REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7101467
Autores:
MESQUITA, Ana Carolina de Araújo,
LAGE, Vanessa Harb,
SOUZA, Fernando Paulino Gomes Soares.
RESUMO
O presente estudo tem por objetivo analisar, brevemente, a situação dos direitos humanos no sistema penitenciário brasileiro. Como objeto de análise, ao artigo tem como referencial o caso do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, seus desdobramentos e implicações jurídicas, como a criação de uma “nova espécie” de remição, chamada pela doutrina “remição por tortura”. Para isso, observou-se a existência de um Estado de Coisas Inconstitucional nas instituições de privação de liberdade no Brasil.
Palavras-chave: Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sistema Penitenciário Brasileiro. Estado de Coisas Inconstitucional. Remição por tortura. Caso do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho
ABSTRACT
This study aims to briefly analyze the situation of human rights in the Brazilian penitentiary system. As an object of analysis, the article has as a reference the case of the Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, its developments and legal implications, such as the creation of a “new kind” of redemption, called by the doctrine “remission by torture”. For this, it was observed the existence of an Unconstitutional State of Things in the institutions of deprivation of liberty in Brazil.
Keywords: Inter-American Human Rights System. Inter-American Commission on Human Rights. Inter-American Court of Human Rights. Brazilian Prison System. Unconstitutional State of Affairs. Remission by torture. Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho’s Case.
INTRODUÇÃO
O presente texto visa analisar o processo na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) de apuração de responsabilidade pela violação de direitos humanos das pessoas privadas de liberdade no caso do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho (IPPSC), no complexo penitenciário de Bangu, no estado do Rio de Janeiro.
Em primeiro lugar, será realizado um breve apanhado da situação de violação sistêmica de direitos humanos nas prisões brasileiras, que culminou no reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do Estado de Coisas Inconstitucional no sistema penitenciário, em medida cautelar na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347.
Para além da repercussão nacional do tema, é notório que a Execução Penal vem sofrendo um forte processo de internacionalização, já tendo sido o Brasil alvo de medidas cautelares e provisórias sobre o assunto, tanto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), quanto pela Corte IDH, tendo a última medida sido publicada em 22 de novembro de 2018.
Em segundo lugar, a análise recairá sobre as medidas impostas ao Brasil para enfrentamento do superencarceramento crítico, em especial aquela que proibiu o ingresso de novos presos no IPPSC e determinou o cômputo em dobro de cada dia de privação de liberdade cumprido no local. A ressalva feita aos casos de crimes contra a vida ou a integridade física e de crimes sexuais é propriamente abordada, com a devida crítica realizada pela doutrina.
Por fim, será observado o cenário atual de cumprimento da decisão, com a repercussão na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), além da visão da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro na prática.
A metodologia que fundamenta o presente artigo é a da pesquisa bibliográfica, em razão da natureza eminentemente teórica do assunto. Serão utilizados como referência livros, leis, artigos e posicionamentos jurisprudenciais, a fim de ilustrar as conclusões alcançadas.
SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO
De acordo com as 100 regras de Brasília sobre o acesso à justiça das pessoas em situação de vulnerabilidade, consideram-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.
Poderão constituir causas de vulnerabilidade, entre outras, as seguintes: a idade, a deficiência, o pertencimento a comunidades indígenas, outras diversidades étnicas – culturais, entre elas, as pessoas afrodescendentes, assim como a vitimização, a migração, a condição de refúgio e o deslocamento interno, a pobreza, o gênero, a orientação sexual e identidade de gênero e a privação de liberdade.
Ainda em consonância as 100 regras, é certo que a privação da liberdade, determinada por autoridade pública competente, “pode gerar dificuldades para exercer com plenitude perante o sistema de justiça os restantes direitos dos quais é titular a pessoa privada da liberdade, especialmente quando concorre com alguma causa de vulnerabilidade enumerada no parágrafo anterior”. A concreta determinação das pessoas em condição de vulnerabilidade em cada país dependerá das suas características específicas, ou, inclusive, do seu nível de desenvolvimento social e econômico.
O fator da privação de liberdade faz com que o Estado deva atuar de modo inclusivo. No caso do Brasil, país com terceira maior população carcerária do mundo, a situação prisional configura, sem dúvidas, um fator vulnerabilizante. Em 2015, em sede de medida cautelar na ADPF 347, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro e estabeleceu a necessidade da adoção de medidas interinstitucionais e articuladas destinadas a combater o cenário.
