SITUATION OF THE BRAZILIAN PRISON SYSTEM: CAUSES AND POSSIBLE SOLUTIONS THROUGH CRIMINAL PROCEDURE LAW
REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.12599538
Gutemberg Morais Serrano1
Resumo
Devido à instabilidade da atual situação carcerária brasileira, com 89% dos detentos vivendo em unidades superlotadas, o presente artigo nota a extrema urgência em rever a conjuntura e a interpretação conforme a constituição das normas reguladoras concernente ao sistema prisional e o meio no qual os detentos estão inseridos. Como consequência, a precariedade da situação é constatada com o descaso do Poder Judiciário, resultando no aumento no número de prisões efetuadas, na carência de medidas para reintegrar o preso à sociedade, e, principalmente, na situação degradante em que são submetidos nas unidades superlotadas. Dessa forma, com o fito de obter uma melhoria nos ambientes prisionais, respeitando princípios como o da Dignidade Humana, é de fundamental importância a ação de um setor público humanizado, juntamente à população socialmente consciente, para transformar as cadeias brasileiras em locais de ser penalizado visando a reintegração social e o respeito aos direitos e garantias fundamentais do cidadão.
Palavras-chave: Sistema Penitenciário; Superlotação; Estado de coisas Inconstitucional; Processo Penal; Prisão Preventiva.
1 INTRODUÇÃO
A pretensão deste artigo é discutir criticamente e racionalmente sobre o aspecto de vida das pessoas privadas de liberdade, demonstrando as características dos presídios brasileiros, as causas que levaram a atual situação caótica deste meio, a carência nas medidas de ressocialização para estes indivíduos e, por fim, demonstrar soluções que podem contribuir para amenizar tal flagelo. Nesse contexto, também serão destacados os direitos e garantias fundamentais do preso, relacionadas com a Lei de Execução Penal (LEP) e garantidos pela Constituição Federal Brasileira, principalmente no tocante ao artigo 5°. Dessa forma, pretende-se deixar claro o descaso da aplicabilidade de normas e princípios que “norteiam” o ordenamento jurídico brasileiro, trazendo à tona, também, o déficit enfrentado pela quantidade de vagas disponíveis nas unidades carcerárias, aliado à constante violação aos direitos de cada recluso, encontrado em situação degradante.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA OU REVISÃO DA LITERATURA
Inicialmente, é de fundamental importância compreender as características dos estabelecimentos prisionais brasileiros – como a quantidade de detentos, os tipos de estabelecimentos penais, as ocupações, o perfil da população prisional e a gestão de serviços penais e garantias de direitos – para assim podermos tecer comentários sobre as causas, consequências e soluções do caos em que os detentos estão mergulhados.
Nesse sentido, tomando como base o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, de 2016, observa-se que a população prisional cresceu mais de 168%, chegando a totalizar 726.712 presos, dos quais 689.510 estão distribuídos em sistemas penitenciários, os demais se encontram em áreas como delegacias e prisões federais, para uma quantidade de 368.049 vagas disponíveis, ou seja, um déficit de mais de 350.000 vagas, consequentemente deixando um número absurdo de pessoas em situação desumana de superlotação, uma grave violação ao Artigo 85° da LEP, o qual dispõe que o estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com sua estrutura e finalidade, quando na verdade todos os estados da Federação apresentam uma população prisional extremamente maior do que o número de vagas disponíveis. Adiante, deixaremos a discussão sobre a análise da natureza das prisões e dos tipos de regime para a página das causas, por se tratar de um dos grandes motivos que levam à superlotação carcerária. Somado a isso, percebe-se que 55% da população prisional é formada por jovens de 18 a 29 anos de idade, sem falar no fato que 64% das pessoas no sistema prisional são negras, um claro contraponto ao parágrafo único do Artigo 3° da LEP, o qual estabeleceu a não distinção de naturezas, dentre elas a racial, na aplicação das sentenças e das leis correlatas. Não satisfeitos, ainda pudemos constatar que mais de 50% das pessoas privadas de liberdade não possuem sequer ensino fundamental completo, violando completamente direitos e garantias fundamentais e constitucionais.
