme – PAF, somente o Estado de Minas Gerais implementou esse programa integralmente. Atualmente, não há dados estatísticos sobre esse programa. 

Sobre o tema, o último ponto levantado foi a preocupação com os novos estudos em biociências, em particular de genética, e a utilização distorcida de teorias racistas.  

“Na atualidade, bioeticistas e fóruns de bioética, majoritariamente masculinos e brancos, são os setores da sociedade que adquiriram legitimidade, no mundo, perante legisladores e governos. […] O que é preocupante, pois a bioética aborda assuntos que dizem respeito à toda a sociedade, tais como: os temas dos direitos reprodutivos (concepção, contracepção, esterilização, aborto. Infertilidade e NTRc – Novas Tecnologias Reprodutivas conceptivas), saúde pública, sexualidade, doentes terminais, eutanásia e manipulação genética” (ibden, p. 124) 

3.4 Meios de comunicação 

Os meios de comunicação são importantes espaços que interferem na naturalização do racismo e sexismo. Carneiro (2003) trata que, em larga escala, sistematiza estereótipos e estigmas. Uma pesquisa, realizada pela agência Heads Propaganda e ONU mulheres (Agência Brasil, 2020) em 2020, apontou que das 3.133 propagandas de TV analisadas, das que homens eram protagonistas, 84% eram brancos contra 7% de negros; para mulheres, 74% brancas ocuparam os papéis contra 22% de negras e 4% de outras etnias. Nessa mesma pesquisa, constatou a ausência de pessoas negras em anúncios envolvendo idosos ou veiculação de programas infantis. 

O feminismo negro tem lutado grandemente para mudar a falta de representação no poder de veiculação das mídias, que perpetua estereótipos, como o de empregada doméstica para mulheres negras ou criminoso para homens negros. Carneiro (2003) trata que é importante ter em mente que a nova ordem mundial requer novas estratégias. A comunicação é por si uma conexão de empoderamento, fundamental para a mobilização e a representação positiva. 

Considerações Finais 

Uma das estratégias de cooptação das camadas mais pobres é a financeirização. O que se viu nas últimas décadas, nas classes mais vulneráveis, foi o uso deliberado de crédito bancário. Com a implementação da política econômica de austeridade fiscal, pós golpe em 2016, as consequências desastrosas da estratégia foi a mudança do perfil das dívidas; não mais para adquirir bens duráveis, mas para o pagamento de contas básicas, incluindo comida. É um padrão de funcionamento das economias em que se predomina a acumulação de riquezas através de canais financeiros e não através das atividades diretamente produtivas, como a indústria, a agricultura e o comércio (Teixeira, et.al, 2022). 

A política econômica neoliberal e a cultura conservadora do Brasil dificultam o progresso da luta e, ainda, acarretam na ampliação da desigualdade, que atinge, principalmente, as mulheres negras e indígenas. Por esse motivo, Carneiro (2003) trata que o feminismo negro ajudou no reposicionamento político do movimento feminista. Em 2002, a Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras apresenta uma plataforma de posições políticas, enaltecendo a diversidade na natureza feminina.  

  • reconhecer a autonomia e a autodeterminação dos movimentos sociais de mulheres; 
  • comprometer-se com a crítica ao modelo neoliberal injusto, predatório e insustentável do ponto de vista econômico, social, ambiental e ético; 
  • reconhecer os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais das mulheres; 
  • comprometer-se com a defesa dos princípios de igualdade e justiça econômica e social; 
  • reconhecer o direito universal à educação, saúde e previdência; 
  • comprometer-se com a luta pelo direito à terra e à moradia; 
  • comprometer-se com a luta anti-racista e a defesa dos princípios de equidade racial-étnica; 
  • comprometer-se com a luta contra todas as formas de discriminação de gênero, e com o combate a violência, maus-tratos, assédio e exploração de mulheres e meninas; 
  • comprometer-se com a luta contra a discriminação a lésbicas e gays; 
  • comprometer-se com a luta pela assistência integral à saúde das mulheres e pela defesa dos direitos sexuais e reprodutivos; 
  • reconhecer o direito das mulheres de ter ou não ter filhos com acesso de qualidade à concepção e/ou contracepção; 
  • reconhecer o direito de livre exercício sexual de travestis e transgêneros; 
  • reconhecer a discriminalização do aborto como um direito de cidadania e uma questão de saúde pública e reconhecer que cada pessoa tem direito as diversas modalidades de família e apoiar as iniciativas de parceria civil registrada. (ibden, p. 126 e 127) 

A luta feminista é para todos e todas! Como bem tratado no texto de Sueli Carneiro, o patriarcado e o racismo vitimizam todas as pessoas que não sejam homens e brancos, principalmente as mulheres não-brancas. Para os novos tempos, espera-se que daqui a 20 anos o cenário seja diferente e as estatísticas sejam diferentes. Contudo, não há uma vida de bem-estar e equidade no sistema capitalista. Por isso, a defesa dos direitos humanos está intimamente vinculada ao combate de qualquer tipo de exploração sistêmica.  

Dessa forma, este texto termina com a letra de uma canção de Elza Soares. Que seja o canto da dor e da luta de toda a pessoa que sonha por uma sociedade igualitária. 

Dentro de Cada Um 

Elza Soares 

A mulher de dentro de cada um
Não quer mais silêncio 
A mulher de dentro de mim
Cansou de pretexto 
A mulher de dentro de casa
Fugiu do seu texto 

E vai sair 
De dentro de cada um 
A mulher vai sair 

E vai sair 
De dentro de quem for 
A mulher é você 

De dentro da cara a tapa
De quem já levou porrada na vida 
De dentro da mala do cara
Que te esquartejou, te encheu de ferida 

Daquela menina acuada
Que tanto sofreu e morreu sem guarida 
Daquele menino magoado
Que não alcançou a porta da saída 

E vai sair 
De dentro de cada um 
A mulher vai sair 
E vai sair 
De dentro de quem for 
A mulher é você 

A mulher de dentro de cada um não quer mais incenso 
A mulher de dentro de mim já cansou desse tempo 
A mulher de dentro da jaula prendeu seu carrasco 

E vai sair 
De dentro de cada um 
A mulher vai sair 
E vai sair 
De dentro de quem for 
A mulher é você 

De dentro do carro do moço
Que te maltratou e pensou que era fácil 
De dentro da ala das loucas
Vendendo saúde a troco de nada 

Daquela mocinha suada que vendeu o corpo pra ter outra chance 
Daquele mocinho matado
Jogado num canto por ser diferente 

E vai sair 
De dentro de cada um 
A mulher vai sair 

E vai sair 
De dentro de quem for 
A mulher é você 
Sou eu

 A mulher sou eu 
Sou eu
A mulher sou eu 
Sou eu 
A mulher sou eu 

Referências 

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TURNIANI. Renata. Estrela do OnlyFans cria clone virtual com inteligência artificial para “satisfazer as necessidades dos fãs”. Época Negócios. 25 mai. 2023. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/tecnologia/noticia/2023/05/estrela-do-onlyfans-cria-clonevirtual-para-satisfazer-as-necessidades-dos-fas.ghtml. Acessado em 24 jan. 2024.


1Mestranda do programa de pós-graduação em Política Social da UFF eubatista@id.uff.br