O Estado de Coisas Inconstitucional ocorre quando se verifica a existência de um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, causado pela inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação de uma pluralidade de autoridades podem modificar a situação inconstitucional.
O STF reconheceu que o sistema penitenciário brasileiro vive um “Estado de Coisas Inconstitucional”, com uma violação generalizada de direitos fundamentais dos presos. As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios acabam sendo penas cruéis e desumanas.
Vale ressaltar que a responsabilidade por essa situação deve ser atribuída aos três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), tanto da União como dos Estados-Membros e do Distrito Federal.
A ausência de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias eficazes representa uma verdadeira “falha estrutural” que gera ofensa aos direitos dos presos, além da perpetuação e do agravamento da situação.
Assim, cabe ao STF o papel de retirar os demais poderes da inércia, coordenar ações visando a resolver o problema e monitorar os resultados alcançados.
Diante disso, o STF, em ADPF, concedeu parcialmente medida cautelar determinando que:
• juízes e Tribunais de todo o país implementem, no prazo máximo de 90 dias, a audiência de custódia;
• a União libere, sem qualquer tipo de limitação, o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização na finalidade para a qual foi criado, proibindo a realização de novos contingenciamentos.
Na ADPF havia outros pedidos, mas estes foram indeferidos, pelo menos na análise da medida cautelar.
STF. Plenário. ADPF 347 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 9/9/2015 (Info 798).
Apesar das medidas estabelecidas na ADP 347, é certo que pouco ou nada mudou no cenário nacional. Isso porque o Relatório Mundial da Human Rights Watch, publicado em 2020, contabilizou um total de 755.274 pessoas privadas de liberdade em 2019 no país e uma taxa de superlotação de 170,74%. É de se frisar o incremento alarmante de 224.5% da população carcerária, entre 2000 e 2019, segundo dados o Infopen.
A violação aos direitos humanos em instituições de privação de liberdade no Brasil vem sendo observada pelos atores do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Tal situação é de tal forma alarmante que, após visita in loco ao Brasil, entre os dias 5 e 12 novembro de 2018, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) publicou o Relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, em que consta um capítulo destinado especificamente às pessoas privadas de liberdade. A CIDH traz um breve histórico:
150. Nos últimos 20 anos, a Comissão vem dedicando especial atenção às condições deploráveis de detenção que caracterizam as instituições de privação de liberdade no Brasil, que, além dos sérios riscos à vida e à integridade das pessoas privadas de liberdade, constituem per se situações de tratamento cruel, desumano e degradante. Essas condições envolvem níveis alarmantes de superlotação, em sua maioria de pessoas afrodescendentes, infraestrutura precária, falta de separação entre pessoas sub judice e condenadas e notável insuficiência de agentes penitenciários. Além disso, prevalecem cuidados médicos negligentes, alimentação inadequada devido à sua escassez e baixo valor nutricional, falta de higiene, acesso inadequado à água, falta de itens essenciais, falta de programas eficazes de reintegração social e falta de tratamento diferenciado em relação aos diferentes tipos de população. Da mesma forma, nos centros de privação de liberdade, existem situações que ameaçam a integridade pessoal dos visitantes das pessoas detidas, principalmente através da realização das chamadas inspeções vexatórias. (grifos nossos)
Nesse relatório, a CIDH constatou que o Estado não tem sido capaz de garantir a proteção necessária às pessoas que se encontram institucionalizadas, sejam elas públicas ou privadas, havendo uma sistemática prática de tortura e maus tratos nas unidades. Não somente a CIDH outorgou medidas cautelares, mas também a CorteIDH emitiu medidas provisórias concernentes ao sistema prisional, com o fim de cessar tais violações.
151. Nos últimos anos, efetivamente, as violações de direitos humanos ocorridas nos sistemas de privação de liberdade no Brasil têm sido objeto de um crescente número de casos submetidos à consideração da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, chegando a 9.009 beneficiários nos últimos 5 anos, entre adultos e adolescentes. Em alguns deles, a Comissão outorgou medidas cautelares por entender que as condições de privação de liberdade feriam o princípio da dignidade humana e, portanto, demandavam medidas urgentes a fim de que não houvesse perdas irreparáveis.