Ademais, apesar do percentual de pessoas presas que possuem atendimento em módulo de saúde ter crescido, chegando a maioria dos Estados Brasileiros a obter mais de 50% da população prisional atendida – garantindo em partes direitos fundamentais como o acesso à saúde e ao cuidado – na contramão, apenas três Estados conseguiram dispor ao menos 20% das pessoas presas para realizar atividades educacionais, dentre eles: Bahia (20%), Espírito Santo (23%) e Tocantins (25%), o que implica em uma extensa fragmentação ao Inciso IV do Artigo 11° da LEP e um denso descaso a toda Seção V (assistência educacional) da mesma lei, gerando enormes consequências para os próprios presos e para a população de forma geral. Por fim, também violando o Artigo 28 da LEP, o qual dispõe sobre a finalidade educativa e produtiva para o trabalho do preso, apenas um Estado Brasileiro (Minas Gerais) obteve ao menos 30% dos presos trabalhando, seja de forma interna ou externa.
Portanto, diante tão graves dados apresentados, fica mais do que comprovado que a característica principal dos presídios ao redor do Brasil é serem marcados por um lamentável Estado de Coisas Inconstitucional, denegrindo princípios como a Dignidade Humana, à medida que os aparatos de saúde, educação, trabalho e justiça gratuita são amplamente mal efetivados na prática, deixando os presos à mercê da ociosidade, de condições desumanas, da coação do crime e tantas outras mazelas que acabam transformando a punição em penas severas cruéis, as quais apesar de serem expressamente proibidas pelo Artigo 5°. Inciso XLVII, da Constituição Federal de 1988, estão presentes em todos os Estados Brasileiros, ferindo também o Inciso XLIX, do mesmo Artigo, que dispõe sobre a garantia do respeito à integridade física e moral do cidadão privado de liberdade.
3 METODOLOGIA
Este estudo utilizará uma pesquisa bibliográfica qualitativa com abordagem investigativa e expositiva, focando especialmente em fontes eletrônicas, como livros, artigos, notícias e revistas. Além disso, serão considerados os princípios fundamentos legais do Direito Processual Penal, incluindo a Constituição Federal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal. Também serão analisadas as principais jurisprudências sobre o tema. A pesquisa iniciou com uma descrição geral da situação dos presídios brasileiros. Em seguida, serão identificadas possíveis causas dessa situação. No final, serão propostas soluções para o problema. Tudo isso por meio de um diálogo entre as fontes mencionadas, fazendo uso dos métodos dedutivos e dialéticos.
4 RESULTADOS E DISCUSSÕES OU ANÁLISE DOS DADOS
4.1 Causas da atuação situação
Após analisarmos o grave Estado de Coisas Inconstitucional em que vive a população carcerária no Brasil, é de fundamental importância compreender quais as causas que levaram à tal situação caótica. Em síntese, podem-se apontar quatro mazelas que colaboram efetivamente para o aumento exponencial, nos últimos 10 anos, da população privada de liberdade, são elas: a atual Lei de Drogas; o uso de regime fechado mesmo quando há possibilidade em aplicar penas alternativas; o excesso no número de presos provisórios e, por fim, a não ressocialização dos detentos, que acabam voltando a cometer novos crimes.
4.1.1 A atual Lei de Drogas
Nesse contexto, ao analisar individualmente cada questão, pode-se perceber que a Lei Nº 11.343, de 23 de Agosto de 2006, a chamada Lei de Drogas, é apenas uma prova viva que a política estatal de guerra às drogas não tem funcionado, uma vez que aproximadamente um a cada três presos está privado de liberdade por tráfico e/ou consumo de entorpecentes, afinal, na maioria das vezes, esta Lei espelha nada mais que a criminalização à saúde dos usuários, que acabam impossibilitados de buscar tratamento toxicológico ou de receber assistência social, pois o porte para consumo é considerado crime, o que resultou, por exemplo, em um aumento de 513% de encarceramento da população feminina por crimes relacionados a drogas. Em suma, a Lei de Drogas é responsável por um denso encarceramento em massa, uma política totalmente ultrapassada e seletiva que encarcera predominantemente jovens usuários e pequenos traficantes, os quais nem sempre representam um perigo para a sociedade e, comprovadamente, respondem melhor a penas alternativas.
4.1.2 Uso do regime fechado quando há possibilidade de penas alternativas e o excesso de presos provisórios
Com isso, entramos no segundo motivo que alimenta a crise na superpopulação carcerária: a aplicação do regime fechado mesmo quando há possibilidade em aplicar penas alternativas. Antes de tudo, é crucial fundamentar que o uso do regime fechado se justifica apenas para casos de condenações severas em que o indivíduo deve ser retirado do convívio social em razão do delito cometido, o que – na maioria das vezes – representa uma contradição aos crimes relacionados a drogas, muitas vezes praticados por pessoas que não apresentam perigo para a sociedade, descaracterizando o cumprimento em regime fechado. Prova disso foram os números divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em que a cada dez pessoas condenadas por tribunais estaduais em 2015, apenas três receberam penas alternativas, enquanto sete acabam privadas de liberdade. Ou seja, observa-se que os juízes, de forma geral, resistem em utilizar tais medidas alternativas para crimes cometidos sem violência, como os casos de usuários, pequenos traficantes e os famosos aviõezinhos ou mulas, uma total violação ao Inciso III do Artigo 44 do Código Penal Brasileiro, o qual dispõe que as penas alternativas substituirão as penas privativas de liberdade quando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicaram que a substituição seja suficiente. Característica essa perfeitamente relacionável com os casos supracitados e que poderia contribuir para a redução da população prisional.
Nesse sentido, há duas causas principais do fracasso da política pública de redução do encarceramento cautelar: (i) controle deficiente, por parte do STJ e do STF, da motivação das decisões que decretam diretamente a prisão preventiva sem examinar a forma específica o não cabimento das outras medidas cautelares alternativas; e (ii) falta de confrontação das medidas cautelares com o resultado de uma possível condenação, com base numa eventual dosimetria da pena para se aferir a proporcionalidade da medida cautelar de prisão em face da futura provável sanção definitiva.
4.1.2.1 Controle deficiente da falta de fundamentação das decisões judiciais
A reforma legislativa realizada pela Lei 12.403/2011, com o objetivo de compatibilizar a tutela processual com os princípios constitucionais da presunção de inocência e da proporcionalidade, reforçou o caráter excepcional da prisão preventiva, condicionado seu cabimento à hipótese de “se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão” (CPP, art. 310, II). Assim, a partir do novo marco legal, o magistrado não tem autorização legal para, recebidos os autos de prisão em flagrante, de plano convertê-lo em prisão preventiva, mesmo diante do periculum libertatis e do fumus comissi delicti, se for cabível medida cautelar diversa da prisão e menos gravosa à liberdade de locomoção do indivíduo (Lopes Júnior, 2013).
Dito isso, a decisão que decretar a prisão preventiva deverá ser sempre motivada (CPP, art. 310, caput, e art. 315), inclusive, com a apresentação dos motivos que justificam o não cabimento de medida cautelar diversa e menos gravosa ao acusado, sob pena de nulidade. A jurisprudência do STF tem ajudado a esclarecer o reforço do ônus argumentativo imposto aos juízes como exigência para a decretação da prisão preventiva a partir do novo marco legal: “Em nosso sistema, notadamente a partir da Lei 12.403/2011, que deu nova redação ao art. 319 do Código de Processo Penal, o juiz não tem só o poder, mas o dever de substituir a prisão cautelar por outras medidas sempre que essas se revestirem de aptidão processual semelhante. Impõe-se ao julgador, assim, não perder de vista a proporcionalidade da medida cautelar a ser aplicada no caso, levando em conta, conforme reiteradamente enfatizado pela jurisprudência desta Corte, que a prisão preventiva é medida extrema que somente se legitima quando ineficazes todas as demais” (STF, HC 106446/2011).
Entretanto, o quadro mostrado pelas pesquisas de monitoramento da efetivação da Lei 12.403 indica a precariedade do juízo de controle de legalidade das prisões em flagrante, as quais são quase que automaticamente convertidas em preventivas, além do mais, sem a devida motivação.