A CIDH concedeu, por exemplo, as seguintes medidas cautelares: MC 8/13 – Pessoas Privadas de Liberdade no Presidio Central de Porto Alegre; MC 367/13 – Pessoas Privadas de Liberdade no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, e MC 60-15 – Adolescentes privados de liberdade em centros de atendimento socioeducativo de internação masculina no estado do Ceará. Por sua vez, a Corte emitiu medidas provisórias, entre outras, relacionadas ao Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, ao Complexo Penitenciário de Pedrinhas, ao Complexo Penitenciário Curado e ao Presídio Urso Branco.
O sistema de justiça penal nasce baseado na premissa de uma igualdade formal: as condutas tipificadas atingiriam de forma igualitária aqueles que as praticassem. No entanto, a impunidade e os processos de criminalização são orientados pela seleção desigual das pessoas, de acordo com estereótipos marcados, presentes no senso comum e nos operadores do controle penal. Essa seletividade tem nos marcadores sociais e raciais o seu norte.
É certo afirmar que o Direito Internacional dos Direitos Humanos articula a noção de privação de liberdade com o racismo estrutural. A discriminação e a desigualdade estruturais também estão presentes nos estabelecimentos de privação de liberdade. Quanto a isso, vale ressaltar que a CIDH reconhece que, tanto o sistema prisional, como socioeducativo e as comunidades terapêuticas:
3. (…) Segundo observa a CIDH, esses espaços acabam se tornando cenários institucionais para a marginalização de pessoas afrodescendentes e das que vivem em situação de extrema pobreza. Em especial, a CIDH destaca a situação das pessoas privadas de liberdade que, muitas das vezes encarceradas em espaços superlotados e com deficiências estruturais extremas, sofrem maus-tratos e são frequentemente submetidas a atos de tortura. De igual maneira encontram-se as crianças e adolescentes em conflito com a lei, que são alojadas em centros socioeducativos que se assemelham a complexos de privação de liberdade e se distanciam do papel fundamental de reinserção social. (grifos nossos)
Dados do Infopen 2018 constatam que 67% das pessoas privadas de liberdade, no Brasil, são negras, 74% são jovens (menos de 35 anos) e de baixa escolaridade (quase 70% dos presos não concluíram o ensino fundamental). Assim, conforme aduz Flauzina (2018). o racismo é a âncora da seletividade penal: basta rememorar que as primeiras colocações sobre controle social foram organizadas com base no discurso de racismo científico de Cesare Lombroso e Raimundo Nina Rodrigues.
CASO DO INSTITUTO PENAL PLÁCIDO DE SÁ CARVALHO
Breve resumo histórico
Dentre as medidas provisórias expedidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) sobre a situação da população carcerária no Brasil, está aquela relacionada ao Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho (IPPSC). Localizado no Complexo Penitenciário de Bangu, no Rio de Janeiro, o IPPSC encontra-se sob a jurisdição interventiva do sistema interamericano de direitos humanos, tendo sido objeto de diversas inspeções in loco realizadas pela Corte IDH, em maio de 2017, após a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ) denunciar a situação degradante e desumana em que os presos se achavam.
A busca por medidas que mudassem a realidade de condições precárias do local começou ainda em 2012. Nesse ano, foi realizada a primeira inspeção pela DPRJ, das inúmeras que se seguiram, no IPPSC. Já naquele momento, constatou-se o cenário de violação ampla de direitos fundamentais. A Vara de Execuções Penais (VEP) foi notificada das precárias condições do instituto, mas nada fez. Daí, em 2016, como forma de atuação estratégica no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a DPRJ aciona a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e pede a adoção de providências. A CIDH acolheu o pedido e determinou que o Estado brasileiro desenvolvesse medidas para acabar com a superlotação e demais problemas estruturais do IPPSC.
De acordo com inspeções realizadas pelo Núcleo do Sistema Penitenciário da DPRJ (NUSPEN), em 2016, o IPPSC tinha capacidade para aproximadamente 1600 internos. No entanto, mais de 3400 pessoas se encontravam aprisionadas no local. Naquele ano, pelo menos 32 presos morreram por mortes evitáveis, por não ter acesso à saúde básica.
Na Resolução de 18 de julho de 2016, a CIDH determinou que o Estado brasileiro adotasse as medidas, em favor dos presos, no IPPSC: para proteger a vida e a integridade das pessoas custodiadas do IPPSC; para reduzir a superlotação de acordo com padrões internacionais; e para proporcionar condições adequadas de higiene e saúde; dentre outras.