O reforço da fundamentação da decisão judicial que decreta a prisão preventiva exigido pela Lei n. 12.403 – já não basta demonstrar a presença dos requisitos previstos no artigo 312 do CPP, sendo necessário demonstrar o não cabimento das medidas alternativas (art. 319 do CPP) – deveria trazer como consequência a nulidade de qualquer decisão judicial que imponha a prisão preventiva sem analisar de maneira específica a impossibilidade de aplicação das medias alternativas. Ocorre que o STJ tem entendido que o “juiz singular, ao decretar a prisão preventiva, não está obrigado a afastar expressamente o eventual cabimento de outra medida cautelar, pois, se decretou, fundamentadamente, a custódia preventiva do acusado, à luz de uma das hipóteses autorizadoras previstas no art. 312 do CPP, é porque entendeu, de forma implícita que não seria cabível qualquer das medidas cautelares alternativas à prisão” (STJ, HC 243.357/PE, 2012). Quando não assume claramente que entende dispensável a motivação específica para a não aplicação das medidas alternativas à prisão preventiva, precedentes do STJ e do STF simplesmente afirmam a legitimidade da decisão que a decretou com base no reconhecimento da presença dos requisitos autorizadores da prisão preventiva – periculum libertatis (art. 312 do CPP) e do fumus comiss delicti -, o que, de forma igual, implica afastar o ônus da exposição de motivos específica quando ao não cabimento das outras medidas cautelares (STF, HC 132213/2016 AgR).
Assim, a falta de demonstração da ineficácia das medidas alternativas previstas no artigo 319 do CPP nem sempre implica, na jurisprudência brasileira, no reconhecimento da nulidade da decisão que decreta a prisão preventiva. Se a ausência de demonstração do não cabimento das medidas alternativas não produzir como consequência a nulidade do decreto de prisão preventiva, é evidente que prevalecerá, como tem ocorrido até os dias atuais, a chamada “interpretação retrospectiva”, responsável pelo fracasso da política pública traçada pela Lei 12.403. Na lição de Barroso (2001): “Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo”.Com isso, o reconhecimento pelo STF e pelo STJ da nulidade das decisões que decretam prisões preventivas sem a correspondente demonstração da impossibilidade de aplicação das medidas alternativas, além de produzir o efeito específico em benefício de determinadas pessoas, pode “induzir uma maior adesão voluntária às normas jurídicas e, no caso, às normas que cuidam da promoção de direitos fundamentais” (Barcellos, 2015). Portanto, se é verdade que não se pode prever com precisão o modo como esses estímulos impactam o resultado da política pública, o fato é que esse “efeito da prevenção geral é relevante tanto mais quanto se observa uma tendência de objetivação da jurisprudência” (Barcellos, 2015). Daí porque o STF pode elevar drasticamente a adesão à política pública de redução do encarceramento provisório acolhendo o pedido deduzido na ADPF 347 para determinar “a todos os juízes e tribunais que, em cada caso de decretação ou manutenção de prisão provisória, motivem expressamente as razões que impossibilitam a aplicação das medidas cautelares alternativas à privação de liberdade, previstas no art. 319 do Código de Processo Penal” (PSOL, 2015).
4.1.2.2 Ausência de dosimetria hipotética da provável sanção definitiva
Visto isso, o excesso no número de presos provisórios também contribui demasiadamente para a extensão de tal problemática, visto que estima-se que os presos em segunda instância representam cerca de 40% da população carcerária no Brasil, de acordo com levantamentos feitos pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Dessa forma, além de ferir a presunção de inocência, presente no Artigo 5º da Constituição Federal, em consonância com a Ong Danos Permanentes, apenas em 18% dos casos o preso realmente cometeu um crime grave o suficiente que justifique sua permanência em regime fechado, pois como se sabe, a prisão preventiva só pode ser decretada nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos, conforme dispõe o Código de Processo Penal no seu art. 313, inciso I. Ocorre que, a partir de uma interpretação literal desse dispositivo, entende-se ser suficiente, para eventual decretação de prisão cautelar, se tratar a hipótese de crime doloso ao qual se comina, em abstrato, a pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos, o que acaba por favorecer a utilização indevida das prisões preventivas, tendo em vista que, não raro, as condenações tendem a se aproximar do mínimo legal e são fixadas de modo a serem cumpridas em regimes mais brandos (semiaberto ou aberto), ou, então, as sanções corporais são substituídas por penas alternativas – restritiva de direitos ou multa.