Diante da omissão do Estado Brasileiro, a CIDH solicitou medidas provisórias à Corte para proteger os direitos à vida e à integridade física dos presos dos presos do IPPSC, fundamentadas na situação de superpopulação carcerária, insalubridade, reduzido número de agentes carcerários, com fundamento nos artigos 63.2 da CADH e 27 do Regulamento da Corte. Apesar de notificado, o Estado brasileiro não atendeu a decisão da CIDH e, a pedido da DPERJ, o caso foi levado à Corte IDH, que visita pessoalmente e constata todas as violações.
A Corte verificou, após tais visitas locais, que o IPPSC possuía uma superpopulação com densidade próxima aos 200% (duzentos por cento). Tal situação ia de encontro aos parâmetros internacionais para verificação de criticidade, que, de acordo com o Conselho da Europa, apontam que uma população carcerária acima de 120% (cento e vinte por cento) implica superpopulação crítica. Além disso, observou-se com preocupação o fato de o Estado dispor de apenas sete juízes de execução penal no Estado do Rio de Janeiro para acompanhar o cumprimento de pena e o regime de execução de mais de 50 mil pessoas privadas em liberdade.
Medidas adotadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho
Considerado um dos piores presídios do Brasil, de acordo com relatório Grupo de Pesquisa Saúde nas Prisões da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz sobre a saúde nas prisões, a situação de violação de direitos humanos no IPPSC foi mote para decretação de medidas provisórias pela Corte IDH, ainda em 2017. Além disso, culminou na confecção do Relatório da Corte IDH de 22 de novembro de 2018, que tratou sobre a atuação dos presos no referido estabelecimento penal.
Nesse relatório, foi constatado que a atenção médica recebida pela população carcerária era ínfima, com uma médica a cargo de mais de três mil presos, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS/OPAS) considera que, no mínimo, deve haver 2,5 médicos por 1.000 habitantes para prestar os mais elementares serviços em matéria de saúde à população livre. Ademais, igualmente se asseverou que a mortalidade dessas pessoas em situação de vulnerabilidade é superior à da população livre, havendo, ainda, uma carência de informação acerca das causas de morte.
Quanto à arquitetura do instituto, constatou-se a falta de espaços dignos para o descanso noturno, com superlotação em dormitórios, verificada in situ; a insegurança física por falta de previsão de incêndios, em particular com colchões não resistentes ao fogo, verificada in situ; bem como a insegurança pessoal e física decorrente da desproporção de pessoal em relação ao número de presos.
A partir desse cenário de crítica violação de Direitos Humanos descrito, a Corte IDH determinou que o Estado brasileiro adotasse imediatamente as seguintes medidas:
- (1) a adoção de medidas necessárias para proteger eficazmente a vida, a saúde e a integridade pessoal dos privados de liberdade, agentes penitenciários, funcionários e visitantes;
- (2) Respeito à vida e à integridade dos defensores e defensoras de direitos humanos;
- (3) em atenção à Súmula Vinculante 56 do STF, não ingressem novos presos nem se efetuem translados para outros estabelecimentos por disposição administrativa;
Súmula Vinculante 56 – STF A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS.
- (4) o cômputo em dobro para cada dia de privação de liberdade cumprido no IPPSC para todos que não sejam acusados de crimes contra a vida, integridade física e crimes sexuais, inclusive aos que foram transladados ou tenham deixado o Complexo.
- (5) a organização de equipe criminológica que aconselhe pela (in)conveniência do cômputo em dobro para acusados e condenados por crime contra a vida, integridade física e dignidade sexual.
- (6) Remição in natura.
Cumpre ressaltar, no entanto, que a exigência de exame criminológico é bastante criticável, bem como vem sendo, em concreto, um empecilho para que haja a remição de pena para alguns presos. Tais críticas serão mais bem aprofundadas a seguir.
A “remição por tortura” e críticas às ressalvas feitas pela Corte IDH em relação aos acusados e condenados por crime contra a vida, integridade física e dignidade sexual:
No direito internacional, aprisionamento em condições degradantes equivale à tortura, sendo certo que o direito de não ser torturado é absoluto. A Corte neste caso está concordando com a tortura, defendendo tão somente que a pessoa passe menos tempo nesta condição, motivo pelo qual Caio Paiva, pegando emprestado a expressão de Giamberardino (2018), chamou essa espécie de remição de “remição por tortura”.