Com efeito, os dados supracitados mostram que grande parte dos presos provisórios não chega a sequer receber na sentença definitiva uma pena privativa de liberdade. Não são poucas as vezes que a prisão cautelar se apresenta até mais gravosa do que a própria condenação. Dito de outra forma, frequentemente a tutela processual (prisão cautelar) é mais danosa que seu resultado (pena definitiva).
Assim, uma maneira de garantir o cumprimento do princípio constitucional da proporcionalidade na utilização da medida cautelar de prisão é através da realização de uma dosimetria hipotética da provável pena a ser aplicada ao investigado/réu em caso de condenação, previamente à decretação da prisão preventiva, a fim de averiguar a real proporcionalidade da medida empregada para a tutela do processo em relação a uma provável condenação. Somente assim é que se poderá conter a utilização indevida das prisões preventivas, restringindo-as aos casos em que for provável a condenação à pena privativa de liberdade em regime fechado ou semiaberto (nos quais efetivamente o apenado é encarcerado). Essa proposta de impor como condição para a decretação da prisão preventiva a realização da dosimetria hipotética pode contribuir para excluir do triste quadro do encarceramento processual em massa os casos mais representativos de manutenção da prisão preventiva identificados pelo Instituto Sou da Paz e revelados no Manual do DEPEN (Ministério da Justiça, 2016): crimes não violentos; nos casos em que a lei prevê aplicação de fiança; para pessoas sem antecedentes criminais; e nas hipóteses de pequenos traficantes. Nesse sentido, Cruz (2009) observou que: em tema de intervenção estatal na liberdade humana, uma das mais fiéis balanças a pesar os interesses conflitantes é a regra-princípio da proporcionalidade, que, na linguagem da Exposição de Motivos, significa “que o remédio não pode ser mais agressivo que a enfermidade”. Em termos práticos, e entre outros efeitos decorrentes da observação desse princípio, cumpre ao aplicador da lei penal interpreta-la de forma a confrontar as medidas cautelares com o resultado de uma provável condenação, para se aferir eventual “excesso na dose”, com a aplicação de medida cautelar mais grave que a pena decorrente de eventual sentença penal condenatória. Acrescenta ainda Cruz que o recurso à prisão somente será legítimo quando outras medidas cautelares revelarem-se inadequadas ou insuficientes.
Todavia, a prática judicial consolidada não contempla esse tipo de dosimetria hipotética da futura sanção definitiva como condição para análise do cabimento da prisão preventiva, provavelmente porque os magistrados foram desincentivados a assim atuar em razão do consolidado entendimento jurisprudencial de que “é inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal”(Súmula STJ 438). Esse entendimento jurisprudencial foi sumulado pelo STJ, no ano anterior à alteração legislativa do regime legal das medidas cautelares processuais. Além disso, o STF já reconheceu, em sede de recurso extraordinário com repercussão geral, a inadmissibilidade do reconhecimento da prescrição com base em pena hipotética (STF, RE 602527/2009).
Não resta dúvidas que o referido entendimento jurisprudencial proibitivo do reconhecimento da prescrição em perspectiva inibe a realização de um exercício hipotético de proporcionalidade das medidas cautelares de prisão, o que contribui para a manutenção da cultura judicial de encarceramento provisório generalizado. Embora não se possa, segundo o marco jurisprudencial em vigor, utilizar a dosimetria hipotética para fins de reconhecimento da prescrição em perspectiva, nada impede que os juízes utilizem dessa técnica para evitar a decretação de prisão preventiva quando não for altamente provável a condenação do réu/investigado a uma pena privativa de liberdade.
Visto isso, provavelmente o déficit total em vagas e o caos na população carcerária poderiam ser solucionados somente resolvendo a problemática do grande número de presos provisórios no País.
4.1.3 Não ressocialização dos detentos
Por fim, a não ressocialização dos detentos, a qual se caracteriza igualmente como uma das formas de perpetuar o inchaço nas penitenciárias brasileiras, tratadas como ‘’Masmorras do Esquecimento’’ segundo Marcelo Freixo, Deputado Federal pelo PSOL-RJ. Juridicamente, de acordo com o Artigo 59 do Código Penal Brasileiro, devem-se estabelecer penas necessárias e suficientes para a reprovação e prevenção do crime, em consonância também com a Teoria Mista da pena, ou seja, o Estado pune, mas deve enxergar a pena como garantidora da prevenção e ressocialização do detento, tendo por objetivo fazer o agente refletir sobre o crime cometido, sopesando suas consequências e desistindo de cometer futuros delitos, ao mesmo tempo em que fornece educação, saúde, trabalho e formas de não ter que se submeter às mesmas condições ao sair da penitenciária. Entretanto, na prática, em função de um sistema penitenciário falido, estima-se que mais de 70% dos presos voltem a cometer crimes, sendo novamente detidos e contribuindo para perpetuação da superlotação carcerária.
4.2 Consequências da atual situação
Seguindo a linha de raciocínio, torna-se crucial sinalizar, por conseguinte, as consequências oriundas desta grave problemática, dentre elas podemos citar: a própria superlotação; o ambiente degradante das penitenciárias; o aumento no número de rebeliões; o aumento no número de reincidência e a coação pelo crime organizado.
A priori, sabe-se que a superlotação em si é uma grave consequência oriunda de políticas falhas que priorizam o encarceramento em massa em detrimento da ressocialização. Com isso, o Brasil se destaca em 3º lugar no ranking mundial de população carcerária, com mais de 720 mil presos para pouco mais de 350 mil vagas disponíveis. Com isso, o ambiente penitenciário, inevitavelmente torna-se degradante, visto que os presos se veem obrigados a permanecer em celas que, teoricamente, deveriam abrigar 10 pessoas, mas na prática abrigam 30 pessoas e até mais, contribuindo para a escassez em condições básicas de sobrevivência digna que possibilitem o mínimo de ressocialização ao detento. Em razão disso, presos dormem no chão de suas celas, nos banheiros, dividindo espaço com ratos e baratas, além de estarem sujeitos à contaminação por vários tipos de doenças.
É nesse sentido que o número de rebeliões aumenta, afinal, tornam-se – para os reclusos – o único meio de chamar a atenção do Poder Público e da sociedade de forma geral para a forma desumana com que vivem e são submetidos dentro das penitenciárias. Sem falar na coação do crime organizado, principalmente em relação aos presos provisórios, que muitas vezes são forçados a ingressar em facções criminosas, prática essa que consequentemente aumenta com o aumento exponencial no número de pessoas privadas de liberdade.
Por fim, a consequência mais óbvia a se tratar: o aumento no número de reincidência. Segundo dados levantados pelo DEPEN, ao redor do Brasil, cerca de sete em cada dez presos voltam a cometer crimes. Isso, em razão da falta de estrutura nos presídios, desde a estrutura precária de prover condições básicas até em fornecer meios educativos e laborais a fim de evitar a reincidência.
5 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante tão grave problemática apresentada, o presente artigo traz, nestas considerações finais, algumas medidas que podem ajudar a combater o atual caos na população carcerária. Dentre elas: reduzir o número de presos provisórios; promover a separação dos presos provisórios dos presos já condenados; maximizar o número de penas alternativas aplicadas; reformas estruturais nos presídios já existentes; aumentar as opções de estudo e trabalho dentro das penitenciárias e, por fim, promover ajustes na atual Lei de Drogas.
Inicialmente, como já visto, sabe-se que o número de presos provisórios corresponde a aproximadamente 40% da população carcerária brasileira, logo, é de fundamental importância que o Poder Judiciário estabeleça medidas com o intuito de minimizar esses números. Nesse sentido, o problema da utilização excessiva das prisões cautelares no Brasil só poderá ser solucionado se se levar em consideração fatores pela interpretação conforme à Constituição do inciso I, art. 313, do CPP, no sentido de se condicionar à prisão preventiva aos casos em que seja provável a condenação de privação de liberdade superior a quatro anos, a fim de se garantir a satisfação do princípio da proporcionalidade na aplicação das medidas cautelares. Além disso, é cada vez mais urgente a necessidade de que o STF determine a todos os juízes e tribunais que, em cada caso de decretação ou manutenção de prisão provisória, motivem expressamente as razões que impossibilitam a aplicação das medidas cautelares alternativas à privação de liberdade, previstas no art. 319 do Código de Processo Penal. Ademais, urge que os processos de presos em segunda instância tramitem mais rapidamente no fito de evitar prisões injustas, em função do alto número de presos provisórios que são julgados inocentes ou com regime fechado dispensável, além disso, as audiências de custódia também se caracterizam como uma fundamental ferramenta para combater esse alto número de presos provisórios, apesar de garantidas constitucionalmente, mesmo que pouco realizadas.