Segundo Paiva e Heeman (2020), um tribunal de direitos humanos não pode anuir com o aprisionamento degradante, sendo certo que a Corte deveria determinar que o Brasil colocasse estas pessoas em liberdade ou as transferisse para um estabelecimento que não esteja em condições degradantes. A melhor solução para este caso, portanto, seria a indenização e/ou remição de pena para reparar o passado e a imediata colocação em liberdade ou transferência para estabelecimento condigno ou prisão domiciliar para quem está atualmente em condição de tortura.
Como ventilado no tópico anterior, a Corte IDH determinou um tratamento diferenciado para as pessoas condenadas por crimes contra vida, integridade física e delitos de natureza sexual, e que cumpriam pena no IPPSC. Para elas, a contagem em dobro deve ser precedida de prognóstico de conduta com base em indicadores de agressividade a ser elaborado por equipe criminológica, constituída especialmente por psicólogos e assistentes sociais, que indicará a conveniência ou não do cômputo em dobro, ou a redução da pena em menor medida, em parecer emitido por pelo menos três profissionais.
A doutrina critica tal determinação (por todos, Paiva), uma vez que o exame criminológico é um exame irrefutável, o que viola a ampla defesa e o contraditório, além de representar mero exercício de futurologia e ser dotado de alta carga de subjetividade. É a representação de um direito penal do autor, em total violação ao direito penal do fato.
Outro ponto de crítica é a ressalva de que aqueles que tenham cometido crime contra a vida, integridade física e crime sexual não seriam contemplados com o cômputo em dobro da pena, sendo possível falar, inclusive, em adoção de um direito penal do inimigo, considerando que pessoas que cometeram determinados delitos têm menos dignidade e não devem gozar dos mesmos direitos.
Cenário atual de cumprimento da decisão
Quanto à aplicação do cômputo de pena em dobro pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e pelo Superior Tribunal de Justiça, é certo afirmar que a questão foi objeto de grande celeuma. Em um primeiro momento, o TJRJ aplicou a contagem em dobro apenas para o período de cumprimento de pena posterior a 14 de dezembro de 2018, data em que o Brasil foi notificado formalmente da resolução da Corte IDH. Sob a justificativa de que a resolução não fazia menção expressa ao “termo a quo” da determinação, o TJRJ decidiu que, de acordo com as normas do direito brasileiro, tal termo seria contado a partir da notificação formal do Estado brasileiro.
Irresignada, a defesa de um custodiado no IPPSC impetrou HC no STJ buscando a contagem em dobro de todo o período em que o condenado lá ficou preso, para que assim fosse possível alcançar o tempo necessário para obter os benefícios da execução penal. A argumentação foi colhida pelo Min. Rel. Reynaldo da Fonseca. Segundo o Ministro, ao Brasil aderir à CADH, houve reconhecimento da competência da Corte IDH em relação à interpretação e aplicação da Convenção, e que suas decisões produzem autoridade de coisa julgada internacional, com eficácia vinculante e direta às partes. São obrigados a dar cumprimento às decisões da Corte todos os poderes e órgãos nacionais. Sobre isso, válido trazer à baila a lição de Mazuolli (2020):
“Segundo essa concepção, o Direito interno deriva do Direito Internacional, que representa uma ordem jurídica hierarquicamente superior. No ápice da pirâmide das normas encontra-se, pois, o Direito Internacional (norma fundamental: pacta sunt servanda), do qual provém o Direito interno, que lhe é subordinado. Ambos os ordenamentos, o interno e o internacional, sob o comando deste último, marcham pari passu rumo ao progresso ascensional da cultura e das relações humanas. Em outras palavras, o Direito Internacional passa a ser hierarquicamente superior a todo o Direito interno do Estado, da mesma forma que as normas constitucionais o são sobre as leis ordinárias, e assim por diante. E isto porque o seu fundamento de validade repousa sobre o princípio pacta sunt servanda, que é a norma mais elevada (norma máxima) da ordem jurídica mundial e da qual todas as demais normas derivam, representando o dever dos Estados em cumprir as suas obrigações. Ademais, se as normas do Direito Internacional regem a conduta da sociedade internacional, não podem elas ser revogadas unilateralmente por nenhum dos seus atores, sejam eles Estados ou organizações internacionais. Como se vê, a solução monista internacionalista para o problema da hierarquia entre o Direito Internacional e o Direito interno é relativamente simples: um ato internacional sempre prevalece sobre uma disposição normativa interna que lhe contradiz”.