Afinal, como bem ressaltou Juarez Tavares (2015) em parecer que subsidiou a petição inicial da ADPF 347, “a magistratura brasileira não é simples coadjuvante no processo de sistemática violação aos direitos fundamentais dos presos, senão seu elemento propulsor à medida que contribui ativamente para um projeto de ampla encarcerização – acionando voluntariamente a ordem jurídica vigente para estender, por via interpretativa, a aplicação de penas privativas de liberdade e de prisões cautelares –, ao mesmo tempo em que consente, ainda que por omissão, a ofensa, por parte do Estado, aos direitos mais básicos dos presos”. O fracasso da política pública de redução do encarceramento provisório no Brasil deve-se, fundamentalmente, ao desprezo da magistratura brasileira pelo novo marco legislativo. Se é assim, cabe ao órgão de cúpula do Judiciário brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, garantir que, no Brasil, o juiz somente poderá decretar a medida mais radical – a prisão preventiva – quando não existirem outras medidas menos gravosas ao direito de liberdade do indiciado ou acusado por meio das quais seja possível, com igual eficácia, os mesmos fins colimados pela prisão cautelar, demonstrada, em qualquer hipótese, a probabilidade de aplicação ao investigado/acusado, em caso de condenação, de pena privativa de liberdade.
Somado a tais considerações, é de fundamental importância promover a real efetivação da Lei de Execução Penal, no tocante à separação dos presos provisórios dos presos já condenados, além de estabelecer a separação dos mesmos pela gravidade do delito cometido, no intuito de evitar a chamada “Escola do Crime” e consequente coação pelo crime organizado. Aliado a isso, é crucial promover a maximização no número de penas alternativas, pois, como já visto, o número de ressocialização cresce exponencialmente para os detentos que são submetidos a medidas como estas, visto que muitos acabam condenados em regime fechado mesmo por crimes de baixo potencial ofensivo.
Outrossim, é de suma necessidade a ação do Poder Público nas reformas estruturais nos presídios já existentes, com o intento de se fazer valer o Inciso XLIX do Artigo 5º da Constituição Federal, o qual garante ao cidadão preso o respeito à integridade física e moral, dispondo de ambientes minimamente dignos para o cumprimento da pena. Além de cumprir o dever de indenizar o preso encontrado em situação degradante, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal em 2017, pois, considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do Artigo 37 da Constituição Federal de 1988, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos, em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento.
Junto a esse aspecto, é preciso, também, que hajam aparatos educacionais e laborais que respondam às necessidades da pessoa privada de liberdade, e dentro de suas aptidões, a exemplo das atividades desenvolvidas pelas APAC’s (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado) no objetivo de potencializar o número de detentos reintegrados ao meio social.
Finalmente, é crucial estabelecer ajustes na Lei de Drogas, por meio de medidas que diferenciem os usuários e pequenos traficantes dos grandes comerciantes, somado a maior aplicação de penas alternativas, como o próprio tratamento toxicológico em detrimento do cumprimento da pena em regime fechado.
Dessa forma, medidas como as supracitadas correspondem – estatisticamente – a ótimas formas de promover a ressocialização dos condenados, como também de desafogar o sistema carcerário brasileiro, fornecendo meios educativos e laborais para o detento e obedecendo a princípios e normas básicas e fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, no intento de dignificar o ambiente prisional, para que, assim, a reintegração ao meio social seja possível, o déficit no número de vagas seja solucionado e os direitos de cada detento assegurado.
REFERÊNCIAS
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1Graduado em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pós-graduado em Direito Administrativo. Auditor Federal de Controle Externo no Tribunal de Contas da União (TCU). e-mail: gutemberg.serrano@gmail.com