Por fim, o Ministro destacou a incidência do princípio da Interpretação mais favorável. No caso em tela, a melhor interpretação a ser dada à resolução é aquela em que há a aplicação a da Resolução ao tempo todo de pena cumprido na unidade. Se não, vejamos:
O Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho (IPPSC) é um estabelecimento penal voltado ao cumprimento de pena privativa de liberdade com o enfoque em pessoas do gênero masculino. Está localizado no Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
O IPPSC apresentou elevados índices de mortes de presos decorrentes da superlotação e das más condições sanitárias do local. Por essa razão, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) expediu medidas provisórias em face do Brasil, sob o fundamento de que houve violação à integridade pessoal dos presos, nos termos da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).
Em uma dessas Resoluções (de 22/11/2018), a Corte IDH determinou que deveria ser computado em dobro cada dia de privação de liberdade na unidade prisional IPPSC, exceto para os acusados ou condenados por: a) crimes contra a vida; b) crimes contra a integridade física; ou c) crimes sexuais.
O cômputo da pena em dobro deve ser sobre todo o período de pena cumprido pelo condenado no IPPSC ou deverá ficar limitado ao período posterior ao conhecimento formal do Brasil acerca da Resolução?
O cômputo em dobro atinge a totalidade da pena cumprida. Logo, não é possível modular os efeitos do cômputo da pena em dobro, tendo em vista a situação degradante do estabelecimento prisional, inspecionado e alvo de inúmeras Resoluções da Corte IDH.
Não se mostra possível que a determinação de cômputo em dobro tenha seus efeitos modulados como se o preso tivesse cumprido parte da pena em condições aceitáveis até a notificação e, a partir de então, tal estado de fato tivesse se modificado. Em realidade, o substrato fático que deu origem ao reconhecimento da situação degradante já perdurara anteriormente, até para que pudesse ser objeto de reconhecimento, devendo, por tal razão, incidir sobre todo o período de cumprimento da pena.
STJ. 5ª Turma. AgRg no RHC 136961-RJ, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 15/06/2021, DJe 21/06/2021 (Info 701).
Destaca-se também o princípio da fraternidade, observado pelo ministro João Otávio de Noronha. Nas palavras do ministro, o voto do Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca “consagra um princípio já agasalhado na Constituição Federal [o Princípio da Fraternidade], em que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte“.
Segundo a Defensora Pública Vivian Baptista, titular do NUSPEN e atuante no IPPSC, a decisão da Corte IDH foi aplicada até um certo ponto pela Vara de Execuções Penais (VEP-TJRJ). Em um primeiro momento, o juiz da VEP limitava a data do ingresso do preso no IPPSC até 14/12/2018 para que este tivesse direito à remição em dobro.
Quanto à realização de exame criminológico, a perícia com equipe técnica deveria ser indicada pela SEAP, o que limitou, nos casos de pessoas condenadas por crimes contra vida, integridade física e delitos de natureza sexual, a aplicação da decisão. No início, casos com roubo sem arma ou emprego de violência, depois pararam de ganhar, com a mudança de posicionamento da VEP.
A Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP) instituiu, por meio da Resolução SEAP Nº 782/2019, equipe criminológica, em caráter emergencial, para acompanhar e avaliar a conduta dos presos custodiados no IPPSC acusados dos crimes contra a vida e integridade física, ou de crimes sexuais. Sempre que requisitado, a equipe deve redigir parecer, dirigido à Vara de Execuções Penais, indicando se o preso que se encontra no IPPSC deve ou não ter a redução de 50% do tempo real de privação de liberdade ou se tal redução deve ser em proporção inferior a 50% com base no prognóstico da conduta e em indicadores de agressividade da pessoa, de acordo com os parâmetros estabelecidos pela Resolução da Corte IDH.
Apesar de tal norma da SEAP, os exames não vêm sendo feitos. Isso porque a SEAP tem apresentado à VEP declarações da Coordenadora de Psicologia e da Coordenadora dos Serviços Sociais, ambas afirmando a impossibilidade de emissão de laudo criminológico nos moldes constantes da Resolução da Corte IDH, De acordo com a SEAP, os profissionais das áreas estariam impedidos, pelas disposições de seus respectivos Códigos de Ética, de emitir relatório em exames criminológicos com emissão de prognóstico de conduta e de opinar sobre o cômputo de pena, sob pena de constituir infração disciplinar.
Com base nisso, e somado à suspensão da realização de exames criminológicos durante a pandemia, a VEP tem negado o cômputo em dobro do tempo de pena cumprida nos casos de condenados por crimes contra a vida e integridade física, ou de crimes sexuais. A recusa é quanto os exames criminológicos nos parâmetros da corte. A SEAP pode fazer, na forma que já é praxe, e, não como determinado pela Corte IDH.
Ainda de acordo com a Defensora Pública Vivian Baptista, hoje há mais de 70 detentos que estão aguardando a SEAP criar a equipe para fazer a perícia nos moldes requeridos pela Corte IDH. Segundo ela, levando-se em consideração possíveis efeitos jurídicos e pedagógicos da decisão da Corte, é possível afirmar que, em termos pedagógicos para o Estado do Rio de Janeiro, ela não serviu de nada. Isso porque, posteriormente, a CIDH concedeu medidas provisórias em outras penitenciárias do estado, como o Evaristo de Moraes a e Joia Santana, que, tal como o IPPSC, se encontram atualmente sob a jurisdição interventiva do sistema interamericano de direitos humanos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O sistema penitenciário brasileiro, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, vive uma situação de um Estado de Coisas Inconstitucional, com uma violação generalizada de direitos humanos e fundamentais da população carcerária. Apesar de a decisão, em 2015, ter determinado uma série de medidas para reduzir a vulnerabilidade dos presos, a situação ainda é crítica, muito em função do superencarceramento e de outras condições precárias de aprisionamento.
Em relatório publicado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a CIDH constatou que o tratamento dado, no Brasil, à população encarcerada é cruel, desumano e degradante. Além disso, a Comissão apontou que o racismo estrutural é preponderante para que as pessoas negras sejam mais selecionadas pelo sistema penitenciário e acabem compondo a maior parte desse grupo. Nesse mesmo documento, a CIDH citou a medida provisória conferida no Caso do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, localizado no complexo penitenciário de Bangu, no Rio de Janeiro.
Com uma superpopulação crítica na casa dos 200%, enquanto o limite estabelecido pelo Conselho da Europa é de 120%, o Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho foi alvo de uma série de medidas provisórias, pela CIDH e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, com o objetivo de fazer cessar as violações, que lá ocorriam, dos direitos à vida e à integridade física dos presos, entre outros. O presente trabalho concentrou-se na concessão de cômputo em dobro da pena privativa de liberdade cumprida no IPPSC, ressalvados os presos que acusados de crimes contra a vida, integridade física e crimes sexuais.
Denominada “remição por tortura” por Giamberardino (2018), a aparentemente decisão paradoxal da Corte Interamericana foi duramente criticada por Paiva e Heeman (2020). De acordo com Paiva, como Corte de Direitos Humanos que é, a Corte Interamericana jamais poderia ter anuído com uma espécie de remição pelo sofrimento. Sendo o direito a não ser torturado direito absoluto, o mais correto seria a Corte ter estipulado indenizações aos presos que tiveram uma vivência cruel e degradante no IPPSC, além de, é claro, ter determinado a imediata colocação em liberdade dessas pessoas.
Além disso, Paiva também critica o tratamento diferencial dado a alguns presos. Isso porque, àqueles acusados de certos crimes (contra a vida, integridade física e sexuais) há a exigência de exame criminológico específico. Tal requisito, conforme asseverado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, acaba, na prática, dificultando e até impossibilitando que esses presos tenham direito ao cômputo em dobro da pena.
Por fim, é certo afirmar que, apesar de toda repercussão nacional e internacional das violações de direitos humanos ocorridas no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho e de todas as medidas de reparação estabelecidas contra o Estado do Rio de Janeiro, não houve qualquer mudança estrutural no tratamento conferido à população carcerária fluminense. O princípio da humanidade das penas, bem como o da dignidade da pessoa humana, é diariamente violado no sistema carcerário estadual e nacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACESSO À JUSTIÇA 19: Plácido de Sá Carvalho: onde a pena vale por duas. Entrevistados: Leonardo Rosa, Carlos Gaio e Vivian Baptista. Entrevistadora: Débora Diniz [S. l.]: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, 28 jun. 2021. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/7DKyHH7dyjuqbIEqG9gcNa. Acesso em: 7 jul. 2021.
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